A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero | Oyèrónke Oyewùmí

Oyeronke Oyewumi Foto Stine BoePor dentro da Africa
Oyèrónke Oyewùmí | Foto: Stine Boe/Por dentro da África

A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero, fruto da tese de doutorado da socióloga nigeriana Oyèrónkẹ Oyěwùmí, foi lançada originalmente em 1997, nos Estados Unidos, e teve sua primeira edição brasileira publicada no ano de 2021, pela editora Bazar do Tempo.

É logo no prefácio que Oyěwùmí antecipa à leitora aquilo que sua obra não é, a saber, um estudo sobre o que, no pensamento ocidental, se convencionou chamar a questão da mulher. Nos moldes daquilo que vem sendo proposto pelas abordagens do feminismo negro e decolonial, a autora problematiza as teorias feministas hegemônicas que preconizam a ideia de que as categorias de gênero seriam universais, totalizantes e atemporais. Ela argumenta que, no caso dos Oyó-iorubá, sociedade investigada em sua pesquisa, tais categorias não são autóctones, ou seja, não existiam antes do contato com o Ocidente, iniciado através da colonização inglesa na Iorubalândia. Leia Mais

Discurso e (pós)verdade | Luzmara Curcino, Vanice Sargentini e Carlos Piovezani

Vanice Sargentini Foto Matheus MaziniSao Carlos Agora
Vanice Sargentini | Foto: Matheus Mazini/São Carlos Agora

O livro Discurso e pós-verdade, organizado pelos professores Carlos Piovezani (UFSCar), Luzmara Curcino (UFSCar) e Vanice Sargentini (UFSCar), resultou da quinta edição do Colóquio Internacional de Análise do Discurso (CIAD) realizada na Universidade Federal de São Carlos em setembro de 2018, que trouxe à discussão a relação entre a verdade e a ordem do discurso e o seu impacto nas sociedades democráticas. A publicação reúne textos dos palestrantes que participaram do Colóquio e traz pontos de vista oriundos não apenas da Análise do Discurso, mas também da Psicanálise e da História, de maneira que é possível ter uma visão ampla da questão da (pós)verdade dado o caráter interdisciplinar do evento.

No primeiro capítulo, Roger Chartier (EHESS/Paris), em Verdade e prova: retórica, literatura, memória e história, mobiliza diferentes autores ligados a diversos campos do saber para pensar a verdade em tempos de revisionismo histórico e distorção dos fatos. Partindo de Foucault, Ginzburg e Ricoeur, o autor aprofunda a reflexão sobre o conceito de verdade trazendo a herança grega para a discussão sobre autoria e autoridade em suas relações com o sagrado, a retórica e a prova. Assim, ele procura entender a verdade levando em conta as condições históricas de possibilidade nas quais a validade do dizer tinha que ser submetido ao crivo da prova e da autoridade. Leia Mais

El exilio en el contexto latinoamericano: problemas y perspectivas desde el discurso (siglos XIX-XXI)/Secuencia/2022

El exilio ha sido objeto de constante interés en las últimas décadas tanto en el seno de las ciencias sociales como de las humanas,1 y no sólo a modo de fenómeno que ha merecido consideración por sí mismo, sino también como punto de partida de investigaciones fruto de diferentes corrientes de estudio.2 El tema, de hecho, ha suscitado numerosas aproximaciones al pasado, lejano y cercano –incluso a cuestiones de estricta actualidad–, a la vez que a infinidad de espacios en que este se ha manifestado de una u otra forma. De esta manera, se puede acceder a los discursos de sus protagonistas y, por consiguiente, incidir mediante nuevos acercamientos en expresiones ya conocidas o mostrar otras ignoradas hasta la fecha, en las que cabe profundizar. Los discursos, asimismo, pueden proceder de quienes han retratado el exilio sin haberlo tenido que vivir en primera persona. Todo ello queda cifrado, entre otros cauces, en textos de muy distinta condición (correspondencia epistolar, novelas, poemas, autobiografías, documentos administrativos, etc.),3 que permiten recuperar itinerarios más interesantes en un sentido personal o colectivo, pero elocuentes de la realidad histórica.4 Leia Mais

¿Por qué funciona el populismo? El discurso que sabe construir explicaciones convincentes en un mundo en crisis | María Esperanza Casullo

Nunca son suficientes las figuras evocadas para hablar de populismo; ya sea como el fantasma que recorre el mundo, el eterno retorno de una anomalía, una tentación o, incluso, el más peligroso de los virus, un sinnúmero de experiencias política contemporáneas no dejan de ser caracterizadas como populistas. Como es sabido, muchos de estos tópicos han estado siempre a la orden del día, especialmente en Argentina, donde en años recientes la producción académica sobre el tema ha alcanzado un punto álgido de saturación. Es en el más reciente clivaje político argentino, en medio de la caída (electoral) del macrismo y del surgimiento político de Alberto Fernández en 2019, que María Esperanza Casullo cristaliza una particular contribución sobre la cuestión populista. Leia Mais

Entre la política y el discurso: Uruguay turístico (1960-1986) | Rossana Campodónico

El libro de Rossana Campodónico Entre la política y el discurso: Uruguay turístico (1960-1986) es una adaptación de su tesis de Maestría en Desarrollo y Gestión del Turismo defendida en el 2017 en la Universidad Nacional de Quilmes (Argentina). Campodónico es una de las principales especialistas de la historia del turismo en el Uruguay y la aparición de esta obra viene a sumarse a su larga lista de publicaciones sobre la temática. En un campo de estudio que se encuentra en construcción y atravesando un crecimiento acelerado desde los últimos años, este es sin dudas un aporte por demás significativo.

En el libro se estudia la evolución del turismo en Uruguay entre 1960 y 1986 mediante el abordaje de dos aspectos: por un lado, la política turística del país expresada mediante documentos gubernamentales y privados; y por el otro, la promoción publicitaria de atractivos y modalidades turísticas. Leia Mais

O discurso de ódio nas redes sociais – SANTOS (REi)

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Marco Aurélio Moura dos Santos. www.usp.br/gepim/pesquisadores.

SANTOS M A M O discurso de odio nas redes sociaisSANTOS, Marco Aurélio Moura dos. O discurso de ódio nas redes sociais. São Paulo: Lura Editorial, 2016. Resenha de: BRANDÃO, Clyton. Revista Entreideias, Salvador, v. 9, n. 2, p. 6-68, maio/ago 2020.

A datar de sua popularização no Brasil, no meado dos anos 2000, a internet vem contribuindo, substancialmente, nos comportamentos dos sujeitos que compõem a alcunhada sociedade da informação. Esta, têm desencadeado significativas alterações na produção da economia, da cultura e nos modos de interação social. Esse indicativo reflete na vida contemporânea, na qual as mudanças, desde a modernidade até a contemporaneidade, anunciam transformações no comportamento.

