A cultura dos superdotados? – BERGÉS-BAUNES; CALMETTES-JEAN (REE)

BERGÉS-BAUNES, Marika; CALMETTES-JEAN, Sandrine. A cultura dos superdotados? Tradução Maria Nestrovsky Folberg. Porto Alegre: CMC, 2010. Resenha de: HOMRICH, Marcele Teixeira.“A cultura dos superdotados?” The gifted child culture? Revista Educação Especial, Santa Maria, v.24, n.41, p.501-504, set./dez., 2011.

A cultura dos superdotados é uma publicação originada nas Jornadas de Estudos do Hospital Sainte-Anne (França), e tem como referencial teórico a psicanálise, sendo o foco adentrar na questão: o que esconde a inflação do significante superdotados? O livro publicado no Brasil com tradução da professora Dra. Maria Nestrovsky Folberg,¹ pela Editora CMC, discorre sobre a superdotação e psicanálise, entrando no contexto social, clínica e escola.

O livro é estruturado por pequenos textos organizados em quatro eixos: 1) panorama e estabelecimento da questão, 2) confrontação teórico-clínica, 3) clínica, retratos, sociedade e 4) e a escola? O primeiro eixo visa discutir a questão da avaliação psicológica, os conceitos de QI, e as possíveis repercussões que tais quocientes podem produzir no fechamento de questões da ordem da estruturação subjetiva. Como ponto de partida, retoma questões básicas, como o pedido que chega até os consultórios, onde há uma tríade tédio – superdotação – atestado de dons, tal discurso constitui uma uniformidade.

Ao longo do primeiro eixo, elementos históricos acerca das testagens, assim como os principais nomes no campo, são trazidos para a discussão, produzindo problematizações sobre a lógica que propõe o quociente intelectual.

O diagnóstico de superdotação, sustentado pela lógica do QI, traz consequências sérias, produzindo uma satisfação reparadora e uma afirmação fálica na estrutura familiar.

No decorrer do primeiro eixo, são também discutidos: as teorias sexuais infantis, a escrita, o corpo e o discurso acerca do tédio. Tais elementos, trazidos especificamente em cada texto, possibilitam pensar acerca do saber sexual como saber não-dito, recalcado, onde um não sei se coloca na possibilidade de se lançar na busca de conhecimentos, ou seja, um saber inconsciente que jamais será sabido. Na lógica contrária, coloca-se a criança supostamente superdotada: o gozo do superdotado está posto em mostrar a insuficiência e a não-pertinência da questão proposta – reivindicação fálica, a negação do sujeito do inconsciente. O tédio coloca-se exatamente nessa lógica mortífera: a pulsão de morte. Assim, a escrita impossibilitada, dificultada, trêmula e desalinhada, entra como projeção do corpo, demonstra uma relação primária com o objeto, uma persistência do elo de dependência.

No segundo eixo, denominado Confrontação teórico-clínica, os autores retomam a discussão sobre o QI, porém trazendo elementos pontuais que devem ser focados pelos colegas psicólogos, evitando uma concepção redutora.

O eixo também apresenta exemplos clínicos acerca da demanda da criança superdotada e de sua família, o lugar da criança na estrutura familiar e seu lugar frente ao desejo dos pais.

Uma das hipóteses seria que a demanda dos pais para com a criança dita superdotada está na lógica de uma não-demanda, é a marca nelas da ausência de desejo de seus pais ou, pelo menos, a busca desvairada desse desejo.

Uma segunda hipótese a partir das discussões dos textos ainda seria: não se pode dizer que não existe demanda por seus pais, mas se há demanda, elas se desenvolvem sobre o fundo de um imperativo de gozo que o sujeito supõe ser uma injunção do Outro.

A criança dita superdotada estaria privada em sua relação com o Outro, do que constitui o alcance simbólico dessa relação e do apoio que lhe permitiria levar em consideração suas próprias faltas. Assim, em dificuldade de articular sua enunciação, as próprias marcas inconscientes de sua subjetividade.

Essas marcas permanecem clivadas de toda falta, clivadas no sentido de recusa. O corpo se manifesta como portador da dimensão sexual, desconectado da fala e da demanda, anunciando os sintomas como: enurese, transtornos de higiene, os maus jeitos, a inabilidade…

O terceiro eixo: Clínica, retratos, sociedade, apresenta recortes de casos clínicos sustentado pela discussão teórica que permeiam o livro. Os textos discutem os excertos da clínica como sintomas que surgem a partir de atravessamentos sociais como configurações contemporâneas. A exigência de uma boa performance em tempos de alta publicidade, em que há um imperativo de gozar a qualquer preço. A inteligência estaria nesta lógica, na qual é solicitada e mantida na lógica publicitária de respostas rápidas e urgentes, sem suportar falhas, intervalos… o não-saber.

Ser superdotado, na lógica contemporânea de mercado e consumo, é ser mais, é um plus. Esse plus aparentemente pode parecer um ganho, mas têm um alto custo na subjetividade daquele que se oferta a esse lugar, o gozo Rev. Educ. Espec., Santa Maria, v. 24, n. 41, p. 501-504, set./dez. 2011 Disponível em: 503 “A cultura dos superdotados?” sem limite, o excesso leva à morte. O sintoma se apresenta como impossibilidade de negar a inscrição da barra no S.

A Terapêutica estaria na direção de que o “dito superdotado” possa desligar-se daquilo que elude a dimensão da falta na relação com o Outro para permitir sua enunciação. O trabalho com os pais estaria em trilhar um caminho para sair da suficiência em que estão confinados pela lógica que os aprisiona.

No último eixo, nomeado E a escola?, apresenta discussões teóricas e situações escolares em que a superdotação toma a cena. Os textos apresentam o fato que a criança superdotada nem sempre está na situação de sucesso escolar. Na situação em que a criança apresenta seu fracasso em sala de aula, ou na situação inversa, em que apresenta seu “super”, o pedido da avaliação pode vir do contexto escolar. Ao fim do último eixo, encontramos duas entrevistas acerca de algumas políticas e ações que estão sendo desenvolvidas na França.

O livro A cultura dos superdotados coloca em debate uma discussão atual acerca dos sintomas da infância, assim como a lógica da inflação da infância na contemporaneidade, lógica capitalista que objetaliza a criança. Como afirma Voltolini: Nossa época parece se identificar com a criança. Não seria talvez porque nela, a semelhança do que se passa com as crianças, busca-se um “gozo polimorfo”, sustenta-se uma “impunidade generalizada”, espera-se um “prazer imediato” e ilude-se com um futuro libertador de “toda” nossa insuficiência? Freud já havia pontuado, em sua também já clássica referência sobre o his majesty the baby, o lugar central, de majestade, devotado à criança nos dias de hoje, anotando o quanto os pais esperam que seus filhos realizem “o que eles não conseguiram realizar”.

Mas não estaríamos em condição de invectivar que toda esta “hiperbolização” da infância guarda relações com os nossos principais impasses com ela? Afinal, reclamamos hoje de uma “criança sem limite”, mas que limites esperamos dela? As novas patologias com as quais a marcamos se caracterizam pelo, excesso, o sem limite: “hiper”- ativa; “super”- dotada etc., ou pela escassez, a deficiência: déficit de atenção. Ambos signos da dinâmica capitalista, que tem entre suas primordiais operações a promoção do fator quantitativo (mais, menos; maior, menor) acima do qualitativo (VOLTOLINI, 2008).

Aprofundar as produções teóricas acerca da superdotação possibilita irmos além da compreensão superficial e aparente dos discursos que predominam nos contextos escolares. A necessidade de escutar os pedidos que chegam às escolas, instituições que se dedicam ao assunto, assim como aos consultórios médicos e psicológicos possibilitará novas formas de compreender a dinâmica em que tal criança se constitui, e o lugar que ocupam na estrutura social e familiar.

Notas
¹ Professora PPG Educação UFRGS, Coordenadora NEPPE.

Referências

VOLTOLINI, Rinaldo. A escola e os profissionais d’A criança. In: FORMACAO DE PROFISSIONAIS E A CRIANCA-SUJEITO, 7., 2008, São Paulo. Anais eletrônicos.

Marcele Teixeira Homrich – Psicólogo/Psicanalista, Mestre em Educação (Unisinos), Doutoranda em Educação – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é docente no Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo, Santo Ângelo, Rio Grande do Sul, Brasil. [email protected]

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O que Aprendemos com as Crianças que não Aprendem? – BERGÉS et al. (ER)

BERGÉS, Jean; BERGÉS-BOUNES, Marika; CALMETTES-JEAN, Sandrine (Org.). O que Aprendemos com as Crianças que não Aprendem? Porto Alegre: CMC, 2008. Resenha de: SCHÄFFER, Margareth. As crianças que não aprendem ensinam? Educação & Realidades, Porto Alegre, v. 35, n. 2, p. 327-332, maio/ago., 2010.

