Negritude e pós-africanidade: crítica das relações raciais contemporâneas | Carlos Gadea

A temática de relações raciais, no Brasil e em outros contextos, como nos Estados Unidos, está, há muito tempo, na ordem do dia. As situações de conflito permeadas pelo racismo – tal como os casos de violência policial contra os negros – fazem emergir, nesses países, um sem número de discussões sobre a questão racial em suas diversas manifestações, sejam elas sociais, políticas, econômicas ou culturais.

A consciência do conflito e da discriminação por diversos atores sociais, tal como os ativistas dos movimentos negros e parte expressiva da Academia, tem ensejado, também, no Brasil e alhures, reflexões sobre o enfrentamento político do racismo em suas dimensões de identidade social e pertencimento cultural, expressas em noções como “raça”, “negritude” e “africanidade”. Negritude e pós-africanidade: crítica das relações raciais contemporâneas, do uruguaio Carlos Gadea, sociólogo e professor da UNISINOS, tem como proposta precípua justamente analisar as configurações e os vínculos entre identidades étnicas e sociais traduzidos nas vivências contemporâneas das relações raciais, no Brasil e nos Estados Unidos.

A hipótese central é a de que, nesses países, o “espaço da negritude”, que para o autor consiste em uma espécie de lugar social atravessado por identificações raciais, performances subjetivas e interesses práticos dos grupos implicados em relações raciais, estaria passando por sensíveis modificações nas últimas décadas.

Gadea parte de uma indagação geral inquietante: na atualidade, o “espaço da negritude” apenas teria sentido no âmbito de uma negritude ancorada na africanidade, através da ideia de ancestralidade, de memória histórica ou de um marcador como a cor da pele? A percepção da heterogeneidade crescente dos espaços da negritude, em contextos urbanos de diferenciação social e individualização se desdobra em perguntas adicionais: só se pode compreender o que representa o “negro”, ou as identidades raciais, a partir do racismo? Quais são as características das relações raciais na contemporaneidade, em diferentes contextos?

O livro é fruto de uma pesquisa de pós-doutorado realizada pelo sociólogo na Universidade de Miami, em 2012. Nessa experiência em solo norte-americano foram levadas a cabo as pesquisas e observações que serão o mote inicial para a percepção atualizada e comparativa sobre as relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos, presentes no Capítulo 1, intitulado “Contextos e situações do espaço da negritude”. Miami, uma cidade profundamente multicultural, encerra, em sua complexidade própria, diversos espaços da negritude, formados por populações negras oriundas do Alabama, Geórgia, Jamaica, República Dominicana, Haiti. A cidade é o local onde, em 2012, ocorreu o controverso assassinato do jovem afroamericano Travyon Martin por George Zimmerman, um policial branco e “latino”. A reação de protesto da população negra de Miami, ainda que tenha mobilizado uma memória de violência e discriminação e justaposto os negros de forma geral contra um inimigo institucional comum, parecia não estabelecer como evidente em si mesma uma ligação entre os signos da negritude e uma percepção racializada dos conflitos e da sociedade. Esse aparente paradoxo entre ideias de cor/raça e identidade étnica é explorado pelo autor através da análise das contradições e ambiguidades envolvendo a inserção das comunidades haitianas e dominicanas da capital da Flórida na relação mais genérica com a comunidade negra – ou afro-americana – da cidade.

Uma sexta-feira por mês os haitianos de Miami realizam um encontro cultural no chamado “Little Haiti Cultural Center”, no bairro homônimo. As frequentes idas do sociólogo a esse evento resultaram na impressão de que o Haiti culturalmente representado era contemporâneo, diaspórico e imprevisível. Os haitianos não formam, evidentemente, uma comunidade homogênea; rejeitam, ademais, uma identificação automática com os “afroamericanos”, criando e atualizando sua identidade em termos de uma comunidade nacional imaginada. Nesse sentido, o espaço da negritude entre os haitianos não afirmaria a evidência de uma pertença ao discurso da memória coletiva ou da africanidade; o “pertencimento”, na realidade, reveste-se de ambiguidades para essa comunidade: por um lado, são “negros” no sistema de classificação racial dos EUA, e por essa razão são discriminados também; por outro, essas pessoas “falam” politicamente como membros da diáspora haitiana, tal como se materializou no decorrer dos protestos pela morte de Travyon Martin.

