Palavras molhadas e escorregantes: origens clássicas e tradição moderna da retórica política – LOPES (HU)

LOPES, M. A. Palavras molhadas e escorregantes: origens clássicas e tradição moderna da retórica política. Londrina: Eduel, 2015. 132 p. Resenha de: SPIRANDELLI, Claudinei Carlos. Origens clássicas e tradição moderna da retórica política. História Unisinos 19(3):377-380, Setembro/Dezembro 2015.

Lendo Palavras molhadas e escorregantes, percebemos a retórica como uma espécie de narrativa em seu estado de arte. Eis uma máxima que somos instados a desenvolver com a leitura do livro. Inicialmente, a obra merece duas leituras: a primeira, leve e descompromissada, com o intuito de ir “bebendo” as palavras (posto que estas vêm “molhadas”), tendo o cuidado para que não escorreguemos em suas sinuosidades. Ler com liberdade e emoção, portanto, é esse primeiro nível de leitura.

Em um plano complementar aderente ao anterior vem o deleite da razão: a leitura saboreada com as lentes da reflexão atenta. Modestamente até, Lopes se arvora no papel de expor uma análise das transformações nas concepções da arte retórica fundeada em perspectiva histórica. Injustiça: o livro se mostra a “pedra de afiar de Isócrates”, o grande mestre da eloquência, que, desprovido de voz possante, tornava os discípulos magistrais discursadores. O pequeno livro, nesse formato, já é uma dessas pedras.

A obra é uma condensação das reflexões do autor sobre os períodos de auge da retórica (a Antiguidade clássica greco-romana e a Época Moderna, sobretudo ao longo do Renascimento), e trata também dos elos entre esses momentos de esplendor das técnicas persuasivas, para a ruína e/ou a realização do bem público.

O autor mostra os altos e baixos e as formas “mais éticas” de como os tratadistas e os homens públicos fizeram uso da retórica. Em linhas gerais, Lopes elabora um apanhado de diversas, bem escritas e enxutas formas de explicar o termo retórica. E formas essas realizadas por experts, ao longo dos séculos – porque fazer isto não é, conforme mostra o autor, tarefa de fácil realização.

Quanto à estrutura, o livro está arranjado pelas seguintes unidades temáticas: um prefácio curto, mas que esclarece, na medida de uma apresentação de tal natureza, o que é o objeto do livro e o seu grau de inserção nos estudos acerca da história da arte do bem dizer. Uma apresentação enxuta e explicativa de qual espírito dominou a concepção da obra, bem como uma profissão de fé na utilidade do texto frente aos interesses do público leitor; e mais três capítulos que constituem o cerne da obra e que desenvolvem e ilustram um número considerável de cenas históricas acerca dos usos e efeitos da arte retórica, em diferentes tempos e situações.

O primeiro capítulo, intitulado “Retórica antiga e moderna”, é dividido em cinco intertítulos: “Arte de sutilezas inesperadas”; “Orador: confeiteiro de palavras”; “Discurso prático, discurso gráfico”; “Alteração de fisionomia” e, finalmente, “Coruja de óculos ou ciência pós-moderna”. Em proporções de síntese, essas unidades expõem as origens históricas da retórica com os gregos, até as formas com que ela se expressa em nosso próprio tempo. Aliás, para essas formas, poderíamos propor, a partir de Lopes, que a retórica diz respeito à arte da sedução, de se fazer convencer por palavras (escritas ou faladas) acompanhadas de gestos que também cumprem um papel respeitável no jogo da eloquência e, portanto, das persuasões convincentes.

Em determinada passagem, o autor expõe uma noção de retórica em Aristóteles: segundo o Estagirita, na vida em sociedade, emitir sons nada significa, pois o preciso seria o saber falar e, de preferência, sabendo o que dizer (Lopes, 2015, p. 24). Quis ele dizer que o domínio da linguagem estabeleceu e desenvolveu processos de comunicação, modeladores, em diversos modos, da vida social. Nesses processos, a retórica, segundo Lopes, formara capítulo à parte, e sua arte (do grego “techné”, técnica) tornou-se fundamental. Arte essa cheia de sutilezas, a qual gregos e romanos levaram a termo de modo especialmente elevado e, em alguns casos, beirando a perfeição, com Sólon, Péricles, Demóstenes, Isócrates, Cícero, Sêneca, entre tantos outros artistas do verbo.