O advento das Redes Sociais Digitais possibilitou a transposição de inúmeras formas de interações interpessoais decorrentes da vida offline para vida on-line. Indivíduos reelaboraram constantemente suas formas de se relacionar com o tempo e o espaço, criando novas maneiras de socialização em rede. A interação permitida pelo uso de dispositivos e as potencialidades das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) tem contribuído para repensar as dinâmicas sociais, de modo que, “[…] pensar a tecnologia, nesta era do pós-digital, significa implicá-la nas táticas e estratégias do poder.” (SANTAELLA, 2016, p. 11)
Assim, a criminalidade não é um fenômeno alheio a essas transformações. Como a rede é um espaço de socialização como qualquer outro, mediado por ações de indivíduos que fazem parte dela, a violação dos direitos humanos também ocorre neste espaço, agora com características sofisticadas por meio das tecnologias.

Por oferecer a ilusão do suposto anonimato e por tornar-se um ambiente de rápida veiculação de mensagens com um grande alcance de público, crimes que já eram executados na vida off-line foram transferidos para a vida on-line. Discursos de ódio e discriminatórios relacionados ao gênero, sexualidade, classe social, posicionamento político e religioso, cor e etnia são uma realidade na rede; estes, são caracterizados por “[…] qualquer expressão que desvalorize, menospreze, desqualifique e inferiorize os indivíduos. Trata-se de uma situação de desrespeito social, uma vez que reduz o ser humano à condição de objeto”. (SILVEIRA, 2008, p. 80)

Nessa contextura, temos o livro O discurso de ódio em redes sociais (2016), fruto de uma dissertação de mestrado defendida no Programa de Mestrado em Direito da Sociedade da Informação das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU/SP). Trata-se de uma obra importante para entender o presente cenário da disseminação do ódio na rede online, assim como suas raízes, conceitos e questões jurídicas.

O livro é composto por cinco capítulos, incluindo introdução e conclusão, no qual o autor retrata os conceitos e elementos acerca do tema, os núcleos do discurso de ódio, o direito a diferença e a identidade e o discurso de ódio, e conclui fazendo uma análise no que concerne a legislação brasileira para crimes de ódio on-line.

Na introdução, Santos faz uma análise entre o ciberespaço e o discurso de ódio. Ele prossegue afirmando que as TICs, apesar de não ter utilizado esta denominação, possibilitou inúmeras maneiras de disseminação de informações entre sujeitos de lugares e culturas diferentes, formando, assim, uma “cultura participativa”. (JENKINS, 2009, p. 30) Contudo, mesmo a rede online sendo fomentadora no que tange a projeção de conhecimento dos indivíduos, também é um ambiente

“[…] fértil para a ampliação de aspectos conflituosos de realidade palpável e do relacionamento social, como o ódio e todas suas manifestações”. (SANTOS, 2016, p. 8)
No capítulo um, Santos discute os conceitos e elementos do discurso de ódio nas redes sociais na sociedade da informação. Ele faz um levantamento histórico e do pensamento filosófico para mostrar que “o ódio não é uma questão nova na sociedade”. (SANTOS, 2016, p. 23)

Continua a afirmar que para o entendimento desses discursos presentemente, é fundamental trazer àtona a discussão a respeito da natureza do mal. Para tal, apresenta definições de Freud (século XX), Arendt (1999), Glucksmann (2007) e Brugger (2007), no que tange o ódio e o mal desde a idade média até os dias atuais.

Para fundamentar o ódio, o autor traz André Gluscksmann citado por Santos (2016, p. 20) que declara:

[…] o ódio existe, todos nós já nos deparamos com ele, tanto na escala microscópica dos indivíduos como no cerne de coletividades gigantescas. A paixão por agredir e aniquilar não se deixa iludir pelas magias da palavra. As razões atribuídas ao ódio nada mais são do que circunstâncias favoráveis, simples ocasiões, raramente ausentes, de liberar a vontade de simplesmente destruir.

Através da definição de Gluscksmann, Santos relata que caracterizar o discurso de ódio é uma tarefa difícil, pois este pode aparecer de forma implícita ou explícita; isto é, a intenção do agressor pode aparecer de maneira clara e objetiva ou subliminar.

Ao refletir sobre o mal, mas precisamente sobre a “banalidade do mal” (ARENDT apud SANTOS, 2016); o autor chega a conclusão de que o mal na atualidade se tornaria algo cotidiano, como um ato qualquer, ou seja, algo banal e disponível a todos, “[…] uma vez que o processo tecnológico atual denominado ‘sociedade da informação’, não parece a priori, ser capaz de romper com a in¬tolerância enraizada nas relações humanas, muito pelo contrário, parece apontar para a ‘banalidade do mal’”. (SANTOS, 2016, p. 26)

Ainda no capítulo um, Santos apresenta outros três conceitos: identidade e diferença – através dos estudos de Lévi-Strauss (2010) e Hall (2011); análise do discurso, trazendo as contribuições de Foucault; e redes sociais a partir das definições de Castells (2005) e Recuero (2012).

O conceito de redes sociais aparece sob a ótica de Recuero (apud SANTOS, ano, p. 114) que define como: “[…] agrupamentos humanos, constituídas pelas interações, que constroem os grupos sociais. Nessas ferramentas, essas redes são modificadas, transformadas pela mediação das tecnologias e, principalmente, pela apropriação delas para a comunicação”.

Nesse sentido, entende-se que as redes sociais são interações interpessoais que já existiam antes do surgimento e popularização da internet e, após o advento das TICs, foram reformuladas e modificadas, transformando-se em redes sociais digitais.

No capítulo dois, o autor traz os conceitos de intolerância, preconceito e violência, além de trazer uma abordagem jurídica acerca do discurso de ódio, perpassando pelos estudos em relação a dignidade da pessoa humana.

O conceito de intolerância vem frequentemente associado ao preconceito, tornando-os, assim, “conceitos vizinhos”, que podem ser definidos como atitudes de hostilidade nas relações pessoais, destinada contra um grupo inteiro ou contra indivíduos pertencentes a ele, e que preenche uma função irracional definida dentro da personalidade. Apresenta-se também a concepção de “intolerância selvagem”, de Umberto Eco (apud SANTOS, 2016, p. 131), que é caracterizada com raivosa, descontrolada, inexplicável e impulsiva, ficando nivelada a irracionalidade.

Tratando-se da definição de violência, ele traz o texto da Lei nº 11.340/2006, em seu Art. 7, que define as formas de violência:

A violência física, ou seja, a que ofenda a integridade ou saúde corporal; a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto estima ou que causa prejuízo e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularizarão, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; a violência sexual; a violência patrimonial, e ao final a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. (BRASIL apud SANTOS, 2016, p. 243).

Desse modo, compreende-se que a violência pode ser expressada e sofrida em diversas esferas internas e externas aos sujeitos, podendo ser um produto da natureza, no sentido de que é intrínseca à humanidade; e, para outros, um produto da história, que não é, portanto, natural ao homem.

No capítulo três, Santos aborda a diversidade cultural humana. Para ele, o debate acerca da diferença cultural entre as sociedades que compõem o mundo, a partir das concepções de (STRAUSS apud SANTOS, 2016), demonstra a impossibilidade de avaliar e julgar sociedades com base em instrumentos utilizados em outras sociedades, de forma que somente a própria sociedade poderia refletir sobre si mesma, julgando-se e avaliando-se. Ainda segundo o autor nenhuma cultura possuiria critérios absolutos que permitissem a realização de distinções entre os conhecimentos, crenças, artes, moral, direito, costumes, aptidões ou hábitos dos seres humanos de outras culturas, podendo e devendo fazer tais distinções, contudo, quando se tratasse de suas próprias manifestações culturais.