O livro O que aprendemos com as crianças que não aprendem? Convoca o leitor a oferecer sua contribuição à leitura e tramar seus próprios caminhos; exige, ainda, um olhar atento sobre as questões do aprender, da singularidade, da subjetivação, da escola e do tratamento que atravessam os textos como fio condutor. Sim, a obra conduz, mas demanda que o leitor entre com seus próprios fios, levando-o a trabalhar na leitura e na escuta dos escritos. São esses escritos que me convocaram ao trabalho, cuja resultante passo então a partilhar com os leitores. São diversos tipos de textos, de diversos autores, cada um procurando acentuar, a partir do lugar que ocupam, as diversas problemáticas que cerceiam as crianças que não aprendem. Saliento, a seguir, algumas reflexões retiradas do livro1, de modo a mostrar a complexidade que tal temática exige, tratando as várias seções do livro como “cenas”, procurando, com isso, respeitar a diversidade e a pluralidade que a obra nos oferece.

A cena de abertura começa com uma questão importante. Serão os problemas de aprendizagem uma falha da criança, da família, da escola? Entretanto, diante dos embaraços do real do sintoma social, os problemas de aprendizagem se veem tradicionalmente remetidos para o lado médico. Será uma doença? A tônica colocada no defeito e nos meios para atenuá-lo tende a apagar “o que nos aparece essencial, isto é, o lugar do sujeito” (Calmettes-Jean, 2008, p. 10). É pensando pelo lado do sujeito que podemos escapar das perspectivas utilitárias tão comuns hoje em dia e não ficarmos aprisionados entre o ideal e o fracasso, entre o aprender e o não aprender. A emergência do sujeito de um desejo, que se funda em um saber, saber inconsciente, permite-nos a escuta de problemas de aprendizagem. Para a autora, “o que nós somos chamados a descobrir graças a estas crianças, é a importância do lugar do sujeito frente ao saber” (Idem, p. 10) – questão de extrema importância para quem trabalha com estes sujeitos, pois permite saber nos dirigirmos na condução do tratamento e no trabalho pedagógico.
A partir dos impasses que o tratamento coloca, Calmettes-Jean nos diz que não é a partir de uma posição de mestria ou verdade que a questão tem de ser encarada. Os impasses enfrentados no tratamento com estas crianças, por meio do ideal científico, produzem inquietações, pois negam o impossível próprio do ato de ensinar, de educar, de psicanalisar, tais como Freud e Lacan enunciaram. “A orientação em curso exalta um ensino científico que vem, como toda ciência, evacuar e negar a subjetividade como a dinâmica transferencial necessária para a obra da transmissão do saber” (Idem, p. 12). Tal orientação esquece o quanto é difícil o encontro de uma criança com a escola, com o ensino, com o saber. Há um tempo de elaboração para este encontro, o qual está sendo foracluído.

Estamos, assim, às vezes, intimados a vir ultrapassar este impossível de ensinar pela produção de teorias funcionais adequadas a vir reparar o instrumento cognitivo defeituoso, intimados a provar cientificamente nossa competência de médicos-psicólogos. O saber médico deve sanar um problema de onde o sujeito está ausente… (Idem, p. 12).

Levar em conta o inconsciente nas dificuldades escolares propõe que a inteligência não é um dado científico, pois o exercício da inteligência e da cognição está enodado à estrutura do sujeito, no desfiladeiro da multiplicidade de suas experiências. “O inconsciente e o sexual vão colocar suas marcas sobre a inteligência, a cognição, as aprendizagens” (Idem, p. 13). Entretanto, há momentos tão fortes da fala do inconsciente, que chama a entrada do psicanalista, para que o discurso inconsciente tome seu lugar.

Não é para a escola “compreender”, interrogar a razão do saber inconsciente. Escola e psicanalista devem ocupar seus lugares respectivos para tentar ordenar o lugar da criança como sujeito, com a ajuda da família que não pode ser mantida responsável ou culpada de todos seus embaraços (Idem, p. 14).

O saber em psicanálise é um saber inconsciente, não um saber escolar ou universitário. Como o inconsciente faz para saber e obedecer ao desejo do Outro – que quer de mim o Outro –, isso nos determina como sujeitos. Ao longo do livro, casos clínicos e cognitivos testemunham a ligação entre o inconsciente e o cognitivo, o qual denominamos como cenas acerca dos que as crianças que não aprendem ensinam. Cenas que não dizem de crianças objetalizadas ou dessubjetivizadas. Isso seria o saber científico, posição a ser denunciada segundo os autores do livro. Pelo contrário, é a partir do impossível de ensinar e de educar que se questiona e se teoriza o ensino. “É este um ponto de origem para que comece, emerja a questão do desejo do sujeito com as probabilidades de sua confrontação com dialética com a lei?” (Idem, p. 16).
Golse (2008, p. 21), na seção aprendizagens e fracassos escolares, colocanos algumas questões interessantes, principalmente no que diz respeito à aprendizagem no meio escolar, para poder daí tentar precisar o que pode às vezes dissociar o fato de aprender do desejo de saber. Para a autora, opera-se de início a questão das sublimações, as quais vão permitir a transformação progressiva da curiosidade sexual em curiosidade intelectual, “com todos os riscos que a inibição de uma pode trazer à outra” (Idem, p. 26).

