Ordens e Congregações Religiosas no Mundo Ibero – Atlântico / Tempo / 2012

Conta-se aos quatro ventos que a grande revisão historiográfica do momento está no campo político, negligenciado durante boa parte do século XX devido à ênfase nos estudos econômicos e sociais. O reencontro dos historiadores com o tempo curto, em bases distintas daquelas definidas pela historiografia oitocentista, só foi possível graças ao diálogo estabelecido com a Antropologia e a Sociologia. O saldo desse revival fez brotar o interesse pelas biografias individuais e coletivas, ressaltou a importância dos ritos e dos mitos para a construção da imagem pública dos governantes, destacou o diálogo entre as elites locais e o epicentro do poder, e deu um novo enfoque aos estudos institucionais. Assim, a história militar e a história da Igreja voltaram à cena para revelar, a partir de novos problemas e novas abordagens, personagens e enredos até então desconhecidos.

Nesse bojo, o clero católico, antes mencionado apenas para enaltecer os feitos prodigiosos de uma ordem ou do papado, passou a ser objeto de estudos prosopográficos. O foco, outrora atribuído aos santos fundadores de uma congregação ou a seus grandes intelectuais, deslocou-se para o baixo clero, mal-instruído e avesso aos votos de pobreza, obediência e castidade. Outras vezes, a reconstrução do perfil social dos religiosos apontou para a frouxidão no cumprimento das regras de diversas ordens. Assim, padres bígamos, traidores do Estado, freiras impuras de sangue emergiram de fontes variegadas para dar a conhecer outra face da história das ordens e congregações religiosas no mundo ibero-atlântico.1

O percurso dessa releitura temática foi trilhado por caminhos diferentes nos dois lados do Atlântico. Os investigadores lusos, diferentemente dos brasileiros, alinharam-se à historiografia francesa, retirando da penumbra e da marginalidade a História religiosa. Transformada em um campo de investigação, integrada à Historia geral, a História religiosa retoma a importância dos fatores religiosos no processo histórico. A partir da exploração dos ritos, das crenças e de suas implicações, procura alcançar a influência que a religião exerce sobre os domínios político, social, econômico ou cultural.2

A História religiosa não é, no entanto, um ramo da História sociológica ou da História cultural, ou, ainda, uma História comparada das religiões. Embora se debruce sobre questões institucionais, segue a apartada de uma história confessional. Considera a hegemonia do cristianismo na configuração geopolítica do Ocidente, mas reconhece a importância de outros monoteísmos em sua formação cultural, econômica e social. Ocupa-se das peregrinações, devoções, cultos populares, formas de piedade, heresias, teologias, crenças e suas representações, sem hierarquizar os fenômenos religiosos.

A evolução da História religiosa na França deve muito à Escola dos Annales e à Nova História. Muitos dos autores que contribuíram de maneira decisiva para formar esse campo de investigação, como Lucien Febvre, Marc Bloch, Jean Delumeau e Jacques Le Goff, desfraldaram a bandeira da História das mentalidades, das representações coletivas e da biografia, elegendo objetos de estudo de natureza religiosa. Legaram, dessa forma, à posteridade obras de peso.3 É o caso das biografias de Lutero e de São Luís de França; dos estudos inovadores sobre os ritos taumatúrgicos na consolidação do poder régio medieval e a incredulidade no limar da Renascença; e, ainda, das obras sobre os desdobramentos políticos e econômicos do movimento protestante, para citar apenas alguns exemplos.

O tratamento dispensado à religião nesses estudos e a enorme influência que exerceram no meio acadêmico consolidaram a História religiosa como uma linha de pesquisa que resultou em obras como a História religiosa da França, publicada em quatro volumes, entre 1988 e 1989, sob a direção de Jacques Le Goff e René Rémond.4

No Brasil, os estudos sobre a vida religiosa buscaram, em geral, o abrigo de outras searas. Em outras palavras, as pesquisas acadêmicas que tomaram como objeto de análise credos, doutrinas, associações confraternais, ordens religiosas ou o perfil socioeconômico dos sacerdotes e demais membros de uma organização identificaram-se, em geral, como estudos de História cultural, de História das mentalidades ou de História social.

