O que Aprendemos com as Crianças que não Aprendem? – BERGÉS et al. (ER)

BERGÉS, Jean; BERGÉS-BOUNES, Marika; CALMETTES-JEAN, Sandrine (Org.). O que Aprendemos com as Crianças que não Aprendem? Porto Alegre: CMC, 2008. Resenha de: SCHÄFFER, Margareth. As crianças que não aprendem ensinam? Educação & Realidades, Porto Alegre, v. 35, n. 2, p. 327-332, maio/ago., 2010.

O livro O que aprendemos com as crianças que não aprendem? Convoca o leitor a oferecer sua contribuição à leitura e tramar seus próprios caminhos; exige, ainda, um olhar atento sobre as questões do aprender, da singularidade, da subjetivação, da escola e do tratamento que atravessam os textos como fio condutor. Sim, a obra conduz, mas demanda que o leitor entre com seus próprios fios, levando-o a trabalhar na leitura e na escuta dos escritos. São esses escritos que me convocaram ao trabalho, cuja resultante passo então a partilhar com os leitores. São diversos tipos de textos, de diversos autores, cada um procurando acentuar, a partir do lugar que ocupam, as diversas problemáticas que cerceiam as crianças que não aprendem. Saliento, a seguir, algumas reflexões retiradas do livro1, de modo a mostrar a complexidade que tal temática exige, tratando as várias seções do livro como “cenas”, procurando, com isso, respeitar a diversidade e a pluralidade que a obra nos oferece.

A cena de abertura começa com uma questão importante. Serão os problemas de aprendizagem uma falha da criança, da família, da escola? Entretanto, diante dos embaraços do real do sintoma social, os problemas de aprendizagem se veem tradicionalmente remetidos para o lado médico. Será uma doença? A tônica colocada no defeito e nos meios para atenuá-lo tende a apagar “o que nos aparece essencial, isto é, o lugar do sujeito” (Calmettes-Jean, 2008, p. 10). É pensando pelo lado do sujeito que podemos escapar das perspectivas utilitárias tão comuns hoje em dia e não ficarmos aprisionados entre o ideal e o fracasso, entre o aprender e o não aprender. A emergência do sujeito de um desejo, que se funda em um saber, saber inconsciente, permite-nos a escuta de problemas de aprendizagem. Para a autora, “o que nós somos chamados a descobrir graças a estas crianças, é a importância do lugar do sujeito frente ao saber” (Idem, p. 10) – questão de extrema importância para quem trabalha com estes sujeitos, pois permite saber nos dirigirmos na condução do tratamento e no trabalho pedagógico.
A partir dos impasses que o tratamento coloca, Calmettes-Jean nos diz que não é a partir de uma posição de mestria ou verdade que a questão tem de ser encarada. Os impasses enfrentados no tratamento com estas crianças, por meio do ideal científico, produzem inquietações, pois negam o impossível próprio do ato de ensinar, de educar, de psicanalisar, tais como Freud e Lacan enunciaram. “A orientação em curso exalta um ensino científico que vem, como toda ciência, evacuar e negar a subjetividade como a dinâmica transferencial necessária para a obra da transmissão do saber” (Idem, p. 12). Tal orientação esquece o quanto é difícil o encontro de uma criança com a escola, com o ensino, com o saber. Há um tempo de elaboração para este encontro, o qual está sendo foracluído.

Estamos, assim, às vezes, intimados a vir ultrapassar este impossível de ensinar pela produção de teorias funcionais adequadas a vir reparar o instrumento cognitivo defeituoso, intimados a provar cientificamente nossa competência de médicos-psicólogos. O saber médico deve sanar um problema de onde o sujeito está ausente… (Idem, p. 12).

Levar em conta o inconsciente nas dificuldades escolares propõe que a inteligência não é um dado científico, pois o exercício da inteligência e da cognição está enodado à estrutura do sujeito, no desfiladeiro da multiplicidade de suas experiências. “O inconsciente e o sexual vão colocar suas marcas sobre a inteligência, a cognição, as aprendizagens” (Idem, p. 13). Entretanto, há momentos tão fortes da fala do inconsciente, que chama a entrada do psicanalista, para que o discurso inconsciente tome seu lugar.

Não é para a escola “compreender”, interrogar a razão do saber inconsciente. Escola e psicanalista devem ocupar seus lugares respectivos para tentar ordenar o lugar da criança como sujeito, com a ajuda da família que não pode ser mantida responsável ou culpada de todos seus embaraços (Idem, p. 14).

