O governo local na fronteira Oeste: a rivalidade entre Cuiabá e Vila Bela no século XVIII – JESUS (RBH)

JESUS, Nauk Maria de. O governo local na fronteira Oeste: a rivalidade entre Cuiabá e Vila Bela no século XVIII. Dourados: Ed. Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), 2011. 197p. Resenha de: MOURA, Denise A. Soares de. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.34, n.68, jul./dez. 2014.

A pesquisa sobre o governo local das câmaras tem longa tradição na historiografia portuguesa, mas apenas no século XXI tornou-se objeto de interesse da historiografia brasileira. Nos anos 1940 Edmundo Zenha escreveu uma obra específica sobre o município e o poder municipal no Brasil colônia. Mas foi um historiador anglo-saxão, John Russell-Wood, que na década de 1970 realizou densa pesquisa sobre a câmara de Vila Rica.

Em 2001, em um contexto de forte mudança de rumo teórico-metodológico da historiografia no Brasil (Fragoso, 2001; Sousa, 2003; Comissoli, 2006; Souza, 2007; Borrego, 2010; Monteiro, 2010), Maria Fernanda Bicalho publicou um texto repleto de sugestões de pesquisa sobre o governo das câmaras (Cunha; Fonseca, 2005; Zenha, 1948; Russell-Wood, 1977; Bicalho, 2001) que estimulou uma série de outras pesquisas.

Uma delas é o livro O governo local na fronteira Oeste, originalmente tese de Doutorado defendida na Universidade Federal Fluminense (UFF) em 2006, com o título Na trama dos conflitos: a administração na fronteira Oeste da América portuguesa (1719-1778). A autora, Nauk Maria de Jesus, é professora na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e especialista na História do Mato Grosso. Recentemente publicou também o Dicionário de História de Mato Grosso, com verbetes referentes ao período colonial.

O livro é uma versão resumida da volumosa tese e está formado por três capítulos distribuídos ao longo de 197 páginas que tratam de questões econômicas, políticas e administrativas das duas principais vilas situadas na fronteira oeste do Brasil: Vila Real do Cuiabá (fundada em 1727) e Vila Bela da Santíssima Trindade (de 1752).

Uma questão central da obra é a da disputa ocorrida essas duas câmaras, a partir de 1752, por privilégios e posições de precedência, algo que garantia status na estrutura administrativa e o acesso a melhores receitas orçamentárias. A criação da capitania de Mato Grosso, em 1748, é o pano de fundo dessa rivalidade.

O primeiro capítulo do livro disseca a estrutura humana e funcional das duas câmaras, identificando seu corpo de funcionários e fornecendo dados que permitem até mesmo medir a diferença com instituições camarárias de outras regiões.

Chamo atenção, por exemplo, para a constatação da autora de que existiu juiz de fora na Câmara de Vila Bela na época de sua fundação, o que significou a eliminação temporária da figura do juiz ordinário. Pesquisadores sobre o governo local das câmaras compreendem o quanto esse dado é importante por evidenciar as diferenciações regionais do poder do Império na América. Em São Paulo, por exemplo, há notícia de instalação de juiz de fora apenas em 1803.

Ou seja, nas regiões de fronteira com o Império hispânico, onde havia um ambiente bastante favorável para relações de interesses entre diferentes grupos étnico e sociais, a Coroa portuguesa pode ter tido maior zelo em manter a justiça nas mãos de funcionários régios, ao invés dos eleitos localmente, como acontecia com os juízes ordinários.

Como mostra a autora, em Vila Real ou em Vila Bela, assim como aconteceu em Vila Rica, não houve a formação de um corpo de funcionários oriundos e aparentados nas elites dos primeiros conquistadores. No caso das duas câmaras do Mato Grosso, esses funcionários foram comerciantes, também proprietários de terras e engenhos e criadores de gado, mas sem o verniz das linhagens. Alguns foram oficiais de ofício, sapateiros por exemplo, que com as oportunidades próprias de toda área fronteiriça e de ocupação tardia, ascenderam socialmente por serviços prestados à Coroa ou pela labuta cotidiana de mercador.