Um aspecto que impressiona positivamente no texto é o bom equilíbrio entre o material de apoio encontrado pelo autor (textos diversificados de vária autoria), com fartas referências diretas e indiretas dos mesmos, e os usos que se fazem deste vasto aparato documental. Com efeito, o autor parece se equilibrar com algum conforto entre as agudas reflexões dos clássicos e os seus próprios argumentos, no que procura extrair as nuanças que considera de sua própria alçada no trato com engenhos lubrificados e de complexo manejo. De fato, Lopes debruça-se sobre a técnica que manipula os termos e os torna objetos ensaboados, a arte oratória, no que revela os expedientes dos que a elevaram a alturas invulgares, como Demóstenes e Cícero. Numa síntese desse primeiro capítulo, que cumpre função didática aos leitores iniciantes no tema, o autor demonstra como a palavra calculada e cuidadosamente calibrada por oradores emerge de circunstâncias eminentemente práticas da vida social e da experiência política, sobretudo em períodos de agudas crises: E não custa lembrar que o mais célebre discurso de Péricles decorreu de uma guerra, a do Peloponeso, do mesmo modo que a peça mais conhecida de Demóstenes relaciona-se com as investidas das forças militares de Felipe de Macedônia (Lopes, 2015, p. 34).

Assim, a arte da retórica pode ser posta na afirmação de que é frequentemente uma tensão entre visões de mundo conflitantes ou mesmo uma guerra aberta, mas na forma de palavras, e palavras ajustadas estrategicamente, com força avassaladora para conquistar, desfazer ou destruir inimigos.

O segundo capítulo, cujo título reúne elementos sob a rubrica geral de “Merecimentos e vilanias do nobre engenho”, abriga um leque generoso de sete aspectos justamente reveladores das sutilezas do discurso retórico, a saber: “Louvor de obscuridade”; “Arte de papagaios”; “Bigorna moral”; “Gracejos, trovas e névoas”; “Retórica das virtudes”; “O ouro falso dos oradores” e, por fim, “Retórica do prazer”. Nesse capítulo, o autor mostra as regras de utilização de discursos retóricos modernos (sobretudo as inventivas concepções renascentistas, que ampliaram em muitos graus as noções vindas do mundo antigo), enfatizando as formas da eloquência do período moderno. Neste capítulo, Lopes parece (apenas parece!) expor a vocação incontornável da arte retórica para maledicências, bem como sua especial capacidade de fomentar intrigas. No presente capítulo, o autor ocupa-se em descrever os que se utilizam da ironia e do riso na retórica, e as formas malévolas de como a mesma pode ser utilizada, seja por líderes políticos ou religiosos inescrupulosos; seja por aqueles que nada têm a dizer, mas desejam parecer consistentes; e pelos que querem persuadir astuta ou inteligentemente aos outros com uma mentira (eis o caráter amoral da retórica).

Mas todos fugindo da clássica forma de expor apenas a verdade enxuta num discurso, algo comum entre os clássicos da Antiguidade. E, para exibir toda essa variação de desconcertantes contrastes, Lopes procurou ser bastante seletivo ao escalar aquilo que se pode descrever como os espécimes mais raros na bem povoada fauna de escritores ocidentais modernos e contemporâneos, desde pensadores que ironizam ou valorizam os usos e abusos da retórica.

E por falar em fauna, integram o presente campo figuras do calibre de Pascal, Fénelon, Locke, Schopenhauer, Nietzsche, etc., bem como historiadores relevantes da área. Ainda no segundo capítulo, Lopes retoma um argumento do orador ateniense Demóstenes, para quem a retórica (por ele concebida como a “perícia no dizer”) deve conter essas coisas – ou seja, se é utilizada para o bem ou para o mal é outra história. O importante é que a retórica seja competentemente praticada, o que significa ser necessário elevá-la à condição de arte. Eis o que parece ser a lição de Lopes. O capítulo, ao fim e ao cabo, demonstra-nos o quanto a retórica pode ser uma arma letal, e mais ainda quando manejada com convincente destreza para perseguir interesses contrários à realização do bem comum. Aliás, em terra brasilis, o reino multicolorido de nossos oradores políticos há muito tem se revelado suficientemente persuasivo nas técnicas de aromatizar a ruína de seu próprio eleitorado, fazendo crer que a marcha rumo ao precipício não é apenas uma jornada cativante aos que, cordeiramente, confiam nas promessas eternas renovadas nos palanques sazonais, mas a própria porteira escancarada a um futuro salvador. Justamente por esse ângulo, percebe-se o risco que mora no discurso retórico.

O terceiro e último capítulo, sob a curiosa rubrica de “Sobre a arte de assaltar os sentidos”, desenvolve unidades voltadas para a exploração das formas de realismo político (o maquiavelismo e as perspicácias de seu gênero), bem como os contradiscursos aplicados como a necessária resistência ética às redescrições morais, seja as propostas concebidas pela criativa verve de Maquiavel, seja pelo não menor senso de agudeza de uma série de maquiavelistas avant la lettre. Tais intertítulos foram assim chamados: “Vinho novo em barril usado”; “Novo catálogo de valores”; “A eloquência como arma de fogo”; “Manipulações da linguagem” e, por fim, “Flexibilizar a moral”. No presente capítulo, o autor pretende dar conta de analisar as estratégias do realismo político, no que tange aos modos como este gênero de literatura política faz uso dos métodos e técnicas da retórica. Em certo sentido, Lopes dá continuidade ao capítulo anterior, ao mostrar a grande atualidade dessas características de utilização da retórica na política. E o autor não economiza: explora a atualidade do pensamento de Maquiavel, principalmente naquelas passagens mais originais de O príncipe, para confrontações, comparações e aprofundamentos, mostrando-os como prenhes de elementos da retórica, da persuasão do discurso redescritivo das morais consolidadas pela tradição clerical, e das distâncias e proximidades estabelecidas por Maquiavel entre a virtude e o cinismo que a referida obra abarca.

