Narrativas de militância e narrativas de exílio / História Unisinos / 2009

Narrativas são histórias que contamos e / ou escrevemos para afirmar convicções. Mas também são histórias que nascem reativamente para refutar verdades que se afiguram, para quem as replica, como mentiras. Estejam elas referidas a uma trajetória de vida individual ou de um coletivo, sejam elas escritas por quem viveu a experiência diretamente ou por quem se valeu da experiência alheia para construir o relato, narrativas são meios de trazer à tona e de tornar familiar o que, antes de sua enunciação, pode se oferecer, no máximo, como uma possibilidade potencial; ou, quem sabe, um mistério insondável. Narrativas podem ser também revelações.

Sobre a história mais recente do Brasil, aquela que poderíamos localizar – se for necessário estabelecer um marco cronológico – ao redor da década de 1960, muitas histórias trouxeram a nós o benefício de virem à luz. Muitas outras, talvez em maior número, restaram, por inúmeras razões, impedidas de sua vocalização. O fato de a memória sobre estas histórias poder ser ativada, na medida em que boa parte de seus personagens estão vivos para tanto, não impede, de outro lado, que escolhas sejam feitas, no intuito de se assegurar um lugar privilegiado para a manutenção do silêncio.

O contexto da transição política para o regime democrático no país, notadamente durante o governo do último general presidente, João Baptista Figueiredo (1979-1985) – não obstante as localizadas resistências que se manifestaram ao processo de liberalização –, permitiu o surgimento de alguns livros de memórias de pessoas que lutaram, em diferentes momentos, contra o regime militar instaurado desde a circunstância da destituição do Presidente João Goulart, em 1964. Estas publicações e outras manifestações “co-memorativas” se oferecem como importantes sinais do “boom da memória” vivido não apenas no Brasil, mas também em outros países da América Latina, que passaram por processos políticos semelhantes, como é o caso da Argentina, por exemplo, em conjuntura análoga. O refluxo militar e a correspondente transição para a democracia são identificados por Olivier Dabène em 13 países da América Latina, no período compreendido entre os anos de 1979 e 1990. Diz ele a este respeito:

Os regimes entraram em uma fase de transição quando as bases de seu apoio – mistura de repressão e de sedução – que asseguravam sua estabilidade, começaram a desfazer-se. Em muitos casos, nenhum acontecimento espetacular marcou essa mudança. Tratava-se, antes, de um processo lento e irreversível de desgaste da popularidade dos regimes, devido a uma menor eficácia econômica ou a um ínfimo relaxamento dos controles sociais, combinado com o abandono do medo que inspira uma ditadura e a aparição de uma solução de troca, uma alternativa crível encarnada em uma oposição responsável (Dabène, 2003, p. 245).

No caso brasileiro, o arrefecimento da censura exercida sobre a imprensa no contexto do final da década de 1970 e início dos anos 1980, aliado ao avanço consistente dos setores políticos de oposição ao regime, especialmente no âmbito das eleições legislativas e de organizações da sociedade civil, ajudam a explicar a constituição de um espaço público favorável aos relatos de memória dos que não comungaram com os ideais da “Revolução”. O “abandono do medo”, neste caso, encontra campo fértil nas brechas que, aos poucos, são percebidas e usadas a favor da resistência e, mais do que isto, da “virada”; mesmo que esta possa ser vista, sob um certo prisma, como “transição pelo alto” ou pela elite. Em outras palavras, mais do que uma “oposição responsável”, a transição se fez, até certo ponto, por uma “oposição confiável”, na perspectiva daqueles que representavam o regime outonal dos militares e de seus colaboradores civis mais próximos.

Se, de fato, não há um acontecimento espetacular a definir estas transições consentidas, não podemos esquecer, de outra parte, o importante papel desempenhado pela Lei da Anistia – aprovada durante o primeiro ano do governo de Figueiredo – e pelo decorrente retorno de exilados políticos ao Brasil, ao desencadear o “trabalho da memória” responsável pela realização de significativa produção memorialística nos anos imediatamente subsequentes à homologação daquele instituto jurídico. Aqui, três exemplos significativos desta produção, quer pela sua própria repercussão, quer pelos desdobramentos midiáticos que tiveram na geração de outras mercadorias da memória: O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira (1979); Os Carbonários, de Alfredo Sirkis (1981), e Batismo de Sangue, de Frei Betto (1982).1 O livro de Gabeira, particularmente, teria alcançado, ao longo de mais de quatro dezenas de edições, a imponente cifra de 500 mil exemplares (conforme Aguiar, 2001), o que, entre outros fatores (como sua adaptação para o cinema em meados dos anos 1990), torna a obra uma referência única no chamado “boom da memória”.