Nas conclusões, Santos ratifica que os crimes relacionados ao ódio, na esfera off-line e on-line, se transformaram numa questão estatal e sua repreensão reflete a preocupação quanto a influência deste fenômeno na vida social das coletividades.

Assim, não há como considerar os indivíduos como totalmente iguais e situados num espaço tempo fixo, uma vez que o respeito à condição humana aponta para a diversidade da própria condição humana. Ademais, o discurso do ódio se volta contra a diversidade humana, fere a atual Constituição Federal e, sobretudo, esgarçam a segurança na internet.

Referências
JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009.

SANTAELLA, Lucia. Temas e dilemas do pós-digital: a voz da política. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2016. v. 1.

SANTOS, Marco Aurélio Moura dos. O discurso de ódio nas redes sociais. São Paulo: Lura Editorial, 2016.

SILVEIRA, Sérgio Amadeu; PRETTO, Nelson de Luca. (org.). Além das redes de colaboração: internet, diversidade cultural e tecnologias do poder. Salvador: Edufba, 2008.

Clyton Brandão – Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected]

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História da fala pública: uma arqueologia dos poderes do discurso | Jean-Jacques Courtine e CArlos Piovezani

A fala pública foi, no decorrer da história, um lugar privilegiado do exercício da autoridade e influência sobre as mais diversas sociedades. Seguindo a premissa proposta por Michel Foucault – de que o discurso não é tão somente o veículo, mas sim o objeto do desejo, aquilo pelo que se luta2 – os autores Carlos Piovezani, da Universidade Federal de São Carlos, e JeanJacques Courtine, das Universidades de Auckland, da Califórnia e da Sorbonne Nouvelle, organizaram o livro “História da fala pública: uma arqueologia dos poderes do discurso.”

Trata-se de uma obra coletiva com uma proposta ambiciosa que, como indicamos nas páginas abaixo, esbarra em limitações práticas. O livro é dividido em onze capítulos (contando-se a introdução escrita pelos dois organizadores) e três partes que definem os recortes temporais trabalhados. A obra reúne textos de dez autores, sendo três deles professores de universidades brasileiras e os demais atuantes no exterior. O livro opta por uma abordagem interdisciplinar, pelo aporte dos estudos históricos, linguísticos e literários. Leia Mais

Apologie de la polémique – AMOSSY (B-RED)

AMOSSY, R. Apologie de la polémique. Paris: Presses Universitaires de France, 2014. 240 p. [Coleção L’interrogation philosophique]. Resenha de: CARLOS, Josely Teixeira. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.10 n.3 São Paulo Sept./Dec. 2015.

O livro Apologie de la polémique (Apologia da polêmica)1 é a mais recente obra em língua francesa de Ruth Amossy, professora emérita do departamento de francês da Universidade de Tel-Aviv e diretora do Grupo de Pesquisa Analyse du discours, Argumentation & Rhétorique (ADARR)2. Resultado de uma pesquisa global sobre o discurso polêmico na esfera democrática, realizada no quadro da Fundação de Ciências Israelense (ISF), foi publicado em março de 2014 pela editora Presses Universitaires de France, na coleção L’interrogation philosophique, dirigida pelo filósofo Michel Meyer, reconhecido pesquisador na área de Retórica e Argumentação e professor da Université libre de Bruxelles.

Fundamentada em um quadro teórico-metodológico preciso e na análise detalhada de casos concretos, e considerando que a polêmica não é de nenhum modo “uma comunicação desordenada”, Amossy mostra que a polêmica pública enquanto modalidade argumentativa, apesar de ser depreciada, desempenha um papel vital nas democracias pluralistas. O livro está organizado em três partes. Em sua Introdução, com relação à presença da polêmica no mundo contemporâneo, a autora enfatiza que os conflitos de opinião ocupam um lugar preponderante na cena política e que os meios de comunicação não param de forjar e de difundir de forma persistente as mais variadas polêmicas, ditas de interesse público. Uma prova disso é o uso constante do próprio termo “polêmica” na imprensa escrita francesa (Le Monde, Libération, etc.)3. Segundo a pesquisadora, essa presença poderia ser explicada duplamente tanto pela incapacidade dos cidadãos e dos políticos em seguir as regras de um debate racional, quanto pela curiosidade perversa do público no que se refere ao espetáculo da violência verbal. Mais do que constatar esse fato, Amossy defende que é necessário investigar em profundidade a natureza (o funcionamento e as funções sociais) dos debates conflituais nos quais se sustenta contemporaneamente a democracia em uma sociedade pluralista. No bojo dos estudos discursivos, das ciências sociais e das reflexões de Habermas, Perelman, Mouffe, dentre outros, para a professora interessa, portanto, verificar como, no âmbito de um espaço público e democrático, a polêmica se constrói no nível discursivo e argumentativo e modela a comunicação. No que toca ao posicionamento do pesquisador e às questões metodológicas na observação de debates polêmicos, ela chama a atenção para o fato de que o analista jamais pode se tornar também um polemista, exigindo deste o exame das controvérsias (seu surgimento, sua regulação, seus papéis sociais), mas nunca a tomada de partido por uma ou outra causa.

A primeira parte da obra apresenta as reflexões teóricas do trabalho e está dividida em dois capítulos. No primeiro – Gerir o desacordo na democracia: por uma retórica do dissensus, Amossy aborda por um lado a insistente busca pelo consenso e a obsessão pelo acordo, que está na base mesma da Retórica e dos estudos de persuasão, da Retórica clássica de Aristóteles à Nova Retórica de Perelman e Olbrechts-Tyteca, ao mesmo tempo em que descreve na sociedade contemporânea as condenações do dissensus e da polêmica, desde o Tratado da argumentação 4 de Perelman e Olbrechts-Tyteca, abrangendo as teorias da argumentação que o sucederam, como a lógica informal de Douglas Walton e a pragma-dialética da Escola de Amsterdam e de Van Eemeren.

Também nesse capítulo, a autora evoca a obra de Habermas, na qual é construída a noção de um espaço público gerado pelo discurso argumentativo, ou seja, segundo concebe esse autor, a esfera pública basear-se-ia em um modelo de discussão racional na qual os cidadãos alcançariam o acordo através da troca discursiva. A seguir, Amossy discorre sobre outro papel do dissensus (ou da divergência), apresentando um quadro teórico diverso do anterior, no qual existe uma revalorização do dissensus em diferentes domínios, particularmente no da Sociologia e da Ciência Política. Assim, a autora, partindo das reflexões advindas das ciências sociais, feitas por Lewis A. Coser, George Simmel, Chantal Mouffe e Pierre-André Taguieff, coloca a seguinte questão à página 37: “Estas perspectivas sociopolíticas podem ser traduzidas em termos de retórica para autorizar a consideração da polêmica e suas funções construtivas?”. Amossy sustenta que, se em uma democracia pluralista o conflito é inevitável e o acordo utópico, é necessário então o desenvolvimento de uma retórica do dissensus, na qual a confrontação polêmica seja vista como incontornável e útil na gestão dos conflitos.

