Aprendendo e ensinando na Idade Média e renascimento: novas perspectivas/ Brathair/2021

Colocados lado a lado, os livros, as revistas, os capítulos de livros, os artigos e os ensaios que trazem estampados em suas páginas os estudos acerca da educação no Medievo certamente são capazes de ocupar algumas dezenas de estantes de uma biblioteca, quando não uma inteira. Desde pelo menos as décadas finais do século XIX com os seus “verdadeiros heróis filosóficos” presentes nas numerosas narrativas de cunho nacionalista de então (BOSCH, 2021, p. 25), este é um importante objeto de estudos disposto bem no centro das mesas de trabalho não apenas de historiadores-medievalistas, mas também de filósofos, teólogos, juristas e filólogos. Leia Mais

Regulação de conflitos na Idade Média / Tempo / 2020

Entre poderes: jurisdições e regulação de conflitos na Idade Média. Séculos V ao XV

Nas últimas duas décadas, as pesquisas referentes a estudos sobre a Idade Média experimentaram um vertiginoso e consistente crescimento na historiografia produzida por pesquisadores brasileiros. Neste caso, não se trata apenas do aumento no número de publicações na área, sejam em livros, artigos ou anais de eventos científicos. Para além disso, destacamos que as pesquisas sobre o período medieval vêm experimentando um reconhecimento nacional e internacional, verificado através do surgimento de novos laboratórios e grupos de pesquisa, fortalecimento dos trabalhos em rede com historiadores e universidades estrangeiras, e pela “democratização” do acesso a uma bibliografia atualizada e fontes documentais, fruto dos constantes processos de digitalização e disponibilização on-line do material de pesquisa em História Medieval.

O resultado do fortalecimento da área dos estudos medievais apresenta ainda outra consequência extremamente positiva: a diversificação nas temáticas de pesquisa. Atualmente, encontramos pesquisas que se localizam nos mais diversos recortes temporais, geográficos, temáticos, o que permite o fortalecimento do diálogo com outras ciências, como Arqueologia, Ciência Política, Direito, Literatura, Artes e Antropologia.

Devido a esse cenário de transformações e fortalecimento da área junto aos estudos de História no Brasil, hoje em dia não caberia uma proposta de dossiê junto a um periódico apenas pautado pelo título de “História Medieval” ou “Idade Média”. Por isso, este dossiê não é recortado apenas por balizas cronológicas amplas em comparação com outros períodos da História (Moderna, Contemporânea, Colonial, do Tempo Presente, entre outros). Mais do que isso, trazemos aqui artigos que lidam de maneira mais específica com questões relacionadas ao recurso à Justiça e suas formas específicas de ação, legitimação e atuação, bem como a compreensão sobre sua função de intermediar e promover a resolução de conflitos no período medieval.

Atualmente, o termo jurisdictio designa, de forma relativamente precisa, a instituição do Judiciário, ou seja, o poder de julgar e, por extensão, o limite desse poder. Esta compreensão se desenvolveu, sobretudo, a partir do século XVIII. No final da Idade Média, a etimologia da palavra jurisdictio refletia sua íntima ligação com determinadas práticas legais. Associados a ela, encontramos ainda os termos edictum (editar) e dictum, “o que ele diz”, recorrente nos inquéritos e procedimentos judiciais em geral. (Billorè; Mathieu, 2012)

Todavia, quando recuamos alguns séculos no tempo, percebemos que a concepção medieval de jurisdictio deve boa parte de sua significação à estruturação institucional da Igreja. A ausência de uma definição estrita de jurisdictio, longe de levar apenas à confusão em sua compreensão, multiplicava as possibilidades de extensão dos usos do poder da justiça. Dessa forma, era por meio de uma malha de superposições jurisdicionais que muitos conflitos eram regulados no período medieval (Guillot; Rigaudière, 1999).

Nesta perspectiva, o que este dossiê pretende é apresentar um panorama da problemática sobre a Justiça e o exercício do poder em diferentes contextos de resolução de conflitos, contribuindo para o fortalecimento de um debate importante no âmbito da historiografia do Direito e suas aplicações no estudo das sociedades medievais. Acreditamos que os artigos aqui apresentados possibilitarão ao leitor o contato e algumas reflexões com abordagens historiográficas atualizadas sobre o tema. Além da aproximação com a área do Direito e da Ciência Política, o dossiê Entre poderes: jurisdições e regulação de conflitos na Idade Média. Séculos V ao XV também propõe um diálogo mais próximo com outras áreas da História, como a História Moderna, na medida em que a questão do estudo das jurisdições é temática recorrente em ambas as áreas.

Assim sendo, o dossiê se inicia com o artigo de Marcelo Cândido da Silva, “Valor e cálculo econômico na Alta Idade Média”, trazendo uma reflexão sobre a presença do cálculo econômico na definição dos preços dos gêneros alimentícios, partindo da análise da relação entre avaliação dos produtos e definição de seus preços. O autor trabalhou com documentos oriundos da Gália e da Península Itálica.

Na sequência, dois artigos que tratam do mundo anglo-saxônico e anglo-normando, a partir de recortes cronológicos e documentais distintos. No trabalho intitulado “Propriedade fundiária na Nortúmbria anglo-saxônica: jurisdição, conflito e confluências (século VIII)”, Renato R. da Silva discute, a partir da análise da questão fundiária na Inglaterra anglo-saxônica, como se davam as redefinições, discussões e conflitos presentes sobre esta questão, uma vez que a jurisdição sobre os regimes de propriedades ainda não se apresentava plenamente constituída e uniformemente aceita nesta sociedade. Já José Manuel Cerda propõe uma análise sobre a distinção dos conselhos gerais e do conselho privado e cerimonial durante o período de governo de Henrique II, na segunda metade do século XII. Percebendo uma ampliação das grandes assembleias, Cerda verifica que Henrique II e sua corte teriam introduzido um grande número de reformas e medidas, apoiadas pelo consentimento baronial. Suas reflexões estão presentes no artigo “King Henry Plantagenet in the midst of his barons: public and territorial consultation at great assemblies in England (1155-1188)”.

Os dois últimos artigos deste dossiê lidam com análises localizadas na Península Ibérica, concentrando-se no estudo da atuação do poder real, não restrito exclusivamente à figura do monarca. No artigo “Inquirir em nome de Afonso II: a jurisdição régia a serviço da aristocracia cristã (Portugal, século XIII)”, Maria Filomena Coelho coloca em discussão certa naturalidade presente nas análises sobre as iniciativas régias do governo de Afonso II em Portugal. A autora propõe uma relativização sobre a visão dessa centralização do poder real que permite ampliar os estudos das inquirições, ligando-as a um cenário político mais amplo e menos centrado na figura do monarca.

Por fim, encerrando este dossiê, no artigo “Jurisdições das rainhas medievais portuguesas: uma análise de queenship”, Mirian Coser propõe uma análise a respeito de como os domínios da rainha de Portugal sobre determinadas propriedades conferiam a ela não apenas recursos econômicos, mas também o exercício da Justiça. Por meio da pesquisa sobre as crônicas do reino, a autora aponta para o fato de os recursos econômicos e exercício de uma Justiça por parte da rainha constituírem um espaço de poder legítimo que se relaciona não apenas com o matrimônio, a linhagem e a maternidade, mas também com o patrocínio, a piedade religiosa e a intercessão junto ao rei, inclusive nos assuntos da guerra.

Portanto, tendo como eixo os estudos sobre a Justiça e o exercício do poder na Idade Média, o dossiê Entre poderes: jurisdições e regulação de conflitos na Idade Média. Séculos V ao XV apresenta cinco artigos que mantêm o foco no tema proposto, mas diversificam a análise tanto no que diz respeito às balizas temporais, com trabalhos que tratam desde a Alta até a Baixa Idade Média, como também nos recortes geográficos, apresentando reflexões sobre a Gália, a Península Itálica, a Inglaterra anglo-saxã, a Inglaterra anglo-normanda e o mundo Ibérico. Acreditamos que os trabalhos aqui reunidos representam, em diferentes medidas, os impactos recentes das reflexões propostas por uma Nova História Política e pela Nova História Cultural.

Referências

BILLORÈ, Maitre; MATHIEU, Isabelle; AVINGNON, Carole. La justice dans la France Médiévale. VIIe-XVe siècle. Paris, Armand Colin, 2012. [ Links ]

GUILLOT, Olivier; RIGAUDIÈRE, Albert; SASSIER, Yves. Pouvoirs et institutions das la France médievale: des origines à l’époque féodale. Tome 1. 3 ed. Paris, Armand Collin, 1999. [ Links ]

Fabiano Fernandes – Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus Guarulhos (SP), Brasil. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-1384-9156

Renato Viana Boy – Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), campus Chapecó (SC), Brasil. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0001-5500-6256


FERNANDES, Fabiano; BOY, Renato Viana. Apresentação. Tempo. Niterói, v.26, n.1, jan. / abr., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Medievalismo (s), neomedievalismo e recepção da Idade Média em períodos pós-medievais / Antíteses / 2020

Em Busca dos Dragões: a Idade Média no Brasil

O que é medievalismo pós-colonial?

Em sua forma mais reconhecida, o medievalismo é o reaproveitamento de elementos considerados “medievais” em qualquer formato e época após o fim da Idade Média histórica. Essa cronologia histórica está associada aos anos 500- 1500 da era cristã e cobre desde a queda de Roma até o Renascimento. Nesta primeira posição teórica da disciplina, no entanto, os estudos do medievalismo pressupõem, por um lado, o fim da Idade Média e, por outro, um reuso consciente de que esta Idade Média constitui-se num período do passado, um período que deveria ter terminado para que o medievalismo propriamente dito pudesse começar. Leslie Workman estabeleceu essa separação no primeiro volume da revista Studies in Medievalism (SIM), onde observou que “o medievalismo só poderia começar, não simplesmente quando a Idade Média tivesse acabado, quando quer que tenha sido, mas quando a Idade Média foi percebida como algo no passado, algo que era necessário reviver ou desejável imitar” (WORKMAN, 1979, p. 1, tradução nossa). [3]

Essa separação em relação a um tempo que se encerrou e sua percepção como ocorrida no passado não é especialmente problemática para os centros hegemônicos de conhecimento. Para os centros hegemônicos, sua própria Idade Média é uma época histórica que já acabou e que está, em seu próprio imaginário, cuidadosamente colocada além da realidade cotidiana. Mas essa mesma posição teórica acerca do final do período medieval cria dificuldades nas áreas pós-coloniais ou no chamado mundo subdesenvolvido. As áreas póscoloniais são consideradas como carentes de um verdadeiro passado medieval europeu e, ao mesmo tempo, são em sua maioria vistas como sociedades atrasadas, sociedades anacrônicas onde continuam os modos de vida medievais que estão fora de sincronia com o presente. Como outros países do sul global, o Brasil sofreria de ambos os problemas, tanto pela falta de uma Idade Média própria que lhe permitisse estudar o “após” de uma autêntica era medieval, quanto pelo fato de grande parte de sua extensão continuar a ser considerada por muitos como uma sociedade ultrapassada que ainda vive dentro de uma certa Idade Média. Nessas condições, então, o que significa estudar “a Idade Média” e o medievalismo no Brasil?

Os estudos pós-coloniais podem nos ajudar a reconhecer as razões e diretrizes de tal projeto. Diante da noção mais comum nos estudos do medievalismo (de que há uma Idade Média histórica que é reutilizada e volta a se difundir após 1500), uma perspectiva pós-colonial sobre a disciplina e um compromisso explícito com localidades fora da Europa nos mostram um panorama distinto. Ao contrário da posição comum acima mencionada, estas localidades permitemnos perceber mais claramente que, antes que um reaproveitamento da “Idade Média” possa ocorrer, uma ideia prévia do que é a “Idade Média” deve ser criada para o seu consumo e sua nova difusão.

Como exemplo, podemos citar dragões. Não há dúvida de que os dragões jamais existiram, nem na época medieval ou antes dela, e que, como criaturas do universo fantástico, encontram-se tanto fora da Europa como em tempos anteriores à Idade Média, como no caso da China. É também notável, no entanto, que hoje em áreas cultural e economicamente hegemônicas os dragões se tornaram um elemento frequente em cenários “medievais”, não aparecendo menos que castelos, armaduras e monarcas. O medievalismo como disciplina, então, não é sobre se os dragões existiam na Idade Média real ou cronológica. O que o medievalismo aborda é o fato de que hoje os dragões se tornaram elementos comuns da ideia de “medieval” nas produções culturais do Atlântico Norte. Ressalte-se que os dragões não foram os elementos primários da ideia do medieval no século XIX, mas pode-se dizer que eles o são no medievalismo do século XXI no Atlântico Norte. O que podemos aprender com esses “dragões”, então, é que os elementos associados ao medievalismo mudam com o tempo e que devem ser formulados como “medievais” antes que possam ser difundidos efetivamente em um lugar e tempo específicos. Da mesma forma, este exemplo nos permite apontar que a necessidade de que um componente seja inventado como medieval antes que se possa usá-lo como medieval também se aplica a centros hegemônicos e a geografias que supostamente tiveram sua própria e verdadeira Idade Média. Em centros e geografias com passado medieval histórico, esses elementos não devem ser considerados ou tomados como mais “autênticos” ou menos inventados do que nas periferias. Em outras palavras, qualquer lugar e qualquer época terão que ter formulado e difundido seus próprios “dragões”—seus próprios elementos do que é “medieval” e com eles suas próprias versões e seus próprios reaproveitamentos locais do medievalismo. Um estudo de quais são as versões brasileiras de “o medieval” e, portanto, de quais são suas próprias formas de medievalismo, é o diálogo que começa a se realizar através desse dossiê.

Sendo um novo campo de estudos, este dossiê também mostra a tensão que existe entre as obras que acompanham os estudos do medievalismo tal como são definidos em suas versões anglófonas, e a compreensão pós-colonial mais ampla do campo no qual o Brasil, para seguir nossa própria metáfora, encontrará seus próprios “dragões”. Essas tensões e as dificuldades que o conhecimento hegemônico cria nas tradições pós-coloniais de conhecimento não são novas. Por exemplo, após um encontro em São Paulo em 2003, organizado por colegas europeus francófonos com o objetivo de aprender como era a Idade Média do “além-mar” da América do Sul, o professor francês Joseph Morsel se mostrou decepcionado devido ao caráter imitativo dos estudos medievais na América Latina. Ele observou que esses estudos usaram a mesma construção cronológica, os mesmos métodos e as mesmas metodologias possíveis que na Europa. Morsel reclama que, embora os ibero-americanos olhem para a Idade Média “do equador”, eles claramente não a vêem de forma diferente dos europeus ou oferecem algo que os europeus não tenham visto (MORSEL, 2003, p. 3). Ao contrário, os ibero-americanos teriam simplesmente importado as diretivas europeias para seus próprios estudos. O que, então, o Brasil pode oferecer se for apenas um derivado deslocado fazendo o mesmo e da mesma forma que os centros hegemônicos?

Como muitos neste dossiê reconheceram, uma boa resposta é o medievalismo. O medievalismo é uma forma produtiva e intelectualmente estimulante de lidar precisamente com o uso local do “medieval” e das funções que o medieval tenha exercido em um cenário específico como o Brasil. Porque o medievalismo está interessado no lugar e na época em que o medieval é difundido, seja na Austrália, França ou Brasil: que função ele teve? Por que foi usado? Com que efeitos? Quais foram as razões para inventar um determinado elemento como “medieval” em uma época e lugar específicos?

Estipulemos também claramente que os estudos de caráter derivativo não são um problema exclusivo do “equador” e são encontrados em universidades europeias, marcadas por um nepotismo evidente, ou em universidades do Atlântico Norte, onde a falta de financiamento suprime a maioria dos projetos de pesquisa mais inovadores. Há também uma certa facilidade em exigir desde os centros de produção intelectual que as periferias acadêmicas “nos surpreendam” e “nos deem” algo novo e desconhecido. Em sua forma mais crua, essas expectativas são transformadas em uma forma de extrativismo, em que geografias menos familiares fornecem uma “renovação” e novos materiais para localidades hegemônicas, estas já talvez sem brilho ou absortas em suas rotinas, mas ainda exercendo autoridade. Junto com o desejo de novidade, uma questão semelhante é que é muito fácil saber pouco ou nada sobre o que acontece e é feito nas periferias, exceto quando esses trabalhos se enquadram em contextos disciplinares reconhecíveis. Há, portanto, uma linha tênue que separa o fornecimento de produções acadêmicas que são “iguais”—e, portanto, imitativas e desinteressantes—e fornecer inovações acadêmicas que são demasiado “nicho” em um contexto disciplinar regido principalmente pela academia de língua inglesa.

A favor do neomedievalismo

Uma área em que os praticantes brasileiros estão se posicionando para mudar é a “controvérsia” entre o medievalismo e o neomedievalismo. O que hoje é conhecido como medievalismo no Atlântico Norte poderia facilmente ter sido conhecido como estudos do neomedievalismo. Para os estudiosos brasileiros, a questão do neomedievalismo ressurge porque “neo” é a terminologia mais óbvia e direta. Se essa terminologia tivesse sido incorporada nos centros hegemônicos, aqueles que estudam a Idade Média histórica fariam o chamado medievalismo— sentido que continua a ser corrente na América Latina—enquanto aqueles que estudam as reapropriações posteriores fariam o neomedievalismo. Se essa seria uma solução possível, por que falamos em medievalismo e não em neomedievalismo no campo anglófono e seus derivados?