O capítulo 2 aborda o período de regência da câmara de Vila Real do Cuiabá e sua atuação. O Oeste do território do Brasil pertencia à capitania de São Paulo, e seu governador, Rodrigo César de Menezes, associado com a ordem municipal, trabalhou para a efetiva incorporação da região ao Império português. Essa iniciativa conjunta deu origem, em 1748, às capitanias de Goiás e Mato Grosso.

Nesse processo de reordenamento administrativo da região houve uma série de conflitos com a população indígena local, especialmente os Paiaguás, envolvidos em negócios de contrabando, extravios do ouro e comércio de mão de obra cativa indígena. Essas lutas contra o gentio, que na realidade significavam também o combate das próprias pretensões castelhanas na zona fronteiriça, marcaram a identidade de vassalos da câmara de Vila Real. Ao arriscar suas vidas nos confrontos com Paiaguás e espanhóis, esses vassalos se viam como executores de determinados serviços e, portanto, dotados de certos direitos.

O capítulo 3 focaliza a rivalidade que existiu entre as duas câmaras no processo de implantação da ordem administrativa na fronteira Oeste. Quando de sua fundação, Vila Bela alcançou uma série de honras e privilégios que na realidade Vila Real considerava como seus de direito, tendo em vista os vários serviços que havia prestado ao rei na ocasião do estabelecimento dos primeiros povoamentos, como o combate aos índios e aos espanhóis. Vila Bela foi agraciada com benefícios e isenções, status de “vila-capital”, tornando-se sede do aparato administrativo e fiscal da capitania e recebendo em seu território instituições como a Ouvidoria, a Intendência do ouro e a Provedoria da Real Fazenda.

Embora a historiografia sobre a ordem municipal viva atualmente um início de renovação, com o surgimento dos primeiros trabalhos que concentram suas investigações sobre um funcionário específico (Schmachtenberg, 2012), O governo local na fronteira Oeste, diferindo da tradição monográfica portuguesa e mesmo dos primeiros trabalhos concluídos no Brasil, focalizou relações intercamarárias, o que é um ponto de originalidade da obra.

Essas rivalidades entre câmaras não foram específicas do Mato Grosso. Uma série de outras do mesmo gênero aconteceram e podem ter sido um dos últimos esforços de reordenamento administrativo do Império português em seu período tardio (1790-1820). Desde 1768 a vila de Santos disputou precedência com a de São Paulo. O ilustrado Marcelino Pereira Cleto chegou a defender a ideia de que a vila de Santos fosse alçada à condição de sede administrativa da capitania.

Mesmo em 1812 a transferência da sede da comarca da vila de Paranaguá para a de Curitiba foi motivo de bastante mal-estar entre essas duas câmaras (Severino, 2009). Houve, portanto, um contexto de transferência de poderes municipais no período colonial tardio que ainda não foi suficientemente pesquisado.

O que faltou no livro, embora apareça na tese, foi a melhor explicitação da terminologia administrativa do período. Alguns pesquisadores vêm se dedicando a esse aspecto bastante revelador da lógica hierárquica do antigo regime (Damasceno, 2003), o que contribui para um maior rigor nas conclusões sobre a história administrativa da época moderna.

A expressão “vila-capital”, ao se referir à câmara principal ou à condição administrativa disputada por ambas as câmaras, poderia ter sido mais problematizada. Essa expressão parece não ter feito parte da terminologia administrativa oficial da época. Os dicionaristas Raphael Bluteau (1728) e Antonio de Morais Silva (1798) definem como unidades administrativas os julgados, vilas, cidades, comarcas e paróquias. Capital não é definida como unidade regional-administrativa. Neste caso, a expressão “capital” que aparece nas representações, ofícios e petições analisados pela autora não teria sido, talvez, uma invenção dos próprios habitantes das vilas em disputa? Ou seja: em que medida a escrita pública local não foi responsável por reelaborar a terminologia administrativa da época, criando novas expressões que atribuíam status a uma localidade?