Entre os dominicanos da mesma cidade há ainda outras problemáticas identitárias. Eles seriam particularmente “indecisos”, ambíguos, frente às categorias raciais hegemônicas – “brancos”, “negros”, “latinos”. De um ponto de vista social e do fenótipo eles são “negros”, mas culturalmente se identificam como “hispânicos” – ou “latinos”. Uma característica dos dominicanos seria o fato de se constituírem socialmente como “individualidades”, e não propriamente como uma “comunidade” lastreada em uma experiência cultural comum. Não apenas não residem em um mesmo bairro quanto também não consideram terem sido deslocados compulsoriamente para os EUA – fosse por escravidão (como os afro-americanos) ou problemas econômicos em seu país de origem (latinos de forma geral). Deste modo, não vivenciam os mesmos laços de solidariedade “racial” com os negros norte-americanos nem ativam a memória de um passado escravista para construir sua identidade étnica.

Há, além disso, um traço a diferenciá-los e singularizá-los: o uso da língua espanhola. Tais particularidades servem de mote para o autor fazer uma crítica contundente ao Atlântico Negro (2001), de Paul Gilroy, livro que praticamente ignorou as histórias negras de língua espanhola e portuguesa – o Brasil, nesse caso. Gilroy parece pensar o Atlântico Negro tendo como matriz empírica e epistemológica a realidade das relações raciais nos Estados Unidos. Ora, a vivência cotidiana dos dominicanos negros, idiossincrática pela linguagem/idioma, é encenada também a partir de uma espécie de cultura nacional imaginada, “latina”, questionando assim os pressupostos sociológicos, culturais e empíricos que são mobilizados para pensar a experiência negra nos Estados Unidos como uma matriz homogeneizada em princípios como “consciência racial”, “memória da escravidão” ou “africanidade”.

Na sequência, ao final da primeira parte do livro, Gadea se debruça sobre um contexto brasileiro específico: o dos jovens negros de Porto Alegre (RS). O autor foi ao Parque da Redenção, lugar de grande movimentação cultural e de pessoas na capital gaúcha. O parque também é ocupado por jovens negros, que são em sua maioria oriundos dos bairros periféricos da cidade. Aí eles perfazem uma saída de seu contexto – estigmatizado – de origem, estabelecendo uma existência dual nos diversos espaços em que sua negritude é tornada visível. Essa “saída” seria expressão de processos de individualização e diferenciação social – próprios de culturas urbanas – vivenciados por esses jovens, que engendram assim “jogos de reversão” de adscrições socioraciais, desconstruindo essas identificações em nome de atitudes de autodeterminação. Tal experiência encontra o que é afirmado – e questionado – ao longo do livro: a negritude desses jovens não parece ter na “pertença racial” um lastro empírico evidente, nem na “ancestralidade” ou “africanidade” um eixo automático de identificação. O espaço da negritude, para esses sujeitos sociais, é produto de negociações e disputas simbólicas e semânticas, posto que sua presença no Parque da Redenção problematizaria os nexos entre o “corpo negro” e os processos de subalternidade.

Em uma tarde de domingo o dito sociólogo foi conversar com os jovens. Ao questioná-los sobre sua negritude, notou que esta era percebida – e constituída – menos por uma ligação com um “mundo afro-brasileiro” imaginado do que pela consciência da diferença que emerge do racismo em situações de tensão e conflito no cotidiano citadino – como ser barrado em uma festa, colocado na parede pela polícia, etc. Esse espaço na negritude é, portanto, relacional, ou seja, não existe uma negritude preexistente ao jogo das relações sociais/raciais. Não se trata de negar que esses jovens não tenham uma “consciência de si” enquanto negros, mas que os signos sociais da negritude existem “entre parênteses”, em “estado de suspensão”, vindo à tona nas situações de crise e conflito.