Um dos motivos é que seu fundador nos Estados Unidos, Leslie Workman, chamou a disciplina de medievalismo e só fazia distinções entre os estudos medievais e o medievalismo, sem mencionar o “neo” e às vezes sem reconhecer abertamente a correlação entre medievalismo e classicismo. Assim, em entrevista no livro em sua homenagem, publicado na década de 1990, Workman associa os estudos clássicos aos estudos medievais, mas não identifica a existência do classicismo como um processo de criação do passado grecoromano, paralelo ao medievalismo como um processo de criação da Idade Média (UTZ, 1998, p. 446–447). Já em relação ao Brasil e a possibilidade de se optar pelo termo neomedievalismo na contramão de Workman, Clínio Amaral menciona em entrevista ao grupo de pesquisa Linhas, que sua importância no Brasil se deve ao uso dado em Travels in Hyperreality de Umberto Eco, uma figura fundadora da disciplina e cujo renome e reconhecimento superam Workman, principalmente no Brasil, onde a historiografia está mais voltada à Europa (particularmente à França) do que aos Estados Unidos. Disciplina em início de incorporação e, se necessário, contando com uma figura fundadora alternativa como Eco, o Brasil é terreno fértil para o restabelecimento do termo neomedievalismo como equivalente ao uso corrente encontrado na academia de língua inglesa e seus seguidores.

Sejamos também claros que na academia de língua inglesa o senso de medievalismo e neomedievalismo não é hermético nem desprovido de fissuras. Dentro dessa academia seria possível usar o termo medievalismo igualmente para se referir a “estudos medievais”, tanto por ser um termo generalizado quanto pelo fato de os estudos medievais também ocorrerem após a Idade Média histórica. Por outro lado, diante das investidas de uma cultura popular que mistura e reinventa radicalmente o significado de “medieval”, a academia anglófona têm se esforçado para manter o termo medievalismo intacto, referindo-se a produções que mantêm vínculos com “a verdadeira Idade Média”, enquanto ela, finalmente, inclina-se ao uso do termo neomedievalismo para aquelas produções mais desligadas do período histórico e que mostram um distanciamento lúdico em relação a este passado. Para quem se apegava ao uso original institucionalizado por Workman, o medievalismo entraria em diálogo com a Idade Média cronológica e seus elementos históricos, enquanto o neomedievalismo mostraria maior desconexão com estes, vinculando-se com produções que apenas produzem o “sentimento” do medieval.

Uma forma de esclarecer os limites e possibilidades das terminologias medievalismo e neomedievalismo é uma comparação com os termos muito mais familiares e comuns de classicismo e neoclassicismo. Como é bem conhecido das histórias culturais da literatura e da arte, o classicismo foi uma tentativa erudita de recuperação de traços culturais durante o chamado Renascimento, que seus praticantes associaram ao passado greco-romano e consideraram esquecidos após a queda de Roma: foi um renascimento, um ressurgimento da antiguidade clássica. Este sentido constitui um bom paralelo em relação ao chamado “Medieval Revival”, como o medievalismo foi chamado quando pela primeira vez se tornou objeto de estudo das Ilhas Britânicas: um movimento de retorno aos valores, estéticas e modos de vida do passado, associados à Idade Média histórica e que consideravam-se perdidos em meio à era industrial. Isso se torna visível, por exemplo, na restauração da cavalaria ou no retorno ao catolicismo no chamado Movimento de Oxford. Devemos já notar que em contraste com o “Medieval Revival” ou, se quisermos, o “renascimento medieval” das Ilhas Britânicas, os primórdios do “medievalismo” na América espanhola e portuguesa não apresentam um renascimento ou um desejo nostálgico de reviver o passado, mas uma forte rejeição dos elementos que associavam-se com o medieval. Na Ibero-América, então, as primeiras mobilizações foram desde o início formas do “neomedieval” no seu sentido de apropriação a-histórica: não ressurgimento de tempos acabados, mas mobilizações politicamente motivadas com pouco ou nenhum interesse na autenticidade de um passado histórico (ALTSCHUL, 2020). Mencionemos novamente que o termo usado para o renascimento da antiguidade clássica é classicismo, enquanto as reutilizações e reproduções do período clássico após o século XVIII são conhecidas como neoclassicismo. Em contraste com o Renascimento ou o classicismo, o neoclassicismo não busca a recuperação ou ressurgimento da antiguidade clássica, mas, em vez disso, volta a difundir, por suas próprias razões e motivos, certos elementos que permaneceram filiados à antiguidade: leis rígidas nas produções culturais, arranjos considerados racionais, estruturas imponentes, colunas e mármores em seus edifícios. As linhas gerais do neoclassicismo podem então fornecer uma analogia com o neomedievalismo: um uso posterior e remoto de um suposto revival original e que manipula e implanta elementos quase estereotipados que permaneceram afiliados a uma ideia da Antiguidade Clássica ou da Idade Média. Além do auxílio que essas analogias com respeito ao confuso termo medievalismo podem nos oferecer, o que é evidente é que há boas, ou talvez melhores razões para associar nosso campo ao termo neomedievalismo do que continuar com o uso já estabelecido, mas confuso, que vem até nós hoje através da academia de língua inglesa. Nesse sentido, é instrutivo observar que Workman, como vimos, não tinha em mente o conceito de neoclassicismo ou de “neo” como um equivalente que o teria ajudado a avançar do neoclassicismo ao neomedievalismo. Uma hipótese nesse sentido é que o neoclassicismo (como o barroco) não foi uma categoria primária na disciplina histórica, na qual se formou, como o é na história literária e na história da arte. Por outro lado, essa ausência do neoclassicismo como categoria cultural que pudesse funcionar como intermediária foi exacerbada pela importância central dada ao ditado de Lord Acton em 1859, e que se reproduz até hoje nos volumes de Studies in Medievalism. Como as epígrafes tornam explícito:

Dois grandes princípios dividem o mundo e disputam o domínio, a antiguidade e a idade média. Estas são as duas civilizações que nos precederam, os dois elementos que compõem o nosso. Todas as questões políticas e também religiosas se reduzem praticamente a isso. Este é o grande dualismo que permeia nossa sociedade (DALBERG-ACTON, 2010, p. 9, tradução nossa) [4]

Em suas origens, o uso dessa posição maniqueísta de Lord Acton foi uma exigência na busca por reconhecimento e aceitação de uma nova disciplina, e a elevação da Idade Média ao nível de uma Antiguidade de cuja importância ninguém duvidava. Mas o “medievalismo”, como o tratamos aqui, ficou refém nessa divisão dicotômica necessária em seus primórdios. A divisão categórica que continua nas epígrafes do SIM parece ter sido estabelecida como uma categoria elementar, levando Richard Utz e Tom Shippey, por exemplo, no volume em homenagem a Workman, a elogiar a frase de Acton por sua “abrangência definitiva” e a identificar uma “cisão clássico / medieval” (UTZ; SHIPPEY, 1998, p. 5, 10, tradução nossa) [5]. Essa cisão é problemática: ela estabelece apenas dois canais únicos que negam na prática que outras civilizações como o Islã ou o mundo pré-colombiano tenham contribuído com elementos essenciais para “nossa” civilização. Também, em relação ao tema que nos interessa agora, estabelece uma progressão temporal em que o medievalismo chega com a era romântica. [6] Um caso instrutivo dessa progressão e dualidade fundamental pode ser visto na explicação de William Calin no mesmo volume em homenagem a Workman. Ali, Calin explica que o medievalismo é “igual” ao classicismo, embora “seu oposto” e “seu contrapeso”, mas com a diferença temporal de que o classicismo foi uma invenção do início da modernidade, enquanto o medievalismo é uma invenção dos séculos mais recentes (CALIN, 1998, p. 451, tradução nossa). [7]

Mas são essas questões terminológicas mesquinhas e, em última análise, ninharias? A incorporação de uma nova disciplina é precisamente um daqueles momentos que podem se tornar oportunidades perdidas e posições imitativas e, portanto, decepcionantes do que poderia ter sido uma posição intelectual própria e, portanto, verdadeiramente inovadora. Voltando ao dossiê, então, e como vários de seus ensaios observam, não há razão para “transferir” as perspectivas da língua inglesa para novos territórios como o Brasil. Ao contrário, um verdadeiro desvio pós-colonial pode deslocar a disciplina para fora de seus canais usuais e oferecer uma transformação em como ela se entende; pode conter uma transferência que não é imitativa, mas segura em suas diferenças e perspectivas. O que se propõe aqui, sob o signo de uma transferência pós-colonial, é que a abertura dessa disciplina no Brasil possa ser pautada pelo neomedievalismo como termo mais preciso e adequado para examinar as invenções e os reaproveitamentos de elementos daquilo que em nossos próprios espaços e trajetórias têm sido associado ao “medieval”.

Por sua singularidade, o Brasil colocou desde cedo os pesquisadores interessados no passado medieval diante de um complexo dilema: afirmar a necessidade do estudo de uma Idade Média histórica em um país que não a havia experimentado; e, ao mesmo tempo, construir um discurso que equilibrasse a conexão com o passado medieval português sem perder a formação de uma identidade própria nos horizontes dos debates acadêmicos. Ao leitor desavisado, tal problemática parece longínqua, assentada sobre os momentos fundadores da disciplina histórica no território brasileiro. Todavia, um mero olhar para as discussões levantadas em torno da proposta da Base Nacional Curricular Comum, que excluía do conjunto de temas de ensino obrigatório da disciplina histórica aqueles referentes à Idade Média—entre outros, vale lembrar. O tom geral das críticas levantadas por especialistas do medievo nas diversas manifestações de desagravo à proposta do governo federal incluía sistematicamente a ideia de que o passado brasileiro se estenderia, de uma forma ou outra, sobre a Idade Média europeia através da colonização portuguesa. Seríamos, portanto, também medievais, no sentido de herdeiros de uma tradição transferida pelos colonizadores, a qual não somente justifica ainda o investimento em pesquisa na área, mas também a sua presença nos currículos de ensino obrigatório. Como tal noção persistente se formou na academia brasileira ao início do século XX é o tema do artigo que abre o dossiê aqui apresentado. Nele, Renan Birro aborda o tema dos colonialismos culturais e intelectuais—sobretudo o francês—na academia brasileira e seu impacto na construção dos elementos mais marcantes do medievalismo brasileiro, os quais ecoam ainda hoje na produção acadêmica e no ensino de história no Brasil.

Se Birro em seu trabalho nos apresenta tal diagnóstico, preciso e necessário para a tomada de consciência das relações coloniais que permeiam a intelectualidade brasileira—em especial aqui o medievalismo, Marcelo S. Berriel nos traz, em sua contribuição, uma proposta de aproximação a partir de uma abordagem decolonial. Em seu trabalho, Berriel faz confluir reflexões sobre as deficiências que o vínculo cego aos modelos euro-referenciados trazem à compreensão dos medievalismos brasileiros, por um lado, e as possibilidades que as propostas decoloniais podem trazer, a partir daquilo que o autor chama de empirismo radical e perspectivismo, ou seja, uma perspectiva que parte essencialmente da experiência brasileira para explicar seus próprios fenômenos, que são ao mesmo tempo próprios e diversos, variando desde a literatura de Suassuna, até o medievalismo religioso presente em movimentos ultra-conservadores. A relação entre medievalismo e religião é, sem dúvida, um campo novo dentro da própria área de estudos do medievalismo. Esse é o sentido do artigo apresentado por Maria Eugenia Bertarelli e Clínio de O. Amaral. Em um instigante trabalho a respeito da missa “Urbi et Orbi” do Papa Francisco os autores propõem estratégias para pensar as questões de temporalidade que marcam a prática religiosa do cristianismo e sua constante atualização do passado—também medieval.A partir dessa reflexão, partem então para a análise da missa de Francisco, encarando o conteúdo desta como expressão de uma postura profundamente marcada pelo medievalismo. Ao final de seu trabalho, os autores reforçam a necessidade da ampliação dos estudos do medievalismo em caráter multidisciplinar, assim como propõem, de maneira inovadora, a abordagem das expressões da religiosidade cristã essencialmente como manifestações do medievalismo no mundo contemporâneo. Uma abordagem decolonial acompanha também o trabalho de Otávio L. Vieira Pinto e sua excelente proposta de discussão do colonialismo acadêmico e do medievalismo em torno da história da África ao sul do Saara. A partir desse pressuposto, Vieira Pinto conclui que a ideia de uma África Medieval se concentra sobre o território Ocidental africano não por questões externas, vinculadas à práxis historiográfica (como o acesso a documentação), mas devido, sobretudo, às pressões (políticas) exercidas pelo colonialismo acadêmico, que reconhece ali a emulação de realidades europeias e suas categorias analíticas. Vieira Pinto aponta como a própria noção de uma Idade Média africana acaba por se constituir em uma expressão de “medievalismo de exportação” que atende somente os interesses da academia euro-referenciada e ocidental. Ao se pensar em uma história decolonial e globalizada, é preciso repensar, reforça o autor, as categorias de aproximação aos objetos de análise de modo a promover— em consonância com Berriel—um ambiente de pesquisa que parte da própria realidade estudada para identificar as suas categorias analíticas viáveis.

Essas importantes reflexões de caráter teórico em torno do medievalismo e seu impacto na análise histórica são acompanhadas no presente dossiê por um conjunto de estudos de caso referentes tanto à experiência brasileira, com Elton O. S. Medeiros e Douglas M. X. de Lima, quanto da Europa, com Daniele Gallindo-Gonçalves e Vinicius C. D. de Araujo. O trabalho de Elton Medeiros nos traz importantes contribuições para a intersecção entre medievalismo e educação no contexto brasileiro. Medeiros parte de uma análise de monumentos arquitetônicos da capital paulista que buscam referenciar um (suposto) passado medieval à época de suas construções no âmbito do modernismo. A partir de seus resultados, o autor propõe esses espaços do medievalismo como possíveis fontes para o ensino de história com base nas experiências da sociedade brasileira. De Lima, por outro lado, nos oferece uma análise a partir da noção do lúdico, embasando seu trabalho nas apropriações do passado medieval e suas representações em jogos de tabuleiros. O autor conclui que o medievalismo presente nessa plataforma reforça a construção de um simbolismo atrelado ao imaginário euro-referenciado. Assim, os aspectos do medievalismo se tornam visíveis em novos espaços da cultura de entretenimento, reforçando a sua universalidade enquanto proposta midiática, assim como os problemas que colocam para uma representação da Idade Média em consonância com os avanços da história global e as críticas decoloniais. Mudando o foco para o espaço europeu e para a política, Vinícius de Araújo apresenta nesse dossiê uma análise do medievalismo presente no nacionalismo italiano da Lega Nord e suas influências sobre a política e cultura italianas na contemporaneidade. Daniele Gallindo-Gonçalves, por sua vez, analisa o medievalismo das obras de Otto Rahn e como este influenciou o pensamento nazista em torno da temática do Graal e do catarismo. Ambos os trabalhos transitam em um campo muito fértil da análise do neomedievalismo: a política.

Como já afirmamos, a publicação do presente dossiê recebe um caráter fundacional da área de estudos no cenário brasileiro ao propor novas perspectivas de análise, a discussão de importantes aspectos teóricos, bem como a apresentação de contribuições fundamentais ao campo a partir de uma perspectiva original. Convidamos os leitores da Revista Antíteses a se debruçarem sobre os materiais aqui publicados e buscarem neles a inspiração para o desenvolvimento do campo de estudos do neomedievalismo no Brasil.

Notas

3. “medievalism could only begin, not simply when the Middle Ages had ended, whenever that may have been, but when the Middle Ages were perceived to have been something in the past, something it was necessary to revive or desirable to imitate”.

4. “Two great principles divide the world, and contend for the mastery, antiquity and the middle ages. These are the two civilizations that have preceded us, the two elements of which ours is composed. All political as well as religious questions reduce themselves practically to this. This is the great dualism that runs through our Society”.

5. “definitive comprehensiveness”; “Classical / medieval divide”.

6. Por muito tempo, essa sequência quase implícita tornou desconhecidos os medievalismos pré-românticos.

7. “Equal,” “opposite,” “counterweight.”

Referências

ALTSCHUL, Nadia R. Politics of temporalization: medievalism and orientalism in nineteenth-century south America. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2020.

CALIN, William. Leslie Workman: a speech of thanks. In: UTZ, Richard; SHIPPEY Tom (ed.). Medievalism in the modern world: essays in honour of Leslie J. Workman: with the assistance of L. Workman. Turnhout: Brepols, 1998. p. 451–452.

DALBERG-ACTON, John Emerich Edward, Lord. [Epigrafe]. In: FUGELSO, Karl. Defining neomedievalism(s). Cambridge: D. S. Brewer, 2010. (Studies in Medievalism, 19).

MORSEL, Joseph. Le moyen âge vu d’ailleurs. BUCEMA, [Paris], v. 7, p. 1–5, 2003.

UTZ, Richard. Speaking of medievalism: an interview with Leslie J. Workman. In: UTZ, Richard; SHIPPEY Tom (ed.). Medievalism in the modern world: essays in honour of Leslie J. Workman: with the assistance of L. Workman. Turnhout: Brepols, 1998. p. 433–449.

UTZ, Richard; SHIPPEY, Tom (ed.). Medievalism in the modern world: essays in honour of Leslie J. Workman: with the assistance of L. Workman. Turnhout: Brepols,1998.

WORKMAN, Leslie. Editorial. Studies in Medievalism, Cambridge, v. 1, n. 1, p. 1–3, 1979.

Nadia R. Altschul– University of Glasgow.

Lukas Gabriel Grzybowski – Universidade Estadual de Londrina

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Exercício do poder na idade média e suas representações: novas fronteiras, novos significados / Anos 90 / 2019

Esta publicação é fruto da intensificação de debates dirigidos por um grupo multi-institucional e internacional de pesquisadores(as) latino-americanos(as) que a cada dois anos, desde 2016, tem se reunido nas atividades da Rede Latino-Americana de Estudos Medievais.1 A Rede não se propõe nem se apresenta como uma Associação. Os(as) pesquisadores(as) nela reunidos(as) consideram que entidades como a Sociedad Argentina de Estudios Medievales (SAEMED) e a Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM) cumprem esse papel. A ideia é, portanto, estimular diálogos e atividades sistemáticas de modo a intensificar e qualificar cada vez mais a produção historiográfica sobre o medievo para além dos espaços europeus, sem, obviamente, abrir mão dos convênios, acordos e parcerias com instituições desse continente.