À primeira vista, essa classificação obedece à natureza do problema a discutido,5 mas tem estreita ligação com a legitimidade das linhas de pesquisa já consolidadas. Na verdade, tal postura só se justifica porque ainda persiste uma superposição equivocada entre a História religiosa e a História eclesiástica, esta marcadamente confessional, prosélita, edificante. Como estratégia para neutralizar essa impressão, os historiadores que se debruçaram sobre temas religiosos vincularam seus estudos àqueles campos de investigação enriquecidos pelo diálogo fecundo com a Antropologia e a Sociologia. Essa aproximação, estimulada pelos estudos da Escola dos Annales, da História Social inglesa e da Nova História francesa e americana, resultou como se sabe, na produção de obras já clássicas sobre a vida religiosa no Brasil colonial, que inspiraram inúmeras teses e dissertações nas duas últimas décadas.6

Em Portugal, o arranque em direção à renovação dos estudos sobre a vida religiosa ocorreu, também, sob influência dos escritos da Nova História francesa.7 A inclusão de temas relacionados com a piedade popular, a magia, as devoções e peregrinações, na grade de investigação dos historiadores, promoveu a integração do fenômeno religioso à História geral. Nos anos 1980, a disciplina “História religiosa” surgia para suplantar a História eclesiástica, centrada exclusivamente na evolução histórica do clero e de seus protagonistas.

Considerando a religião como realidade estruturante das sociedades, dos grupos e dos indivíduos, os historiadores portugueses passaram a incorporar as singularidades dos percursos, as contradições e os conflitos da experiência religiosa, seus desdobramentos políticos e econômicos, sem desprezar, contudo, seus aspectos institucionais. Sob esse prisma, organizou-se uma História religiosa de Portugal, em quatro volumes, que enquadra a Igreja no cristianismo, valoriza a matriz cristã-católica na formação religiosa lusa, mas não descura os dois outros credos que também constituíram a realidade histórica da Península: o judaísmo e o islamismo; tampouco olvida as diversas sensibilidades religiosas e formas de sociabilidades decorrentes.8

O lançamento dessa obra, no final do segundo milênio, livre do tom apologético da História eclesiástica, inseriu novamente o tema da religião nas grandes sínteses da historiografia portuguesa e contribuiu decerto para rebater o anticlericalismo militante que ainda inibe os estudos sobre as ordens religiosas em Portugal, a despeito da riqueza de seus acervos documentais.9

No Brasil, embora ainda não se tenha desposado a ideia de uma História religiosa que atualize os conteúdos defasados ou imprecisos das sínteses disponíveis sobre a História da Igreja, na prática, essa revisão já está em curso.10 Os estudos recentes sobre as ordens religiosas em Portugal e na América portuguesa, que integram este dossiê, fazem parte deste movimento.

O primeiro artigo, escrito por Adone Agnolin, analisa a atuação dos jesuítas no processo de catequização das populações indígenas no Brasil colonial. Explica como a ideia do livre-arbítrio, desenvolvida sobre profundas bases humanistas, definiu a experiência dos inacianos no Novo Mundo e transformou-os nos primeiros “etnólogos” da América lusa. O historiador italiano, radicado no Brasil, explica por que o esforço de compreensão e de tradução dos códigos sagrados dos indígenas deu origem a uma “gramática da evangelização” e demonstra porque as dificuldades no processo de conversão conduziram à valorização dos sacramentos como principal instrumento da catequese.

O segundo artigo, assinado por Lígia Bellini e Moreno Laborda Pacheco, explora o papel das crônicas e dos tratados escritos por religiosas do ramo franciscano observante, no século XVII. Os autores demonstram como esses manuscritos, em tom encomiástico, sublinhavam os feitos da realeza para captar recursos e favores variados, esclarecendo, assim, porque um monarca cumulava de vantagens a certas congregações e seu sucessor nem sempre seguia a mesma orientação.

O terceiro estudo, da autoria de Jorge Victor de Araújo Souza, trata da ordem dos beneditinos no Rio de Janeiro seiscentista. Demonstra, com base no perfil social dos religiosos, o vínculo familiar dos monges com a elite local e a importância da herança que lhes cabia na condução dos negócios da ordem. O trabalho ultrapassa, portanto, os limites do claustro, aproximando a vida religiosa do Mosteiro de São Bento da dinâmica econômica colonial.