O segundo – e último – capítulo, “O reverso da negritude e o avesso da africanidade”, consiste em uma ampla reflexão teórica, ancorada nas percepções mais empíricas e situacionais do capítulo anterior. Prosseguindo em seu exame acerca das mudanças no espaço da negritude na contemporaneidade, o autor busca fortalecer o argumento de que, do ponto de vista da etnicidade, as lógicas das relações sociais, na atualidade, pari passu à racialização, colocam em jogo determinados processos de individualização e diferenciação social, problematizando nexos política e sociologicamente consagrados entre negritude e africanidade. Uma fina matriz sociológica simmeliana aqui está presente, na medida em que se afirma que o alargamento e a diversificação do campo de experiência e das interações sociais dos indivíduos negros reforçaria, paradoxalmente, sua vivência e identificação propriamente individual. Isso implicaria em repensar, por exemplo, a ideia de “gueto”, do ponto de vista dos supostos elos entre ideais comunitários e de pertença racial – tal como visto pela Escola de Chicago para o caso norteamericano. Se o gueto é espaço e metáfora de determinadas relações raciais e formas de negritude – ao menos nos Estados Unidos –, ele, todavia, não representaria as novas dinâmicas individuais e sociais pelas quais se constroem e se atualizam os espaços da negritude, material e simbolicamente falando. As experiências dos negros haitianos e dominicanos de Miami e dos jovens negros porto-alegrenses seriam testemunho dessas novas configurações.

Os sentidos da negritude são questionados: se ela representou, política e intelectualmente – para o Movimento Negro brasileiro, nos anos 1970 –, uma “tomada de consciência de ser negro”, como pode ser entendida na atualidade? De que forma coloca em xeque as estruturas epistemológicas que o Ocidente moderno criou para definir a humanidade em termos de hierarquia racial? O autor então investe sobre a noção-chave de “africanidade”:

A africanidade é um espaço de elaboração discursiva e política que pretende sintetizar a pertença coletiva de um grupo humano a uma comunidade presumivelmente fundamentada em determinadas especificidades históricas e culturais referenciadas no continente africano (p. 87; grifo do autor).

A africanidade, nessa definição, tem uma dimensão tanto pedagógica quanto de uma técnica de subjetivação, para a população negra, visando ao reconhecimento enquanto etnicidade particular e cultura comum, lastreada na ideia de uma ancestralidade. A consciência sobre essa africanidade seria condição para o autorreconhecimento enquanto “sujeito negro”. A perspectiva “afrocêntrica” presente nessa noção de africanidade é criticada pelo autor, pois esse “lugar” epistemológico não comportaria a compreensão das atitudes e comportamentos, por exemplo, dos jovens negros urbanos, não abarcando, necessariamente, as dinâmicas da vida social dos negros brasileiros em sua complexidade e multiplicidade.

A esposada leitura de autores como Stuart Hall e Michel Foucault impossibilita pensar o sujeito como dado a priori, anterior às relações sociais e discursivas que o produzem e o atualizam constantemente. Gadea diz ser necessário pensar em outras variáveis dos conflitos racismo e do antirracismo. Uma dessas variáveis estaria presente na ideia de “códigos de urbanidade”, o que implica em analisar as relações entre as cidades e as etnicidades que as habitam, nos espaços simbólicos e de sociabilidade nos quais a negritude é permanentemente dispersada e reconfigurada. A vivência dessa urbanidade diversificaria as experiências e as possibilidades de afiliação grupal dos jovens negros – o principal grupo social a que o autor se refere, no contexto brasileiro. A negritude, e aqui está uma reflexão importante, estaria para além da ideia de africanidade, e também da própria noção de comunidade. Desta forma, as referidas mudanças no “espaço da negritude” seriam atravessadas por uma marcante dualidade: “[…] por um lado, o que se pode entender como uma aproximação crescente de múltiplos contextos sociais de referência e, pelo outro, uma diferenciação social geradora de uma experiência da individualidade e da negritude muito particular.” (p. 112).