As atividades da Rede começaram a concretizar-se a partir do Foro Internacional Estudios Medievales en Red, ocorrido na Universidad Nacional de Costa Rica, e no II Encontro, realizado na Universidade Federal da Fronteira Sul, em Chapecó (2016 e 2018 respectivamente). Desses encontros foram definidas ao menos duas publicações que colocam em perspectiva diferentes formas de se pesquisar Idade Média: a obra La edad media en perspectiva latinoamericana2, publicada em 2018, e este dossiê publicado pela Anos 90.

Esta proposta visa a ampliar a visibilidade da produção historiográfica latino-americana no campo dos estudos medievais. Objetivo que consideramos plenamente alcançado. A justificativa fundamenta-se no fato de ser possível perceber um crescimento substancial e cada vez mais especializado na área. Junto a este crescimento quantitativo, observa-se, ainda, uma diversidade e originalidade nas abordagens historiográficas, temáticas e conceituais. Cabe ressaltar que a Anos 90 se insere, com esta publicação, em um contexto de recente interesse de periódicos nacionais pela temática da Idade Média, como a Revista Brasileira de História, Revista de História, Tempo, Esboços e História em Revista. 3

Exercício do poder na Idade Média e suas representações: novas fronteiras, novos significados reúne dez trabalhos de pesquisadores(as) do Brasil, Chile, Costa Rica, México e França. Pode ser compreendido como uma publicação dividida e pensada em ao menos dois eixos: o primeiro remete às recentes disputas sobre o ensino escolar de história medieval e às reflexões de cunho historiográfico. O texto de Douglas Mota Xavier de Lima abre o dossiê à medida que toca em temas candentes e extremamente atuais sobre os usos públicos da Idade Média – não apenas no Brasil – e, principalmente, no contexto da elaboração / implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Este primeiro artigo do dossiê se dedica, especialmente, a discutir a presença do tema da Idade Média na educação escolar, tendo como documento principal de suas análises três versões da BNCC.

Outros dois trabalhos foram feitos por historiadores mexicanos. No artigo “Claudio Sánchez- -Albornoz y la preocupación por el método o cómo hacer historia medieval desde América Latina”, Martin Federico Rios Saloma investiga o trabalho deste medievalista espanhol, especialmente sua atuação durante seu período de exílio na Argentina. Seus vínculos com medievalistas europeus e seu conhecimento sobre fundos documentais espanhóis serão as bases para a análise de seu trabalho como docente e pesquisador em História Medieval.

Diego Carlo Améndolla Spínola, por seu turno, traz no artigo “Feudalismo: estado de la cuestión, controversias y propuestas metodológicas en torno a un concepto conflictivo, 1929-2015” um estudo não de um historiador em especial, mas de um conceito: o feudalismo. Para tanto, o aporte historiográfico utilizado pelo autor lida com medievalistas alemães, franceses, ingleses e italianos, não com o objetivo específico de definir o conceito, mas de verificar as transformações em sua compreensão e seu uso.

O segundo eixo do dossiê está organizado a partir de aspectos cronológicos, sendo composto pela maior parte dos artigos aqui presentes. Contempla, portanto, diferentes abordagens que assim se caracterizam seja pela diversidade de objetos (relações entre romanos e bárbaros, concílios, mosteiros), espaços (França, Itália, Inglaterra, Alemanha e Castela) e tipos documentais (narrativos, jurídico-normativos, tratadística, arqueológicos).

Neste segundo eixo, Renato Viana Boy apresenta uma discussão historiográfica sobre as relações de poder e autoridade no mundo mediterrânico do século VI entre romanos bizantinos e bárbaros. Mais do que perceber neste espaço e período apenas as disputas e conflitos, o autor tenta encontrar possíveis relações políticas que poderiam aproximar populações, à primeira vista, distantes.

Outros três artigos lidam com reflexões que têm a Península Ibérica como recorte geográfico. No primeiro deles, intitulado “A imagem historiográfica de Hugo de Cluny em Leão (séc. XI-XII)”, Maria Filomena Pinto da Costa Coelho apresenta uma análise historiográfica sobre a força política do abade Hugo de Cluny, para além de seu espaço de atuação nos domínios da religião, durante o reinado de Afonso IV. Em “O poder sacralizado dos clérigos de Castela (século XIII e início do século XIV)”, Leandro Alves Teodoro analisa, para os séculos XIII e XIV, o processo de sacralização da Eucaristia e a celebração de missas como parte do revigoramento da ação pastoral dos bispos ibéricos, ampliando o espaço de atuação das igrejas paroquianas. Ainda sobre o recorte ibérico, Armando Torres Fauaz, no artigo “Representación y delegación de poderes. Los usos públicos del mandato en el ducado de Borgoña (siglos XIII-XIV)”, apresenta-nos um estudo sobre o exercício de um governo laico no Ocidente medieval, a partir da prática romana do mandato no ducado da Borgonha dos séculos XIII e XIV, como sendo uma atividade central nas práticas de representação de autoridade. Os outros artigos deste dossiê lidam com temáticas aplicadas para além do espaço ibérico. Em “‘Assembled as one man’. The councils of Henry II and the political community of England”, José Manuel Cerda se dedicou a analisar a presença das communitas ou universitas regni como uma comunidade de nobres que eram peça-chave na compreensão das origens parlamentares inglesas. O artigo “Redes e centros de poder no Centro-Oeste Gaulês na primeira Idade Média (séculos V-X)”, de autoria de Adrien Bayard, trabalhou a relação entre fontes de natureza escrita e arqueológica para o estudo das redes estabelecidas entre grupos aristocráticos locais e representantes do poder visigodo e, depois, franco, nas dioceses de Angolema e Saintes, entre os séculos V e X. E, fechando o dossiê, no artigo “O abade, o poeta e o charlatão: reflexões acerca de esoterismo e política nos séculos XV e XVI”, onde o historiador Francisco de Paula Sousa Mendonça Júnior trabalhou com a relação entre esoterismo e política no processo de transição do regimen animarum para a Razão de Estado. Para tanto, Francisco se utilizou de fontes de origem alemãs e italianas.

Assim, entendemos que a reunião de artigos presentes no dossiê Exercício do poder na Idade Média e suas representações: novas fronteiras, novos significados apresenta não apenas um apanhado de recentes pesquisas sobre o medievo, mas também demonstra uma forte articulação da produção historiográfica brasileira e estrangeira (em especial, latinoamericana) sobre a Idade Média. Além desse diálogo mais próximo entre pesquisadores de diferentes países, os artigos que compõem este dossiê demonstram, ainda, uma variedade que se dá em aspectos distintos: temático, cronológico, geográfico, documental e metodológico. Assim, acreditamos que os objetivos traçados nos momentos de encontro dos pesquisadores da Rede Latino-Americana de Estudos Medievais, que se fundamentavam basicamente na produção e divulgação de trabalhos que prezam pela qualidade, atualidade, diversidade e intenso diálogo entre medievalistas de diferentes espaços, tenham sido alcançados neste dossiê.

Notas

1. Informações sobre a Rede em: http: / / edadmedia.cl / rede-latino-americana-de-estudos-medievais /

2. TORRES FAUAZ, A. (org). La edad media en perspectiva latinoamericana. Heredía: EUNA, 2018.

3. Considerando de 2016 a 2019, e incluindo este dossiê da Anos 90, foram / estão para ser publicados ao menos 6 dossiês sobre o medievo. Este número é mais amplo se considerarmos outras publicações, como a Antíteses e a Diálogos Mediterrânicos. Essa inserção / ampliação das publicações se dá além das duas revistas mais específicas da área, Signum e Brathair. Importante considerar também a Revista Chilena de Estudios Medievales e a Temas Medievales, Argentina. Todas podem ser acessadas online e gratuitamente.

Igor Salomão Teixeira – Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-6866-9654

José Manuel Cerda Costabal – Professor da Universidad Gabriela Mistral, Santiago, Chile. Doutor em História pela University of New South Wales, Sydney, Austrália. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-6175-774X

Renato Viana Boy – Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Chapecó, SC, Brasil. Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0001-5500-6256


BOY, Renato Viana; COSTABAL, José Manuel Cerda; TEIXEIRA, Igor Salomão. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 26, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Formas de governabilidade e dominação durante a Antiguidade e a Idade Média | Outras Fronteiras | 2019

A historiografia que emerge, especialmente na França, ainda que não somente no Hexágono, no período que medeia as duas grandes guerra do século passado se realizou uma crítica contundente a uma forma de escrita da história que denominava de événementielle e profundamente identificada com aquilo de François Simand qualificava de ídolo do político.

O sucesso, em particular, da proposta historiográfica formulada por Marc Bloch e Lucien Febvre e que foi continuada e aperfeiçoada por diversos e deferentes historiadores que de uma forma ou outra se vincularam o que ficou conhecida como “Escola dos Annales” lançou a história política num ostracismo senão absoluto, bastante profundo. Leia Mais

Gênero na idade média / Brathair / 2019

A categoria Gênero, instrumento teórico que busca visibilizar, explicar e entender as diferenças atribuídas aos corpos sexuados, já tem uma história bastante concreta e profícua em meio às ciências humanas. Pelo menos desde a década de 1960, estudiosas e estudiosos das sociedades vêm lançando luz sobre os fenômenos de dominação, exclusão, marginalização, sobretudo, do que se considera como feminino. Embora, historicamente, o olhar sobre gênero tenha se iniciado a partir do viés do feminino e do feminismo, é quase consenso atualmente que essa categoria epistemológica não se limita apenas a esse âmbito da existência. Gênero, a partir da perspectiva scottiana, é uma forma primária de organização das relações de poder que se alicerça nas diferenças biológicas.

Entre os medievalistas, a categoria Gênero tem tido reverberação, no mais das vezes, positiva, no sentido de ter conquistado espaço de legitimidade nas pesquisas voltadas para as sociedades medievais. Ainda que os próprios medievais não se percebessem a partir dessa categoria, sua aplicação ao estudo da santidade, das rainhas, da literatura, das diferenças sociais, propiciam um conhecimento cada vez mais profundo e matizado da complexa cultura medieval.

Como é próprio do conhecimento cientificamente construído, bem como – necessário que se diga no contexto em que vivemos -, muito salutar, as percepções sobre Gênero não são unívocas. Isso fica patente neste dossiê da revista Brathair, que reúne artigos que adotam perspectivas variadas acerca tanto do que se pode entender por gênero, quanto em seus objetos de reflexão. Essa variedade demonstra a vasta riqueza que a categoria permite, e a indiscutível marca que os Estudos de Gênero vêm deixando na academia brasileira.

O primeiro artigo, As mulheres na Vita Sancti Aemiliani e na Legenda Beati Petri Gundisalvi: um estudo de comparação diacrônica, das professoras Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva (PEM-UFRJ) e Leila Rodrigues da Silva (PEM-UFRJ), busca perscrutar o papel das personagens femininas em duas hagiografias medievais ibéricas, separadas em seu contexto de produção por cinco séculos. Ao lançar mão das propostas de Paul Veyne a respeito da análise histórica diacrônica, as autoras conferem sólida base para a reflexão, que se fortalece ainda pelo cuidadoso elencar de elementos a serem analisados, bem como por considerar os contextos específicos de composição das narrativas.

Carolina Gual da Silva (FAPESP-Unicamp) contribui com o artigo Experiência feminina e relações de poder nos romans do século XII. Aqui a pesquisadora se dedica a expor e discutir uma historiografia representativa do que tem sido, nas últimas décadas, as reflexões dedicadas aos estudos de gênero e à História das Mulheres, particularmente no que diz respeito às relações de poder. Percebendo, a partir desse levantamento, problemas sobretudo metodológicos nas obras analisadas, debruça-se então sobre alguns romans do século XII, de autoria de Chrétien de Troyes, Thomas e Béroul, na intenção de lançar um novo olhar sobre documentação literária que possibilite um alargamento de visão sobre os agires e pensares das mulheres medievais.

A Querelle des femmes e a política sexual na Idade Média, escrito pela professora Cláudia Costa Brochado (UnB), como já aponta o título, debate a relação entre a Querelle des femmes e a política sexual na Idade Média, apresentando as principais teorias sobre esta e sua vinculação à Revolução Aristotélica. A autora evidencia as mudanças, ao longo do período medieval, das percepções a respeito da condição (subalterna) das mulheres e faz uso do conceito de genealogia para dar conta da forma como se constrói, naquelas sociedades, as identidades sexuais que informam a política sexual medieval.

O dossiê conta também com a contribuição de Danielle Oliveira Mércuri (UNIFESP), no artigo Da arte de fazer-se virtuosa: regimentos de princesas (Castela, século XV). Tem como objetivo analisar as indicações de governo dirigidas à Rainha Isabel, pelos clérigos Martín de Córdoba, Íñigo de Mendoza e Hernando de Talavera. Nos textos pesquisados, a autora explicita as percepções próprias daquela sociedade quanto às mulheres, em específico as mulheres da nobreza. Em alguns casos, nos textos voltados à rainha Isabel, apontam-se as dubiedades do papel feminino em posição de poder.

As imagens e as leis: diálogos entre discursos normativos e iconográficos medievais no Decretum de Graciano, da lavra de Guilherme Antunes Júnior (PPGHCUFRJ), parte do conceito de gênero para analisar duas miniaturas contidas no Decretum de Graciano, reunião de textos normativos compilados no século XI. O autor entende que o Decretum pauta a chamada “Querela das investiduras” e suas implicações nas hierarquias eclesiais, mas dá margem, igualmente, para que outros aspectos sejam percebidos. E é o que faz, ao relacionar o código jurídico às relações de gênero nas disputas e discursos de poder.

Margarida Garcez Ventura (Universidade de Lisboa / Academia Portuguesa de História), autora do artigo Breves notas sobre Dona Beatriz da Silva e Isabel, a Católica: duas mulheres em Projectos De Santidade e de reforma da Igreja na Hispânia Quatrocentista (1424-1492), partindo da ideia de que a transcendência divina é historicamente construída, discute o percurso de vida de Beatriz da Silva, fundadora da Ordem da Imaculada Conceição. De Portugal à corte castelhana e a Toledo, Ventura demonstra como a espiritualidade da religiosa se institucionaliza no encontro com os projetos reformistas de Isabel, a Católica.

O artigo Mulher não devia ter regimento: rainhas regentes, rainhas depostas (Portugal, séc. XIV-XV), da professora Miriam Coser (UNIRIO), se dedica a investigar o discurso sobre a fraqueza feminina veiculado pelas crônicas da Casa de Avis. O foco de suas considerações são duas rainhas regentes, ambas depostas, Leonor Teles e Leonor de Aragão. A autora defende, valendo-se do conceito de queenship, que o exercício de poder das rainhas constituía uma espécie de ofício, praticado legitimamente e caracterizado por atribuições que não eram tão só protocolares.

Narrativas mitológicas e o papel da mulher na constituição da nobreza portuguesa através do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, de Neila Matias de Souza (IFMA), situa a tradição literária da crença em mulheres-serpente, para daí analisar a personagem Dama do Pé de Cabra, iniciadora da linhagem dos Haros. A autora investiga os significados sociais e políticos da narrativa que apresenta a Dama, percebendo seu papel de propiciadora de legitimidade e abundância para aquela família nobre.

Renato Rodrigues da Silva (UNIFESP), em Mulheres e poder na aristocracia da Nortúmbria Anglossaxã: ausência ou invisibilidade?, compara textos escritos e achados arqueológicos para averiguar se a ausência de personagens femininas nos textos de época reflete uma pouca participação das mulheres no poder aristocrático, ou se esta escassez é indício de uma invisibilização da participação feminina. Para tanto, o autor se fundamenta em abalizada discussão historiográfica para, então, partir para dois estudos de caso.

O último artigo do dossiê, Apontamentos sobre virilidade e inteligibilidade de gêneros na proposta de identidade cristã de Agostinho de Hipona na Primeira Idade Média, de Wendell dos Reis Veloso (CEDERJ), promove uma reflexão teórica fundamentada nas ideias, principalmente, de Judith Butler, aplicada a alguns tratados agostinianos. Dá a ver, em suas ponderações, algo que geralmente fica invisível na historiografia: as possibilidades outras de relação com as realidades, neste caso, as realidades sexuais, em especial os valores a elas atribuídos.

A edição conta ainda com dois artigos de tema livre. Ricardo Boone Wotckoski (UNIFRAN / Claretiano) discute no texto O além e a visão de mundo medieval: o inferno da Visão de Thurkill, o percurso ao inferno do camponês Thurkill, em um relato visionário composto no século XIII. Seguindo a perspectiva teórica de Bakthin, o inferno é analisado pelo articulista como um ambiente carnavalizado, uma encenação popular, na qual as categorias desfavorecidas da sociedade se regozijam com o sofrimento dos ricos, graças à possibilidade de inversão nesse espaço. Nesta concepção bakthiniana, o riso é uma resposta à dor e ao sofrimento no ambiente infernal, bem como, os papéis sociais se invertem.

O professor André de Sena (UFPE) desenvolve o tema da melancolia em A melancolia erótica no auto camoniano El-rei Seleuco. O articulista analisa este sentimento com base principalmente nas teorias do estudioso francês Jacques Ferrand, autor de Traité de l’essence et guérison de l’amour, ou De la mélancolie érotique (1610). Segundo de Sena, o príncipe melancólico em virtude do amor é um dos traços do teatro barroco e renascentista. O artigo analisa elementos da melancolia amorosa e compara o sentimento do rei Seleuco no auto camoniano com a figura de Hamlet, o qual utilizaria a melancolia “fingida” como forma de vingança.

