Festival culture in the world of the Spanish Habsburgs – CREMADES; FERNÁNDEZ-GONZALEZ (RH-USP)

CREMADES, Fernando Checa; FERNÁNDEZ-GONZALEZ, Laura. Festival culture in the world of the Spanish Habsburgs. Nova York: Routledge, 2016. (Primeira publicação em 2015 por Ashgate Publishing). Resenha de: SOUTTO MAYOR, Mariana. Representações de poder, mediações do Império: festas e cerimoniais na monarquia dos Habsburgo. Revista de História (São Paulo) n.177 São Paulo  2018.

Os cerimoniais e festividades da Idade Moderna têm sido objeto de análise de pesquisadores de diversas áreas nos últimos anos. Os estudos clássicos de Jacob Burckhardt e as análises de Mikhail Bakhtin, Norbert Elias, Ernest Kantorowicz, Victor Turner, José Maravall e José Diez Borque fortaleceram a criação de um campo específico de estudos e abriram novas perspectivas para analisar os múltiplos significados presentes nas práticas representacionais que compõem um acontecimento festivo.

O livro aqui apresentado, organizado por Fernando Checa Cremades, professor da Universidade Complutense de Madri, e Laura Fernández-Gonzalez, professora da Universidade de Lincoln, dialoga com essa tradição de estudos e revela novos olhares para a análise da cultura festiva, especificamente na monarquia dos Habsburgo, através de artigos de especialistas em diversas áreas.

O trabalho surgiu de uma conferência internacional que Laura González organizou na Universidade de Edimburgo, na Escócia, sobre festividades europeias da Idade Moderna, com especial atenção ao mundo hispânico. Porém, esta edição configura um passo além da publicação de trabalhos apresentados no simpósio; o livro apresenta excelentes estudos sobre a cultura festiva da monarquia dos Habsburgo, organizados de forma a contemplar diversos aspectos das festividades modernas, sublinhando a necessidade de uma perspectiva interdisciplinar.

Os estudos contidos na publicação abrangem o amplo sistema cultural criado e desenvolvido na monarquia dos Habsburgo considerando as dinâmicas, muitas vezes complexas e contraditórias, entre as formas culturais e formações sociais.1 Os reflexos e mediações de estruturas militares, econômicas, religiosas e políticas do poderoso império que se formou no século XVI são investigados ao longo de 12 artigos.

O livro, dividido em quatro partes, ganha qualidade dando foco às particularidades da monarquia dos Habsburgo com análises de festivais em Castela, mas também em outras partes do império, como nos reinos italianos, em Portugal, nas colônias americanas, contemplando diferentes períodos históricos. Um dos pontos fortes dessa publicação está na organização dos temas em capítulos e partes, criando mediações para o leitor ao tratar de tantas questões que envolvem as festividades e cerimoniais no Império espanhol.

Outro aspecto importante, destacado pelos organizadores na introdução, é o fato de a publicação ser em inglês. Essa escolha seria estratégica do ponto de vista do alcance que o próprio livro poderia ter: se comparado aos estudos de festividades de outras monarquias europeias, há menos estudos sobre a monarquia hispânica. O livro, portanto, seria uma forma de divulgação para estimular jovens pesquisadores de todo mundo.

Para nós, brasileiros, que temos uma importante bibliografia sobre festas na América portuguesa,2 a publicação tem especial valor por afirmar a necessidade de estudos comparativos e interdisciplinares sobre festividades na Idade Moderna, como também os textos publicados nos servem de modelos de análise, complementando estudos já existentes.

A primeira parte do livro é dedicada à cultura visual, com o estudo de tapeçarias e pinturas no ambiente de corte. A escolha do tema chama a atenção pelo fato de que, em festividades públicas, a maior parte da produção de artes visuais consistia em “arte efêmera”: era produzida especialmente para o evento, não necessariamente sendo reutilizada ou reaproveitada em outras datas comemorativas. Daí a dificuldade do estudo dessas formas artísticas, pois o que chegou às nossas mãos são documentos, como gravuras e esboços, que reproduzem, com mediações, o que foi criado.

As tapeçarias, ao contrário, são objetos de arte permanentes, o que as fazem fonte primária de estudo. O primeiro artigo, intitulado “The language of triumph: images of war and victory in two early modern tapestry series, de Fernando Checa Cremades, analisa duas séries de tapeçarias que narram campanhas militares espanholas no norte da África, do final do século XV a primeira metade do XVI, na perspectiva de suas formas e funções em cerimoniais na corte.

Para Checa, as tapeçarias The conquest of Asilah and Tangiers by Afonso V of Portugal (1475) e The conquest of Tunis (1546-1553) podem revelar o desenvolvimento da linguagem da tapeçaria na Idade Moderna. A forma “tapeçaria” surge no final da Idade Média, imitando o gênero literário das crônicas históricas. Na transposição do texto para a criação de imagens, houve o desenvolvimento de uma forma mais complexa, que se apropriou inclusive da linguagem do “triunfo militar”. Não à toa o título do artigo faz menção à forma triunfo, relacionando as tapeçarias com a representação das vitórias militares e imagens de guerra na corte dos Habsburgo.

Nas palavras de Checa, os diversos usos das tapeçarias sinalizam “a importância simbólica e representativa dada a elas”. As duas tapeçarias serviam à monarquia não só no ambiente da corte, para decorar quartos e salas de palácios, como também em festivais e celebrações de todo tipo, enquanto grandioso ornamento arquitetônico urbano. Esse uso, além de levar o ambiente de corte para a cidade, constituiu a forma moderna do “triunfo”, ao reiterar a força militar do reino e o poderio da monarquia dos Habsburgo. O estudo mais detalhado feito pelo autor será sobre a segunda tapeçaria, The conquest of Tunis, criada sob o reinado de Carlos V. O monarca soube aproveitar essa linguagem para construir e legitimar sua imagem imperial como conquistador de seus inimigos e, ao mesmo tempo, como “senhor de si e de suas paixões” – seguindo a filosofia estóica, de acordo com Checa.

O segundo texto “The cerimonial decoration of the Alcázar in Madrid: the use of tapestries and paitings in Habsburgs festivities”, de Miguel A. Zalama Rodriguez, debate o valor da tapeçaria na corte em relação com a novidade da pintura como forma de representação visual. Diferentemente de outras cortes, na monarquia hispânica, a pintura tomou o lugar da tapeçaria somente no século XVII.

Zalama narra alguns episódios da cultura da corte dos Habsburgo que nos ajudam a compreender a importância e as funções da tapeçaria nesse momento histórico como parte das coleções reais. E a partir de descrições de cronistas, Zalama oferece ferramentas para a análise do comportamento e etiquetas da corte dos Habsburgo.

Se a primeira parte do livro com o estudo das tapeçarias volta-se mais para o ambiente da corte, a segunda parte continua a investigar a linguagem do triunfo com o olhar para entradas, jornadas e suas relações com espaços urbanos na monarquia dos Habsburgo, através de cinco análises de festividades públicas em diferentes localidades do Império espanhol.

O artigo “Festival interventions in the urban space of Habsburg Madrid”, de David Sánchez Cano, através do estudo de documentos de conselhos municipais castelhanos e instruções reais, faz uma análise muito interessante sobre as transformações urbanas realizadas para as festas públicas e as conflituosas relações entre os conselhos e a corte, e entre habitantes da cidade e os poderes locais e reais.

Para que as entradas triunfais ocorressem na cidade seguindo suas formas pré-estabelecidas, era necessário a decoração da cidade, a construção dos arcos triunfais e adornos. Mas era necessário também uma infraestrutura que muitas vezes não estava de acordo com a arquitetura da cidade. O conselho ordenava então a pavimentação, fechamento e alargamento de ruas, a reforma ou demolição de casas, o reparo de fontes públicas, a construção de plateias para os espectadores, palcos para representações. Inclusive, em meados do século XVII, iniciou-se a prática de construir barreiras para separar o público da procissão principal, deixando clara a regulação do espaço público para disciplinar seus sujeitos.

O quarto capítulo, escrito por Laura Fernández-González , intitulado “Negotiating terms: king Philip I of Portugal and the cerimonial entry of 1581 into Lisbon”, faz uma ótima análise das imagens do monarca Felipe II como rei de Portugal, através do estudo de sua entrada triunfal em Lisboa em 1581.

A festividade teve grande importância nesse momento histórico para Felipe II, dada a recente conquista militar e política do reino português. Felipe II necessitava construir uma imagem para seus súditos portugueses de rei pacífico e justo e, ao mesmo tempo, poderoso e “hábil para destruir seus inimigos, incluindo, especialmente, aqueles dentro do seu reino”.