O quarto texto, escrito por Suely Creusa Cordeiro de Almeida, aborda a criação e a utilização dos espaços de recolhimento e reclusão feminina em Portugal e no Pernambuco colonial. Demonstra, com base na trajetória de mulheres que apelaram ao Conselho Ultramarino para ingressar na vida monástica ou para manter-se dignamente nelas, que conventos e recolhimentos assumiam múltiplas funções no Antigo Regime: contemplativas, punitivas e educativas.

O quinto e último artigo deste dossiê, assinado por Pollyanna Gouveia Mendonça, discute a feição do clero regular nos primeiros tempos da colonização do Maranhão. Demonstra como capuchinhos, carmelitas e mercedários, embora membros de ordens distintas e submetidos ao provincial da sua respectiva ordem, estiveram sob a mira do poder episcopal. Constata o despreparo dos religiosos, a frouxidão nos costumes e na observância das regras a que deveriam obedecer. Segundo a autora, até o século XVIII, época em que o cerco ao clero católico fechou-se nas altas rodas da sociedade portuguesa e tornou-se uma política régia, os desmandos eram abafados pelos próprios superiores eclesiásticos.

Caracterizado pela diversidade das ordens religiosas analisadas, considerando as experiências religiosas nos dois gêneros, este dossiê aponta para o vigor das pesquisas sobre o tema e sua importância para melhor compreensão nas dinâmicas sociais do mundo ibero-atlântico.

Notas

1. VAINFAS, Ronaldo. Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008; [ Links] SANTOS, Georgina Silva dos. A face oculta dos conventos: debates e controvérsias na mesa do Santo Ofício. In: VAINFAS, Ronaldo; MONTEIRO, Rodrigo Bentes (Orgs.). Império de várias faces: relações de poder no mundo ibérico da época moderna. São Paulo: Alameda, 2009. p. 141-150. [ Links] 2. DURAND, Jean-Dominique. Le parcours de l’histoire religieuse dans l’évolucion culturelle européenne. Lusitania Sacra, 2. série, t. XXI, p. 40-46, 2009. [ Links ] 3. FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. Lisboa: Asa, 1994 [1. ed., 1928] [ Links ]; LE GOFF, Jacques. São Luís. Rio de Janeiro: Record, 1999 [1. ed., 1996] [ Links ]; BLOCH, Marc. Los reyes taumaturgos. México: Fondo de Cultura Económica, 1988 [1. ed., 1924] [ Links ]; FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 [1. ed., 1942] [ Links ]; DELUMEU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989 [1. ed., 1973] [ Links ].
4. LE GOFF, Jacques; RÉMOND, René. Histoire de la France religieuse. Paris: Seuil, 1988-1989. 4 v. [ Links ] 5. Cf. HERMANN, Jacqueline. História das religiões e religiosidades. In: Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 489- 497.
6. Refiro-me a BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986; [ Links ] SOUZA, Laura de Mello e. Diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986; [ Links ] VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. [ Links ] 7. Um dos marcos dessa virada foi, certamente, a mudança da direção do Centro de Estudos de História Eclesiástica, responsável pela primeira série da revista Lusitania Sacra (1956-1978), que, a partir de 1984, em seu novo enquadramento, passou a chamar-se Centro de Estudos de História Religiosa.
8. AZEVEDO, Carlos A. Moreira. Introdução geral. In: História religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000. p. XX. [ Links ] 9. A publicação recente do Dicionário histórico das ordens, institutos religiosos e outras formas de vida consagrada católica em Portugal reforça minha afirmação, uma vez que se ocupa, sobretudo, das ordens religiosas que atuam no mundo contemporâneo e pouco acrescenta às formadas na Idade Média e na Era Moderna. Cf. FRANCO, José Eduardo. Dicionário histórico das ordens, institutos religiosos e outras formas de vida consagrada católica em Portugal. Lisboa: Gradiva, 2010. Sobre o anticlericalismo em Portugal, ABREU, Luis Alberto de. A intriga teológico-política dos anti clericalismos. In: MARUJO, António; FRANCO, José Eduardo. Dança dos demônios. Lisboa: Temas e Debates, 2009. [ Links ] 10. Um bom exemplo é o livro decorrente do congresso sobre as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia: FEITLER, Bruno; SOUZA, Evergton Sales. A Igreja no Brasil: normas e práticas durante a vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Unifesp, 2011. [ Links ]

Georgina Silva dos Santos


SANTOS, Georgina Silva dos. Apresentação. Tempo. Niterói, v.18, n.32, 2012. Acessar publicação original [DR]

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