Fechando o dossiê Gênero e a edição 2019.2 da Brathair, temos a resenha elaborada por Juliana Salgado Raffaeli (CEDERJ), O medievo ocidental a partir de conceitos como gênero, santidade e memória em diferentes abordagens teóricas e metodológicas, sobre a rica coletânea, dirigida por Andréia Frazão da Silva Construções de Gênero, Santidade e Memória no Ocidente Medieval (2018). Como deixa claro Raffaeli, evocando a variedade de temas e problemas propostos pelos autores da obra, os estudos de gênero parecem ter deixado o lugar secundário, complementar, que por anos marcaram o campo, e passam, na atualidade, a ser vistos como mais uma possibilidade de compreensão das realidades passadas e presentes.

Carolina Coelho Fortes – (PPGH / UFF). Docente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense [email protected]


FORTES, Carolina Coelho. Editorial. Brathair, São Luís, v.19, n.2, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Matar e morrer na Idade Média / Brathair / 2017

Nesse dossiê da revista Brathair – Matar e Morrer na Idade Média – abordamos esses temas como o cruzamento de duas esferas, a cultural e a natural, a partir da sua instância mais básica: o corpo. Embora seja um “objeto natural”, o corpo humano também é produto cultural, tanto que a educação, disciplina e mesmo valores comuns nos levam muitas vezes a contrariar nossos instintos mais básicos, como quando partimos para a guerra, para matar ou morrer. Discutir a forma de apresentação, narração e problematização dessa temática em seus estereótipos associadas a conceitos como honra-desonra, coragem-covardia, masculino-feminino é uma questão a ser problematizada em um amplo recorte espaço-temporal e nas relações – e valores – atribuídos às populações germânicas e seus vizinhos, amigos e inimigos no medievo.

Mas os textos aqui reunidos não se restringem apenas ao contexto de batalhas, com o qual a temática do matar e morrer (e desertar, fugir etc) medieval é amplamente identificada e que há bastante tempo, e ainda hoje, é campo privilegiado para as pesquisas nessa área []1. Igualmente importante é a discussão sobre a questão da morte e das reações frente a ela: buscar ou fugir da morte? Embora durante a Idade Média o suicídio seja considerado um pecado, a morte voluntária a serviço de uma causa ou testemunho – como o martírio – era considerada um ato de virtude, equiparado mesmo à categoria de imitatio christi [2]. Esse paradoxo, do ponto de vista secular e ocidental moderno, pode ser compreendido se pensarmos no medievo como um momento dominado pela violência – uma civilização da agressão, como define Duby. E embora a violência não seja, de modo algum, exclusiva do período medieval, a apologia da violência e seu uso amplo e quase irrestrito, a banalização da violência – parafraseando Hannah Arendt – é uma das características distintivas desse período. Não por acaso a palavra em alemão para violência – Gewalt – serve também para designar o poder. Por exemplo a expressão “unter jemandes Gewalt zu sein” pode ser traduzida como “estar sob o poder (ou autoridade) de alguém”, o que nos coloca diretamente em contato com a Idade Média quando indivíduos que exerciam poder – senhores, pais, esposos etc – podiam frequentemente agir de forma violenta, inclusive ao matar aqueles sob seu domínio, em alguns casos sem qualquer tipo de punição [3].

O que nos leva à pergunta: O que temos em comum com os homens e mulheres do passado? O que pode ser dito da experiência essencial do ser humano? Há muitas respostas para essas perguntas, mas certamente uma delas está relacionada com a questão da morte. Matar e morrer é algo comum aos humanos e animais, assim como as atitudes – passivas e ativas, em grande parte instintivas como correr e fugir ou ficar e lutar – frente a essa questão. Mas o refletir sobre a morte, sobre o matar e morrer é algo tipicamente humano, em todas as épocas. Nos testamentos da cidade de Colônia do século XV encontramos muitas vezes variações em torno da fórmula “dat nemand dem doede untghain noch entflien mach” (“porque ninguém pode escapar nem fugir da morte” [4] ), assim como disposições sobre onde deveriam ser depositados os restos mortais e a realização das missas ad aeternum, esse último um tema abordado, entre outros, por Chiffoleau [5] .

A preocupação com a morte e a preparação adequada – e os auxílios – para esse evento crucial na vida humana em geral, e cristã em particular, são abordados nesse dossiê por Klaus Militzer em seu artigo sobre a criação – e significados – atribuídos à santa Úrsula de Colônia “intercessora por uma morte suave” e por Dominique Santos e Alisson Sonaglio no texto que analisa a obra Ars moriendi do século XV, um manual para uma “boa morte”, com suas implicações e desdobramentos. O professor Militzer discute não só a construção da lenda de Úrsula e o seu significado para a cidade de Colônia, mas também a sua ampla divulgação em diferentes reinos medievais. Demonstra também as transformações sutis na imagem de Úrsula em vários campos – como as fraternidades medievais – e períodos, que culminam com a construção “definitiva” de Úrsula como a santa indicada para garantir uma boa morte, tema abordado juntamente com as questões sobre as percepções – e medo – da morte e a necessidade de intercessão dos santos

O medo da morte, a presença da morte e a “comunicação e […] aproximação entre os vivos e os mortos” é discutida no texto de Amanda Basílio Santos, que tem como fonte as tumbas-cadáveres e a escultura funerária medieval inglesa, exemplos muito nítidos da realidade que todos vamos morrer. O uso do medo da morte (por exemplo a partir da prática da execução exemplar) e o direito a matar, aplicar a pena de morte é discutido no texto de Marta de Carvalho Silveira, “Um olhar jurídico sobre a morte: uma análise comparativa do Fuero Juzgo e do Fuero Real”, que, abordando essas fontes de direito, analisa o “uso legal da morte” na Península Ibérica sob o domínio visigodo e na Castela do século XIII.

Mas se a morte era uma penalidade, cumprindo uma função punitiva, ela também poderia ser uma arma de propaganda: esse uso propagandístico da morte – da morte violenta em nome de uma causa santa, o martírio [6] – é analisado no texto de Dionathas Moreno Boenavides que discute a questão do martírio no século XIII dentro do contexto das disputas em torno das ordens mendicantes. A atuação e figura de religiosos – bispos em especial – é tratada nos artigos de Bruno Álvaro e Mathias Weber. Bruno discute – a partir da figura literária de Don Jerónimo, modelo de bispo guerreiro no Poema de Mio Cid – a questão da atuação militar do clero em uma realidade ibérica marcada pelas guerras. Mathias Weber discute o problema da má e da boa morte nas descrições de mortes de bispos nos Decem Libri Historiarum de Gregório de Tours, com destaque para o “bem morrer” como um morrer pacífico, na cama, cercado pela sua congregação, o que deixa claro os diferentes parâmetros para a atuação e interpretações do clero ao longo da Idade Média.

A discussão sobre os diferentes significados – e possibilidades – do matar e morrer são habilmente exploradas no texto de Gabriel Castanho que questiona o “Morrer pelo quê? Fugir de quê?” bem como a visão tradicional dos monges como aqueles que “fogem do mundo” demonstrando que, “longe de ser uma fuga”, o abandono do mundo pelos monges-eremitas Cartuxos pode ser pensado como forma de combate, uma luta pela alma, considerada o bem maior. Neste sentido religioso, o texto de Renata Cristina e Sousa Nascimento apresenta uma discussão acerca dos mártires e guerreiros, concluindo que “[o] modelo de mártir almejado faz parte de um longo processo de criação de memórias, relativas à busca de um grau elevado de santidade, atingido através de elaborações discursivas especiais”.

O texto de Mario Jorge da Mota Bastos e Eduardo Cardoso Daflon discute o problema da violência senhorial durante a Idade Média como parte das relações de poder e dominação entre senhores e camponeses e traça paralelos com a situação destes no Brasil atual, no qual as lutas pela terra continuam ocasionando mortes e devastação. E por fim, o texto de Chiara Benati explora magistralmente fontes primárias, em parte ainda não editadas, que demonstram a continuidade de elementos pagãos da tradição germânica das fórmulas de bênçãos e encantos de proteção contra armas e inimigos em situações de guerra, de perigo e mesmo em confrontações na disputa por direitos. Os ideais de coragem e bravura, tão arraigados tanto nas sociedades germânicas quanto tradição épica medieval, convivem, dessa forma, com a preocupação com a morte, o morrer e mesmo a prisão em situações de batalha, considerada por vezes tão temível quanto a própria morte. Dessa forma evidencia que coragem e bravura não significam necessariamente a ausência – ou supressão – do medo, mas sim o enfrentamento do medo de morrer – as diferentes formas de morte que são abordadas nos textos desse dossiê – e, enfim, a disposição para o sacrifício, se necessário, em nome de um bem maior que a própria vida.

Notas

1. Como o livro organizado por Jörg Rogge: ROGGE, J. (Ed.). Killing and Being Killed: Bodies in Battle, Perspectives on Fighters in the Middle Ages, Bielefeld, Transcript Verlag, 2017.

2. Vide, por exemplo, TAVEIRNE, Maarten. Das Martyrium als imitatio Christi: Die literarische Gestaltung der spätantiken Märtyrerakten und -passionen nach der Passion Christi. In: Zeitschrift für Antikes Christentum, 18 (2014), p. 167–203; VAUCHEZ, André. La Sainteté en Occident aux derniers siècles du Moyen Âge: d’après les procès de canonisation et les documents hagiographiques. Rome: École française de Rome, 1988, p. 179; FEISTNER, Edith. Historische Typologie der deutschen Heiligenlegende des Mittelalters von der Mitte des 12. Jahrhunderts bis zur Reformation. Wiesbaden: Dr. Ludwig Reichert Verlag, 1995, p. 119s.

3. Vide, por exemplo, MORIN, Alejandro. Matar a la adúltera: el homicidio legítimo en la legislación castellana medieval. In: Cahiers de linguistique et de civilisation hispaniques médiévales, Vol. 24 Nr. 1, 2001, p. 353-377. O texto de Mario Jorge e Eduardo Daflon nos remetem à essa questão também na realidade brasileira, uma forma triste de pensar em possíveis desdobramentos do conceito da longa Idade Média.

4. Como no testamento de Johann VI. von Hirtze, de 21 de abril de 1475, Test. H 3 / 695. In: HAStK (Historisches Archiv der Stadt Köln).

5. CHIFFOLEAU, Jacques. Sur l’usage obsessionnel de la messe pour les morts à la fin du Moyen Âge, In: VAUCHEZ, André. (Org.). Faire croire: Modalités de la diffusion et de la réception des messages religieux du XIIe au XVe siècles. Table Ronde organisé par l’ École française de Rome, 1981, Paris, p. 235-256.

6. Um tema já longamente explorado por André Vauchez em La Sainteté en Occident aux derniers siècles du Moyen Âge: d’après les procès de canonisation et les documents hagiographiques. Rome: École française de Rome, 1988.

Cybele Crossetti de Almeida – Professora Adjunta UFRGS. E-mail: [email protected]

Daniele Gallindo Gonçalves Silva – Professora Adjunta UFPel. E-mail: [email protected]


ALMEIDA, Cybele Crossetti de; SILVA, Daniele Gallindo Gonçalves. Editorial. Brathair, São Luís, v.17, n.1, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Os primeiros passos dos escritos em línguas vernáculas na idade média / História e Cultura / 2016

Em 1400, o teólogo da universidade de Paris, Jean Gerson, na obra La Montaigne de contemplation, tomava a iniciativa de escrever em vernáculo para aconselhar as gentes simples sobre os exercícios introspectivos de devoção, considerando que alguns clérigos poderiam se espantar com o fato de ele escrever em francês sobre uma matéria considerada, na época, elevada e complexa, digna apenas de ser tratada em latim. Contudo, sua escolha pelo vernáculo, como ele mesmo confessa, não foi despropositada, já que visava facilitar a divulgação do conteúdo da obra para um público mais vasto, isto é, pessoas menos instruídas e que não falavam outra língua que não fosse o francês. Ponto de vista semelhante é o de Álvaro da Mota, religioso português que, no século XV, ao traduzir do latim para o vernáculo a Vida de D. Telo, diz fazê-lo para que um número maior de fiéis tivesse contato com os ensinamentos contidos nessa hagiografia. A despeito da distância geográfica que separava esses dois eclesiásticos, ambos apontavam, do mesmo modo, o escrito em vernáculo como ferramenta chave para disseminar o conhecimento cristão.

Desde o século VIII, os concílios exortavam os padres a pregarem em língua vulgar. Posteriormente, por volta do século XIII, a pregação em língua vernácula aos poucos invadiu o terreno da escrita, os sermões passaram, então, a ser compostos e conservados nessas línguas, formando assim um material de leitura de natureza religiosa e edificante voltado para clérigos, mas visando igualmente a correção dos laicos. Se, nesse época, tais escritos começaram a ganhar fôlego, foi nos séculos XIV e XV que se multiplicaram e se tornaram mais difundidos. Essa ampliação da escrita vernácula não se restringiu, entretanto, ao domínio religioso, mas também se estendeu à produção de escritos laicais, como textos administrativos das cortes, tratados médicos, obras jurídicas, crônicas e romances de cavalaria. Nas terras latinas e em outros cantos da cristandade, se o poder eclesiástico apostou no vernáculo como veículo catequético, o poder temporal, por sua vez, o utilizou, tanto para promover regras no âmbito da corte, quanto para dinamizar o sistema administrativo da coroa. Mais precisamente, de um lado, eclesiásticos tornaram os manuais em vernáculo um dos instrumentos indispensáveis da política de pregação; do outro, leigos eruditos passaram a adotar o vulgar para textualizar o mundo, redigir história dos reinos, leis, relatos de viagens e conselhos para os nobres.

Abrindo o dossiê, o artigo de Fernando Ferrari, Nuove e strane e Meravigliose cose: As alterações nas práticas de leitura das traduções do Relatio de Odorico de Pordenone (1330) reflete sobre a circulação da obra deste viajante franciscano em diferentes lugares, como no norte da Península Itálica, Reino da França e das Ilhas Britânicas. Na sequência, o autor Thiago Borges explora como os mapas foram enriquecidos com explicações redigidas em vernáculo no estudo Textos e imagens do mundo medieval: as representações cartográficas entre as línguas clássicas e vernáculas (séculos VIII-XVI). Logo depois, é a vez de Jorge Vianna analisar, no trabalho Em defesa da monarquia imperial: Dante Alighieri e sua linguagem política contra o poder do papado medieval, o papel do vernáculo como instrumento de legitimação do poder monárquico na Península Itálica central. Continuando, Renan Birro reflete sobre a relação entre a poética vernácula e a absorção da fé cristã, no trabalho Sobre matadores de dragões: alusões poéticas ao herói Sigurdr Fáfnisbani e ao arcanjo Miguel na poesia escandinava do século XI. Outro autor a compor esta série é Dominique dos Santos que, no artigo A tradição Clássica e o desenvolvimento da escrita Vernacular na Early Christian Irland: algumas considerações sobre a matéria troiana e a Togail Troí, explora as heranças legadas pela Antiguidade na Irlanda medieval.

Além de trabalhos voltados para o mundo nórdico ou terras além-Pirineus, este dossiê apresenta um conjunto de estudos que abordam o universo dos escritos em vernáculo na Península Ibérica. O primeiro desses textos é do autor Ricardo Shibata que, no artigo Cultura Clássica e literatura vernacular no século XV em Castela e Portugal, discute as traduções, no ambiente das cortes régias, de obras da Antiguidade para o português e castelhano. Dando sequência, Carolina Ferro, no estudo A livraria de D. Duarte (1433-1438) e seus livros em linguagem, explora os esforços desse governante para a escrita no universo dos reis de Avis. Em seguida, André Silva, no trabalho A literatura devocional em língua vernácula e a reforma dos cuidados com os enfermos no Portugal tardo-medieval: a caridade, a assistência e a misericórdia, analisa em que medida os escritos em vernáculo contribuíram para a promoção das práticas de assistência aos enfermos. Por fim, a autora Kátia Michelan aborda, no estudo A escrita de um feito inglório: o cerco português a Tânger, em 1437, as diferentes narrativas que reportavam as expedições bélicas portuguesas no Norte da África.

A partir do papel político e social que os escritos em língua vernácula alcançaram em diferentes cantos europeus entre os séculos XII e XVI, o presente dossiê visa, desse modo, interrogar os usos desses materiais na construção e transmissão de saberes, na dispersão da fé e na consolidação dos reinos cristãos.

Leandro Alves Teodoro – Professor Doutor. Pós-dourando em história pela UNESP / campus Franca, bolsista FAPESP / CAPES e professor do programa de pós-graduação em História dessa mesma instituição. Membro do projeto “Temático escritos sobre os Novos Mundos”, financiado pela FAPESP.

Letícia Gonçalves Alfeu de Almeida – Professora Mestre. Doutoranda em história pela UNESP / campus Franca, bolsista CNPQ. Membro do projeto “Temático escritos sobre os Novos Mundos”, financiado pela FAPESP.

Organizadores


TEODORO, Leandro Alves; ALMEIDA, Letícia Gonçalves Alfeu de. Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 5, n. 1, mar., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Imagem na Idade Média / Antíteses / 2016

Os estudos da imagem nas últimas décadas têm assumido um espaço visível e indiscutível na historiografia. Desde a École des Annales e a valorização de documentação além da escrita evidenciada pela História Nova e depois pela Nova História Cultural, a imagem aparece como uma possibilidade concreta para o conhecimento do passado. Até então, o fascínio e inquietação promovidos pelas imagens não pareciam traduzir-se em estudos que as considerassem. Ainda que o trabalho formidável de Johan Huizinga em princípios do século XX tenha apontado para o valor das imagens para o entendimento sobre o homem medieval, prefigurando em parte, algumas questões importantes da História Cultural, nossa herança cartesiana dificultou-nos a apreensão das imagens segundo sua complexidade e riqueza. Como expressar verbalmente o que antes se fixou como imagem? Como estabelecer a genealogia de conteúdos e elementos que transitam entre referências escritas e imagéticas de modo tão inefável? Como enfrentar a estranheza e a convenção das formas? Como lidar com a multiplicidade de sentidos das imagens?