No capítulo seguinte – O que é a polêmica? Questões de definição, a analista retoma categorias como debate, discussão, disputa, querela, altercação, controvérsia, interessando-se sobretudo por apresentar as especificidades da polêmica. Para tanto, fundamenta-se em três fontes diferentes: as definições lexicográficas dos dicionários, o discurso corrente e as conceitualizações dos pesquisadores em ciências da linguagem. A professora analisa aqui dois exemplos de polêmicas: uma em torno de uma foto “politicamente incorreta”, que exibe um homem de costas utilizando a bandeira da França no lugar do papel higiênico; e a outra acerca do exílio fiscal do ator Gerard Depardieu, após o projeto de reforma dos impostos lançado pelo presidente François Hollande em 2012. A partir da análise, constata que a polêmica é de fato um debate em torno de uma questão atual e de interesse público, que perpassa variados gêneros (panfleto, artigo de opinião etc.) e tipos de discurso (jornalístico, político etc.) e que deve ser distinguida de uma deliberação ordinária.

Na continuação do capítulo, Amossy avalia a polêmica de interesse público como modalidade argumentativa, compreendida em um continuum que passa pela dicotomização (choque de opiniões antagônicas, uma excluindo a outra), polarização (dois antagonistas diametralmente opostos polemizam diante dos espectadores da polêmica, que também devem se posicionar) e desqualificação do adversário (depreciação do ethos dos sujeitos, grupos, ideologias e instituições concorrentes). Na sequência da obra, todos os capítulos permitirão a visualização dessas modalidades em variados gêneros de texto5, investigados em sua materialidade discursiva e configuração argumentativa, bem como o esclarecimento das seguintes questões específicas: como funciona o discurso polêmico; como se constrói uma polêmica pública; qual a atuação da racionalidade nessas polêmicas; como se pode compreender, nelas, o papel e limites da violência.

É por esse prisma que a segunda parte do livro abordará as modalidades da polêmica, materializadas nos meios de comunicação, a partir do exemplo do estatuto das mulheres em dois espaços públicos diferentes: na França e em Israel. Antes de iniciar a análise, a professora evidencia que é necessário distinguir uma polêmica do discurso polêmico e da interação polêmica. “Uma polêmica” se refere ao conjunto das intervenções antagonistas sobre uma dada questão em um momento específico. Já o “discurso polêmico” define a produção discursiva de cada uma das partes antagonistas, nas quais necessariamente se inscreve o discurso do outro, como classifica Kerbrat-Orecchioni. A “interação polêmica”, por outro lado, corresponde à interação, face a face ou não, na qual dois ou mais adversários se engajam em uma discussão oral ou escrita, sempre se reportando um ao outro. Enquanto o discurso polêmicoé constitutivamente dialógico, mas não dialogal, a interação polêmica é por definição dialogal.

Com base, portanto, nessa distinção teórica, Amossy se debruça, no capítulo 3, na análise do discurso e interação polêmicos, entre junho de 2009 e outubro de 2010, no contexto do projeto de lei que pretendia proibir o uso da burca no espaço público francês. A autora exemplifica, assim, o discurso polêmico, analisando um artigo de opinião, assinado por Bénédicte Charles, da revista de esquerda Marianne (de junho de 2009), no qual examina os seguintes aspectos: a estrutura actancial e o jogo das dicotomias, o plano de enunciação e a responsabilidade jornalísticaa polêmica como evento midiático, a polarização na imprensa escrita, a jornalista como polemista. Já a interação polêmica é explorada em dois exemplos: uma interação face a face no debate televisionado entre o político Jean-François Copé e uma mulher com véu; e dois posts de um fórum de discussão eletrônico que respondem ao artigo de Marianne. Qualificando a polêmica como polílogo, para muito além do diálogo, Amossy destaca então que tanto o discurso quanto a interação polêmicos desempenham funções importantes, dentre as quais a da denúncia, a do protesto, a da chamada à ação, bem como a do entretenimento.

No capítulo 4, a autora exemplifica a polêmica pública em torno da fórmula “a exclusão das mulheres” em Israel, analisando o caso da jovem Tanya Rozenblit, que em dezembro de 2011, ao subir em um ônibus da linha Ashdod-Jerusalém, sentou-se na parte da frente do transporte público, quando a prática consuetudinária estabelecia que as mulheres devem sentar-se na parte de trás, para que os homens não possam olhá-la. O episódio ganhou, a partir daí, grande repercussão pública, fortemente alimentada pela imprensa (meios de comunicação pró ultra-ortodoxos e contra os ultra-ortodoxos), convertendo-se em um debate de ordem ideológica e identitária.

Amossy afirma que essa polêmica, protagonizada por discursos laicos, de um lado, e por discursos religiosos tanto moderados quanto ultra-ortodoxos, de outro, além de transformar a jovem Rozenblit em um símbolo da resistência contra o fanatismo religioso, mostra que mesmo que as posições antagônicas não se falem diretamente, não se entendam e não cheguem a um acordo com relação às noções de espaço público, do respeito ao direito das mulheres, do lugar da religião no Estado e da liberdade individual em uma democracia, de uma certa forma elas se comunicam, na medida em que tratam dos mesmos referentes e concordam sobre o fato de que é preciso discutir. Por essa perspectiva aparentemente contraditória, é justamente a polêmica pública, enquanto interação agônica, que permite a coexistência no dissensus, através de suas funções sociais que reúnem indivíduos de opinião radicalmente opostas.

Na terceira e última parte da obra, igualmente dividida em dois capítulos, Amossy analisa o lugar da razão, da paixão e da violência nos debates polêmicos. No capítulo 5 – Racionalidade e/ou paixão, questionando se o pathos é um traço distintivo da e indispensável à polêmica, a pesquisadora se volta para a observação do debate polêmico ocorrido na França, em pleno momento de eclosão da crise financeira de 2008, acerca das formas de remuneração bonus e stock-options, distribuídos pelo Estado aos dirigentes dos bancos e das grandes empresas que declarassem estar em situação precária. Ao longo da análise, ela elucida que os debates polêmicos não se manifestam necessariamente por marcas discursivas de emoção e de paixão, esta última compreendida, no sentido retórico, como tentativa de suscitar afetos no auditório e como sentimento expresso com veemência por um locutor extremamente implicado em seu propósito. No entanto, no que concerne à presença da paixão na polêmica, a autora julga que dois fatos são inegáveis: a paixão não produz a polêmica, mas ela exacerba as dicotomias, a polarização e o descrédito ao outroa paixão e a razão aparecem como dois componentes que só podem ser entendidos em uma imbricação e nunca dissociados. É com esse olhar que Amossy propõe a seguir a consideração de uma racionalidade da paixão e das razões das emoções. Por esse viés, no que concerne à referência ao outro, paixão e razão se manifestariam através de três modalidades do discurso polêmico: a acusação (emoções fortes centradas na indignação e na cólera, com o uso de argumentos que revelam indiretamente as razões da emoção), a injunção (emoções fortes de maneira menos marcada, apresentando argumentos que as justificam) e a instigação(denúncia velada que recorre a argumentos racionais e mostra o pathosde modo superficial).

