O teatro dos vícios – ARAUJO (VH)

ARAUJO, Emanuel. O teatro dos vícios. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1993. Resenha de: MAGALHÃES, Beatriz Ricardina de. Varia História, Belo Horizonte, v.12, n.15, p. 200-202, mar., 1996.

Resenha discutida durante o seminário Estudos Bibliográficos: Subsidio para a História Social da Comarca do Rio das Velhas – 1994 – de 03 a 07 de Janeiro. Grupo “Século XVIII mineiro”- Centro de Estudos Mineiros – Fafich – UFMG.

“Todavia os donos do poder fortaleceram-se com o tempo, os burocratas públicos ficaram ainda mais burocratas, o judiciário permaneceu venal e o povo, esse, perpetuou-se sob eternos males a ele impostos e mazelas por ele próprio criadas”. (P27).

Segundo se lê na seção “Ideias”(FSP, 24/12/93, p.3), 0 teatro do vícios  está classificado entre os oito melhores livros de História publicados em 1993.Outra referência da mídia a dar destaque a essa obra é a resenha de Luís Felipe de Alencastro (FSP, 06/06/93), que lhe faz uma justa apreciação.

Ao meu trabalho, em particular, a obra vem enriquecer não só com elementos referentes a grande parte do território nos três primeiros séculos da história do Brasil, mas também com a divulgação de uma variada bibliografia sobre o assunto, pouco difundida, e, portanto, pouco consultada. Embora ARAUJO use como fonte “o universo documental publicado” (p.14), deixando de lado as fontes primarias. Demonstra permanente recorrência aos processos inquisitoriais, as Ordenações Filipinas e as Atas das Câmaras, entre outros documentos. Contudo, exagera na citação de relator de viajantes estrangeiros —sobretudo ingleses —que percorreram o País, particularmente no século XIX.

De início, o autor expõe seus objetivos: ao convocar os mortos “a falarem”, pretende comprovar a imutabilidade da estrutura do poder, apesar das mudanças dos regimes políticos, analisando a forma como o Estado controla a população:”…levou-se a extremos o sentimento do rei como bom pastor que vela por todo o rebanho, dissimulando habilmente sempre, o que encobre tal noção: o rebanho…” (p. 23). Essa passagem lembra, com muita propriedade, um texto recente de Renato Janine Ribeiro, em que comenta a má fé da última fala do ex-Presidente Collor, ao destacar “dois temas: o dos órfãos do poder e o do repudio as paixões e interesses políticos”, confirmando sua demagogia. “Falar… em ‘Órfãos do poder’ e pretender assim que fosse ele o pai que redimiria esses desvalidos, é a prova cabal do caráter autoritário de um projeto que negava a própria cidadania, que reduzia os brasileiros a tutelados. ” 0 articulista termina seu texto lembrando que o apelo as ultrapassadas formas de populismo —”a referência ao pai e a sua privação…” não passa de “uma parodia pobre de nosso passado da qual esperamos ter visto agora o último ato” (FSP,27/12/93). Nesse caso, estariam os prognósticos de Araújo sendo confirmados.

Na obra em questão, o autor incita o brasileiro a recuperar sua identidade, a repensar historicamente o seu próprio caráter —a buscar, no comportamento dos colonizados, a tecitura da sociedade brasileira e seus antigos mitos. Para isso, privilegia, como “exame prioritário e norteador, (a análise) do comportamento desviante em amplo sentido”(p.26).

Os quatro capítulos do livro são bastante sugestivos. No primeiro, fica logo delimitado o cenário, o local onde os atores cumprem seus papeis: a vila, a cidade. Tudo indica que os primeiros povoados foram improvisados em sítios inadequados, com muitas ladeiras e tragados irregulares, compondo-se de casas mal alinhadas e ruas estreitas, escuras e mal cheirosas. Desde os primeiros momentos, o autor insiste em considerar a pobreza das ralas populações das vilas, em 1585, 1610 e 1630, comparando-a a uma população rural predominante, citando, particularmente, a região Nordeste.

Se o mundo rural prevalece, nos dois primeiros séculos, a partir do sec. XVIII, com o desenvolvimento da economia mineira, algumas transformações profundas começam a se fazer notar nas vilas coloniais, que se formam rapidamente. Nesse momenta, as Câmaras atuam de maneira efetiva1. Quanto as edificações particulares, parece que o autor fez uma leitura rápida da tese de Sylvio de Vasconcelos2. Na verdade, as dificuldades com relação ao urbanismo brasileiro dizem mais respeito a herança portuguesa do que a desordem e/ou provisoriedade da ocupação, a pobreza, a falta de higiene e a indolência do brasileiro. Ainda no mesmo capitulo, ele trata da alimentação e da moradia.