Um grande investimento foi feito para se organizar uma entrada triunfal que refletisse e construísse a imagem do monarca para o reino recém-conquistado. Mas González evidencia ao longo do texto as tensões e disputas existentes entre o monarca e os interesses das autoridades e habitantes lisboetas. Houve uma grande negociação para a organização da festa, para limitação dos gastos e, inclusive, para se decidir o estilo da celebração. Os portugueses queriam mostrar sua própria cultura festiva e, se houvesse brechas nas arquiteturas e artes efêmeras, criar discursos de contestação e protestos ao próprio monarca.

O quinto capítulo do livro, escrito por Maria Ines Aliverti, dedica-se à análise da entrada de Margarida, arquiduquesa da Áustria e rainha da Espanha, a Cremona, ducado de Milão. A autora desenvolve no texto a questão da cidade italiana que, mesmo não sendo capital de um estado territorial, conseguiu organizar uma grande festividade. A partir desse problema, Aliverti localiza Cremona como uma cidade estratégica geográfica e economicamente, seu esforço de construir uma imagem de cittá nobilíssima, e analisa a festividade a partir da história de um manuscrito e gravuras de aparatos criados por artistas locais sobre a celebração, que iriam ser publicados na forma de um livreto.

O sexto capítulo também investiga as entradas de Margarida da Áustria pelos reinos italianos, da perspectiva de sua viagem pelo estado de Milão entre 1598 e 1599. Através de uma série de documentos, como cartas e notificações oficiais, a autora, Franca Varallo, exemplifica as tensões entre as autoridades régias, as autoridades locais e os cidadãos na organização da festividade, a partir do estudo de caso da entrada de Margarida em Pavia. Varallo cria perspectivas interessantes no estudo das festas, ao materializar para o leitor as dificuldades, custos e tensões que haviam na organização das celebrações.

O artigo seguinte, “Routes and triumphs of Habsburgs power in Colonial America”, de Victor Mínguez Cornelles, faz o estudo das entradas triunfais de vice-reis no México. O autor estuda as transformações da forma triunfo desde a Roma antiga e suas funções na Idade Moderna, principalmente em relação à importância das representações do monarca em partes de seu reino onde ele nunca havia estado.

Os vice-reis, representantes do poder real na colônia, utilizavam essas entradas para criar representações de si perante os colonos. O autor analisa os processos de mudanças na criação dessas imagens. Durante os séculos XVI e XVII, aparecem nas festividades analogias entre a imagem do vice-rei com deuses e semideuses como Apolo, Atlas, Júpiter, Mercúrio e Prometeu e com heróis clássicos antigos como Hércules, Ulisses e Cadmo. O interessante é que em algumas festividades do século XVII, a associação é feita com reis mexicanos da América pré-hispânica, como Acamapichli, Quauhtemoc, Huitzlihuitl e Chimalpopocatzin.

A terceira parte do livro trata das relações fundamentais entre catolicismo e a monarquia dos Habsburgo, intitulada “Religion and empire: Processions, funerals and the Spanich monarchy”. O primeiro artigo, de Alejandra B. Osorio, examina as exéquias e proclamações de reis celebradas nos vice-reinos do México e Peru como confirmação simbólica da manutenção do poder real, mesmo que distante, através da linha sucessória, com o surgimento de um novo monarca.

Osorio evoca aqui a metáfora do corpo político para situar a colônia como parte do corpo do império e reitera a importância dos cerimoniais e festividades na América colonial para a construção de simulacros, representações e, por conseguinte, legitimação da cabeça do império: o monarca. A autora elenca alguns elementos fundamentais para o estudo das exéquias e proclamações de reis na América espanhola como, por exemplo, a escolha do espaço para realização do evento – que deveria necessariamente ser também um espaço simbólico; as relações entre autoridades locais e Coroa, através das ordenações régias; a publicação das relaciones, como parte importante para a construção da memória e propaganda da festa; a construção dos cadafalsos para serem expostos durante a procissão, que seriam espaços de memória e representação da imagem do novo monarca e de seus ancestrais, e cita exemplos de festividades na cidade de Lima, importantes como estudos de caso.

O texto seguinte, de autoria de Juan Luis González Garcia, aprofunda outras questões referentes às festas religiosas e à monarquia dos Habsburgo, a partir do estudo de celebrações hagiográficas na cidade de Madri. A imagem e a vida dos santos considerados “nacionais”, que eram propagadas nas festividades, constituíram-se formas importantes para a construção de uma moral e códigos coletivos, assim como para legitimar a monarquia católica e a imagem do monarca e da corte espanhola, formando a chamada Pietas austríaca. O autor exemplifica essas relações através da análise das festas públicas de beatificação de Ignácio de Loyola e Teresa de Jesus, que tinham também o interesse em canonizações futuras.