Assim, do mesmo modo como os habitantes da colônia foram responsáveis por criar outras designações sociais, esse mesmo processo pode ter ocorrido nas designações urbano-administrativas, como o O governo local na fronteira Oeste sugere ao leitor, deixando ainda ao pesquisador em História administrativa uma questão nova para ser problematizada por meio dos escritos municipais.

Referências

BICALHO, Maria Fernanda Baptista. História do Brasil. História Moderna, História do Poder e das ideias políticas. In: ARRUDA, J. J.; Fonseca, L. A. (Org.) Brasil-Portugal. História: Agenda para o milênio. Bauru, SP: Edusc; São Paulo: Fapesp; Portugal: ICCTI, 2001. p.143-166.         [ Links ]

BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. A teia mercantil: negócios e poderes em São Paulo (1711-1765). São Paulo: Alameda, 2010.         [ Links ]

COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a câmara de Porto Alegre (1767-1808). Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de História, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2006.         [ Links ]

CUNHA, Mafalda Soares; FONSECA, Teresa (Org.) Os municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberais. Évora: Colibri; Cidehus/EU, 2005.         [ Links ]

DAMASCENO, Claudia. Funções, hierarquias e privilégios urbanos: as concessões dos títulos de vilas e cidades na capitania de Minas Gerais. Varia História, Belo Horizonte: UFMG, v.29, p.39-51, jan. 2003.         [ Links ]

FRAGOSO, João et al. O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001.         [ Links ]

MONTEIRO, Livia Nascimento. Administrando o bem comum: os “Homens bons” e a câmara de São João del Rey, 1730-1760. Dissertação (Mestrado em História Social) – Departamento de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2010.         [ Links ]

RUSSELL-WOOD, A. J. R. O governo local na América Portuguesa: um estudo de divergência cultural. Revista de História, São Paulo: Universidade de São Paulo, n.9, p.25-79, jan.-mar. 1977.         [ Links ]

SCHMACHTENBERG, Ricardo. “A arte de governar”: redes de poder e relações familiares entre os juízes almotacés na câmara municipal de Rio Pardo/RS, 1811-c.1830. Tese (Doutorado em História) – Departamento de História, Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Porto Alegre, 2012.         [ Links ]

SEVERINO, Caroline Silva. A dinâmica do poder e da autoridade na comarca de Paranaguá e Curitiba, 1765-1822. Dissertação (Mestrado em História) – Unesp. Franca, 2009.         [ Links ]

SOUSA, Avanete Pereira. Poder local, cidade e atividades econômicas (Bahia, século XVIII). Tese (Doutorado em História) – Departamento de História, FFLCH, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2003.         [ Links ]

SOUZA, George Félix Cabral de. Elite y ejercicio del poder en el Brasil colonial: la Cámara municipal de Recife (1710-1822). Tesis (Doctorado en História) – Departamento de História, Universidad de Salamanca, 2007.         [ Links ]

ZENHA, Edmundo. O município no Brasil, 1532-1700. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1948.         [ Links ]

Denise A. Soares de Moura – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), Campus Franca. E-mail: [email protected]

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Cidade: Os Cantos e os Antros – LAPA (RBH)

LAPA, José Roberto do Amaral. Cidade: Os Cantos e os Antros. São Paulo, EDUSP, 1996, 361 p. Resenha de: MOURA, Denise A. Soares de. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.18 n. 35, 1998.

A história da cidade de Campinas, a partir da década de 50 do século XIX, foi marcada por tensões que confundiam elementos culturais coloniais e nascentes práticas modernizantes. A transição de uma economia açucareira para a promissora e lucrativa produção cafeeira elevou a cidade à condição de “capital agrícola da província”1 provocando a ascensão de uma nova elite que, contrapondo-se aos antigos hábitos aristocráticos locais empenhou-se num projeto de redimensionamento do público e do privado.