Se os testemunhos produzidos sobre os anos 1960 e 1970 encontram um ambiente político e social fértil para explicar a sua emergência no final desta última década e no início da seguinte – caso não queiramos investir centralmente em explicações que orbitem na subjetividade dos que resolvem contar suas experiências acerca daquele período infausto –, há que considerar como variável não negligenciável para qualquer análise que se venha a fazer sobre estes testemunhos – e aqui entra o interesse específico do historiador, para além (mas não apartado) de razões políticas, ideológicas, jurídicas e morais – os incontornáveis ditames do presente neste processo. Neste sentido, a intelectual argentina Beatriz Sarlo – que fez uma radical crítica do testemunho e da “guinada subjetiva” –, já nos anos 2000, lembra:

[…] o passado recordado está perto demais e, por isso, ainda desempenha funções políticas fortes no presente […]. Além disso, os que lembram não estão afastados da luta política contemporânea; pelo contrário, têm fortes e legítimas razões para participar dela e investir no presente suas opiniões sobre o que aconteceu não faz muito tempo (Sarlo, 2007, p. 60-61).

Na verdade, e segundo Rodeghero (2008, p. 8), ainda estamos aprendendo a ler estes relatos do ponto de vista metodológico, e o seu (precário) estatuto de documento2 , – que exige, portanto, os procedimentos da crítica –, cede espaço, não raras vezes, para duas posturas dicotômicas e francamente infrutíferas, no meu ponto de vista, já que estes relatos ora são vistos com desconfiança absoluta, e, portanto, desqualificados e descartados, ora são percebidos como garantes da verdade, servindo de prova irrefutável no processo de desvendar a história3 . Não obstante a ambiguidade contida no ponto de vista de Sarlo (2007), a autora tende – especialmente pela leitura do capítulo três de seu livro, intitulado “A retórica testemunhal” –, a assumir a primeira postura aqui identificada.

A proposta de organizar o dossiê temático Narrativas de militância e narrativas de exílio surgiu das controvérsias que envolvem o trabalho com a memória realizado no âmbito da historiografia. Os desafios desta empresa podem encontrar meio de resolução – ainda que relativa – na disposição que tivermos, em nossos trabalhos de investigação, de encarar (e de forjar) chaves de leitura para estes relatos nos campos disciplinares vizinhos. Os estudos literários, a antropologia e a psicologia, para citar algumas áreas, podem oferecer, numa apropriação densa, um manancial teórico-metodológico capaz de aportar ao trabalho historiográfico uma aproximação menos intuitiva com estas fontes, mas isso não significa dizer que encontraremos aí a “salvação da colheita”. Na verdade, o receio de reconhecer o caráter interdisciplinar que possa ser o próprio de nossa pesquisa responde, pelo menos em parte, pela nossa contumaz indisposição de olhar para o lado.

Os textos que compõem este volume estão longe de se oferecer como resposta peremptória aos desafios que a memória vertida nas “narrativas de militância” e nas “narrativas de exílio” está a nos fazer. Contudo, eles não deixam de proporcionar um flagrante, ainda que pouco representativo em termos numéricos, das formas pelas quais está se dando a atual reflexão acadêmica neste movediço espaço da memória e da narrativa referidas à história recente e, mais exatamente, ao período das últimas ditaduras militares na América Latina, com ênfase para a porção mais meridional do continente americano.