Os estudiosos da Idade Média foram grandes colaboradores para a renovação do campo da História. No campo específico dos estudos sobre os registros figurativos, esta contribuição tem sido também muito evidente. As discussões primeiras sobre o uso da expressão arte ou imagem certamente colaboraram em grande monta para a redefinição de parâmetros no exame da figuração do período medieval. Historiadores como Jean-Claude Schmitt, Jérôme Baschet, no campo da filosofia, estudiosos como Georges Didi Huberman e Marie-José Mondzain têm contribuído para o reconhecimento de funcionalidades e sentidos para a imago que ultrapassam a objetividade característica dos discursos em torno da comunicação e da ideologia. Ao contrário do que afirmou na tradição historiográfica, fundada principalmente na História da Arte, na esteira dos trabalhos de Émile Mâle, em meados do século passado, o medievo emerge como período fértil para as imagens. A liberdade e inventividade no tocante à produção das imagens que fizeram sobressair Jean Claude Schmitt e Jérôme Baschet vêm negar os equívocos gigantescos que de todo modo ainda se arrastam nas sínteses sobre a Idade Média: não, as imagens medievais não são basicamente a “bíblia dos iletrados”; sim, a civilização do ocidente medieval deu tamanha importância às imagens que superou as interdições veterotestamentárias e desenvolveu um cristianismo de imagens! Os desdobramentos disto estão entranhados no processo de expansão colonial, e no modo como os homens e mulheres do Ocidente pensam e lidam com a imagem, no meio religioso ou além dele.

Esse dossiê reuniu pesquisadores brasileiros que desenvolvem estudos sobre as imagens na Idade Média. Nesse caso, quatro medievalistas trazem recortes de suas reflexões e, a partir de formações e trajetórias distintas, possibilitam-nos conhecer a produção deste campo de estudo no Brasil. Esperamos, assim, contribuir para o conhecimento dos debates que se apresentam na teoria e historiografia hoje sobre as imagens neste período.

“Verbo que se faz carne, que se faz verbo”. A partir desse belo axioma que localiza a imagem no fundamento do cristianismo, a historiadora Maria Cristina Pereira apresenta o que existe de inexorável na operação do estudo da imagem. Sobre a imagem se produz discurso para se reportar a ela. O limite está no axioma, mas o desafio está no reconhecimento da limitação e na caminhada. A identificação e organização, pela pesquisadora, dos conteúdos escritos no período medieval relativos à imagem certamente facilitarão o reconhecimento da natureza dos textos pelos futuros estudiosos e seu lugar no entendimento do que se pensou sobre a imagem no período chamado medieval. São identificadas cinco categorias: os discursos teóricos sobre imagens; os que apresentam proposições normativas; aqueles que se referem à recepção; aqueles que mencionam os produtores das imagens; por fim, os que as descrevem.

Dessa forma, a partir da riqueza apresentada pelos discursos, a autora contribui para a superação da associação entre as imagens medievais e sua direcionada função didática. Apresenta-se, assim, mais uma oportunidade de localização, atenuação e superação do recorte do discurso do Papa Gregório (séc. V) sobre a destinação das imagens como “bíblia para os iletrados”. Esta passagem que se reproduz nos manuais e mesmo em materiais mais densos sobre o medievo apresenta-se, muito comumente, ainda, desconectada do discurso inteiro: uma carta de admoestação que se referia a imagens narrativas num contexto iconoclasta.

Ao classificar os textos que se referem às imagens, Cristina Pereira apresenta vozes discordantes à de Gregório (como a de Paulino de Nola ou a dos neoplatônicos), quando se reporta aos discursos teóricos. Os discursos sobre as práticas, revelam a pouca atenção dos intelectuais eclesiásticos acerca da normatização das imagens. Os registros indiretos e associados a contextos muitas vezes delicados obrigam o historiador a uma busca em textos dispersos e de naturezas muito distintas (cartas, tratados, material hagiográfico). Do mesmo modo, os textos que se referem aos produtores das imagens: cartas, contratos, referências dispersas que os mencionam em função da valorização dos comitentes, textos laudatórios, esses mais comuns nos últimos séculos medievais, assim como em necrológios, crônicas e hagiografias. As questões teológicas perpassam mais ou menos fortemente as diversas categorias, mas evidencia-se a pouca uniformidade e a ausência de discurso articulado e continuado. A quase ausência de referências diretas sobre a recepção das imagens e a difícil captação dos efeitos da figuração junto aos observadores nos faz refletir sobre o sentido do silêncio. De todo modo, ele nos parece indicar muito mais nossas angústias em entender por escrito o que tomaram os homens do passado pelo olhar. E principalmente pelo olhar.

Historiadores e historiadores da arte veem suas fronteiras dissolvidas pela aproximação de seus interesses e o esboroar-se de conceitos arraigados. A aproximação de historiadores da arte como Michael Baxandal de questionamentos marcantes da História da Cultura e a percepção cuidadosa sobre o objeto artístico dos primeiros adotada pelos historiadores da cultura, a exemplo de Carlo Ginzburg, trouxeram enormes ganhos para a emergência de novas possibilidades de trabalho. As fronteiras entre Renascimento e Idade Média, Humanismo e valores do medievo se esfumaçam na consideração das imagens. O estudo de Maria Eurydice de Barros Ribeiro sobre a obra de Uccello, a Batalha de São Romano, do século XV, historiciza o próprio objeto, apontando-nos para uma perspectiva de história não somente centrada na consideração das condições de produção do objeto ou de sua recepção prevista, mas também para a trajetória mesma do objeto de arte-documento. A imagem evidenciada fez parte de tríptico, que hoje repartido, compõe acervos que, inclusive, desconsideram sua origem. Os espaços que ocupam cada parte da antiga peça original, o lugar em que habitam, a singularidade que adquiriram, os olhares que suscitam, deram autonomia e ressignificaram as imagens.

O caráter emblemático da pintura, que justificou sua posse por Lourenço de Medici, assim como o uso da perspectiva e valor investido em ouro e prata, tornaram essa obra uma referência para o medievo florentino. A intencionalidade da obra inquieta a estudiosa que reafirma o caráter de registro e comemorativo da Batalha de São Romano, conflito que deu vitória a Florença sobre Siena poucos anos antes de sua confecção.

Dois estudos de caso, ainda, apresentam análises de imagens associadas ao universo cristão medieval. Adriana Zierer desenvolve um estudo sobre as várias formas de representação do Diabo na iconografia medieval. A partir de imagens retiradas da Vision de Tondal, do século XII, com uma versão iluminada no século XV, dedicada à duquesa Margaret de York (1475) e do Livro de Horas Les Très Riches Heures do Duc de Berry, produzido pelos irmãos Limbourg, também do século XV, a historiadora aponta para a riqueza de elementos que compõem a imagem do Diabo. As variações nas suas representações que indicam maior complexidade na representação da figura. Assim, uma imagem convencionada do Diabo foi a figura da Boca do Inferno, que está associada a animais como o dragão e a serpente, os quais, por sua vez ligam-se ao monstro bíblico Leviathan. Na Vision de Tondal, os seus guardiões, na entrada da cavidade, são elementos da cultura popular (os gigantes Fergus e Connal, associados à mitologia irlandesa). Já nas imagens produzidas pelos irmãos Limbourg o Diabo apresenta-se, por um lado, entre formas humanas e animalescas, como na imagem do “Inferno”, ou como como um belo anjo no momento em que traiu Deus, portando halo.

No texto de Tamara Quírico, o exame da dupla funcionalidade da cena de Juízo Final, particularmente nos últimos séculos medievais, valoriza a superação de uma objetivação unívoca para as imagens. Além da consideração da cena como momento especialmente valorizado no contexto da religiosidade cristã e dos efeitos esperados quanto à reafirmação dos destinos dos homens, santos e pecadores, pouco ou muito pecadores, a cena remete a outras preocupações dos homens. Nesse caso, a evocação da justiça dos homens equiparada à justiça de Deus.

Na esteira da historiografia francesa, particularmente de Jean-Claude Schmitt e Jérôme Baschet, o “lugar” da imagem importa além da consideração de um contexto da obra. A imagem que se define pelo seu conteúdo cristão, formula-se com intencionalidades outras, além da religiosa. Esta tem sua intenção apontada a partir também do local que a abriga. Nessa perspectiva, Tamara Quírico interpreta o ciclo de afrescos com o tema do Juízo Final executados na Capela Madalena ou (del Podestà), no Palazzo del Bargello, em Florença. Provavelmente concebido por Giotto di Bondone, por volta de 1336, o ciclo do último julgamento, embora, executado no interior de uma capela, estava localizado originalmente na sede da justiça do governo florentino. A suposta obviedade do assunto tratado se redefine na análise que a associa à valorização do tribunal e ações judiciárias. Assim, a imagem atua sobre duas temporalidades, aquela do tempo presente e aquela do futuro julgamento.

Os artigos, enfim, nos oferecem uma amostragem dos estudos realizados no Brasil sobre as imagens medievais. As justificativas para os estudos sobre o medievo em nosso continente, cremos, já foram apresentadas inúmeras vezes, e pensamos que isto já não deveria se fazer, ainda, necessário. Nossa cultura colonial europeia é medieval e por isso somente já deveríamos guardar atenção e cuidado. Quando pensamos no quadro das expressões visuais, cabe lembrar, todavia, que o ocidente desenvolveu uma cultura imagética que hoje se pulveriza pelas mídias eletrônicas, mas cuja trajetória se torna imprescindível para a reflexão sobre como lidamos com o olhar. Não pensamos que um caminho unívoco tenha nos levado a essa sociedade de imagens em que vivemos, mas perceber as inquietações, ousadias e censuras quanto ao que se vê e o que se cria para ser visto, assim como os silêncios e vazios, é absolutamente necessário.

Angelita Marques Visalli – Doutora em História. Universidade Estadual de Londrina. Departamento de História.

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Poder e Governança na Idade Média / Locus – Revista de História / 2016

A governança tem ocupado lugar de destaque nos debates sobre a Idade Média. Faz já algum tempo que historiadores de diferentes regiões do Brasil tem se debruçado sobre a intricada teia das relações de poder, seja abordando os poderes locais, laicos e eclesiásticos, seja investigando o poder dos monarcas medievais, ou ainda – talvez principalmente – os diálogos, negociações, intrigas e disputas que permeavam as relações entre os diferentes poderes que constituíam o organismo social.

Os diferentes artigos deste dossiê partem da premissa que a governança não é um atributo exclusivo do Estado e que, portanto, não está centrada numa pessoa ou instituição. Tal nos permite tornar público o resultado de pesquisas que ressaltam a dimensão plural do poder sem, contudo, cair na tentação de uma arraigada atomização, ou de um poder descerebrado. Volta-se, assim, para os mecanismos que tornam possível uma sociedade corporificada, na qual as relações e imbricamentos entre as diferentes partes possibilitam a existência do todo.

Nesse eixo de debate, há uma compreensão do poder e do Estado que não se alheia da dimensão social. As instituições sociais, sejam elas jurídicas ou administrativas, sejam elas práticas costumeiras, são vistas segundo uma lógica que, desde Michel Foucault, compreende o Estado e a sociedade como campo de disputas. Não se trata, desse modo, de separar em dualidades complementares ou oposições – tal como o faz Roger Chartier ao enfatizar uma história que se produz entre as práticas e as representações –, mas sim, lidar com a história e a vida social em suas dinâmicas, em seus jogos de encontros e disputas, sendo as formas elementos plenos de sentido e, portanto, partes da vida e da existência.

Muito embora haja esse encontro, os textos aqui apresentados alargam a compreensão da Idade Média, enfrentando as compreensões mais simplistas e as leituras fáceis. Daí uma conversa em comum que se articula em diferentes pontos de vista e que busca apresentar novas possibilidades para lidar com a ideia do poder no mundo medieval.

Wesley Corrêa, problematizando o conceito de feudalismo bastardo, analisa as formas com as quais os homens viviam os conflitos e representavam suas ações na Inglaterra da segunda metade do século XV. O papel da cultura política e sua relação com as práticas são, neste artigo, fundamentais para compreender a noção de governo presente na documentação do parlamento e na representação particular de Fortescue. Já André Pereira Rocha se volta para os conceitos latinos de auctoritas e potestas, pertencentes ao mundo político romano, no intuito de analisar o discurso legitimador do poder papal num período de aumento dos conflitos entre a monarquia francesa e o papado. Debruçando-se sobre documentação pontifícia de Bonifácio VIII (1235-1303) e Clemente V (1264-1314), o autor analisa as tentativas de reforçar a posição hierocrática difundida pela Igreja. Em ambos os casos, a dimensão conceitual é pensada a partir de relações de poder que nos permitem vislumbrar possibilidades de experiências concretas da dinâmica social. Abre-se aí uma possibilidade de pensar, em continuidade com as análises de Marc Bloch, Ernst Robert Curtius, Ernst Kantorowicz e Jacques Le Goff – para citar apenas alguns dos pensadores clássicos que renovaram a compreensão da temporalidade medieval – a amplitude da ressonância das instituições sociais dessa “longa Idade Média”.

Lukas Gabriel Grzybowski, ao dar especial atenção à fortitudo, analisa as virtudes e seu papel na fundamentação e significação da translatio imperii dos romanos aos povos germânicos tomando como base os textos do bispo Otto de Freising. Segundo sua análise, as reflexões sobre as redes de poder privilegiam o estudo dos diferentes agentes, perpassando o poder central figurado no monarca, a administração senhorial laica e a prática governativa vivenciada pelos variados representantes e governantes da Igreja. Nesta perspectiva, no artigo “Fundamentos do poder imperial em meados do século XII”, são destacados os povos germânicos e seu contato com a cultura romana no período de desintegração da hegemonia latina sobre a região do Mediterrâneo a fim de apreender a contribuição dos povos germânicos no desenvolvimento do imperium medieval na primeira metade do século XII.

No que se refere às relações estabelecidas entre os poderes régio e senhoriais, Fabiano Fernandes analisa a Inglaterra na segunda metade do século XV a partir do conceito de poliarquia, ou seja, de um governo partilhado do reino. Tal aspecto da governança implicava na tentativa, por parte da nobreza, de limitar a jurisdição do rei em terras nobiliárquicas, o que por sua vez fomentava aquilo que era tratado nas fontes régias como violação da paz real, implicando em crime de lesa-majestade. É nesta perspectiva que o autor analisa a importância do discurso da violação da jurisdição régia na construção do Estado de consenso, que delimitava quais seriam os deveres dos súditos para com a realeza e quais os limites do que seria considerado como um atentado à majestade real.

Maria Filomena Coelho ao abordar o fortalecimento da aristocracia cristã em Portugal enfatiza o entrelaçamento dos mosteiros cistercienses à monarquia e à nobreza, no período que se estende da segunda metade do século XII à primeira metade do XIII. A autora estuda o poder monárquico e nobiliárquico acrescentando outro agente, os mosteiros cistercienses, que na época tinha grande protagonismo. Problematizando os conceitos de jurisdição e de instituição, a partir do modelo político corporativo, pretende-se entender a construção das instituições em sociedade e em estreita relação com as redes políticas que constituem a aristocracia cristã.

Sem abandonar a ideia de uma secularidade do poder monárquico, incontestável do ponto de vista funcional, Stéphane Boissellier questiona as teses que “secularizam” exageradamente a monarquia portuguesa tardomedieval, confundindo laicidade e sagrado não religioso. Há, nas monarquias medievais cristãs, elementos de um sagrado não religioso – como as virtudes naturais dos monarcas, por exemplo – que não podem ser reduzidos a esquemas clericais. De acordo com o autor, nos discursos e nas imagens de justificação do poder, a monarquia faz uso de símbolos religiosos para utilizá-los em objetivos tendencialmente profanos. Assim, competências de utilidade social são eminentemente suscetíveis de sacralização, tal como pode ser observado na maior parte dos rituais políticos reais (investiduras vassálicas, prestações de juramento, recepções de embaixadas), na função régia do exercício da justiça, da polícia e da proteção do reino contra os inimigos.

Inúmeras vezes analisado como elemento de uma metáfora política de grande difusão e em analogia com o poder, o corpo é tratado no artigo de Marcella Lopes Guimarães como uma realidade material e corruptível, que merece cuidados específicos. Cuidados estes que não escaparam aos olhos de D. Duarte, que adverte os súditos da moderação, autodisciplina e temperança. Além do cultivo das virtudes, a preocupação do governante com a matéria corruptível de seus súditos pode ser vista na coleção de numerosas mezinhas e na afirmação de que o bem-estar deveria ser permeado por uma série de cuidados com o corpo, que incluíam o consumo de vinho e água, entre outros elementos que evidenciam a preocupação do monarca com a morada terrena e efêmera das almas.

No artigo sobre barregania em Portugal, Denise da Silva Menezes do Nascimento analisa as relações ilícitas entre mulheres e leigos casados. Segundo a autora, tal como Cristo perdoou o apóstolo Pedro e reiterou seu lugar na comunidade dos fiéis, também o monarca devia perdoar as mulheres que se desviaram do modelo de casamento estabelecido e que, arrependidas, desejavam se apartar definitivamente do crime de barregania. Assim, a misericórdia de D. João II possibilitava não apenas a salvação da vida do acusado mas também a remissão do erro cometido, posto que aos pecadores foi concedida a possibilidade de se adequar às regras do matrimônio estabelecidas pela Igreja a fim de que a moral e a salvação fossem preservadas.

Já o artigo de Leandro Rust analisa o uso da força afastando-se do senso comum que concebe a clerezia completamente alijada da guerra e a Idade Média submersa na violência e na desordem. Estudando casos de uso da espada por bispos entre os séculos IX e XI, o autor evidencia que no Medievo vivenciar a paz não significava renunciar a agressão, tal como a violência não era sinônimo de uso da força. Para pensar a violência, parte integrante do cotidiano e da ordem, é preciso analisar cuidadosamente os desvios à norma, a perturbação da res publica, a ação ilegítima. Guerra, portanto, não pode ser substituída aleatoriamente por violência, assim como a Paz não pode ser traduzida pela ausência de conflito.

Essa pluralidade de temas e de questões dão ao dossiê “Poder e governança na Idade Média” um aspecto amplo, o que justifica, por fim, a publicação da tradução de um texto de Odo Marquard. De um lado, o texto desse filósofo alemão, por si só, merece leitura, uma vez que se trata de um autor realmente importante no cenário intelectual do pós-Guerra. De outro, ele coloca em debate um conjunto de questões que visam ao enfrentamento da própria ideia de homem, conforme ela foi sendo engendrada pela sociedade e pensamentos ocidentais. Assim, não se pode ler seu texto senão a partir das dimensões mais amplas das questões que ele mobiliza: a ideia de homem e de Deus, a história como teodiceia, a sinceridade da confissão, a crise da culpa e a possibilidade do perdão e da desculpa diante de um tribunal que julga os homens. Mesmo que Marquard se volte mais diretamente para o século XVIII, trata-se de um século XVIII que arrasta em si a tradição e estende-se também a nosso mundo. Há de se considerar também as ironias de suas datações, em semelhança como fazia Marc Bloch ao dizer não ser um medievalista ou quando Jacques Le Goff e Georges Duby, imbuídos de análise requintada, encontravam em mapas e sobrevoos da França, no século XX, os pontos de percepção da sociedade medieval. Por fim, como afirma Marquard, sua palestra convertida em texto é operação de um dublê e, ao mesmo tempo, um texto-dublê.

Para não nos delongarmos mais, restaria apenas enfatizar que é a partir da capacidade de instigar novas questões que a história vem se renovando e, nesse começo do século XXI, esperamos que essa contribuição da Locus produza frutos por despertar possibilidades de debate. Assim, menos engajados em uma história repleta de certeza, novamente apostamos aqui na herança da dúvida e do encontro da pluralidade da dúvida que leva à investigação.

Denise da Silva Menezes do Nascimento – Organizadora do dossiê


NASCIMENTO, Denise da Silva Menezes do. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.22, n.1, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Outros olhares sobre a Antiguidade Tardia e Idade Média | Outras Fronteiras | 2015

O Dossiê Outros olhares sobre a Antiguidade Tardia e Idade Média traz artigos escritos por estudantes de Graduação e Pós-Graduação em História e Letras, interessados no estudo e na compreensão dos períodos comumente chamados de Antiguidade Taria e Idade Média. A ideia para a produção do Dossiê surgiu nos encontros do Grupo de Estudo “Poder, autoridade e heresias durante a Antiguidade Tardia e Idade Média” e ganhou corpo durante a realização do “Ateliê de Estudos sobre Antiguidade Tardia e Idade Média”, na Universidade Federal de São Paulo, em 2015. Os estudantes envolvidos com o projeto de escrita dos artigos são tanto pesquisadores que realizaram e realizam pesquisas de Iniciação Científica, Mestrado e Doutorado na área, quanto alunos que, embora não dedicados a pesquisas sobre Antiguidade Tardia e Idade Média, tiveram, em algum momento de sua formação acadêmica, o interesse desperto para esses períodos históricos tão distantes e diversos da Contemporaneidade. Leia Mais

O universo normativo e relações de poder na Idade Média: doutrinas, regras, leis e resoluções de conflitos entre os séculos V e XV / Anos 90 / 2013

O universo normativo e relações de poder na Idade Média: doutrinas, regras, leis e resoluções de conflitos entre os séculos V e XV. No final do ano de 2001, a revista Anos 90 publicou o número intitulado Estudos sobre Idade Média Peninsular. O trabalho de seleção dos textos ali reunidos foi organizado pelo Professor Dr. José Rivair Macedo. Esse número foi a coroação de uma série de ações realizadas na UFRGS sobre história medieval na década de 1990. Sendo assim, foram publicados textos de professores e, então, alunos de pós-graduação e graduação, além de professores de outras instituições. O tema daquele número também refletia a concentração de estudos, na historiografia brasileira sobre Idade Média, que privilegiavam a Península Ibérica nos séculos finais daquele período.

Doze anos depois, podemos afirmar que o presente dossiê sobre normas e relações de poder entre os séculos V e XV é reflexo de uma série de mudanças: desde as relacionadas à avaliação e classificação das revistas acadêmicas, que estimulam a inserção dos Programas de Pós-Graduação em nível nacional e internacional e evitam também a publicação de textos de autores da casa, às abordagens sobre tempos e espaços diversos. Sendo assim, os autores que publicam no presente dossiê, em geral, tem como característica geral, a presença mais constante e sistemática de períodos e projetos de colaboração internacional de pesquisa. Dessa forma, o presente número oferece ao público uma reunião de textos que tem origem em pesquisas realizadas (concluídas ou em andamento) em nove Universidades diferentes e que tratam de tempos e espaços heterogêneos.

Dividimos o dossiê O universo normativo e relações de poder na Idade Média: doutrinas, regras, leis e resoluções de conflitos entre os séculos V e XV em três blocos, não necessariamente fechados em si. O primeiro inclui textos sobre o período inicial da Idade Média que analisam aspectos das relações de poder na região da atual França; o segundo concentra textos sobre a chamada Idade Média Central, mas também abarca os textos sobre Península Ibérica entre os séculos XI e XV; o terceiro reúne textos sobre a Península Itálica, especificamente entre os séculos XIII e XV. O leitor pode perceber, então, que há uma orientação cronológica (da Alta à Baixa Idade Média) e geográfica (França, Portugal, Espanha e Itália), porém, o que fica evidente no conjunto dos textos é a pluralidade de possibilidades: textos que defendem a atuação de um possível Estado e ideias de governo, textos sobre a constituição de normas específicas, como regras de Ordens Religiosas ou processos jurídicos, textos sobre concílios e moralização clerical, além de textos sobre resolução de conflitos.

O primeiro artigo é de autoria de Rossana Pinheiro, da UNIFESP. A autora aborda algumas características do poder episcopal na Gália do século V, com especial destaque para a não separação entre monges e bispos ou, como defende a autora, para a atuação de “monges-bispos” na expansão do cristianismo naquela região. O texto seguinte, de autoria de Marcelo Cândido da Silva (USP), trata de crises de escassez de alimentos e fome entre os séculos VIII e IX, entre os carolíngios. O autor analisa, além de anais, crônicas e inventários, a atuação de combate à fome adotada por governantes, como: Pepino, o Breve († 768), Carlos Magno (†814), Luís, o Piedoso († 840), Carlos, o Calvo (†877) e Carlomano II (†884). Para Cândido da Silva, os indícios encontrados sobre a fome na documentação analisada não necessariamente permitem associar as crises às dificuldades técnicas. Sendo assim, o autor fornece um olhar mais voltado para a história política do que para a história econômica para discutir o assunto.

O segundo bloco de textos inicia-se com a reflexão proposta por Cláudia Regina Bovo, professora de história medieval na Universidade Federal do Triângulo Mineiro. A autora expõe seu problema de pesquisa no título do artigo: O combate à simonia na correspondência de Pedro Damiano: uma retórica reformadora do século XI?. O objetivo é discutir se se pode afirmar a existência de um “programa reformador” no século XI. Em outras palavras, a autora propõe uma revisão sobre a chamada “reforma gregoriana” a partir de uma análise de caso: a simonia. Ao final do texto, ela conclui que não é possível afirmar a existência de uma noção ampla de “reforma”. O texto de Andreia Cristina Lopes Frazão da Silva (UFRJ) sobre o concílio de Coyanza (século XI) apresenta as características que fazem dessa reunião uma das mais importantes ocorridas na Península Ibérica durante o medievo e, principalmente, como se deu a construção historiográfica sobre essa importância. De acordo com a autora, as duas redações diferentes das atas daquele concílio revelam os interesses políticos que estavam em cena nas disputas no reino de Castela-Leão. O terceiro texto que compõe esse eixo é de autoria de Maria Filomena Coelho (UNB). A autora analisa, a partir do tema da clausura feminina, o processo de instituição e consolidação do braço feminino da Ordem Cisterciense na Península Ibérica, bem como relaciona esse processo às tensões políticas em Castela-Leão no século XIII. Para Coelho, como a clausura era um elemento básico e importantíssimo para a legitimação da vida monacal das mulheres, o tema deve ser analisado a partir da cultura política, entendida como “valores em que se assentam e pelos quais se justifica o poder de exigir a observância da clausura, bem como o de permitir as exceções”. Sendo assim, ao final do texto, a autora defende a necessidade de entender a clausura feminina como um elemento de legitimação institucional de um modelo, no qual as disputas concernentes a essa questão devem ser entendidas no contexto social e político de cada região. Finalizando o segundo bloco, o texto de Beatris dos Santos Gonçalves (UCAM-RJ) aborda a importância da concessão do perdão régio no processo penal português para a afirmação de um reino centralizado e fortalecido no século XV. A autora privilegia a análise das Ordenações do Reino e conclui que o “acesso à benevolência da remissão régia” funcionou como elemento de propagação do argumento que “só o rei poderia garantir a justiça”.

O presente dossiê é finalizado por uma sequência de três textos que tratam de ideias de governo, normas, regras e conflitos na Península Itálica. André Luís Pereira Miatello (UFMG) aborda os usos e significados das ideias de bem comum e utilidade comum nas cidades comunais italianas, como Florença, Siena, Bolonha e Pádua. O autor analisa dois escritos retóricos de Brunetto Latini (1220- c.1294): Rettorica (ca. 1260), e Li Livres dou Tresor (ca.1260-1267). Miatello conclui que é possível afirmar a existência de uma “esfera pública” construída nas cidades italianas a partir da noção de bem comum. No texto de Carolina Coelho Fortes (UFF), sobre a formação da Ordem dos Irmãos Pregadores (dominicanos) no início do século XIII, o leitor encontra alguns aspectos da tese de doutorado da autora, defendida em 2011. Seu principal interesse está em discutir o papel dos estudos na constituição de uma identidade institucional dos frades pregadores. A autora analisa documentos como o Liber Consuetudinum e as atas dos capítulos gerais realizados pela Ordem entre 1220-1260. Fortes conclui que, ao identificar na documentação constantes referências à regulamentação sobre a saída dos frades para atuar como mestres, inclusive, em casas de outras ordens, é possível afirmar que os dominicanos, no século XIII, podem ser associados a uma societas studii, ou “sociedade de estudos”. O texto que encerra o dossiê é de autoria de Didier Lett (Paris VII). O autor apresenta uma microanálise sobre qual consciência homens e mulheres poderiam ter dos estatutos nas cidades italianas da região das Marcas de Ancona. Para isso, apresenta e analisa um processo movido pelo pai de uma criança, em 1458, após um jogo de batalha de pedras em São Severino. No processo, a acusação é de um tipo de traumatismo craniano provocado por Benincasa di Beneamato Corradi em Andrea di Nicola. O pai de Andrea recorre à justiça e o pai de Benincasa é convocado a defender o filho. O que estava em causa: a inimputabilidade penal de Benincasa. Em outras palavras, a defesa foi estruturada a partir do argumento de que o acusado teria menos de dez anos quando do ocorrido e, por isso, não deveria ser aplicada pena. Na movimentação dos dois pais a partir do acionamento e recurso à justiça para a resolução do conflito, Didier Lett desvenda um universo que compreende desde as práticas cotidianas de divertimento de crianças e jovens de uma determinada região, a consciência que os habitantes poderiam ter das leis (pois o pai da vítima reclamou na justiça o direito de indenização) e, também, a atuação de diferentes autoridades no processo de formação e a relação entre práticas e representações nas comunas italianas no final da Idade Média.

Os nove textos aqui reunidos, dessa forma, oferecem ao leitor um espectro diversificado sobre o universo político e social, em diferentes regiões, entre os séculos V e XV. Além desses artigos, apresentamos também uma resenha, de Néri de Almeida Sousa (UNICAMP), do recente livro Guerra Santa, de Jean Flori, publicado em português em outubro de 2013. Sendo assim, o leitor tem acesso a um bom número de reflexões recentemente concluídas e / ou de pesquisas em andamento que já produziram resultados consistentes. Resta aos organizadores o convite à leitura e o estímulo ao debate. Agradecemos aos colaboradores da Anos 90: a comissão editorial 2010-2012, que aceitou a proposta do dossiê, aos pareceristas que colaboraram com a qualidade dos textos aqui publicados e aos autores que privilegiaram a proposta ao enviar seus textos para avaliação.

Boa leitura!

Igor Salomão Teixeira

Cybele Crossetti de Almeida

(Organizadores)


TEIXEIRA, Igor Salomão; ALMEIDA, Cybele Crossetti de. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 20, n. 38, dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

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Saberes na Idade Média Ibérica e no Ultramar / História Revista / 2013

Desde que iniciou suas atividades em 1996, a História Revista vem se destacando entre os periódicos científicos de História da região Centro-Oeste, obtendo conceito B1 na última avaliação do Qualis / CAPES. Continua com sua missão primeira que é constituir-se em um espaço plural de debates de idéias e de apresentação de novas pesquisas históricas.

Este número apresenta o Dossiê, Saberes na Idade Média Ibérica e no Ultramar, que reúne dez artigos resultantes das conferencias proferidas no VII Encontro LusoBrasileiro de Estudos Medievais, realizado entre 17 e 19 de outubro de 2012, na Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás. No contexto histórico medieval era quase impossível diferenciar claramente os limites entre as diversas esferas de saberes devido ao caráter integrado e relacional do conteúdo da cultura da Europa ocidental. Esste dossiê busca abranger alguns desses conhecimentos produzidos na Idade Média.

O saber educacional em suas diversas variantes agrupa cinco textos. O primeiro artigo, Saberes e sabedoria: a potencialidade das circunstancias num manual de educação do século XII, de autoria de Armando Martins, da Universidade de Lisboa, trata da análise de um manual de civilidade de Hugo de São Victor (séc. XII) adotado nos mosteiros crúzios urbanos de Lisboa e Coimbra nos século XII e XIII e depois na América portuguesa no século XVIII. As regras da boa educação eram também uma forma de perfeição da vida religiosa. O segundo, de Margarida Garcez Ventura, da Universidade de Lisboa, Espelhos de espelhos… D. Duarte na companhia de D. Afonso de Cartagena entre a cultura, a moral e a política, analisa a influencia do D. Afonso de Cartagena sobre o rei D. Duarte, seguindo a longa tradição dos Espelhos de Príncipes, manuais de educação virtuosa para os reis e seus filhos. O terceiro, O Espelho de Cristina (séc. XV) de Manuela Mendonça, da Academia Portuguesa de História e Iniversidade de Lisboa apresenta um manual de educação feminina do século XV, também conhecido como o Livro das Três Virtudes ou o Espelho de Cristina. Foi composto pela primeira mulher a exercer o ofício de escritora, Cristina de Pisano e mandado traduzir en lingoagen pela rainha D. Isabel, esposa de D. Afonso V para a leitura e formação moral das damas e princesas da sua corte. Continuou a ser lido pelas princesas e damas da corte de seu filho, o rei D. Duarte. O quarto artigo, Escrita e conversão na África central do século XVII: o Catecismo kikongo de 1624, de autoria de José Rivair Macedo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, propõe-se a mostrar o impacto de um manual de catecismo em lingua kikongo, Doutrina Christam do Padre Marcos Jorge, traduzido e utilizado pelos jesuítas na evangelização e conversão dos povos do antigo reino do Congo no século XVII e depois irradiado para outros povos da África central. O quinto artigo, O saber e os saberes na legislação sinodal portuguesa na Idade Média, de Maria Alegria F. Marques, da Universidade de Coimbra, analisa as constituições sinodais portuguesas medievais e a maneira como elas foram articulando os diversos saberes relacionados ao múnus apostólico do clero. Mostra igualemnte as transigencias com algumas práticas que lhes eram interditas ou censuradas, tais como, a arte de advogar e o ofício de tabelião.

A seguir, outros saberes medievais são investigados e analisados. O sexto artigo do dossiê, Os saberes da medicina medieval, de Dulce Oliveira Amarante dos Santos, da Universidade Federal de Goiás apresenta a trajetória, ao longo da Idade Média, da medicina como uma arte prática para uma ciencia com reflexão teórica nos Estudos Gerais. Investiga suas relações contínuas com outros saberes da época, tais como a Filosofia natural, a Astrologia, a Teologia e a Alquimia. Localiza ainda os espaços do exercício da Medicina em Portugal: o mosteiro, a corte e a cidade. O sétimo artigo, Entre saberes e crenças: o mundo animal na Idade Média, de Maria Eurydice de Barros Ribeiro, da Universidade de Brasília pesquisa a construção dos saberes sobre o reino animal da natureza por intermédio da literatura dos bestiários. Esse gênero de texto com vasta iconografia reproduz com equilíbrio o saber e a crença acerca do universo “zoológico”. Os dois próximos artigos enfocam as fontes do saber histórico. Assim, o oitavo artigo, A seiva do passado no saber histórico português e castelhano (XIV-XV), de Susani Silveira Lemos França, da Universidade Estadual Paulista, UNESP-Franca centra-se na construção do saber histórico nas cronicas com o ordenamento do passado e suas experiencias como fonte de ensinamentos. No nono artigo, Fontes de “saber” nas crônicas medievais: Fernão Lopes, Julieta Araújo Esteves, da Universidade de Lisboa, procura desconstruir o saber histórico das cronicas de Fernão Lopes focalizando a diversidade de suas fontes antigas e medievais. O último artigo, Saberes guerreiros de índios e portugueses na formação do Brasil, de João Marinho dos Santos, da Universidade de Coimbra, constitui-se em uma investigação sobre os saberes práticos (tecnológicos) da guerra no ultramar americano, tanto dos colonizadores quanto dos indígenas. Ambos estavam submetidos aos desígnios da natureza do Novo Mundo e dependiam mais da propria observação e experiencia dos efeitos dos armamentos do que de uma ciencia teórica da guerra.

O presente número encerra-se com a seção de Resenha bibliográfica crítica com o texto de Philippe Delfino Sartin, mestre em História pela Universidade Federal de Goiás. Trata-se da análise da obra de autoria conjunta do antropólogo francês René Girard e do filósofo italiano Gianni Vattimo sobre os dilemas do cristianismo na pós-modernidade contemporânea.

Boa leitura a todos.

Dulce Oliveira Amarante dos Santos


SANTOS, Dulce Oliveira Amarante dos. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 18, n. 1, jan. / jun., 2013. Acessar publicação original [DR]

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Religião, política e religiosidade na Idade Média / História Revista / 2012

A História Revista traz ao público o seu mais recente número, composto por três seções: Dossiê, Artigos e Resenhas. O dossiê Religião, política e religiosidade na Idade Média reúne quatro artigos escritos por pesquisadores vinculados a diferentes Centros de Pesquisas e Universidades brasileiras e argentinas. O artigo de Ruy de Oliveira Andrade Filho, professor e pesquisador na Unesp-Assis, abre o dossiê. Como informa o próprio autor, o artigo intitulado O reino visigodo: catolicismo e permanências pagãs, resgata e amplia algumas reflexões apresentadas no primeiro capítulo de seu recentíssimo livro: Imagem e Reflexo. Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VIII), publicado pela Edusp, em 2012. Andrade Filho apresenta uma atenta leitura das fontes e destaca a distinção entre “religião” e “religiosidade” ao discutir a convivência do cristianismo com as manifestações do chamado “paganismo” no reino visigodo. O segundo artigo do dossiê, Trabajando para el pueblo de Dios: palabra, ley y clero en el pensamiento de Isidoro de Sevilha (600- 636) é de autoria de Eleonora Dell’ Elicine, doutora em História, docente e pesquisadora na Universidad de Buenos Aires e na Universidad Nacional de General Sarmiento. A partir de uma rigorosa análise das fontes, a medievalista argentina busca, em seu texto, discutir como um programa linguístico se relaciona com uma eclesiología e um plano de governo cristão no pensamento de Isidoro de Sevilha. O terceiro artigo, Épica, memoria e historia. Como los carolingios escriben el mundo, é de autoria do professor da Universidad Nacional de Mar del Plata e da Universidad Nacional del Sur, Gerardo Rodríguez. Em seu artigo, Gerardo Rodríguez apresenta reflexões sobre a construção de uma tradição franco-carolíngia, a partir da análise das relações entre literatura e história, sustentadas em uma profunda discussão teórica e historiográfica. Fechando o dossiê, o artigo O culto a São Tiago e a legitimação da Reconquista espanhola, de Adaílson José Rui, analisa a construção do mito de São Tiago como protetor dos cristãos contra os muçulmanos. O professor da Universidade Federal de Alfenas utiliza ampla documentação e bibliografia para enfatizar as transformações do Apóstolo em guerreiro – em matamoros – e do seu culto, vindo a servir aos propósitos da monarquia castelhana que tinha a Reconquista como uma missão régia.

A seção Artigos, como espaço plural, apresenta uma interessante diversidade de temas e abordagens. Abre a seção, o artigo de Alex Degan, A polêmica entre Yosef ben Mattitiahou ha-Cohen e Titus Flavius Josephus. O professor da Universidade Federal do Triângulo Mineiro e membro do Laboratório de Estudos Sobre o Império Romano (LEIR), revela, na construção do seu texto, uma cuidadosa interpretação das fontes. Em seu artigo, Degan oferece uma leitura da sociedade judaica da Palestina do século I por meio de uma análise da vida e das obras do historiador judeu Flávio Josefo. Em seguida, a seção traz uma contribuição vinda do sul do país: A formação social e cultural no sul do Brasil: a “mancha loira” como um contraponto ao Brasil “mestiço e mulato”, de Maria Julieta Weber Cordova, professora Adjunta do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa. A autora destaca o discurso sobre a “mancha loira” presente na obra de Bento Munhoz da Rocha Netto, Presença do Brasil, como contraponto ao discurso do Brasil “mestiço e mulato”, caracterizado em Casa Grande & Senzala por Gilberto Freyre. Na sequência, Daniela Pereira Versieux, Mestre em Educação Tecnológica pelo CEFET / MG e professora da Fundação de Ensino de Contagem / MG, oferece uma contribuição aos estudos sobre Minas Gerais. Em A fazenda Escola de Florestal: apontamentos sobre a inserção de Minas Gerais na modernidade capitalista, Versieux enfoca a relação da Fazenda Escola de Florestal, fundada no então distrito de Florestal, município de Pará de Minas, em 1939, com o processo de modernização de Minas Gerais. O artigo de Fernando Lobo Lemes, Espera, morte e incerteza: a instalação dos Julgados nas minas de Goiás, explica que a instalação dos Julgados, passo inicial em direção a um ordenamento institucional mais sólido, aparece como estratégia provisória de organização das ações coordenadas por Lisboa nas minas de Goiás. Doutor em História, Lobo Lemes aprofunda os estudos das fontes para propor “uma leitura possível sobre a criação de Vila Boa”.

A seção Resenhas, por fim, traz uma novidade. Pela primeira vez, a História Revista publica uma resenha de Dissertação de Mestrado. Eduardo Sugizaki apresenta a dissertação de Paulo Henrique Costa Mattos, O trabalho escravo contemporâneo: a degradação do humano e o avanço do agronegócio na região Araguaia-Tocantins, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Eduardo Sugizaki, doutor em História pela UFG e em Filosofia pela Universidade da Picardia Júlio Verne, analisa a dissertação, enfatizando a sua relação com a literatura existente sobre o tema e os métodos empregados por seu autor. Em outra resenha, Rafael Sancho Carvalho da Silva, Mestre em História pela Universidade Federal da Bahia, discute a obra de Luiz Bernardo Pericás, Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. Rafael Sancho Carvalho da Silva avalia a produção sobre o cangaço para destacar que na obra resenhada o tema foi descrito “sem o peso romântico de outras descrições”.

A História Revista espera estar contribuindo para o debate de ideias, para a circulação do conhecimento e para a congregação de pesquisadores. Que a leitura seja profícua e prazerosa para todos!

 Adriana Vidotte – Editora


VIDOTTE, Adriana. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 17, n. 2, jul. / dez., 2012. Acessar publicação original [DR]

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Germanos, da Antiguidade ao Ano Mil / Nearco – Revista Eletrônica de Antiguidade / 2012

“Em minha opinião, os germanos são indígenas (…) incontaminados por casamentos com outras nações” Tácito, Germânia, 98 d.C.

Há várias décadas os povos germânicos estão sendo reavaliados pelos acadêmicos europeus. Em vez de apenas serem pensados como os bestiais causadores da derrocada do Império Romano, ou de outro lado, como primitivos e bucólicos habitantes das florestas num contexto quase romântico, as atuais perspectivas exploram suas particularidades enquanto inseridas numa dinâmica de transformações que afetaram todo o Ocidente. Nem bons, nem maus, os germanos são fundamentais para se entender o novo tipo de mundo que teve início entre a Antiguidade Tardia e a Idade Média: “as sociedades ditas bárbaras têm uma cultura e as que se chamam civilizadas adquirem uma à custa de esforços, para o melhor ou para o pior”, [3] considerou Paul Veyne, enquanto que para Peter Burke “O declínio do Império Romano não deve ser considerado a derrota da cultura pelo barbarismo, mas um choque de culturas (…) Por mais paradoxal que possa parecer a expressão, houve uma civilização dos bárbaros”.[4] Essa reabilitação, por certo, vem colocando também alguns problemas metodológicos e investigativos, como a questão de identidade entre as diversas etnias, a ponto de alguns pesquisadores questionarem uma pretensa unidade lingüística e cultural entre estes povos (a etnogênese) e sua contrapartida, o referencial étnico criado a partir de Roma. A arqueologia neste sentido vem sendo decisiva, concedendo a possibilidade de se contrastar e ou examinar as fontes clássicas com novas perspectivas, indo muito além dos referenciais da interpretatio romana.

Em nosso país, uma nova geração de germanistas vem sendo formada, tanto de pessoas advindas das áreas de História e Letras, mas também de Filosofia e Artes, de pesquisadores vinculados aos estudos classicistas quanto medievalistas e orientalistas. Os principais centros de pesquisas, a exemplo da maioria das investigações envolvendo Antiguidade e Medievo, ainda são essencialmente situados no eixo São Paulo e Rio de Janeiro, mas com articulações por todo o país. Em especial, o grupo Brathair há cerca de dez anos vem promovendo estudos, publicações e eventos na área, mas atualmente o interesse está sendo ampliado também para os tradicionais laboratórios, núcleos e centros de investigações históricas e arqueológicas. Ressalta-se aqui a criação de grupos novos, como o NEVE, Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos, de caráter interinstitucional, do qual o dossiê apresenta a participação de seis membros.

A presente coletânea é uma mostra das mais recentes investigações sobre os povos germanos, com trabalhos de pesquisadores de diversos locais do Brasil, e proporcionado gentilmente pela equipe do NEA, Núcleo de Estudos da Antiguidade, vinculado à UERJ, que coordena a revista NEARCO.

O primeiro trabalho é de autoria de Ciro Flamarion Cardoso (UFF), um dos grandes nomes da pesquisa em História Antiga de nosso país. Seu artigo, A interpenetração da cosmogonia religiosa com a história entre os escandinavos, investiga como o imaginário religioso nórdico era estreitamente conectado ao mundo social e material, questionando a tradicional separação sócio-espacial entre deuses e homens nas sociedades antigas.

Em seguida, temos o artigo Os fiordes e as serpentes: definindo espaços guerreiros na saga de Óláf Trygvasson, de Pablo Gomes de Miranda (UFRN / NEVE), que tem como objetivo estudar a relação mantida entre os escandinavos da Era Viking com os meios hídricos das regiões onde habitavam, articulando o delineamento de um espaço próprio da cultura guerreira.

Munir Lutfe Ayoub (PUC-SP / NEVE) é autor do próximo artigo, Um breve debate sobre os primeiros contatos e a formação da Islândia, no qual examina a historiografia e as controvérsias sobre a colonização escandinava na ilha da Islândia, durante a Alta Idade Média.

Encerrando a coletânea, outro estudo sobre a Islândia, desta vez atentando para o processo de cristianização através das fontes literárias: Islândia no ano mil d.C.: uma análise segundo o Islendigabók, de Renato Marra Moreira (UFG / NEVE).

Ao finalizar o dossiê, congratulamos a equipe do NEA pelo espaço, antevendo que o futuro das pesquisas germânicas antigo-medievais em nosso país é muito promissor, seja pela presença cada vez maior de interessados, quanto no amplo diálogo que os centros universitários consolidados podem proporcionar para que o debate e a pesquisa sejam sempre o espírito que move os acadêmicos, independente das instituições que pertençam. Boa leitura!

Notas

3. VEYNE, Paul. História da vida privada: do império romano ao ano mil. Vol. 1. SP: Cia das Letras, 2009, p. 404.

4. BURKE, Peter. Variedade de história cultural. SP: Civilização Brasileira, 2006, p. 246.

Johnni Langer – Pós-Doutor em História Medieval pela USP, professor da UFMA. Coordenador do NEVE, Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos (www.nevevikings.tk). E-mail: [email protected]

Luciana de Campos – Mestre em História pela UNESP. Membro do NEVE, Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos e NEMIS, Núcleo de Estudos de Mitologias (http: / / gruponemis.blogspot.com). E-mail: [email protected]


LANGER, Johnni; CAMPOS, Luciana de. Editorial. Nearco – Revista Eletrônica de Antiguidade, Rio de Janeiro, v.5, n.1, 2012. Acessar publicação original [DR]

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História e Idade Média / Revista Mosaico / 2011

O dossiê “História e Idade Média” reflete a ampliação temática da Revista Mosaico, que acompanha o grande aumento do interesse pelos estudos medievais, fato este comprovado pelo número de pesquisas presentes nos diversos programas de pós-graduação do Brasil. Dentro desta perspectiva, os artigos que compõem a primeira parte da Revista, o dossiê, apresentam um variado leque de possibilidades de análise e de discussão sobre temas relativos ao medievalismo.

Na segunda parte deste número da Mosaico, encontramos três artigos que trabalham com a perspectiva da interlocução entre História e Direto; são eles: “Os últimos anos da escravidão e a tensão social em processos crime: ações de escravos e senhores”, de Murilo Borges Silva; “Percorrendo os caminhos do Direto Civil Brasileiro”, de Rita de Cássia de Oliveira Reis; e “História e tutela jurídica do meio ambiente no Brasil: limites e efetivação”, de Jean-Marie Lambert, Roberta Elaine de S. N. Barros e Thiago Martins Barros.

Este volume é constituído por textos de vários pesquisadores oriundos de diversas universidades como UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), UFPR (Universidade Federal do Paraná), UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), UFMT (Universidade Federal do Mato Grosso), UFG (Universidade Federal de Goiás), PUC-GO (Pontifícia Universidade Católica de Goiás), UEG (Universidade Estadual de Goiás) e UC (Universidade de Coimbra).

Esperamos que este número da Revista Mosaico encontre abrigo também entre novos leitores.

Renata Cristina de Sousa Nascimento

Dirceu Marchini Neto

Os Organizadores

NASCIMENTO, Renata Cristina de Sousa; MARCHINI NETO, Dirceu. Editorial. Revista Mosaico. Goiânia, v.4, n.1, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original [DR]

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Idade Média / Cadernos de História / 2010

EDITORIAL

Os Cadernos de História PUC Minas, cumprindo o seu objetivo de promover o diálogo ininterrupto entre os variados campos das Ciências Humanas e Sociais, além de contribuir para a divulgação da produção científica, apresenta à comunidade acadêmica o Dossiê Idade Média. Composto de seis artigos inseridos em um recorte cronológico correspondente ao Medievo Central (séculos XI a XIII) e à Baixa Idade Média (XIV e XV), apresenta certa diversidade temática que pode ser reunida em dois conjuntos geohistóricos denominados, à maneira dos hispânicos, de “além-Pireneus” e “aquém-Pireneus”.

No primeiro conjunto e, encabeçando os trabalhos, está o artigo “Catolicismo e catarismo, um choque entre mitologias”, do renomado medievalista Hilário Franco Júnior. Tendo como pano de fundo o aspecto religioso, extrapola as perspectivas mais usuais, teológica, ideológica e social, sobre o catarismo, para analisá-lo no viés inovador do entrelaçamento mítico-litúrgico-ideológico da religião cristã, dando sequência às suas publicações mais recentes sobre o tema.

Situado no mesmo campo espaciotemporal está o quarto artigo, “Sistemas rituais do processo matrimonial no medievo europeu ou sistemas generificados de controle social”, de Rejane Barreto Jardim. Sua análise discute a possibilidade dos ritos de noivado, casamento e do charivari constituírem-se em formas de controle social da
sexualidade, num complexo sistema de relações de Gênero, os quais, no seu conjunto, correspondem às manifestações das diferentes camadas sociais.

Os demais artigos deslocam-se para o território de aquém-Pireneus – conforme a nomenclatura aqui adotada –, ou seja, para o âmbito particular da Península Ibérica e sua singularidade histórica, examinando questões ligadas, principalmente, a outro importante tópico medieval: a guerra.

Assim, o segundo artigo, “Assimilação do grupo moçárabe após a conquista de Toledo no século XI: questões a discutir”, de Renata Rodrigues Vereza, busca a articulação entre os aspectos sociais, políticos e religiosos no Reino de Leão e Castela, através da análise da condição dos moçárabes sob os dominadores islâmicos. Nesse
sentido, traz à tona nuances da comunidade cristã do centro-sul e suas especificidades decorrentes da presença cultural árabe, se comparadas às populações dos reinos do norte ibérico, com uma organização integralmente identificada com a antiga tradição cristã e visigoda.

Tendo o mesmo reino como cenário, o sexto artigo, “Reconquista cristã. Guerra e religiosidade no cancioneiro mariano afonsino”, de Heloisa Guaracy Machado, aborda o fenômeno bélico subsumido aos imperativos da religião cristã. A análise tem como ponto de partida a cantiga n. 169, que integra a literatura piedosa do rei Afonso X, o Sábio, na representação dos aspectos da Reconquista, colocados sob a ótica da história da salvação.
Já o terceiro artigo, “Uma escrita do passado centrada nas guerras”, de Susani Silveira Lemos França, examina as imagens da guerra, no Reino de Portugal, construídas pelos cronistas locais, sobretudo os atributos políticos e sociais do fenômeno tal como aparecem nas histórias da época.

Por último, mas não menos importante, o aspecto social é privilegiado no artigo cinco, “Tu fust’la Verga, el tu fijo la flor: Gonzalo de Berceo e a infância medieval”, de Augusto de Carvalho Mendes, que examina a visão sobre a infância a partir de fontes literárias no âmbito castelhano. Somando-se às contribuições trazidas pelos demais
trabalhos, o texto em questão projeta nova luz à história da família, em franco crescimento como objeto de estudo, ao problematizar uma concepção cristalizada sobre a suposta desvalorização da criança, na época, consolidada pela conhecida tese de Philippe Ariès sobre o tema.