As pertenças aos grupos estão se diversificando e transformando também as experiências individuais dos “jovens negros”, na medida em que a individualização e a diferenciação social – Simmel (1977 [1908]) – levariam ao enfraquecimento dos laços entre os indivíduos mais imediatos e possibilitariam a construção de outros [laços] com indivíduos socialmente mais distantes. Tal processo é visto aqui de forma positiva, pois essa diversificação tenderia a enriquecer o caldo sociocultural no qual se dão as relações raciais – e no qual se criam novas formas de combater o racismo e pensar o antirracismo.

O livro de Carlos Gadea trabalha com um amplo espectro de questões, eixos temáticos e perspectivas teóricas. Percorre vários campos do conhecimento, especialmente a sociologia dedicada às relações raciais. Com esta sociologia se estabelece um bom diálogo, especialmente com autores da vertente pós-colonial, como Paul Gilroy (2001), Stuart Hall (2000; 2003), Sérgio Costa (2006) e Lívio Sansone (2004). Da obra de Costa pode-se dizer que se compartilha de uma perspectiva comparativa e transnacional de entender a questão racial no Brasil contemporâneo; com Sansone há uma tentativa de compreensão da negritude brasileira em um leque analítico mais plural e multifacetado, para além de discursos calcados exclusivamente na ideia de etnicidade.

Uma das contribuições mais relevantes da obra está em analisar a maneira como os ditos processos de individualização e diferenciação social no Brasil atual, próprios de contextos urbanos, dão novas configurações a discursos sobre identidade, modificando a morfologia das relações raciais e os entendimentos e desafios em torno do racismo e antirracismo em “espaços da negritude” constantemente transformados. As reflexões de Gadea sobre as ligações entre urbanidade e negritude fornecem interessantes possibilidades teóricas e campos de estudo para os cientistas sociais, seja no Brasil ou em outras sociedades.

É preciso dizer, contudo, que o trabalho poderia ser mais bem fundamentado empiricamente, especialmente em relação aos “jovens negros urbanos” da periferia de Porto Alegre. Não fica clara a opção em se ater apenas a esse grupo. Na realidade, pouco se fica sabendo sobre eles: os “jovens negros”, que fundamentam uma série de percepções sobre relações raciais no Brasil, são em número de seis. Quem são eles? De que periferia portoalegrense eles provém? Ainda que as percepções sociológicas se mostrem de fato muito pertinentes, uma “amostragem” tão reduzida é própria para se falar sobre uma complexidade que está na base dos argumentos centrais do livro? Tal ponto, ainda que fragilize, não desqualifica a abordagem teórica mais geral de Negritude e pós-africanidade, que traz um conjunto de questionamentos fundamentais para se refletir sobre os “espaços da negritude”, no Brasil e em outros contextos, a partir de olhares complexos e plurais.

Referências

COSTA, Sérgio. Dois atlânticos: teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.

GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed. 34, 2001.

HALL, Suart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.

SANSONE, Livio. Negritude sem etnicidade. Salvador/Rio de Janeiro: Edufba/Pallas, 2007.

SIMMEL, Georg. Sociología. Madrid: Ed. Revista de Occidente, 1977 [1908].

Rafael Petry Trapp – Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista Faperj. E-mail: [email protected]


GADEA, Carlos. Negritude e pós-africanidade: crítica das relações raciais contemporâneas. Porto Alegre: Sulina, 2013. Resenha de: TRAPP, Rafael Petry. Espaço(s) da negritude. Aedos. Porto Alegre, v.7, n.17, p.539-545, dez., 2015. Acessar publicação original [DR]