Num livro denso e primoroso, apoiado em farta documentação manuscrita e impressa dos anos 1850-1900, José Roberto do Amaral Lapa desvela as inúmeras faces deste projeto, abordando temas da história social, cultural e econômica num total de quinze capítulos que prometem fecundar muitos temas de pesquisa. Profundo conhecedor da história da antiga Vila de São Carlos e intensamente envolvido na preservação da sua memória, o historiador Amaral Lapa além de prof. titular no Departamento de História da UNICAMP, foi um dos responsáveis pela fundação e direção do Centro de Memória-atualmente coordena a área de publicações -, estabelecido na mesma universidade e que reúne vasto acervo de documentos e livros, além de competente grupo de pesquisadores e funcionários cujo trabalho e dedicação entusiasma e estimula a difícil tarefa de percorrer as trilhas da investigação histórica.

Conforme Amaral Lapa percebeu, a modernidade parece ter chegado muito timidamente a Campinas, urdindo-se e eludindo-se à escravidão, aos castigos infligidos aos escravos, à Guarda Nacional, aos muares, às diligências, festas e quermesses. Conforme constata, até 1869 a cidade ainda conservava muitos traços urbanos coloniais, com ruas sem calçamento, cheias de buracos, atoleiros, parcos meios de comunicação e minguados transeuntes durante a semana. Sobrevivências e resistências coloniais que o autor alude a um “componente de caipirice”, pois o enriquecimento da cidade através da lavoura de açúcar era recente e a camada superior que se favorecia dos seus lucros” contentou-se com padrões de vida que ofereciam no atendimento maior quantidade e não maior qualidade”2.

Aos lucros gerados pelo café e à nova camada dominante que se configurou neste contexto outros ritmos somaram-se ao cotidiano da cidade, com a diversificação do quadro ocupacional, a transformação lenta das relações de trabalho e a agilização dos deslocamentos através das estradas de ferro. Na medida em que a escravidão convivia com as modificações urbanas e econômicas, as posturas municipais procuraram regrar este convívio cativo em meio ao mundo livre, restringindo os ajuntamentos e os jogos nas praças, aguadas e subúrbios.

Os prelúdios da chegada da modernidade em Campinas puderam ser sentidos ainda em 1833, quando o francês Hércules Florence – um dos pintores da expedição Langsdorff – , estabelecido na cidade, obteve a fixação da imagem através da camera obscura, descobrindo a fotografia no Brasil, mas parece ter sido a fundação do Teatro São Carlos (1850) que inaugurou o movimento efetivo em busca da modernização.

Muito vagarosamente a cidade foi deixando de lado a taipa de pilão e substituindo-a pelos tijolos. O arquiteto Ramos de Azevedo levou monumentalidade para a cidade, promovendo uma remodelação urbanística e arquitetônica com aspirações cosmopolitas. O traçado do perímetro urbano-largura das vias e calçadas-passou a levar em conta o coletivo, o circular das pessoas e as posturas detiveram-se no aformoseamento das fachadas e ruas, procurando padronizar os prédios, disciplinar a privacidade e os olhares através da proibição das rótulas de madeira, cancelas, balcões e folhas que abriam para fora.

Esta modificação e modernização dos hábitos urbanos brotou em meio a práticas de enforcamento e exibição pública e permanente de corpos esquartejados dos escravos rebeldes, tendo sido atribuído a um deles, Elesbão, poderes mágicos e milagrosos, pois suas mão teriam ficado brancas no alto do poste ao qual havia sido expostas3.

Seguindo a trajetória proposta por Amaral Lapa e entrando nas casas populares ou nas aristocráticas era possível perceber que até meados do Dezenove sua arquitetura ignorava o banheiro. Nos fundos da casa havia um recinto destinado aos banhos e o ato de defecar comumente praticava-se à noite, no quarto e durante o dia, de cócoras no quintal. No intuito de normatizar estes hábitos o saber público uniu-se ao médico, desodorizando e saneando a cidade e os corpos das pessoas. A higienização incluía o controle do lixo nas casas e quintais, a fiscalização intensa de uma polícia sanitária, a compulsoriedade da construção dos “gabinetes de latrina,” com o intuito de combater os recipientes mantidos no quarto e o estímulo ao banho diário.