Aliás, Lopes faz uso não apenas de Maquiavel, mas também de Hobbes, entre outros escritores políticos antigos e modernos, todos mestres naquilo que, segundo o autor, melhor se convencionou tratar-se a retórica, que é ser instrumentalizada para a política, mormente para conquistar e manter distintas maneiras de dominação.

Mantendo ainda o foco sobre o mestre florentino, Lopes mostra a proposição deste, segundo a qual a retórica deve ser o árido terreno onde o mais importante é a ética do equilíbrio na realidade amarga, bem antes que a ética de idealizações distantes do mundo real. Coisas do perspicaz observador da realidade sem rodeios que foi Maquiavel.

As coisas ditas em tais termos, somos tentados a pensar em utilidades práticas para o livro de Lopes, como as de fazer leigos ou não no assunto poderem melhor expressar e polir palavras que pretendam utilizar. Mas, para além de tentar um ponto central ou consenso mínimo (tarefa a que a obra não se propõe), o autor mostra-se interessado nas correlações que a retórica possui com a ética; e que aquilo que ela busca pela persuasão (uma de suas principais finalidades) não escape do raio da verdade e acabe se avizinhando ao cinismo e à mentira. Isso relaciona a retórica com a ética (e a política) neste mundo contemporâneo.

Por outro lado, a obra leva o leitor a entender que a arte da retórica (e elementos a ela relacionados, como eloquência, oratória, persuasão, ética, moral, verdade, beleza, racionalidade, sedução, etc.), indo das pequenas sociedades gregas clássicas às grandes sociedades modernas e ao complexo mundo contemporâneo, pode ter passado da singeleza socrático-platônica da busca da verdade sincera para o abarcar das profundezas humanas da perfídia, do cinismo e da simulação.

Palavras molhadas e escorregantes contém ainda uma importante ressalva final. Nela, o autor explicita serem os textos que resultaram no presente livro material de reuso, uma vez que a obra foi composta de escritos já divulgados em periódicos e agora aperfeiçoados, alinhados e colados em um trabalho de apoio escolar. Antes dispersos, os textos agora formam corpo com sentido ampliado, entende ele. A junção articulada dos textos acabou por representar uma unidade orgânica, digamos assim, e de fato constitui um conjunto harmônico de textos que dialogam internamente, para além de uma simples juntada de trabalhos dispersos. Coisas de um atento observador da realidade sem rodeios de nosso mundo selvagemente produtivista? Ou interesse legítimo em ampliar um tema de interesse para os estudantes? A verificar com o próprio autor…

Last, but not least, é digno de nota o esforço com que o autor batiza capítulos e numerosos intertítulos, fazendo coro e mimetizando uma série considerável de pensadores – no caso, os escritores mais saborosamente viperinos e de língua afiada que a cultura política do Ocidente pôde produzir. Com os cuidados de um cavalheiro do período vitoriano, os títulos quase falam por si, dando corpo e espírito à obra, em uma síntese detentora de justos contornos. Escritos com pena e tinta de galhofa, e com desprezo da melancolia, temos trechos especialmente instigantes como as seguintes passagens: Orador: confeiteiro de palavras; Arte de papagaios; Vinho novo em barril usado; Flexibilizar a moral, entre outros. Assim, “rindo”, o autor não pretende nos castigar, mas ampliar compreensões diversificadas sobre os costumes e a moral, sempre pelo atalho da análise histórica da retórica.

Sem mais detalhes de um livro rico em detalhes acerca das formas artísticas de expressão gráfica e oratória, fica a sugestão de um desdobramento deste Palavras molhadas e escorregantes que se empenhasse em abordar a retórica nos quadros da ética do mundo contemporâneo, sobretudo aquela posta na imagem mais do que na palavra (escrita ou falada). Enfim, uma interpretação dos meios de comunicação atuais, os quais, avançados tecnologicamente, unificam as pessoas mundo afora, com formas de persuasão voltadas mais aos olhos e ouvidos do que aos textos.

Claudinei Carlos Spirandelli – Universidade Estadual de Londrina Rod. Celso Garcia Cid, PR 445, Km 380 86051-990, Londrina, PR, Brasil 1 Professor adjunto da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected].