Clube da Esquina: a geração dos sonhos. Os Sonhos não Envelhecem – BORGUES (VH)

BORGES, Márcio. Clube da Esquina: a geração dos sonhos. Os Sonhos não Envelhecem. Histórias do Clube da Esquina. Geração Editorial. Resenha de: NEVES, Lucilia de Almeida.   Varia História, Belo Horizonte, v.13, n.18, p. 491-494, nov., 1997.

“Escrevo para cumprir um impulso, esvaziar meus escaninhos e contar para mim mesmo com os olhos do tempo e da distância uma história que de qualquer forma já está contada nas músicas que compus”. Estas são as palavras com que Márcio Borges, primeiro parceiro de Milton Nascimento, crava nas páginas iniciais de seu recente livro o mais profundo e humano sentido de permanência das lembranças e dos sonhos.

Escrevendo um texto que pode ser classificado tanto como romance de uma geração, ou como livro de memórias o autor, através de um estilo saboroso, arrebatador, simples mas verticalizado, produz literatura histórica de primeira qualidade. Os casos contados por Borges apresentam-se como visita às reminiscências de um tempo histórico privilegiado no qual os jovens cronstruíam utopias. Trata-se de um mergulho no tempo que se foi. Mergulho pautado pelas emoções e vivências do presente. De um presente que se consubistancia como ponto de partida para a viagem do recordar.

A memória é caracterizada por potencialidades múltiplas, dentre as quais se destacam as seguintes: possiblidade de reascender utopias de um tempo anterior, reconstrução da atmosfera de outra época, revivicação de emoções políticas, individuais e sociais. Borges, ao rejuvenescer os sonhos passados, realiza na escrita de suas memórias as potencilidades inerentes ao ato de rememorar. O faz com sabor especial, com uma força particular, que transforma a memória em História.

As memórias individuais de Márcio Borges, traduzidas em palavras que conformam um texto de saborosa viagem ao recente passado mineiro e brasileiro, transmudam-se em elementos que contribuem para uma melhor compreensão da história contemporânea de Belo Horizonte e do Brasil. Isso porque, suas lembranças particulares, são, simultaneamente, revelações de memórias coletivas. Dessa forma, o relato individual do autor tem como ponto de partida diferentes quadros sociais, ou seja, a vida cotidiana da comunidade belohorizontina nos anos sessenta e a inserção nesse cotidiano de jovens de classe média, tomados por um forte impulso gregário e por um marcante desejo de “mudar o mundo”. Portanto, como afirma Fernando Brant em sua apresentação do livro, o autor:

“Com olhos de cinema, literatura e música viu e vê a vida. Máquina humana de decifrar o mundo com palavras, sons e imagens, ela aparece agora contando cacos de um tempo querido, os anos sessenta e setenta”.

O livro, cujo pano de fundo temporal é a efervescente década de sessenta e os silenciosos primeiros anos da década de setenta retrata, com emoção de artista, o cenário de um tempo histórico privilegiado no qual o mundo foi revirado pelo avesso. Nas páginas do livro, como em um documentário cinematográfico podem ser visualizados, através do texto e de fotografias, a derrubada de João Goulart, o movimento da juventude em 1968, o surgimento e consolidação do grupo de jovens músicos mineiros, que formaram o Clube da Esquina, o recrudescimento do autoritarismo no início dos anos setenta e o nascimento da década de oitenta, arejada pelas primeiras e sequentes brisas da abertura política.

O principal sujeito da história contada por Borges é um grupo de jovens mineiros que, naqueles anos, movido por uma forte esperança trasnsformadora, contribuiu para o plantio de sementes de mudanças no Brasil e em todo ocidente. Jovens integrantes de uma geração marcada pela vontade de visualizar alternativas para o futuro do país e do planeta terra, e de buscar a construção dessas alternativas no presente. Dessa forma, o texto apresenta-se como especial observatório de uma geração que não teve medo de viver e de romper barreiras. De uma juventude, que fez da arte porta voz de sonhos e que revelou através da música o retrato de um Brasil, àquela época amordaçado, mas não rendido às mãos fortes do autoritarismo político.

Os personagens que viveram a aventura daquele tempo de acreditar em sonhos eram rapazes da então pacata Belo Horizonte. Uma cidade de avenidas largas e arborizadas que conformaram o cenário no qual a vida se descortinava plena para um grupo de adolescentes que residia em sua parte central, no edifício Levy. Um prédio plantado em plena Avenida Amazonas, nas proximidades da Praça Sete, coração da capital mineira. Adolescentes que cresceram presenciando as transformações que levaram o Brasil democrático do início dos anos sessenta, na época do populismo e do governo Jango, a se transformar em um país dominado pelo arbítrio do regime militar.

Estudantes que desabrocharam para a vida num tempo de coerção e censura. Jovens em cujas veias corria uma musicalidade de forte inspiração poética, que deu origem, em Minas Gerais, a um espontâneo e original movimento cultural que ficou conhecido como O Clube da Esquina.

Ao relembrar as origens desse movimento, Márcio Borges traz à cena uma juventude caracterizada por um forte espírito solidário e por um criativo desejo de conhecimento revelados em conversas infindáveis sobre arte, música, cinema e política nos colégios, universidades, bares, bairros e esquinas da cidade de Belo Horizonte.

Uma Belo Horizonte que ainda não tinha ares de metrópole, mas que era iluminda por uma efervescente vida cultural, que desabrochava nos teatros e cineclubes e se ramificava pelos bairros da cidade. Foi exatamente em um bairro da capital mineira, Santa Tereza, para o qual se mudara a família Borges, que surgiu, na década de setenta, o Clube da Esquina. Borges assim descreve o então corriiqueiro encontro de jovens que vieram a animar um dos mais ricos movimentos musicais do Brasil contemporâneo:

“… o nome Clube não designava senão uma pobre esquina, um pedaço de calçada e um simples meio fio, onde os adolescentes da rua (e só raramente os rapazes de minha idade) costumavam vadiar, tocar violão, ficar de bobeira, no cruzamento das ruas Divinópolis e Paraisópolis. O Club da esquina.”

O texto além de narrar aspectos do cotidiano, como o acima descrito, é marcado por uma nostalgia que, paradoxalmente, ao relembrar o passado, descortina o futuro. Futuro este que se revelou diferente para cada um dos rapazes que integraram aquele movimento musical. Mas um futuro no qual, pelos nós de um passado comum, todos se mantiveram definitivamente atados uns aos outros.

As lembranças do que passou, marcadas por indiscritível saudade e por um sentimento unívoco de que cada tempo é único e significativo em sua peculiariedade, são assim definidas pelo próprio autor:

“ Ressurjo agora para contar aquelas cenas longíquas que hoje brilham em meus olhos através das lentes que naturalmente adquirimos com a idade madura e a vista cansada: as da compaixão e da saudade. Portanto, e finalmente, este relato é de minha parte só uma invocação, uma celebração, uma ode ao tempo que passou voando e apenas ocorreu uma vez na vida de cada um de nós”.

Na ode ao tempo tecida por Borges estão presentes os Beatles com suas músicas que revolucionaram os hábitos da juventude e a musicalidade do mundo contemporâneo. Nela está descrito, com especial sensibilidade, o costume então corriqueiro de ir ao cinema e discutir filmes à exaustão. Além disso, são revelados, pelas palavras que compõem a trama do texto, a força das experiências coletivas, as resistências pacifistas da juventude, os movimentos de cultura alternativa e a inacreditável magia dos tempos em que no Brasil ainda havia ensino público secundário de qualidade, representado, no caso, pelo Colégio Estadual Central de Belo Horizonte.

Nas páginas do livro, por outro lado, estão registrados os anos de autoritarismo político e acontecimentos peculiares àquela época, como o da morte de jovens que cultivavam o sonho da igualdade. Estão traduzidos também: o dilema da juventude que buscava resistir à ausência de liberdade, a ânsia de transformação que contaminava estudantes, artistas e outros expressivos segmentos da sociedade brasileira de então e, principalmente, o passar do tempo que transformou todas essas experiências e projetos coletivos em História.

Márcio Borges, amigo e cúmplice de Milton Nascimento, ao relembrar a trajetória do compositor e do grupo de artistas que em torno dele se agregava, contempla o leitor com descrições minuciosas sobre a inspiração criativa e vital que gerou em Belo Horizonte e em Minas Gerais uma musicalidade nova, diferente de tudo o que se fazia na música popular brasileira da época. Música e versos inesquecíveis, marcados por uma profundidade impar, por uma densidade que entranha.

Também registra, sem qualquer tom de mágoa, a já tradicional diáspora de artistas e intelectuais mineiros que, como se cumprindo o ritual de uma sina secular, precisam desapegar-se de sua terra e correr outros “Brasis” para alcançarem projeção. Contudo, ao falar do “desterro” dos mineiros, registra a persistência de alguns — como ele próprio — que resistiram ao impulso de partir e mantiveram-se presos ao chão de ferro das Minas Gerais, tendo mesmo assim alçado vôos sobre outras plagas.

De Três Pontas para Belo Horizonte; de Minas para as gravadoras do Rio de Janeiro e São Paulo; do Brasil para o mundo, as histórias do Clube da Esquina contam sobre um país pluralista, múltiplo, sofrido, marcado pelas desigualdades e pela vontade de sua juventude de construir um novo futuro. Contam também sobre músicas de forte religiosidade, de montanhas, de trens, de aldeias, de fogo, de amigos, de sete chaves, de saudade, de artistas, de paisagens, do velho Curral D’el Rei, da América do Sul. Contam, principalmente, sobre a travessia de Milton Nascimento, dos irmãos Borges, de Tavinho Moura, de Toninho Horta, de Ronaldo Bastos, de Fernando Brant e de toda uma geração, que era jovem nos anos sessenta, para uma fase da vida na qual os sonhos não envelheceram… transformaram-se.

Lucilia de Almeida Neves – Professora do Curso de História da PUC Minas e do Mestrado em História da UFMG.

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