Heloisa Guaracy Machado – Professora Doutora. Editora-gerente dos Cadernos de História PUC Minas


MACHADO, Heloisa Guaracy. Editorial. Cadernos de História. Belo Horizonte, v.11, n.14, 2010. Acessar publicação original [DR]

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Saber na Idade Média / Textos de História / 2001

Apresentação

Na abertura do colóquio de Cerisy- la -salle em 1991, Jacques Le Goff,’ ao falar da evolução da historiografia medieval enfatizou como esta evolução se fez sempre com a aproximação de outros campos do conhecimento. A história medieval constituiu-se, assim, ao longo dos anos, um lugar de confluência de várias disciplinas e de distintas práticas metodológicas, que transformaram a Idade Média em lugar — objeto de reflexão —.

De fato a Idade Média que vem suscitando um grande interesse, colocou a história medieval como disciplina mestra da história; inovou na escolha dos objetos; ditou regras com propostas metodológicas arrojadas; ampliou a relação com outras disciplinas. Converteu-se em última palavra, em um campo interdisciplinar por excelência. Atualmente, a Idade Média não só serve de ponto de referência para o estudo de outras épocas, como a proposta metodológica dos medievalistas inspira, com freqüência, os demais historiadores.

De Marc Bloch a Georges Duby, na França, a história medieval ganhou uma grande importância graças ao desenvolvimento de pesquisas, que sem abandonar a erudição, derrubaram os antigos chavões. Prova disso, é a extensa bibliografia do Grupo Antropologia Histórica liderado por Jacques Le Goff, que vem demonstrando a importância dos tempos medievais na construção das sociedades modernas. A repercussão foi imediata, ultrapassou as fronteiras européias e conquistou historiadores no novo mundo. Os trabalhos de Patrick Geary e Andrew Lewis nos Estados Unidos ganharam merecida notoriedade; e na América Latina, as associações de estudos medievais revelam grande vitalidade.

No Brasil têm-se, seguidamente, discutido os obstáculos enfrentados pelos medievalistas. Dentre os mais apontados, salienta-se a indisponibilidade de fontes primárias, a pouca dedicação dos estudantes no estudo do latim, ou mesmo de línguas estrangeiras, a situação subalterna que a disciplina se encontra na maior parte das universidades brasileiras2 Na verdade, formou-se um ciclo vicioso difícil de ser vencido. Na medida em que a disciplina não é valorizada no ensino secundário, acentua- se a tendência à generalização. Ao ingressar no curso de História, não é apenas o domínio do ladm ou de línguas estrangeiras que falta aos jovens calouros. Boa parte não domina, como se desejaria, o conhecimento de história. A pouca importância, ou mesmo o ínfimo valor atribuído a Idade Média, faz com que a matéria seja ministrada de forma descuidada. Uma simples leitura nos programas de ensino de primeiro e segundo graus do Distrito Federal permite constatar a permanência de preconceitos.

Na universidade o desconhecimento da história medieval é um fato. É significativo o número daqueles que consideram que “não temos nada a ver com a Idade Média” e, que, em situações precisas, decida-se da superioridade ou peso de tal disciplina sobre os remotos tempos medievais.

Nos guetos formados pelas áreas de conhecimento, perdeu-se a noção elementar de que a história é um processo e que a especialização não implica na ignorância do processo histórico em sua totalidade. Nesse sentido, Maria Guadalupe Pedrero-Sánchez referindo-se a legitimidade dos estudos medievais no Brasil, afirmou que: a História do Brasil somente será compreendida partindo-se dos antecedentes da sua inserção na chamada Civilização Ocidental. Dessa maneira, sem boas aulas de História Medieval – ou Antiga – o futuro investigador, no Brasil, deixará de captar aspectos diversos e relevantes da própria história.

3 A despeito da ampla reflexão que vem se desenvolvendo acerca do ensino e da pesquisa da história medieval no Brasil, constata-se porém, que é dura a resistência no interior dos departamentos de História do país afora. Os dados são claros: muitos departamentos não possuem medievalistas e não é raro o caso em que o professor de história medieval acumula o ensino da disciplina, com a de Antigüidade ou com a de Idade Moderna.

Necessário se faz reconhecer que a Universidade deve assumir o seu compromisso na formação de pesquisadores, mas também de professores para o ensino secundário. Nos Estados Unidos tem-se constatado que a especialização crescente dos professores universitários, muito mais voltados para a pesquisa do que para o ensino, tem resultado no quase abandono da formação básica. A busca de financiamento para a pesquisa, mas também de prestígio pessoal, distanciaram o professor do ensino.

No máximo ele comunica a seus alunos o resultado e o método da pesquisa que, no momento, desenvolve4 . Na França, os pais da História Nova expressaram sua preocupação com a maneira bastante perigosa que a Nova História penetrou no ensino secundário5 . No Brasil a situação é análoga, provocando uma série de distorções. No que toca à Idade Média, forçoso é reconhecer que não nos livramos dos preconceitos, nem fora, nem dentro das instituições.

Os textos aqui apresentados resultam do esforço que os seus autores vêm realizando nos últimos anos, no sentido de demonstrar as possibilidades da pesquisa sobre a Idade Média no Brasil e o espaço que a disciplina deve assumir no interior das universidades. A maioria dos trabalhos foram apresentados na I I I Semana de Estudos Medievais6, realizada em Brasília, em outubro de 1996. Incorporaram-se também, outras colaborações, que pertencem a membros do Programa de Estudos Medievais, PEM/UnB-UFG’. Os textos reunidos tratam da produção do saber na Idade Média, revelando também, o lado prático deste saber, posto em prática na organização da vida no interior dos conventos, seja do ponto de vista da produção da sua própria regra, seja do ponto de vista da vida material. Na primeira parte, intitulada “O universo feminino”, Dulce Oliveira Amarante dos Santos analisa as representações corporais e a discussão sobre os pecados, apoiando-se em duas obras eclesiásdcas ibéricas da primeira metade do século X I V : o Livro das Confissões de Marfim Pere% e o Status et Planctus Ec/esiae, de Á l v a r o Pais. Em “A querelle des femmes”, Claudia Costa Brochado demonstra como, a partir do século X I I , as mulheres passaram a ocupar espaços tradicionalmente masculinos, aumentando a tensão entre os sexos. O movimento denominado querelle des femmes é abordado por Claudia Brochado, tomando como referência, a participação de Isabel de Villena, autora de Protagonistes Femenines a la Vita Christi; espécie de resposta a misoginia literária da Baixa Idade Média. No artigo seguinte, “Clara de Assis, a presença feminina no movimento franciscano”, Teresinha Duarte demonstra a luta de Clara de Assis para formação de sua Ordem e aprovação de uma Regra, que não se enquadrava na observância de uma Regra monástica tradicional. Clara logrou elaborar uma Regra específica, que foi aprovada por Inocêncio IV em 1253, mas apenas para o mosteiro de São Dam ão.

Os mosteiros encontram-se no cenrro das preocupações dos textos que compõem a segunda parte, “Monaquismo e cristandade ocidental”.

Considerando ser redutor e equivocado supor que o monaquismo nasceu da função protestatória contra o sistema de Cristandade ou Império cristão, e que, o protesto destinava-se contra a Igreja ou o clero, Francisco José Silva Gomes, em “Peregrinado e Stabilitas: monaquismo e cristandade ocidental nos séculos V I a V I I I ” , afirma que o protesto destinava- se contra o que era considerado, por alguns cristãos, como uma mundanização do cristianismo e da Igreja. Francisco Gomes dedica-se à análise de dois modelos da espiritualidade monástica na Cristandade Ocidental da Alta Idade Média — peregrinatio e stabilitas – modelos anteriores ao monaquismo, mas, que foram apropriados e redefinidos para servirem à espiritualidade monástica. Em “O Couto de Alcobaça: matriz de um novo ordenamento sócio — econômico na Estremadura Portuguesa”, Celso Silva Fonseca contextualiza os princípios de defesa, ampliação e colonização do limes portucalense à partir do século X I . Dentro deste contexto foram doadas, no início do século seguinte, as terras de Alcobaça a Bernardo de Claraval. Tal doação teve importantes conseqüências para todo o reino português. Os monges cistercienses, afirma o autor, por princípios doutrinários e pelos conhecimentos técnico — agrícolas, obtiveram excedentes de produção que foram comercializados. A ascensão da Ordem Cisterciense, graças a sua autonomia e centralização, garantiu o desenvolvimento dessa colonização até meados do século XIV. “A Regra de São Bento e a arte: questões acerca do não dito”, de Maria Cristina Pereira analisa a contradição entre a Regra de São Bento, que praticamente ignora a produção artística — apenas um capítulo é dedicado aos artífices do mosteiro —, e a inspiração, que ainda assim, encontra na Regra a Ordem de Cluny, produtora e patrocinadora da arte na Idade Média. O objetivo de Cristina Pereira é discutir esse alheamento e analisar as sutilezas do não dito. Ela busca desvendar a leitura que a Ordem de Cluny fez da Regra de São Bento em relação à arte e à iconografia.

A terceira parte volta-se para o ato de pensar e representar. “Realidade e sonho nas representações dramádcas medievais”, cuja autoria é de José Carlos Gimenez, tem o propósito de estudar as imagens da sociedade castelhana no final da Idade Média. Gimenez toma como base as imagens construídas pelos autores do teatro natalino nas representações dramáticas.

Para o autor é possível, a partir dessas representações e imagens, fazer uma leitura da sociedade e aproximar-se da mentalidade dos protagonistas.

J o s é Carlos Gimenez considera os autos natalinos como uma prática cultural e social religiosa, que concebia uma sociedade inalterável e que, como tal, não devia ser transgredida pelos seus membros. Tomando como fonte os Cosrumes de Beauvaisis, uma das mais importantes obras do século X I I I , Ana Catarina Zema Rezende analisa a obra cuja autoria pertence a Felipe de Beaumanoir e que coloca no papel os hábitos e os costumes já ha muito conhecidos. Chamando a atenção para a influência do direito romano no pensamento jurídico do século X I I I e sua preocupação com a escrita, a autora aborda os direitos senhoriais do conde de Beauvaisis, adotando a c l a s s i f i c a ç ã o proposta por Pierre Charbonnier. Zema Rezende conclui que o coutumier de Felipe de Beaumanoir, enquadra-se historicamente no movimento determinado pelas modificações da organização do senhorio e que as prerrogativas do poder do conde de Beauvaisis eram bastante amplas.

Na última parte, “A Idade Média: em torno da historiografia”, a preocupação dos autores é de ordem historiográfica. No primeiro artigo, “Vocabulário de História Medieval”, Celso Taveira propõe-se a elucidar o vocabulário empregado pelos medievalistas tomando como ponto de parüda 0 Ano Mil de Georges Duby. Trata-se de algumas reflexões anteriormente desenvolvidas em sala de aula, que o autor apresenta, tendo como meta a elaboração de um glossário, que pretende ampliar o universo conceituai das úlümas décadas do século X e o século X I . O último artigo, “Controvérsias historiográficas acerca da doutrina gregoriana” é de Marcelo Cândido da Silva que discute as diferentes abordagens historiográficas acerca da doutrina gregoriana. O autor localiza as raízes das controvérsias, em uma certa ambigüidade presente nos textos de Gregório V I I , a Segunda Sentença contra Henrique IV e a Segunda Carta à Hermann de Met\. Concluindo, para ele, a doutrina gregoriana, na medida em que procurou estabelecer as fronteiras entre os poderes temporal e espiritual, buscou dessacralizar este último. Isto, porém, não implica que desconsiderasse a origem divina do poder imperial.

Notas

1 Jacques Le Goff, “Prefacio”, in: Le mqyen âge aujourd’hui. Paris, Le léopard d’or, 1998.

2 Consultar a respeito José Roberto Melo e Ivone Marques Dias, Anais da II Semana Medievais, Brasília, PEM, 1994, pp 44 – 48.

3 Maria Guadalupe Predrero Sánchez, História da Idade Media, Textos e Testemunhos, São Paulo, Unesp, 1999.

* Cf. A introdução de Júlio Trebolle Barrera em A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã, Petrópolis.Verbo, 1993, p. 7.

3 Jacques Le Goff, A Nora História, Lisboa, Ed.70, s/d.

6 Os Anais da I Semana e da II Semana, foram publicados respectivamente, em A vida na Idade Média, Brasília, Edunb, 1998 e Anais da II Semana, Brasília PEM, 1994.

Desde 1999 o PEM, Programa de Estudos Medievais – UnB, inter-institucionalizou-se ligando-se à equipe de medievalistas da Universidade Federal de Goiás.

Maria Eurydice de Barros Ribeiro – Professora do Departamento de História e do Programa de Pós-Gradução em Artes da Universidade de Brasília.

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Trabalho livre e trabalho escravo na Antiguidade e na Idade Média e outros estudos / Varia História / 1988

Quando, em 1983, realizava-se, na Universidade Federal da Paraíba, o 1º Simpósio de História Antiga, a avalização geral da situação do ensino e da pesquisa nessa área do conhecimento no Brasil era bastante sombria, o que parece bem resumido pela Profª Vânia Leite Froes, ao afirmar: “reduzida no currículo do curso de História, praticamente eliminada do 1 º e do 2º graus pela reforma do ensino e finalmente deixada do lado pelo vestibular, onde se exige o adestramento do aluno a partir da crise do feudalismo, o papel da História Antiga no Brasil precisa ser repensado”. Palavras que podem ser aplicadas também ao domínio da História Medieval, o que provocou a proposta de que o âmbito da própria série de simpósios que então se iniciava fosse ampliado também para esse domínio, no esforço efetivo de criar os meios para repensar o papel dessas disciplinas não só nos quadros curriculares do sistema de ensino nacional, mas ainda, e principalmente, como legítimos representantes de uma esfera de produção do saber sistematicamente marginalizada desde várias décadas nas escolas, nos institutos de pesquisa e junto dos órgãos oficiais de fomento à produção científica.

Diversas propostas foram debatidas naquela ocasião, apontando para a necessidade de uma ação permanente, junto da comunidade científica e das instâncias dirigentes, o que supunha antes de tudo que os próprios professores, pesquisadores e estudantes da área se articulassem. Constatava-se como a dispersão impedia uma estratégia conjugada: professores do Aio de Janeiro desconheciam quase totalmente o que se fazia em São Paulo e vice-versa, o que fica patente, para citar um exemplo marcante, no fato, registrado nos Anais, de os primeiros ignorarem a existência, na Universidade de São Paulo, do Museu de Arqueologia e Etnologia, que conta com _um significativo acervo relativo às culturas antigas médio-orientais e clássicas. Como expressou o Prof. Ciro Flamarion Cardoso na ocasião, “a única alternativa seria que os especialistas da área se unissem em algum tipo de associação, com a finalidade de lutarem pela solução institucional (e não individual) dos problemas de sua área de atuação, entre eles o do acesso às fontes primárias e em geral aos instrumentos de pesquisa”.

O primeiro passo nesse sentido teria lugar no ano seguinte quando, por ocasião do 1º Congresso Nacional de Estudos Clássicos, promovido pela Universidade Federal de Minas Gerais, se articulou a fundação da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, restrita não apenas a historiadores, mas englobando todos os especialistas, estudantes e estudiosos das culturas clássicas e de outras culturas com elas relacionadas. A SBEC foi fundada em 1985, iniciando um trabalho cujos frutos já se fizeram sentir desde logo. No interesse de ampliar os contatos, na busca conjunta de soluções, assumiu, quando da realização do 2ª Simpósio de História Antiga e Medieval, promovido pela Universidade Federal Fluminense, a organização do evento seguinte. Para isso, contou imediatamente com a colaboração do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, o que tornou possível a realização, em Belo Horizonte, do programa, cujos anais constituem o corpo do presente número especial da Revista do Departamento de História.

O balanço dos acontecimentos dos cinco últimos anos pode, de fato, fazer renascer a esperança. De um lado, está em processo o almejado repensar o papel da História Antiga e Medieval no Brasil, graças aos encontros periódicos dos que atuam nessas áreas e ao contato permanente proporcionado por instituições como a SBEC. Por outro lado, como conseqüência dessa mesma articulação, os órgãos de fomento à pesquisa têm dado apoio efetivo a projetos do setor, tendo sido criados mesmo programas emergenciais, como o patrocinado pela CA· PES. Finalmente, a exemplo do que aconteceu no campo das ciências da Antigüidade, formou-se e organizou-se, durante o último Simpósio, a Sociedade Brasileira de Estudos Medievais e Renascentistas. Tudo isso tem levado a uma paulatina recuperação do espaço dos estudos antigos e medievais no contexto da comunidade científica nacional, sob a égide do debate e da avaliação permanentes, requisitos indispensáveis para o desenvolvimento de trabalhos deveras sérios e cuja contribuição seja efetivamente relevante no contexto da produção não apenas brasileira, mas internacional.

Há ainda um longo caminho pela frente. O perfil de um encontro abrangente como o 3ª Simpósio constitui um retrato do que já se obteve e do que resta por conquistar. As disparidades regionais são grandes. É urgente a questão do ensino básico e médio. A situação da transmissão e da produção de conhecimento nas Universidades exige uma ação decidida e continua. O problema da formação de profissionais competentes não pode ser descurado. Não se trata, contudo, de uma avaliação pessimista. O sentimento generalizado é de que existe um largo caminho a ser percorrido, mas que o percurso é viável. Mas ainda: de que tal percurso não poderá ser vencido isoladamente por pessoas ou instituições, mas depende de um esforço conjunto capaz de dar sentido e perenidade às realizações das pessoas e instituições. Trata-se de criar tradição de trabalho científico, de fazer escola, de caracterizar um tipo de contribuição brasileira para as ciências da Antigüidade e da Idade Média sem bairrismos, sem concessões no que respeita à qualidade e sem perda da perspectiva crítica que, felizmente, vem animando esse repensar de que o presente volume dá uma mostra.

Jacyntho Lins Brandão – Universidade Federal de Minas Gerais


BRANDÃO, Jacyntho Lins. Editorial. Varia História, Belo Horizonte, v.4, n.7, set., 1988. Acessar publicação original [DR]

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