Matar e morrer na Idade Média / Brathair / 2017

Nesse dossiê da revista Brathair – Matar e Morrer na Idade Média – abordamos esses temas como o cruzamento de duas esferas, a cultural e a natural, a partir da sua instância mais básica: o corpo. Embora seja um “objeto natural”, o corpo humano também é produto cultural, tanto que a educação, disciplina e mesmo valores comuns nos levam muitas vezes a contrariar nossos instintos mais básicos, como quando partimos para a guerra, para matar ou morrer. Discutir a forma de apresentação, narração e problematização dessa temática em seus estereótipos associadas a conceitos como honra-desonra, coragem-covardia, masculino-feminino é uma questão a ser problematizada em um amplo recorte espaço-temporal e nas relações – e valores – atribuídos às populações germânicas e seus vizinhos, amigos e inimigos no medievo.

Mas os textos aqui reunidos não se restringem apenas ao contexto de batalhas, com o qual a temática do matar e morrer (e desertar, fugir etc) medieval é amplamente identificada e que há bastante tempo, e ainda hoje, é campo privilegiado para as pesquisas nessa área []1. Igualmente importante é a discussão sobre a questão da morte e das reações frente a ela: buscar ou fugir da morte? Embora durante a Idade Média o suicídio seja considerado um pecado, a morte voluntária a serviço de uma causa ou testemunho – como o martírio – era considerada um ato de virtude, equiparado mesmo à categoria de imitatio christi [2]. Esse paradoxo, do ponto de vista secular e ocidental moderno, pode ser compreendido se pensarmos no medievo como um momento dominado pela violência – uma civilização da agressão, como define Duby. E embora a violência não seja, de modo algum, exclusiva do período medieval, a apologia da violência e seu uso amplo e quase irrestrito, a banalização da violência – parafraseando Hannah Arendt – é uma das características distintivas desse período. Não por acaso a palavra em alemão para violência – Gewalt – serve também para designar o poder. Por exemplo a expressão “unter jemandes Gewalt zu sein” pode ser traduzida como “estar sob o poder (ou autoridade) de alguém”, o que nos coloca diretamente em contato com a Idade Média quando indivíduos que exerciam poder – senhores, pais, esposos etc – podiam frequentemente agir de forma violenta, inclusive ao matar aqueles sob seu domínio, em alguns casos sem qualquer tipo de punição [3].

O que nos leva à pergunta: O que temos em comum com os homens e mulheres do passado? O que pode ser dito da experiência essencial do ser humano? Há muitas respostas para essas perguntas, mas certamente uma delas está relacionada com a questão da morte. Matar e morrer é algo comum aos humanos e animais, assim como as atitudes – passivas e ativas, em grande parte instintivas como correr e fugir ou ficar e lutar – frente a essa questão. Mas o refletir sobre a morte, sobre o matar e morrer é algo tipicamente humano, em todas as épocas. Nos testamentos da cidade de Colônia do século XV encontramos muitas vezes variações em torno da fórmula “dat nemand dem doede untghain noch entflien mach” (“porque ninguém pode escapar nem fugir da morte” [4] ), assim como disposições sobre onde deveriam ser depositados os restos mortais e a realização das missas ad aeternum, esse último um tema abordado, entre outros, por Chiffoleau [5] .

A preocupação com a morte e a preparação adequada – e os auxílios – para esse evento crucial na vida humana em geral, e cristã em particular, são abordados nesse dossiê por Klaus Militzer em seu artigo sobre a criação – e significados – atribuídos à santa Úrsula de Colônia “intercessora por uma morte suave” e por Dominique Santos e Alisson Sonaglio no texto que analisa a obra Ars moriendi do século XV, um manual para uma “boa morte”, com suas implicações e desdobramentos. O professor Militzer discute não só a construção da lenda de Úrsula e o seu significado para a cidade de Colônia, mas também a sua ampla divulgação em diferentes reinos medievais. Demonstra também as transformações sutis na imagem de Úrsula em vários campos – como as fraternidades medievais – e períodos, que culminam com a construção “definitiva” de Úrsula como a santa indicada para garantir uma boa morte, tema abordado juntamente com as questões sobre as percepções – e medo – da morte e a necessidade de intercessão dos santos

O medo da morte, a presença da morte e a “comunicação e […] aproximação entre os vivos e os mortos” é discutida no texto de Amanda Basílio Santos, que tem como fonte as tumbas-cadáveres e a escultura funerária medieval inglesa, exemplos muito nítidos da realidade que todos vamos morrer. O uso do medo da morte (por exemplo a partir da prática da execução exemplar) e o direito a matar, aplicar a pena de morte é discutido no texto de Marta de Carvalho Silveira, “Um olhar jurídico sobre a morte: uma análise comparativa do Fuero Juzgo e do Fuero Real”, que, abordando essas fontes de direito, analisa o “uso legal da morte” na Península Ibérica sob o domínio visigodo e na Castela do século XIII.