No capítulo 6 – A violência verbal: funções e limites, a pesquisadora investiga o papel da violência na polêmica, lançando luz para o fato de que esta é fundada pelo conflito, e não pela agressividade verbal. Baseada na análise de conversas digitais, mais particularmente do fórum de discussões na internet do jornal Libération sobre os bonus e stock-options distribuídos em período de crise, Amossy assegura que a violência verbal não é nem uma condição suficiente, nem necessária para a polêmica, configurando-se mais como um acessório do que como um traço definidor dos embates públicos. Por essa ótica, a violência verbal pode ser compreendida como um registro discursivo, e não como uma modalidade argumentativa. Como o pathos, ela igualmente amplifica a dicotomização, a polarização e o descrédito. Dentro desse quadro, a professora demonstra que a violência verbal não é de nenhum modo selvagem ou descontrolada, mas, pelo contrário, é regulada a partir de certas funções e limites, agindo diferentemente a depender do gênero do discurso na qual se manifesta (um debate na TV, uma carta aberta, uma discussão política entre amigos).

Na conclusão do livro – A coexistência no dissensus. As funções da polêmica pública, Amossy consolida e expande pontos centrais tratados no decorrer das análises, dentre os quais o fato de a polêmica pública não poder ser medida em termos de diálogo e o papel da mídia na construção da polêmica. A autora resume que a polêmica desempenha funções sociais e discursivas relevantes exatamente por aquilo em que nela é reprovado: a gestão verbal do conflito operada através do desconsentimento. Apesar de esta afirmação parecer paradoxal, a analista reforça que fazer uma apologia da polêmica ou defender a coexistência no dissensus é permitir a preservação do pluralismo e da diversidade no espaço social, na medida em que a polêmica pública ou a coexistência entre posições e interesses divergentes procura um meio de lutar por uma causa e de protestar contra as intolerâncias, de efetuar reagrupamentos identitários que provoquem interações mais ou menos diretas com os adversários, de gerar os desacordos, mesmo os profundos. Assim, a polêmica nos debates públicos é entendida como fundamento indispensável da vida democrática e contemporânea.

Importa notar que a publicação do livro Apologie de la polémique surge em um momento sensível da história da França, tendo antecipado um quadro de reflexões logo a seguir visíveis, em janeiro de 2015, no contexto do atentado terrorista ao jornal Charlie Hebdo, no qual a violência física e o ato desleal de um “antagonista” pulveriza a possibilidade de construção de um espaço democrático, produzido e mantido pela divergência de posicionamentos. Se a obra de Amossy evoca uma apologia da polêmica, não posso deixar de ressaltar que a polêmica tratada pela pesquisadora se constitui em uma guerra de plumas, em uma guerra verbal 6, pois, quando a divergência de posições e a discussão verbal dão lugar à agressão física, podem ser comprovados aí os verdadeiros riscos da atividade polêmica, como chama a atenção Mesnard7. Amossy admite, similarmente, que a violência verbal sob suas diferentes formas possa combater o outro simbolicamente, mas salienta que ela jamais pode servir de passarela a uma ação que inscreva a violência no corpo.

Em um mundo digital ao alcance das mãos, no qual a expressão e difusão de posicionamentos discursivos é tão intensa quanto imensa, Apologie de la polémique se configura como obra de referência não apenas para os estudiosos da linguagem verbal, da argumentação e da análise do discurso polêmico, mas para todos aqueles que defendem a necessidade de se cultivar diuturnamente o respeito ao outro, a liberdade de pensamento e de expressão, a tolerância e a convivência pacífica com as diferenças.

1A tradução para o português dos textos em língua francesa são de minha responsabilidade.

2Obras de sua autoria: L’argumentation dans le discours. Paris: Nathan, 2000; Paris: Armand Colin, 2012 [A argumentação no discurso]; La présentation de soi: Ethos et identité verbale. Paris: PUF, 2010; em português: Imagens de si no discurso: a construção do ethos. Trad. D. F. da Cruz et al. São Paulo: Contexto, 2005. Amossy também é editora-chefe da revista on-line Argumentation et analyse du discours.

3Comprovando que o discurso polêmico está presente em variadas esferas discursivas, analiso em minha tese de doutorado a atuação da polêmica no campo das Artes, mais especificamente no da música brasileira do século XX (CARLOS, J. T. Fosse um Chico, um Gil, um Caetano: uma análise retórico-discursiva das relações polêmicas na construção da identidade do cancionista Belchior686 p. Tese de Doutorado – área de concentração Análise do Discurso – Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014).

4PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. O. Tratado da argumentação. A nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Original: Traité de l’argumentation. La nouvelle rhétorique. 6. ed. Bruxelles: Université libre de Bruxelles, 2008. (1. ed. 1958).

5Amossy afirma que as particularidades de cada um desses textos manifestam traços gerais, esclarecedores da natureza e das funções do fenômeno global discurso polêmico.

6Confrontar o texto de Kerbrat-Orecchioni La polémique et ses définitions. In: KERBRAT-ORECCHIONI, C.; GELAS, N. (Orgs.). Le discours polémique. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1980. p.03-40.

7Para o autor, “ofensiva ou defensiva, a polêmica implica riscos, quando a paixão aumenta, chegando ao confronto armado, ou até mesmo ao mínimo ataque físico”. In: COLLECTIF. Cahiers V. L. Saulnier 2. Traditions polémiques, n° 27, Université Paris-Sorbonne, 1985. p.127-129. [Collection de L’École Normale Supérieure de Jeunes Filles].

Josely Teixeira Carlos – Université Paris Ouest Nanterre La Défense – Paris Ouest, Nanterre, Hauts-de-Seine, France; [email protected].

Palavras molhadas e escorregantes: origens clássicas e tradição moderna da retórica política – LOPES (HU)

LOPES, M. A. Palavras molhadas e escorregantes: origens clássicas e tradição moderna da retórica política. Londrina: Eduel, 2015. 132 p. Resenha de: SPIRANDELLI, Claudinei Carlos. Origens clássicas e tradição moderna da retórica política. História Unisinos 19(3):377-380, Setembro/Dezembro 2015.

Lendo Palavras molhadas e escorregantes, percebemos a retórica como uma espécie de narrativa em seu estado de arte. Eis uma máxima que somos instados a desenvolver com a leitura do livro. Inicialmente, a obra merece duas leituras: a primeira, leve e descompromissada, com o intuito de ir “bebendo” as palavras (posto que estas vêm “molhadas”), tendo o cuidado para que não escorreguemos em suas sinuosidades. Ler com liberdade e emoção, portanto, é esse primeiro nível de leitura.

Em um plano complementar aderente ao anterior vem o deleite da razão: a leitura saboreada com as lentes da reflexão atenta. Modestamente até, Lopes se arvora no papel de expor uma análise das transformações nas concepções da arte retórica fundeada em perspectiva histórica. Injustiça: o livro se mostra a “pedra de afiar de Isócrates”, o grande mestre da eloquência, que, desprovido de voz possante, tornava os discípulos magistrais discursadores. O pequeno livro, nesse formato, já é uma dessas pedras.