O saber em psicanálise é um saber inconsciente, não um saber escolar ou universitário. Como o inconsciente faz para saber e obedecer ao desejo do Outro – que quer de mim o Outro –, isso nos determina como sujeitos. Ao longo do livro, casos clínicos e cognitivos testemunham a ligação entre o inconsciente e o cognitivo, o qual denominamos como cenas acerca dos que as crianças que não aprendem ensinam. Cenas que não dizem de crianças objetalizadas ou dessubjetivizadas. Isso seria o saber científico, posição a ser denunciada segundo os autores do livro. Pelo contrário, é a partir do impossível de ensinar e de educar que se questiona e se teoriza o ensino. “É este um ponto de origem para que comece, emerja a questão do desejo do sujeito com as probabilidades de sua confrontação com dialética com a lei?” (Idem, p. 16).
Golse (2008, p. 21), na seção aprendizagens e fracassos escolares, colocanos algumas questões interessantes, principalmente no que diz respeito à aprendizagem no meio escolar, para poder daí tentar precisar o que pode às vezes dissociar o fato de aprender do desejo de saber. Para a autora, opera-se de início a questão das sublimações, as quais vão permitir a transformação progressiva da curiosidade sexual em curiosidade intelectual, “com todos os riscos que a inibição de uma pode trazer à outra” (Idem, p. 26).

Aprender se funda então, sobre a curiosidade, sendo importante não permanecer um curioso sexual exclusivo, mas abrir-se a uma curiosidade sublimada, deslocada quanto a seu fim, e isto tudo evitando conjuntamente as armadilhas de uma masturbação dita intelectual (Idem, p. 27). Interessante sublinhar que as coisas não são lineares e que um certo grau de fracasso pode ser necessário no seio das dinâmicas escolares ou profissionais. O importante, para a autora, não é saber de tudo, mas poder compreender de tudo, o que vai dar lugar ao inédito, à surpresa, à novidade na questão das aprendizagens.

É a relação com o desconhecido, em que o “prazer pessoal do pedagogo para enfrentar o desconhecido pode ajudar a criança a admitir que o desconhecido não seja incognoscível” (Idem, p.29). A autora se pergunta: “Então, finalmente, o que aprendemos com as crianças que não aprendem?” (Idem, p.30). A resposta vai na direção da modéstia e de que talvez tenhamos mais teorias do que precisamos. “Cada criança é um mundo em si, e cada criança deve poder, por si só, nos empurrar para pôr em causa nós mesmos, nosso próprio saber que frequentemente tivemos tanto sofrimento para adquirir” (Idem, p. 30). As crianças estão em estado de dificuldade de aprendizagem e esta é, segundo a autora, a primeira e principal lição que nós devemos apreender.

As cenas que continuam fazendo a costura da temática dizem respeito aos Problemas de aprendizagem escolar e psicopatologia (Misés) e o que há com esta família que não é capaz de contar até dez (Lenoble), fazendo-nos chegar até a confrontação teórico-clínica, em que Bergès (2008, p. 69), ao se perguntar Por que cinco vezes mais meninos não aprendem?, diz-nos que são os meninos que, na maior parte do tempo, arriscam nos ensinar alguma coisa do fato de que eles não conseguem aprender. Pontua, em especial, as dificuldades de leitura e de escrita: na leitura, é diante do real da letra que o não leitor recua. “É um impasse da mesma ordem no qual talvez se envolva a criança que escreve: é o corpo envolvido na escrita que vem se recusar a toda marca, cujo gesto gráfico se fixa na câimbra dos escritores” (Idem, p. 72). É o que se vê aparecer mesmo nos alunos que ainda não sabem escrever: “é o real da letra a inscrever que torna a escrita impossível” (Idem, p. 72).

Pistas, rastros que as crianças que não aprendem nos propõem, e nos convidam a escutá-las e lê-las. Outras vezes, elas afirmam: “Eu não sei… É minha mãe que sabe…” (Bergés-Bounes, 2008, p. 73), mostrando-nos que o desejo de aprender não é o seu, que elas estão divididas quanto ao saber.

“Estas crianças não leitoras deixam mal o saber dos outros, pais, educadores, analistas; elas resistem à proposta do código, à aceitação da transmissão, ao jogo da letra” (Idem, p. 73). O sujeito não leitor não pode ler; é diante do real da letra que o não leitor recua, diante da prova de castração da mãe. “Existe em algum lugar uma verdade, nos diz Lacan, uma verdade que não se sabe, sendo aquela que se articula ao nível do inconsciente. É lá que nós devemos encontrar a verdade sobre o fazer” (Vincent, 2008, p. 81). Existe um tempo para que isto aconteça, que é o tempo de simbolização, tempo subjetivado na medida de seu próprio acontecimento como sujeito. Os cortes temporais sociais vêm aí fazer seus efeitos. Isso é válido para as diferentes dificuldades de aprendizagem, de crianças autistas, psicóticas ou com outra ordem de problemas. Para isso, é preciso uma escuta do sujeito, que ele possa dizer o que há, qual é a ideia que ele tem sobre o que lhe acontece – questão muitas vezes esquecida, cuja resposta poderia nos indicar a posição do sujeito perante o que lhe acontece. É nos obstáculos, nos intervalos que encontramos o estatuto do sujeito. Aí é que é anunciada a verdade em que eu me encarrego do que vem da fala, diz-nos
Lacan. É um sujeito que advém na fala, que se constitui como alguém que conta.