Aprender se funda então, sobre a curiosidade, sendo importante não permanecer um curioso sexual exclusivo, mas abrir-se a uma curiosidade sublimada, deslocada quanto a seu fim, e isto tudo evitando conjuntamente as armadilhas de uma masturbação dita intelectual (Idem, p. 27). Interessante sublinhar que as coisas não são lineares e que um certo grau de fracasso pode ser necessário no seio das dinâmicas escolares ou profissionais. O importante, para a autora, não é saber de tudo, mas poder compreender de tudo, o que vai dar lugar ao inédito, à surpresa, à novidade na questão das aprendizagens.

É a relação com o desconhecido, em que o “prazer pessoal do pedagogo para enfrentar o desconhecido pode ajudar a criança a admitir que o desconhecido não seja incognoscível” (Idem, p.29). A autora se pergunta: “Então, finalmente, o que aprendemos com as crianças que não aprendem?” (Idem, p.30). A resposta vai na direção da modéstia e de que talvez tenhamos mais teorias do que precisamos. “Cada criança é um mundo em si, e cada criança deve poder, por si só, nos empurrar para pôr em causa nós mesmos, nosso próprio saber que frequentemente tivemos tanto sofrimento para adquirir” (Idem, p. 30). As crianças estão em estado de dificuldade de aprendizagem e esta é, segundo a autora, a primeira e principal lição que nós devemos apreender.

As cenas que continuam fazendo a costura da temática dizem respeito aos Problemas de aprendizagem escolar e psicopatologia (Misés) e o que há com esta família que não é capaz de contar até dez (Lenoble), fazendo-nos chegar até a confrontação teórico-clínica, em que Bergès (2008, p. 69), ao se perguntar Por que cinco vezes mais meninos não aprendem?, diz-nos que são os meninos que, na maior parte do tempo, arriscam nos ensinar alguma coisa do fato de que eles não conseguem aprender. Pontua, em especial, as dificuldades de leitura e de escrita: na leitura, é diante do real da letra que o não leitor recua. “É um impasse da mesma ordem no qual talvez se envolva a criança que escreve: é o corpo envolvido na escrita que vem se recusar a toda marca, cujo gesto gráfico se fixa na câimbra dos escritores” (Idem, p. 72). É o que se vê aparecer mesmo nos alunos que ainda não sabem escrever: “é o real da letra a inscrever que torna a escrita impossível” (Idem, p. 72).

Pistas, rastros que as crianças que não aprendem nos propõem, e nos convidam a escutá-las e lê-las. Outras vezes, elas afirmam: “Eu não sei… É minha mãe que sabe…” (Bergés-Bounes, 2008, p. 73), mostrando-nos que o desejo de aprender não é o seu, que elas estão divididas quanto ao saber.

“Estas crianças não leitoras deixam mal o saber dos outros, pais, educadores, analistas; elas resistem à proposta do código, à aceitação da transmissão, ao jogo da letra” (Idem, p. 73). O sujeito não leitor não pode ler; é diante do real da letra que o não leitor recua, diante da prova de castração da mãe. “Existe em algum lugar uma verdade, nos diz Lacan, uma verdade que não se sabe, sendo aquela que se articula ao nível do inconsciente. É lá que nós devemos encontrar a verdade sobre o fazer” (Vincent, 2008, p. 81). Existe um tempo para que isto aconteça, que é o tempo de simbolização, tempo subjetivado na medida de seu próprio acontecimento como sujeito. Os cortes temporais sociais vêm aí fazer seus efeitos. Isso é válido para as diferentes dificuldades de aprendizagem, de crianças autistas, psicóticas ou com outra ordem de problemas. Para isso, é preciso uma escuta do sujeito, que ele possa dizer o que há, qual é a ideia que ele tem sobre o que lhe acontece – questão muitas vezes esquecida, cuja resposta poderia nos indicar a posição do sujeito perante o que lhe acontece. É nos obstáculos, nos intervalos que encontramos o estatuto do sujeito. Aí é que é anunciada a verdade em que eu me encarrego do que vem da fala, diz-nos
Lacan. É um sujeito que advém na fala, que se constitui como alguém que conta.