A obra é uma condensação das reflexões do autor sobre os períodos de auge da retórica (a Antiguidade clássica greco-romana e a Época Moderna, sobretudo ao longo do Renascimento), e trata também dos elos entre esses momentos de esplendor das técnicas persuasivas, para a ruína e/ou a realização do bem público.

O autor mostra os altos e baixos e as formas “mais éticas” de como os tratadistas e os homens públicos fizeram uso da retórica. Em linhas gerais, Lopes elabora um apanhado de diversas, bem escritas e enxutas formas de explicar o termo retórica. E formas essas realizadas por experts, ao longo dos séculos – porque fazer isto não é, conforme mostra o autor, tarefa de fácil realização.

Quanto à estrutura, o livro está arranjado pelas seguintes unidades temáticas: um prefácio curto, mas que esclarece, na medida de uma apresentação de tal natureza, o que é o objeto do livro e o seu grau de inserção nos estudos acerca da história da arte do bem dizer. Uma apresentação enxuta e explicativa de qual espírito dominou a concepção da obra, bem como uma profissão de fé na utilidade do texto frente aos interesses do público leitor; e mais três capítulos que constituem o cerne da obra e que desenvolvem e ilustram um número considerável de cenas históricas acerca dos usos e efeitos da arte retórica, em diferentes tempos e situações.

O primeiro capítulo, intitulado “Retórica antiga e moderna”, é dividido em cinco intertítulos: “Arte de sutilezas inesperadas”; “Orador: confeiteiro de palavras”; “Discurso prático, discurso gráfico”; “Alteração de fisionomia” e, finalmente, “Coruja de óculos ou ciência pós-moderna”. Em proporções de síntese, essas unidades expõem as origens históricas da retórica com os gregos, até as formas com que ela se expressa em nosso próprio tempo. Aliás, para essas formas, poderíamos propor, a partir de Lopes, que a retórica diz respeito à arte da sedução, de se fazer convencer por palavras (escritas ou faladas) acompanhadas de gestos que também cumprem um papel respeitável no jogo da eloquência e, portanto, das persuasões convincentes.

Em determinada passagem, o autor expõe uma noção de retórica em Aristóteles: segundo o Estagirita, na vida em sociedade, emitir sons nada significa, pois o preciso seria o saber falar e, de preferência, sabendo o que dizer (Lopes, 2015, p. 24). Quis ele dizer que o domínio da linguagem estabeleceu e desenvolveu processos de comunicação, modeladores, em diversos modos, da vida social. Nesses processos, a retórica, segundo Lopes, formara capítulo à parte, e sua arte (do grego “techné”, técnica) tornou-se fundamental. Arte essa cheia de sutilezas, a qual gregos e romanos levaram a termo de modo especialmente elevado e, em alguns casos, beirando a perfeição, com Sólon, Péricles, Demóstenes, Isócrates, Cícero, Sêneca, entre tantos outros artistas do verbo.

Um aspecto que impressiona positivamente no texto é o bom equilíbrio entre o material de apoio encontrado pelo autor (textos diversificados de vária autoria), com fartas referências diretas e indiretas dos mesmos, e os usos que se fazem deste vasto aparato documental. Com efeito, o autor parece se equilibrar com algum conforto entre as agudas reflexões dos clássicos e os seus próprios argumentos, no que procura extrair as nuanças que considera de sua própria alçada no trato com engenhos lubrificados e de complexo manejo. De fato, Lopes debruça-se sobre a técnica que manipula os termos e os torna objetos ensaboados, a arte oratória, no que revela os expedientes dos que a elevaram a alturas invulgares, como Demóstenes e Cícero. Numa síntese desse primeiro capítulo, que cumpre função didática aos leitores iniciantes no tema, o autor demonstra como a palavra calculada e cuidadosamente calibrada por oradores emerge de circunstâncias eminentemente práticas da vida social e da experiência política, sobretudo em períodos de agudas crises: E não custa lembrar que o mais célebre discurso de Péricles decorreu de uma guerra, a do Peloponeso, do mesmo modo que a peça mais conhecida de Demóstenes relaciona-se com as investidas das forças militares de Felipe de Macedônia (Lopes, 2015, p. 34).

Assim, a arte da retórica pode ser posta na afirmação de que é frequentemente uma tensão entre visões de mundo conflitantes ou mesmo uma guerra aberta, mas na forma de palavras, e palavras ajustadas estrategicamente, com força avassaladora para conquistar, desfazer ou destruir inimigos.

O segundo capítulo, cujo título reúne elementos sob a rubrica geral de “Merecimentos e vilanias do nobre engenho”, abriga um leque generoso de sete aspectos justamente reveladores das sutilezas do discurso retórico, a saber: “Louvor de obscuridade”; “Arte de papagaios”; “Bigorna moral”; “Gracejos, trovas e névoas”; “Retórica das virtudes”; “O ouro falso dos oradores” e, por fim, “Retórica do prazer”. Nesse capítulo, o autor mostra as regras de utilização de discursos retóricos modernos (sobretudo as inventivas concepções renascentistas, que ampliaram em muitos graus as noções vindas do mundo antigo), enfatizando as formas da eloquência do período moderno. Neste capítulo, Lopes parece (apenas parece!) expor a vocação incontornável da arte retórica para maledicências, bem como sua especial capacidade de fomentar intrigas. No presente capítulo, o autor ocupa-se em descrever os que se utilizam da ironia e do riso na retórica, e as formas malévolas de como a mesma pode ser utilizada, seja por líderes políticos ou religiosos inescrupulosos; seja por aqueles que nada têm a dizer, mas desejam parecer consistentes; e pelos que querem persuadir astuta ou inteligentemente aos outros com uma mentira (eis o caráter amoral da retórica).

Mas todos fugindo da clássica forma de expor apenas a verdade enxuta num discurso, algo comum entre os clássicos da Antiguidade. E, para exibir toda essa variação de desconcertantes contrastes, Lopes procurou ser bastante seletivo ao escalar aquilo que se pode descrever como os espécimes mais raros na bem povoada fauna de escritores ocidentais modernos e contemporâneos, desde pensadores que ironizam ou valorizam os usos e abusos da retórica.

E por falar em fauna, integram o presente campo figuras do calibre de Pascal, Fénelon, Locke, Schopenhauer, Nietzsche, etc., bem como historiadores relevantes da área. Ainda no segundo capítulo, Lopes retoma um argumento do orador ateniense Demóstenes, para quem a retórica (por ele concebida como a “perícia no dizer”) deve conter essas coisas – ou seja, se é utilizada para o bem ou para o mal é outra história. O importante é que a retórica seja competentemente praticada, o que significa ser necessário elevá-la à condição de arte. Eis o que parece ser a lição de Lopes. O capítulo, ao fim e ao cabo, demonstra-nos o quanto a retórica pode ser uma arma letal, e mais ainda quando manejada com convincente destreza para perseguir interesses contrários à realização do bem comum. Aliás, em terra brasilis, o reino multicolorido de nossos oradores políticos há muito tem se revelado suficientemente persuasivo nas técnicas de aromatizar a ruína de seu próprio eleitorado, fazendo crer que a marcha rumo ao precipício não é apenas uma jornada cativante aos que, cordeiramente, confiam nas promessas eternas renovadas nos palanques sazonais, mas a própria porteira escancarada a um futuro salvador. Justamente por esse ângulo, percebe-se o risco que mora no discurso retórico.