No décimo capítulo do livro, Sabina de Cavi analisa a construção dos aparatos efêmeros nas festas de Corpus Christi de Palermo, na Sicília, através do estudo do patronato do Senado e principalmente do vice-rei, Juan Francisco Pacheco, duque de Uceda, na organização da festividade pública, e da atuação do arquiteto Giacomo Amato (1642-1732). A partir do estudo de quatro gravuras do arquiteto de corte, a autora aponta elementos para o estudo da arquitetura barroca tardia na Sicília e suas relações com as formas espanholas.

A última parte do livro é dedicada às práticas artísticas desenvolvidas nas celebrações a serviço da monarquia dos Habsburgo, com um estudo sobre a importância da música nas atividades da Archícofradía de la Santíssima Resurrección, de Roma, em especial em procissões e celebrações de Corpus Christi, Páscoa e dias de santos. A análise feita por Noel O’Reagan, baseada em listas de gastos e pagamentos de instituições religiosas, chama a atenção para o investimento feito na contratação de trompetistas, organistas, violinistas, tenores, contraltos, baixos etc. O autor, através do estudo de relações de festividade, investiga as funções e importância dada aos músicos nas procissões.

O último artigo do livro, intitulado “Royal festivals in mid-seventeenth century Naples: the image of the Spanish Habsburg kings in the work of Italian and Spanish artists”, de Ida Mauro, explora o significado de imagens decorativas e as particularidades de suas criações nas festividades de Nápoles, sob o domínio de vice-reis espanhóis. A análise se volta para a imagem dos monarcas espanhóis projetada em cadafalsos e decorações efêmeras. Num reino em disputa, as festividades promovidas pelo vice-reinado seriam formas de legitimação e propagandística do poder real e do domínio espanhol.

Ao final da leitura, o leitor sai com um amplo panorama da cultura festiva na monarquia dos Habsburgo e com a imaginação aguçada pelas imagens e discussões presentes no livro. Obviamente, a publicação não se encerra em si mesma e nem possui a pretensão de trazer todas as discussões possíveis sobre festividades ou abranger todo o território do vasto Império espanhol. A proposta dos organizadores é realizada de forma estimulante para seus leitores, pois traz sérios estudos multidisciplinares que abarcam o complexo sistema cultural da monarquia dos Habsburgo, com o olhar focado em uma das práticas culturais mais interessantes e contraditórias da Idade Moderna: as festividades públicas e cerimoniais de corte.

Referências

JANCSÓ, Istvan & KANTOR, Iris. Festa, cultura e sociabilidade na América portuguesa, vol. I e II. São Paulo: Edusp, Hucitec, Fapesp, Imprensa Oficial, 2001. [ Links ]

WILLIANS, Raymond. Cultura. São Paulo: Paz e Terra, 2011. [ Links ]

1 Raymond Willians no livro Cultura aborda, de modo amplo, diversos aspectos que compõem um estudo de sociologia da cultura. Entre eles, Willians chama a atenção para as “formas sociais da arte” e a ideia de que a arte media elementos sociais e processos históricos. WILLIANS, Raymond. Cultura. São Paulo: Paz e Terra, 2011, p. 25.

2Desde o final da década de 1980, temos uma profusão de estudos acadêmicos nas áreas de história, arquitetura, antropologia, economia, música, artes plásticas e artes cênicas sobre festas coloniais. Em 2001, foram publicados os dois volumes do livro Festa, cultura e sociabilidade na América portuguesa, organizados por István Jancsó e Iris Kantor, que possuem cerca de 50 estudos de especialistas brasileiros e portugueses sobre diversos aspectos das festividades na colônia. JANCSÓ, Istvan & KANTOR, Iris. Festa, cultura e sociabilidade na América portuguesa, vol. I e II. São Paulo: Edusp, Hucitec, Fapesp, Imprensa Oficial, 2001. E não podemos esquecer de estudos clássicos como os de Affonso Ávila, José Aderaldo Castello e Curt Lange.

Mariana Soutto Mayor – Doutoranda em Teoria e Prática do Teatro pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Laboratório de Investigação em Teatro e Sociedade – Lits. E-mail: [email protected].