Na cena Clínica, Retratos (2008, p. 151), nos são apresentados vários casos em que a questão do sujeito irrompe em diversas impossibilidades, tal como a da incapacidade de escrever o que escuta – algo da história da criança, que era adotada, não pode se inscrever. Nada de rastros escritos, e a inibição escolar se instala. Algo da questão das origens, de sua posição de sujeito, fica difícil de ser escrito no caderno escolar. Uma destas crianças diz: “eu perdi as letras” (Mathelin, 2008, p. 151). O que isto diz da constituição subjetiva da criança? São crianças que são encaminhadas a tratamento, pois produzem, nos educadores, mal-estar educativo, mal-estar social. Produzem uma insuportabilidade, e, na tentativa de acalmar faltas reais, certo número de medicamentos de substituição poderá ser demandado. Há produção de mal-estar educativo da criança “como o testemunho de uma problemática infantil que não encontra mais referências familiares e, na visão dos quais o sistema educativo é impotente” (Idem, p. 166). Os professores e psicólogos escolares, ao encaminharem as crianças ao terapeuta, procuram respeitar seus sintomas e lhe dão tempo para que ela não seja mais estranha a suas dificuldades – tempo de subjetivação. Talvez esteja no tempo de recolocar a questão: existem mesmo crianças que não aprendem? Dito de outra maneira, “As dificuldades escolares são às vezes, para compreender, não como o sintoma de um sujeito mas, por exemplo, como o do sistema escolar que ele evolui” (Dubois e Meent, 2008, p.177). Questão para pensar.

Na cena E a Escola (2008, p. 189), talvez possamos encontrar algumas pistas para responder a interrogação colocada acima. Melman nos lembra que o ensino “repousa sobre as asas de Eros. Os antigos sabiam bem, se entregavam a esse frisson sem pudor” (2008, p. 192). O autor nos diz que nós preferimos cobrir a face, multiplicando “as técnicas absurdas com o risco de uma sequidão generalizada” (Idem). Em termos de transferência, que o ensinante almeje e suporte o amor que sua aprendizagem pode gerar. Afirmação contundente e prenhe de consequências, principalmente para os alunos que não aprendem. Na atualidade, o que parece acontecer é que os mestres almejem de seus alunos o impossível do autodidatismo, a recusa do Outro. Será? Poderíamos pensar, com Feltin, que, face aos modelos escolares, aos seus alunos, o ensinante “não está mais garantido por um lugar simbólico, outorgado pelo social, mas se encontra totalmente solitário” (2008, p. 205). É só com sua própria enunciação que este pode contar. Este é um ponto de reflexão que a escola, não só, no estabelecimento com os laços sociais, pode colocar-se a trabalhar. Talvez estejam justamente aqui alguns dos pontos que as crianças que não aprendem podem nos ensinar. Novamente, para pensar.

Meljac vai nos dizer que “As crianças que não aprendem nos ensinam, mais uma vez, que seu comércio aporta riquezas singulares” (2008, p. 241). São estas riquezas singulares, este “comércio”, que o livro nos aponta em suas diversas cenas, as quais estão intimamente ligadas a uma posição de sujeitos pensados e pensantes, dependentes de um ato em que estes possam se ler, se dizer, se escrever. De certo modo, nós todos somos crianças que não aprendem, já que aprender é ser sujeito no mundo com o outro, questão difícil na contemporaneidade. Faço-me acompanhar da questão que Bergés nos coloca no final do livro Em suma, o que aprendemos com as crianças que não aprendem?: “Não é porque elas não sabem que nós sabemos” (2008, p. 277). É em nome da modéstia que o autor nos faz tal afirmação.

Aprendemos, com o texto, as interrogações que estas crianças e adolescentes continuam a nos propor, descobertas que nos levam a nos questionarmos sobre nosso lugar, nossas funções frente ao que as crianças que não sabem nos ensinam. Ensinam-nos que não há saber sem sujeito e sua relação com o inconsciente, ensinam-nos a incidência sobre o real da letra, “verdadeiro escolho para apreender um saber” (Idem, p. 281).

Notas

1 O livro interessa aos educadores, psicanalistas, psiquiatras, psicólogos, enfim, a todos aqueles que estão implicados com as questões do aprender e do não aprender.

Margareth Schäffer – Professora titular da Faculdade de Educação da UFRGS e do Programa de Pós-Graduação em Educação. E-mail: [email protected]

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