Temos a satisfação de abrir o dossiê com o inspirado texto da historiadora argentina Beatriz Vitar. O artigo que nos enviou, desde Sevilha, articula com maestria sua pessoal trajetória acadêmica e profissional a alguns dos grandes temas que têm orientado a discussão historiográfi ca nas últimas décadas, tanto na América Latina quanto na Europa. Vitar se apoia em sua “escurridiza estabilidad laboral” para intercalar, na narrativa de sua ego-história, escolhas feitas, impasses enfrentados, giros temáticos que sua itinerante carreira de pesquisadora propiciou. Em seus vários périplos, os deslocamentos foram tanto espaciais quanto temáticos, e a identidade da autora – em suas múltiplas dimensões – vai se fazendo e refazendo em meio a um jogo no qual as regras são conhecidas apenas enquanto se joga. Aquilo que poderia ser visto como “exílio” assume, nesta trajetória de vida, a face do “trânsito”, de um mover-se contínuo, em que, ao se deparar com o outro, encontra-se também a si mesmo. Não é exagero dizer que a particular história contada por Vitar com a força que apenas a experiência pode ter ajuda a iluminar – tornando complexo – o destino simples, às vezes simplório, que damos a palavras que julgamos ter força de conceitos. Que “exílio” é capaz de conter a abundância da vida que transborda da narrativa de Vitar?

Cristina Scheibe Wolff , da equipe do Laboratório de Estudos de Gênero e História da Universidade Federal de Santa Catarina, traz, em seu artigo, uma série de depoimentos de mulheres que exerceram militância política na Argentina, no Brasil, na Bolívia, no Chile, no Paraguai e no Uruguai, a partir de década de 1960, no contexto das ditaduras militares do Cone Sul. A autora coloca em discussão, a partir de um questionamento que assinala um recorte de gênero nestas falas, as similitudes destas experiências de militância e a possibilidade de se pensar a comparação como uma categoria de análise para os processos ditatoriais na América Latina.

O texto de Carla Simone Rodeghero antecipa para o leitor algumas das refl exões da autora em sua pesquisa para um livro, em fase de conclusão, sobre A luta pela anistia e a resistência à ditadura no Rio Grande do Sul. No artigo, Rodeghero analisa especifi camente os diferentes – e por vezes, díspares – sentidos que a anistia tem assumido no debate político brasileiro desde, pelo menos, os meados da década de 1970. Nos últimos meses, dentro dos altos escalões do governo federal, as batalhas travadas pelo sentido da anistia estão sendo atualizadas e vêm mobilizando a manifestação de importantes autoridades da república brasileira, fazendo prever, com a aproximação dos 30 anos da Lei da Anistia, de 28 de agosto de 1979, outras tantas disputas.

Já o texto Histórias dos sentidos e da imaginação: as memórias de Flávio Tavares empreende uma análise do livro O dia em que Getúlio matou Allende e outras novelas do poder, publicado pelo jornalista gaúcho, em 2004, na ocasião em que se completavam os 50 anos do suicídio do presidente que por mais tempo governou o Brasil. Livro de memórias com forte dicção ficcional, e de difícil classificação em termos do gênero de sua prosa, é analisado pelo autor mediante o destaque que assume a primeira pessoa do singular na construção da narrativa. Neste caso, a visão e a audição, sentidos reiteradamente evocados na escrita, cumprem o papel de autenticar a narrativa, não obstante o lugar de relevo ocupado pela imaginação nesta tarefa de rememorar os anos 1950-1970 por esse banido da ditadura.

Contamos ainda, na seção Notas de pesquisa, com valiosa contribuição aportada pelo historiador Benito Bisso Schmidt. O autor nos oferece, em primeira mão, seus apontamentos sobre pesquisa que está desenvolvendo acerca de Flávio Koutzii, importante líder estudantil e militante político nos anos 1960, no Rio Grande do Sul, e que, em 1970, deixou o país para viver no exílio: na França, no Chile e na Argentina. Autor com larga trajetória nos estudos biográficos e com destacada produção na área – tanto na reflexão teórico-metodológica quanto em estudos empíricos –, Schmidt antecipa em seu texto alguns dos desafios postos por esta sua pesquisa e que, de maneira mais ampla, dizem respeito, em boa medida, aos trabalhos que têm como centralidade trajetórias individuais ou biografias: “a noção de representatividade”, “as tensões entre escolhas individuais e determinações sociais”, as opções a se fazer entre “os principais quadros sociais evocados”, as “imagens conflitantes a respeito do personagem”, entre outras possibilidades.