O terceiro e último capítulo, sob a curiosa rubrica de “Sobre a arte de assaltar os sentidos”, desenvolve unidades voltadas para a exploração das formas de realismo político (o maquiavelismo e as perspicácias de seu gênero), bem como os contradiscursos aplicados como a necessária resistência ética às redescrições morais, seja as propostas concebidas pela criativa verve de Maquiavel, seja pelo não menor senso de agudeza de uma série de maquiavelistas avant la lettre. Tais intertítulos foram assim chamados: “Vinho novo em barril usado”; “Novo catálogo de valores”; “A eloquência como arma de fogo”; “Manipulações da linguagem” e, por fim, “Flexibilizar a moral”. No presente capítulo, o autor pretende dar conta de analisar as estratégias do realismo político, no que tange aos modos como este gênero de literatura política faz uso dos métodos e técnicas da retórica. Em certo sentido, Lopes dá continuidade ao capítulo anterior, ao mostrar a grande atualidade dessas características de utilização da retórica na política. E o autor não economiza: explora a atualidade do pensamento de Maquiavel, principalmente naquelas passagens mais originais de O príncipe, para confrontações, comparações e aprofundamentos, mostrando-os como prenhes de elementos da retórica, da persuasão do discurso redescritivo das morais consolidadas pela tradição clerical, e das distâncias e proximidades estabelecidas por Maquiavel entre a virtude e o cinismo que a referida obra abarca.

Aliás, Lopes faz uso não apenas de Maquiavel, mas também de Hobbes, entre outros escritores políticos antigos e modernos, todos mestres naquilo que, segundo o autor, melhor se convencionou tratar-se a retórica, que é ser instrumentalizada para a política, mormente para conquistar e manter distintas maneiras de dominação.

Mantendo ainda o foco sobre o mestre florentino, Lopes mostra a proposição deste, segundo a qual a retórica deve ser o árido terreno onde o mais importante é a ética do equilíbrio na realidade amarga, bem antes que a ética de idealizações distantes do mundo real. Coisas do perspicaz observador da realidade sem rodeios que foi Maquiavel.

As coisas ditas em tais termos, somos tentados a pensar em utilidades práticas para o livro de Lopes, como as de fazer leigos ou não no assunto poderem melhor expressar e polir palavras que pretendam utilizar. Mas, para além de tentar um ponto central ou consenso mínimo (tarefa a que a obra não se propõe), o autor mostra-se interessado nas correlações que a retórica possui com a ética; e que aquilo que ela busca pela persuasão (uma de suas principais finalidades) não escape do raio da verdade e acabe se avizinhando ao cinismo e à mentira. Isso relaciona a retórica com a ética (e a política) neste mundo contemporâneo.

Por outro lado, a obra leva o leitor a entender que a arte da retórica (e elementos a ela relacionados, como eloquência, oratória, persuasão, ética, moral, verdade, beleza, racionalidade, sedução, etc.), indo das pequenas sociedades gregas clássicas às grandes sociedades modernas e ao complexo mundo contemporâneo, pode ter passado da singeleza socrático-platônica da busca da verdade sincera para o abarcar das profundezas humanas da perfídia, do cinismo e da simulação.

Palavras molhadas e escorregantes contém ainda uma importante ressalva final. Nela, o autor explicita serem os textos que resultaram no presente livro material de reuso, uma vez que a obra foi composta de escritos já divulgados em periódicos e agora aperfeiçoados, alinhados e colados em um trabalho de apoio escolar. Antes dispersos, os textos agora formam corpo com sentido ampliado, entende ele. A junção articulada dos textos acabou por representar uma unidade orgânica, digamos assim, e de fato constitui um conjunto harmônico de textos que dialogam internamente, para além de uma simples juntada de trabalhos dispersos. Coisas de um atento observador da realidade sem rodeios de nosso mundo selvagemente produtivista? Ou interesse legítimo em ampliar um tema de interesse para os estudantes? A verificar com o próprio autor…

Last, but not least, é digno de nota o esforço com que o autor batiza capítulos e numerosos intertítulos, fazendo coro e mimetizando uma série considerável de pensadores – no caso, os escritores mais saborosamente viperinos e de língua afiada que a cultura política do Ocidente pôde produzir. Com os cuidados de um cavalheiro do período vitoriano, os títulos quase falam por si, dando corpo e espírito à obra, em uma síntese detentora de justos contornos. Escritos com pena e tinta de galhofa, e com desprezo da melancolia, temos trechos especialmente instigantes como as seguintes passagens: Orador: confeiteiro de palavras; Arte de papagaios; Vinho novo em barril usado; Flexibilizar a moral, entre outros. Assim, “rindo”, o autor não pretende nos castigar, mas ampliar compreensões diversificadas sobre os costumes e a moral, sempre pelo atalho da análise histórica da retórica.

Sem mais detalhes de um livro rico em detalhes acerca das formas artísticas de expressão gráfica e oratória, fica a sugestão de um desdobramento deste Palavras molhadas e escorregantes que se empenhasse em abordar a retórica nos quadros da ética do mundo contemporâneo, sobretudo aquela posta na imagem mais do que na palavra (escrita ou falada). Enfim, uma interpretação dos meios de comunicação atuais, os quais, avançados tecnologicamente, unificam as pessoas mundo afora, com formas de persuasão voltadas mais aos olhos e ouvidos do que aos textos.

Claudinei Carlos Spirandelli – Universidade Estadual de Londrina Rod. Celso Garcia Cid, PR 445, Km 380 86051-990, Londrina, PR, Brasil 1 Professor adjunto da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected].

El Gran Terror. Miedo, emoción y discurso – TIMMERMANN (RHYG)

TIMMERMANN, Freddy. El Gran Terror. Miedo, emoción y discurso. Chile, 1973-1980. Santiago de Chile: Ediciones Copygraph, 2014. 338p. Resenha de: CONTRERAS ROJAS, Paula. Revista de Historia y Geografía, Santiago, n.33, p.201-205, 2015.