Mas se a morte era uma penalidade, cumprindo uma função punitiva, ela também poderia ser uma arma de propaganda: esse uso propagandístico da morte – da morte violenta em nome de uma causa santa, o martírio [6] – é analisado no texto de Dionathas Moreno Boenavides que discute a questão do martírio no século XIII dentro do contexto das disputas em torno das ordens mendicantes. A atuação e figura de religiosos – bispos em especial – é tratada nos artigos de Bruno Álvaro e Mathias Weber. Bruno discute – a partir da figura literária de Don Jerónimo, modelo de bispo guerreiro no Poema de Mio Cid – a questão da atuação militar do clero em uma realidade ibérica marcada pelas guerras. Mathias Weber discute o problema da má e da boa morte nas descrições de mortes de bispos nos Decem Libri Historiarum de Gregório de Tours, com destaque para o “bem morrer” como um morrer pacífico, na cama, cercado pela sua congregação, o que deixa claro os diferentes parâmetros para a atuação e interpretações do clero ao longo da Idade Média.

A discussão sobre os diferentes significados – e possibilidades – do matar e morrer são habilmente exploradas no texto de Gabriel Castanho que questiona o “Morrer pelo quê? Fugir de quê?” bem como a visão tradicional dos monges como aqueles que “fogem do mundo” demonstrando que, “longe de ser uma fuga”, o abandono do mundo pelos monges-eremitas Cartuxos pode ser pensado como forma de combate, uma luta pela alma, considerada o bem maior. Neste sentido religioso, o texto de Renata Cristina e Sousa Nascimento apresenta uma discussão acerca dos mártires e guerreiros, concluindo que “[o] modelo de mártir almejado faz parte de um longo processo de criação de memórias, relativas à busca de um grau elevado de santidade, atingido através de elaborações discursivas especiais”.

O texto de Mario Jorge da Mota Bastos e Eduardo Cardoso Daflon discute o problema da violência senhorial durante a Idade Média como parte das relações de poder e dominação entre senhores e camponeses e traça paralelos com a situação destes no Brasil atual, no qual as lutas pela terra continuam ocasionando mortes e devastação. E por fim, o texto de Chiara Benati explora magistralmente fontes primárias, em parte ainda não editadas, que demonstram a continuidade de elementos pagãos da tradição germânica das fórmulas de bênçãos e encantos de proteção contra armas e inimigos em situações de guerra, de perigo e mesmo em confrontações na disputa por direitos. Os ideais de coragem e bravura, tão arraigados tanto nas sociedades germânicas quanto tradição épica medieval, convivem, dessa forma, com a preocupação com a morte, o morrer e mesmo a prisão em situações de batalha, considerada por vezes tão temível quanto a própria morte. Dessa forma evidencia que coragem e bravura não significam necessariamente a ausência – ou supressão – do medo, mas sim o enfrentamento do medo de morrer – as diferentes formas de morte que são abordadas nos textos desse dossiê – e, enfim, a disposição para o sacrifício, se necessário, em nome de um bem maior que a própria vida.

Notas

1. Como o livro organizado por Jörg Rogge: ROGGE, J. (Ed.). Killing and Being Killed: Bodies in Battle, Perspectives on Fighters in the Middle Ages, Bielefeld, Transcript Verlag, 2017.

2. Vide, por exemplo, TAVEIRNE, Maarten. Das Martyrium als imitatio Christi: Die literarische Gestaltung der spätantiken Märtyrerakten und -passionen nach der Passion Christi. In: Zeitschrift für Antikes Christentum, 18 (2014), p. 167–203; VAUCHEZ, André. La Sainteté en Occident aux derniers siècles du Moyen Âge: d’après les procès de canonisation et les documents hagiographiques. Rome: École française de Rome, 1988, p. 179; FEISTNER, Edith. Historische Typologie der deutschen Heiligenlegende des Mittelalters von der Mitte des 12. Jahrhunderts bis zur Reformation. Wiesbaden: Dr. Ludwig Reichert Verlag, 1995, p. 119s.

3. Vide, por exemplo, MORIN, Alejandro. Matar a la adúltera: el homicidio legítimo en la legislación castellana medieval. In: Cahiers de linguistique et de civilisation hispaniques médiévales, Vol. 24 Nr. 1, 2001, p. 353-377. O texto de Mario Jorge e Eduardo Daflon nos remetem à essa questão também na realidade brasileira, uma forma triste de pensar em possíveis desdobramentos do conceito da longa Idade Média.

4. Como no testamento de Johann VI. von Hirtze, de 21 de abril de 1475, Test. H 3 / 695. In: HAStK (Historisches Archiv der Stadt Köln).

5. CHIFFOLEAU, Jacques. Sur l’usage obsessionnel de la messe pour les morts à la fin du Moyen Âge, In: VAUCHEZ, André. (Org.). Faire croire: Modalités de la diffusion et de la réception des messages religieux du XIIe au XVe siècles. Table Ronde organisé par l’ École française de Rome, 1981, Paris, p. 235-256.

6. Um tema já longamente explorado por André Vauchez em La Sainteté en Occident aux derniers siècles du Moyen Âge: d’après les procès de canonisation et les documents hagiographiques. Rome: École française de Rome, 1988.

Cybele Crossetti de Almeida – Professora Adjunta UFRGS. E-mail: [email protected]

Daniele Gallindo Gonçalves Silva – Professora Adjunta UFPel. E-mail: [email protected]


ALMEIDA, Cybele Crossetti de; SILVA, Daniele Gallindo Gonçalves. Editorial. Brathair, São Luís, v.17, n.1, 2017. Acessar publicação original [DR]

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