Numa cidade em vias de modernização, mas ainda convivendo com práticas seculares o ritmo da vida no interior dos sobradões corria ao sabor senhorial, através do uso de titulações do Império e de todo um gestual que legitimava valores de nobreza. Nestes sobradões expressava-se a convivência contraditória dos “recursos da modernização urbana, capitalista e burguesa a serviço de um estilo de vida estamental e refratário à exposição que a cidade reclama, mas não tanto aos serviços que ela oferece”4.

Neste sentido e conforme o autor enfatiza, a transição de uma ordem senhorial para uma burguesa fez-se lentamente, incluindo investimentos particulares na saúde, educação, religião, cultura, trabalho, lazer, esporte e filantropia. Ao crescimento do operariado somou-se intensos esforços de controle social de suas “horas urbanas” no interior e exterior das fábricas, disciplinando seu morar, trabalhar, descansar, jogar, rezar, instruir-se e movimentar-se.

No cerne de uma cidade improvisada diariamente pelos escravos e pobres livres, clandestina, transgressora das posturas e sem pudores germinava uma moral atenta à rotina dos cortiços, pardieiros, becos e ruelas. Combatia-se o modo de se vestir e as conversas. Tentou-se normatizar a própria mendicidade, restringindo-se a prática do esmolar às quartas e sábados. Aos poucos a lógica capitalista criava uma maneira urbana de existir.

Conforme mostra Amaral Lapa, a aspiração a modernidade que se espraiava pela ainda senhorial sociedade campineira racionalizou as práticas filantrópicas e esforçou-se por confinar os sofrimentos humanos, pois dor, pobreza e fragilidade não coadunavam com a imagem de civilidade e imponência que se buscava. Portanto, cabia à Santa Casa de Misericórdia atender os desvalidos, regrando a assistência com a disciplinarização moral e social.

Às entidades voltadas para o confinamento das pessoas impunha-se a tarefa de subtrair da circulação das ruas mendigos, indigentes, loucos, prostitutas e bandidos, pois com seus comportamentos vistos como desviantes, abalavam os alicerces de uma modernidade desejada e que se tentava impôr. Segundo Amaral Lapa, a modernização implicou em” confinamentos compulsórios”, predominando, nos bastidores da filantropia, objetivos racionais e práticos, próprio de uma sociedade capitalista. Neste sentido, atenção especial era dedicada aos leprosos e andarilhos com os corpos chaguentos e deformados. Com o aburguesamento das relações sociais a própria sensibilidade assumia outra face e tanto a pobreza como a doença passavam a causar medo e apreensão na” cidade sã”5.

A epidemia de febre amarela que atingiu dezenas de pessoas a partir de 1889 e ao longo de toda a década de 90 é um outro capítulo da história de Campinas ressaltado pelo livro, tendo em vista o sério abalo provocado no projeto modernizante em curso, através do esvaziamento da cidade pelo êxodo das pessoas, evidenciando a precariedade do saneamento público vigente6. A epidemia forçou intervenções abruptas das autoridades e a criação de políticas públicas visando a higienização e a saúde das pessoas. Estas, diferentemente dos cariocas, não reagiram com a mesma violência em relação à obrigatoriedade da vacina, mas mostraram certa resistência, entrando com processos na justiça visando suspender a ação do poder público.

Neste sentido, vê-se que desde as reflexões filosóficas sobre a origem do mundo do moleiro de Carlo Ginzburg, na Itália da Renascença, passando pelas práticas de leitura dos camponeses de Roger Chartier na França do século XVIII, não é possível subestimar a participação dos iletrados em muitas esferas da vida social. Aos pobres e desprivilegiados de poder econômico e prestígio cabia também a busca da resolução de seus problemas no plano jurídico7.