Na seção de Resenhas contamos com duas avaliações feitas sobre a produção historiográfica argentina recente, trazidas por alunos do nosso Programa de Pós-Graduação. Ianko Bett, em seu texto Em nome do pai: participação da Igreja Católica na repressão política da Argentina (1955-1969), apresenta o segundo tomo de La violência evangelica, Historia política de la Iglesia Católica, de Lonardi al Cordobazo (1955-1969), escrita pelo prolífico jornalista Horacio Verbitsky, que se constitui como um dos temas caros à literatura historiográfica e jornalística argentina. Na resenha O fascismo e as origens ideológicas da ditadura argentina, Júlio de Azambuja Borges analisa um dos volumes da recente série de livros de divulgação científica (Nudos de la historia argentina) publicados (também) pela Sudamericana, intitulado La Argentina fascista: los Orígenes ideológicos de la dictadura, escrito por Federico Finchelstein, em 2008. A produção sobre ambas as temáticas é bastante copiosa na Argentina, e estes dois livros servem ao propósito de apresentar ao leitor algumas das polêmicas que elas suscitam, bem como provocá-lo a outras e necessárias leituras.

Por fim, porém não menos importante, resta agradecer a todos os que se dispuseram a submeter seus textos para o nosso dossiê, o que muito nos honra, e, também, agradecer à editora da revista História Unisinos, Profa. Heloísa Jochims Reichel, a confiança depositada em mim e na Profa. Joana Maria Pedro (UFSC), seus organizadores.

Desejo a todos uma boa leitura!

Notas

1. Para um arrolamento muito mais numeroso desta produção de testemunhos, identificando, inclusive, exemplares deste conjunto ainda nos anos 1960, ver o trabalho de Rodeghero (2006). Ver, também, o artigo de Schmidt (2007).

2. Para um exemplo recente da extrema dificuldade que temos de lidar com relatos testemunhais como documentos, especificamente em relação a um “falso testemunho” sobre a Shoah, ver Elmir (2008).

3. Jay Winter (2006, p. 73), num instigante artigo no qual reflete sobre as variadas razões que explicam o “boom da memória”, notadamente na Europa e nos Estados Unidos, chama atenção também para este “campo difícil de investigar”, que é o dos testemunhos, tendo em vista as questões morais que o mesmo comporta. Aponta o autor, no que toca à adesão que os relatos promovem entre seus leitores / ouvintes, para os “tons religiosos” que os testemunhos assumem nesta relação: “Há uma espécie de toque de mãos em tais encontros. A pessoa que sofreu sabe de um mistério – o mistério do mal e o milagre da sobrevivência – e nós que escutamos podemos através dela penetrá-lo e compartilhar do milagre”. Para uma reflexão bastante próxima a esta promovida por Jay acerca do “boom da memória”, ver o artigo de Huyssen (2000).

Referências

DABÈNE, O. 2003. América Latina no século XX. Porto Alegre, Edipucrs, 328 p.

DE AGUIAR, J.A. 2001. O astro da anistia. Alceu, 2(3):146-165.

ELMIR, C.P. 2008. O caso Binjamin Wilkomirski: a dupla invenção da memória. Anos 90, 15(28):41-55.

HUYSSEN, A. 2000. Passados presentes: mídia, política, amnésia. In: A. HUYSSEN, Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro, Aeroplano, p. 9-40.

RODEGHERO, C. 2006. Os historiadores e os estudos sobre o golpe de 1964 e o regime militar no Brasil. L’ Ordinaire Latino-américain, 203:93-123.

RODEGHERO, C. 2008. Reflexões sobre história e historiografia da ditadura militar: o caso do Rio Grande do Sul. Vestígios do Passado. A história e suas fontes. In: ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA, IX, Porto Alegre, 2008. Anais… Porto Alegre, ANPUH-RS, p. 1-13.

SARLO, B. 2007. Tempo passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo / Belo Horizonte, Companhia das Letras / UFMG, 136 p.

SCHMIDT, B.B. 2007. Cicatriz aberta ou página virada? Lembrar e esquecer o Golpe de 1964 quarenta anos depois. Anos 90, 14(26):127-156.

WINTER, J. 2006. A geração da memória: reflexões sobre o “boom da memória” nos estudos contemporâneos de história. In: M. SELIGMANN-SILVA (org.), Palavra e imagem: memória e escritura. Chapecó, Argos, p. 67-90.

Cláudio Pereira Elmir – PPG em História Unisinos


ELMIR, Cláudio Pereira. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.13, n.2., maio / agosto, 2009. Acessar publicação original [DR]

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