É no segundo capitulo —A sociedade da aparência —que ARAUJO começa a delinear os tragos psicológicos predominantes do brasileiro: preguiçoso, presunçoso, amante dos prazeres, etc. Nessa conceituação, prevalece sempre a opinião de estrangeiros visitantes do século XIX. Até que ponto se pode endossar a fata de autores originários de culturas tão diferentes e de países como a Inglaterra, que criou e massacrou, durante séculos, uma massa enorme de pequenos camponeses, despojando-os da terra, transformando-os num exército de mendigos “hospedes” das work houses ou de miseráveis que vão povoar Londres nos séculos XVII e XVIII, tornando-se permanente ameaça social GUTTON 3  esclarece que, na verdade, nas sociedades europeias da época, a presença de pobres era inevitável. Contudo, mesmo na Europa, o estudo desse estrato da população e extremamente difícil: os registros a respeito são precários: seus elementos vem, sobretudo, de algumas instituições assistenciais particulares ou públicas. Assim, que tipo de individuo viria para o Brasil Colônia.

Continuando, ARAUJO informa que, no Brasil, nessa época, o trabalho se torna indicador de condições subalternas, desonrosas, portanto. Os ofícios mecânicos eram desempenhados por mestiços, negros ou brancos pobres. Explica-se esse desprestigio do trabalho, e a consequente preguiça do brasileiro, pela permanência do sistema escravista.

Entretanto, para curtir a preguiça, urgia comprar escravos. De onde vinha o capital necessário Um escravo media, em Minas Gerais, em meados do sec. XVIII, custava de 100.000,000 (cem mil reis) a 120.000,000 (cento e vinte mil reis), o que correspondia, em média, ao preço de três casas urbanas, no mesmo período. Curioso e que L.S. Vilhena, um “modesto  professor de Grego” (p.87) possuía oito escravos. E dele a lapidar frase que caracteriza o Brasil como a “moradia da pobreza, o berço da preguiça e o teatro dos vícios”.

0 ócio, de acordo com alguns depoimentos referidos, era prerrogativa dos citadinos burocratas, profissionais liberais, estalajadeiros, padeiros, taverneiros, açougueiros, barbeiros, costureiras e outros. Essa é uma imagem que necessita verificado mais acurada, por meio de análise de outras fontes que não as opinativas e/ou circunstanciais.

Por outro lado, ser aceito e reconhecido pela sociedade era uma condição fundamental para o colono. Portanto, a aparência física contava muito. Um traje de boa qualidade, ataviado com detalhes em ouro e prata e altos penteados ou perucas enfeitadas, para aparecer em público, contrastavam com a simplicidade das vestes caseiras e, em especial, com a sobriedade da decoração interior das casas. Parece, no entanto, que eram hábitos apenas transplantados de Portugal. Tudo indica que a rua apresentava muitos atrativos, como procissões, cavalhadas, touradas, carnaval, danças, teatro. Quanto a essa questão (p.145), chocam-se as opiniões de dois viajantes, Lindley e Maria Graham, a respeito do teatro de Salvador. 0 que torna bem Clara a precariedade dos depoimentos opinativos.

No terceiro capítulo — A Colônia pecadora— ARAUJO empenha-se em detalhar a conduta desviante do brasileiro, privilegiando sua vida privada, em que os comportamentos da mulher e do padre se tornam paradigmáticos.

Como se pode deduzir, trata-se de uma obra que merece uma leitura cuidadosa. 0 autor transita bem pela moderna historiografia brasileira. Sua tentativa de incentivar a fala dos mortos deve prosseguir.

No entanto, ficam, ainda, algumas questões: Como a crítica recebeu a obra Como são trabalhados, nela, as categorias pobreza, mendicância, vadiagem e prostituição As dicotomias público X privado e colono X colonizado são bem definidas ao longo do texto E outras mais…

Notas

1.MAGALHAES, Beatriz Ricardina. Estrutura e funcionamento do Senado e da Câmara em Vila Rica (1740- 1750). In: Anais da Xl Reunião da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica (SBPH), são Paulo, 1991.p..133-136. Esse texto foi elaborado para fazer entender a dinâmica da administração municipal de Vila Rica.

2.VASCONCELOS, Sylvio. Vila Rica, São Paulo.: Editora Perspectiva,1977.

3.GUTTON, Jean Pierre. La societe et les pauvres en Europe (XVI-XVII).Paris: PUF,1974.

Beatriz Ricardina de Magalhães.

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