Mas no processo modernizante da cidade de Campinas, aos inúmeros desamparados gerados pelos surtos epidêmicos as autoridades e a elite local respondiam com a criação de instituições encarregadas de abrigar menores órfãos e abandonados, distribuir roupas e alimentos e prestar socorros aos doentes pobres. Toda esta preocupação com a saúde pública e amparo dos desvalidos, sempre liderada pela atuação particular, moveu-se em torno de uma prática visando a força de trabalho, a busca da urbanidade e o controle social.

No cerne deste processo civilizador o olhar perscrutador das posturas deteve-se no comércio e nos mercados, dado seu potencial de ilicitude. Nestes espaços uma série de situações propiciavam a violentação do que era entendido como decoro, higiene, silêncio, moral, justiça e convívio social,8 pois não só sitiantes e serviçais se dirigiam para estes locais com o objetivo de comerciar. Na realidade, estes eram espaços multifacetados da sociabilidade, onde as pessoas se reuniam para prosear, esmolar ou cantar. A narrativa de Amaral Lapa acompanha os passos dos vagabundos, loucos e ébrios nestes “cantos” da cidade, sempre cerceados na sua presença e movimentação nos mercados, sendo proibidos os ajuntamentos tanto de livres como de escravos. Ao longo do capítulo “Comércio & Mercados”, o autor desvenda a trama comercial que envolvia o abastecimento local, envolvendo tanto o comércio lícito como aquele que fugia às determinações das posturas.

“De chafarizes e águas” surpreende pela sensibilidade em perceber as nascentes de água potável, os próprios chafarizes e as bicas enquanto locus de sociabilidade, abrigando encontros, cantorias, danças e inúmeros comportamentos coletivos arredios ao prescrito. Em meio ao processo de abastecimento de água e a implantação de uma rede de águas e esgotos na cidade, o autor projeta questões ligadas à história social. Destaca-se muito na narrativa do autor a fluidez das temáticas abordadas, captadas através do entrelaçamento da sua dimensão física, econômica, política, simbólica, social e cultural.

Assim, a visita do Imperador em 26 de março de 1846 é tratada não só no seu aspecto político, mas no seu conteúdo cultural, mostrando à resistência de padrões tradicionais de honra e fidalguia em meio a um cenário social que se aburguesava com os lucros oriundos da economia agrária. Os mercados não eram apenas locais para abastecimento, compra e venda, mas para a manifestação da sociabilidade necessária e para o reordenamento das prescrições através da improvisação de outros papéis sociais, como o esmolar, a cantoria, o comércio ambulante.

Obra da maturidade, “Cidade: os cantos e os antros” nasceu clássico e percurso obrigatório para quem deseja embrenhar-se pela história de Campinas. Com narrativa agradável, sem fugir à erudição e rigor, é um livro rico em informações sobre a cidade. No cerne deste tenso processo de modernização eludindo a cidade colonial e burguesa o rural parece absorvido por esta urbanidade nascente, mas mesmo esta ausência não abala o mérito do estudo.

Notas

1 LAPA, José Roberto do Amaral. Cidade: os cantos e os antros.São Paulo, EDUSP, p. 20, 1996.

2 Idem, p. 23.

3 Idem, p. 74.

4 Idem, p. 106.

5 Idem, p. 227.

6 Sobre este assunto, a coleção campiniana, editada pela área de publicações do Centro de Memória da UNICAMP e coordenada pelo próprio Prof. Amaral Lapa lançará ainda neste mês de dezembro o inédito estudo “A febre amarela em Campinas 1889-1900”, de Lycurgo de Castro Santos Filho e José Nogueira Novaes.

7 CARLO, Ginzburg. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. Trad. Betania Amoroso, São Paulo, Companhia das Letras, 1987 e Chartier, Roger.” Textos, impressos, leituras. Práticas e representações: leituras camponesas em França no século XVIII”. In A história cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. Lisboa, Difel, 1990.

8 LAPA, José Roberto do Amaral. op cit., p. 275.

Denise A. Soares de Moura – Doutoranda pela Universidade de São Paulo.

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