Nietzsche e as cartas – DIAS; OLIVEIRA (CN)

DIAS, Rosa M.; OLIVEIRA, Marina G. de. Nietzsche e as cartas. Rio de Janeiro: Via Verita, 2019. Resenha de: COSTA, Gustavo Bezerra do N. Nietzsche por suas cartas. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.41 n.1 jan./abr. 2020.

Nietzsche e as cartas, coletânea organizada por Rosa Maria Dias e Marina G. de Oliveira, lançada no segundo semestre de 2019 pela Editora Via Verita, apresenta, de saída, dois importantes méritos.

Primeiramente, o fato de reunir em livro os textos apresentados no colóquio homônimo, realizado em novembro de 2017 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Desnecessário talvez seja dizer que da relevância desse evento, cujo sentido extrapolou o estritamente acadêmico e alcançou a esfera política, na medida em que se pôs como importante marco de resistência do corpo docente, discente e de funcionários daquela universidade ante o processo de desmantelamento imposto pelo governo estadual, que naquele período chegava a um de seus momentos mais críticos.

Não obstante esse feito por si auspicioso, colóquio e livro têm também o mérito de trazer a público ensaios de cunho biográfico e filosófico em torno do epistolário de Nietzsche1, colaborando decisivamente para preencher a lacuna decorrente da escassez de produção teórica sobre esse tema em nosso país. Não se trata, certamente, de mera ilustração ao pensamento filosófico, como se poderia aventar em abordagens com viés estruturalista ou mesmo pós-estruturalista. Ao contrário, e os textos contidos em Nietzsche e as cartas dão prova disto, o epistolário pode fornecer uma seleta matéria-prima ao exercício filosófico, mais ainda quando se trata de um pensador no qual a relação entre vida e obra se mostra tão visceral.

Além de ser o elo do andarilho Nietzsche com a família e os amigos, particularmente: Erwin Rohde, Carl Fuchs, Franz Overbeck e Heinrich Köselitz (Peter Gast), suas cartas se mostram como um exercício genuíno de reflexão filosófica. Cabe ao epistolário, assim como aos fragmentos, textos póstumos e também aos prefácios à reedição de suas obras, fornecer subsídios e indícios de teor genético à compreensão e interpretação de uma filosofia na qual o problema da gênese é intrínseco a seu próprio método. Isto, além de ser o meio adequado ao relato daquilo que em sua obra publicada – particularmente as do período intermediário e em Ecce homo – assume importância filosófica ímpar no que se refere à criação ou cultivo de si: a atenção com as coisas próximas: saúde, clima, amizades, dietética, por exemplo.

Com graus diversos de liberdade interpretativa, sem porém descurar do rigor exegético, os textos reunidos na coletânea apresentam um leque variado de abordagens em torno do epistolário de Nietzsche, ora com ênfase na cronologia, ora com acento temático. À guisa de orientação de leitura, e ainda que sob risco de esmaecer a variedade de nuances ali envolvidas, poderiam ser elencados alguns temas gerais.

As questões de método no trato com o epistolário são o mote para o texto de Fabiano de Lemos, que aponta para a necessidade de uma propedêutica à epistolografia nietzscheana como forma de mensurar seu estatuto em relação à obra. Já a aproximação, há pouco aludida, entre vida e escrita em Nietzsche, ganha destaque no belo ensaio de Clara Savelli, bem como, mais especificamente voltados ao período de elaboração de Assim falou Zaratustra, nos textos de Tiago Barros, Carla Silva e Enock Peixoto – este último, salientando um viés educativo no problema da autossuperação presente naquela obra. Também próximos a esse tema estão os escritos que abordam a relação, bastante recorrente em suas cartas, entre saúde e doença, alimentação e clima, amizade e solidão, deslocamentos e estadias. Aqui merecem menção os ensaios de Sandro Adão, Pedro Lima Filho, Lana Faya, Suyane Comar e Gabriela Alves, que abordam o tema sob perspectivas e enfoques diversos; e ainda, o texto de Rosa Dias, uma das organizadoras do livro, que traça a relação entre vida e obra em Nietzsche a partir das missivas dos períodos de estadia em Sils-Maria, onde foi concebido e delineado Assim falou Zaratustra e onde eclodiu, em agosto de 1881, o pensamento do eterno retorno.