Na cena Clínica, Retratos (2008, p. 151), nos são apresentados vários casos em que a questão do sujeito irrompe em diversas impossibilidades, tal como a da incapacidade de escrever o que escuta – algo da história da criança, que era adotada, não pode se inscrever. Nada de rastros escritos, e a inibição escolar se instala. Algo da questão das origens, de sua posição de sujeito, fica difícil de ser escrito no caderno escolar. Uma destas crianças diz: “eu perdi as letras” (Mathelin, 2008, p. 151). O que isto diz da constituição subjetiva da criança? São crianças que são encaminhadas a tratamento, pois produzem, nos educadores, mal-estar educativo, mal-estar social. Produzem uma insuportabilidade, e, na tentativa de acalmar faltas reais, certo número de medicamentos de substituição poderá ser demandado. Há produção de mal-estar educativo da criança “como o testemunho de uma problemática infantil que não encontra mais referências familiares e, na visão dos quais o sistema educativo é impotente” (Idem, p. 166). Os professores e psicólogos escolares, ao encaminharem as crianças ao terapeuta, procuram respeitar seus sintomas e lhe dão tempo para que ela não seja mais estranha a suas dificuldades – tempo de subjetivação. Talvez esteja no tempo de recolocar a questão: existem mesmo crianças que não aprendem? Dito de outra maneira, “As dificuldades escolares são às vezes, para compreender, não como o sintoma de um sujeito mas, por exemplo, como o do sistema escolar que ele evolui” (Dubois e Meent, 2008, p.177). Questão para pensar.

Na cena E a Escola (2008, p. 189), talvez possamos encontrar algumas pistas para responder a interrogação colocada acima. Melman nos lembra que o ensino “repousa sobre as asas de Eros. Os antigos sabiam bem, se entregavam a esse frisson sem pudor” (2008, p. 192). O autor nos diz que nós preferimos cobrir a face, multiplicando “as técnicas absurdas com o risco de uma sequidão generalizada” (Idem). Em termos de transferência, que o ensinante almeje e suporte o amor que sua aprendizagem pode gerar. Afirmação contundente e prenhe de consequências, principalmente para os alunos que não aprendem. Na atualidade, o que parece acontecer é que os mestres almejem de seus alunos o impossível do autodidatismo, a recusa do Outro. Será? Poderíamos pensar, com Feltin, que, face aos modelos escolares, aos seus alunos, o ensinante “não está mais garantido por um lugar simbólico, outorgado pelo social, mas se encontra totalmente solitário” (2008, p. 205). É só com sua própria enunciação que este pode contar. Este é um ponto de reflexão que a escola, não só, no estabelecimento com os laços sociais, pode colocar-se a trabalhar. Talvez estejam justamente aqui alguns dos pontos que as crianças que não aprendem podem nos ensinar. Novamente, para pensar.

Meljac vai nos dizer que “As crianças que não aprendem nos ensinam, mais uma vez, que seu comércio aporta riquezas singulares” (2008, p. 241). São estas riquezas singulares, este “comércio”, que o livro nos aponta em suas diversas cenas, as quais estão intimamente ligadas a uma posição de sujeitos pensados e pensantes, dependentes de um ato em que estes possam se ler, se dizer, se escrever. De certo modo, nós todos somos crianças que não aprendem, já que aprender é ser sujeito no mundo com o outro, questão difícil na contemporaneidade. Faço-me acompanhar da questão que Bergés nos coloca no final do livro Em suma, o que aprendemos com as crianças que não aprendem?: “Não é porque elas não sabem que nós sabemos” (2008, p. 277). É em nome da modéstia que o autor nos faz tal afirmação.

Aprendemos, com o texto, as interrogações que estas crianças e adolescentes continuam a nos propor, descobertas que nos levam a nos questionarmos sobre nosso lugar, nossas funções frente ao que as crianças que não sabem nos ensinam. Ensinam-nos que não há saber sem sujeito e sua relação com o inconsciente, ensinam-nos a incidência sobre o real da letra, “verdadeiro escolho para apreender um saber” (Idem, p. 281).

Notas

1 O livro interessa aos educadores, psicanalistas, psiquiatras, psicólogos, enfim, a todos aqueles que estão implicados com as questões do aprender e do não aprender.

Margareth Schäffer – Professora titular da Faculdade de Educação da UFRGS e do Programa de Pós-Graduação em Educação. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original