As cartas do período de docência na Basileia, com ênfase em sua interrupção por motivos de saúde, bem como na crítica nietzschiana à burocracia e ao nivelamento imposto pelo sistema educacional alemão, são alvo, respectivamente, das abordagens de Vilmar Martins e Mariana Moreira. Já as missivas em torno da relação entre Nietzsche e Wagner são objeto da interpretação de Nilcinéia Longobuco, Marina Oliveira e Maria Helena Lisboa. Marina Oliveira, também organizadora da coletânea, toma a noção de amor fati como mote para pensar as distintas disposições de afeto suscitadas na comparação feita por Nietzsche entre a obra do compositor alemão e Carmen, ópera de Bizet. Esse ponto é também levantado na robusta interpretação de Maria Helena Lisboa sobre a amizade e o rompimento com Wagner, explorando determinadas nuances e mitigando aquilo que em uma leitura desatenta se teria como uma ruptura radical e pouco amistosa. As cartas sobre o relacionamento com Paul Rée e Lou-Salomé, por sua vez, ganham relevo no ensaio de Cristie Campello.

Chama a atenção, em uma abordagem distinta, a maneira atenta com que foram tratados nessa coletânea os prefácios de Nietzsche à reedição de suas obras, verdadeiras cartas a seus leitores, como muito bem apontam os ensaios de Joaquim Alves e de Miguel Angel de Barrenechea – este último, argutamente intitulado “Carta ao jovem Nietzsche”.

Já as cartas do período que antecede seu colapso mental, as chamadas “cartas da loucura”, ganham destaque nos textos de Alexandre Cabral, Carlos Estellita-Lins, Aparecida Duarte e José Nicolau Julião. Trata-se certamente do período mais crítico da trajetória intelectual nietzscheana, daí a importância inestimável que possuem os relatos desse período. Sob diferentes perspectivas, os três primeiros autores tratam dos temas da transgressão, despersonalização, performatividade e ressignificação da loucura a partir da escrita de si, chegando com isso a interpretações distintas, mas certamente mais potentes do que a leitura científica do estado psíquico do filósofo. Dentro dessa mesma temática, mas com abordagem diversa, está o texto de José Nicolau Julião que, partindo da missiva de Köselitz a Overbeck, traz à tona o debate ainda hoje aberto sobre a indefinição quanto ao diagnóstico do colapso.

Podem também ser ressaltadas as interpretações que, a partir das cartas e ainda que com temáticas diversas, estimulam um paralelo entre Nietzsche e outros filósofos e escritores, tais como Heidegger, Emerson, Sartre e Bishop. Aqui podem ser mencionados os textos de Kim Abreu, Tito Palmeiro, Helio Herbst e Lucrecia Corbella. Chamam ainda a atenção dois curiosos e bem-humorados ensaios. Um deles, uma bem construída carta a Nietzsche em torno do tema da ciência, redigida por Christine White. O outro, escrito com refinado grau de ironia por Rilza Barbosa, em torno dos boatos sobre o suposto encontro entre Nietzsche com D. Pedro II.

A abrangência de abordagens que aqui procuramos elencar e expor de forma sintética e talvez pouco atenta não faz certamente jus à miríade de perspectivas que caracterizam os ótimos ensaios contidos em Nietzsche e as cartas. Espera-se, contudo, que sirvam de ensejo à leitura dessa obra que, como aventamos no início, já se põe como marco nas pesquisas em torno desse instrumento ímpar de reflexão filosófica que é o epistolário de Nietzsche.

Referências

DIAS, Rosa M.; OLIVEIRA, Marina G. de (orgs.). Nietzsche e as cartas. Rio de Janeiro: Via Verita: 2019. [ Links ]

NIETZSCHE, Friedrich W. Correspondencia. Trad. esp. Luis Enrique de Santiago Guervós et. al. Madrid: Trotta, 2005-2012, 6v. [ Links ]

NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Briefe – Kritische Studienausgabe in 8 Bänden (KGB). Berlim: DTV / Walter de Gruyter, 1975-2004, 8v. [ Links ]

1A edição consolidada das cartas de Nietzsche, Sämtliche Briefe – Kritische Studienausgabe (Nietzsche, KGB, 1975-2004), é resultado de um trabalho extenso e minucioso coordenado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, e publicada a partir de 1975 em oito volumes por Walter de Gruyter, em parceria com a Deutscher Taschenbuch Verlag (dtv). Os textos que compõem Nietzsche e as cartas valem-se dessa edição, bem como da espanhola Correspondencia (Nietzsche, 2005-2012), organizada por Luis Enrique de Santiago Guervós, publicada entre 2005 e 2012 em seis volumes pela Editorial Trotta.

Gustavo Bezerra do N. Costa – Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, CE, Brasil. E-mail: [email protected]

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