La obra de Freddy Timmermann presenta un análisis minucioso de una de las emociones características del ser humano que, dependiendo de cómo ésta se presente, puede llegar a invadir los diferentes ámbitos de nuestra vida modificando desde nuestras prácticas sociales hasta el modo en que la sociedad se estructura. Esta emoción, que oscila entre la parálisis y la acción, es el miedo. Timmermann nos muestra un recorrido del miedo colectivo que chilenos y chilenas sintieron en los años previos a la dictadura militar y durante los primeros años de ésta (1973-1980), centrándose en la élite cívico-militar y en la producción e instrumentalización que este grupo realizó de las in­seguridades latentes en el contexto histórico mencionado. Dicho recorrido está sustentado a partir de los discursos oficiales del régimen, mostrando cómo se puede transitar de miedos que son parte de la cotidianidad social a un gran miedo, el que puede transformarse finalmente en un gran terror.1 El autor desarrolla su obra en siete apartados que, articulados entre sí, entregan coherencia al objetivo o recorrido del libro. El primer apartado está dedicado a una contextualización más bien teórica del concepto de miedo, asociado, como bien señala el autor, “a una experiencia que genera un efec­to emocional variable debido a la interpretación de una vivencia, objeto o información como potencialmente peligrosa, cuando su control o anulación es incierta” (p. 38). Para Timmermann, el miedo vinculado a la experiencia traumática dictatorial sufrió una naturalización, pues éste se transformó en una emoción constante y cotidiana producida sistemáticamente desde el Estado. Ello convirtió el miedo en terror. Pero el miedo no se analiza como una emoción aislada, porque también se pone énfasis en la importancia del dolor, la utilización de violencia simbólica, la relación del miedo con la memoria en la construcción de miedos derivativos (miedos en relación a experiencias pasadas vinculadas a una amenaza directa), en la instauración de una ideología del sinsentido (en relación a la desensibilización y la impo­sibilidad de abordar lo traumático) y las posibles salidas al miedo (ya sea por el pensamiento mágico o la tecnología). Leia Mais

A construção da identidade nacional nas crônicas da Revista do Brasil – CAMPOS (B-RED)

CAMPOS, Maria Inês Batista. A construção da identidade nacional nas crônicas da Revista do Brasil. São Paulo: Olho d’Água/FAPESP, 2010, 274 p. Resenha de: TREVISAN, Ana Lúcia. A construção da identidade nacional nas crônicas da Revista do Brasil. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso v.7 n.1 São Paulo Jan./June 2012.

A obra de Maria Inês Batista Campos, A construção da identidade nacional nas crônicas da Revista do Brasil, propõe um estudo crítico da formulação discursiva implícita às crônicas veiculadas na Revista do Brasil no período de 1922 a 1925. A pesquisa é fruto da tese de doutorado defendida pela autora na PUC-SP e, transformada em livro, consolida-se em um texto de leitura prazerosa e envolvente, que instiga a reflexão sobre a efervescência das vozes representativas da cultura nacional no início do século XX. Além disso, constrói uma sólida análise de um gênero híbrido e inesgotável: a crônica.

Utilizando como diretriz analítica os estudos do discurso conceituados por M. Bakhtin e seu Círculo, a autora tece um panorama esclarecedor sobre o contexto cultural e histórico da Revista do Brasil. Acompanhando a trajetória editorial da revista, que foi dirigida por Monteiro Lobato de 1918 a 1925, e por Afrânio Peixoto, Paulo Prado e Sérgio Milliet em outros períodos, é possível identificar os caminhos e descaminhos trilhados por escritores e intelectuais que traduziram as muitas faces das identidades nacionais. O estudo dos meandros do tempo e do espaço discursivo anuncia de maneira gradativa a amplitude reflexiva que será posteriormente desenvolvida na análise das 17 crônicas – selecionadas como parte constitutiva do cenário plurívoco da cultura brasileira. Cabe destacar que a forma encontrada para apresentar o corpus, assim como os critérios da seleção cuidadosa, remete à construção dos sentidos dialógicos do discurso, pois, no contexto do mundo da linguagem, vão sendo desvendados os sujeitos históricos por meio de suas citações, marcas de erudição, alusões e ironias, enfim, pela palavra que comunga com as muitas experiências individuais, compondo um quadro discursivo plural da identidade, inserido em um período histórico instigante.

As opiniões políticas e engajamentos culturais dos principais editores da Revista do Brasil são também discutidos no que se refere ao conceito de nacionalismo, que é explorado como diretriz da Revista do Brasil e entendido na sua abrangência significativa, marcada pelos aspectos sociológicos, antropológicos, linguísticos e literários. O projeto nacionalista, personificado na complexidade ideológica dos editores da Revista do Brasil, ganha uma dimensão aprofundada a partir do conceito de dialogismo, uma vez que as muitas vozes referidas e exauridas no interior das crônicas mantêm uma relação ora harmoniosa, ora conflitante com a voz que se distingue como égide dos projetos editoriais incorporados na revista. A análise das crônicas em consonância com a percepção dos muitos nacionalismos brasileiros confere amplitude à obra de Maria Inês Batista Campos. Os leitores encontram a riqueza de um trabalho que entende e demonstra a multiplicidade de tempos, espaços, humores e deslizes de sujeitos distanciados cronologicamente, mas que se tornam vivos em suas posições ideológicas, justamente pela sutileza reveladora da análise discursiva dos muitos interditos.

A comunhão entre as crônicas que compõem o corpus do estudo e o aparato teórico que o sustenta faz dessa obra uma referência valiosa para os estudiosos da cultura brasileira e das relações entre a História e as suas formas de manifestação discursiva. A crônica, entendida como um gênero ambivalente, potencialmente híbrido e plurissignificativo, é apresentada como espaço discursivo privilegiado, propício para o exercício analítico que possui a ideia do cronotopo como força centrípeta.

A obra constrói uma análise a partir da leitura do discurso veemente e perspicaz dos cronistas, que revelaram em seus textos recortes do debate sobre a identidade nacional. Na leitura contemporânea do passado, realizada pela autora, o tempo das crônicas estudadas se revitaliza, pois ressurge em diálogo com o olhar do século XXI. Nesse sentido, temas como identidade, nacionalismo, cultura letrada, universalismo são presente e passado, são motivos e consequências, são origem e também arcaísmos. Paulatinamente, o discurso acadêmico da autora também incorpora alguns dos sentidos mais intrínsecos a uma boa crônica de cultura ou crônica de arte. Afinal, como mergulhar em um gênero e não se contaminar de seus contornos e acentos? Os leitores ganham com essa inserção em terreno híbrido, realizam um mergulho nos diferentes tempos atualizados pelas análises e seguem as trilhas de um Cronos moderno que permite a intersecção das pertinentes luzes teóricas com as tonalidades difusas de uma época inclinada a coroar grandes verdades.

No debate sobre a identidade feito nas crônicas da Revista do Brasil, seja nas discussões sobre a cultura ou sobre o nacionalismo, nada melhor que o estudo do discurso para desestabilizar verdades e reler os diálogos implícitos além dos travessões ou das aspas que abrem as citações em língua estrangeira. A obra percorre o tortuoso debate cultural do começo do século XX pelas tangentes, pelas entrelinhas, revivendo as vozes que se ocultam nos parênteses e nas referências indiretas. O estudo do discurso contempla as muitas imagens que marcam o “tempo” da crônica e que são uma porta de entrada para avaliar a ambivalência do passado, surgido nas descrições aparentemente despretensiosas das cidades, das exposições de arte, das notícias e impressões sobre países estrangeiros. A reflexão disseminada nas crônicas está ancorada no intervalo de quase um século, o cotidiano está datado, porém, quando a análise explora a interrelação cultural, o diálogo com o presente é profícuo. Ao perceber a dinâmica das vozes nacionais e estrangeiras que permeiam os textos, entende-se que existe um elo permanente no debate sobre a formação da identidade brasileira. Trata-se do diálogo entre o particular e o universal, tema candente no começo do século que pode ser revisitado nos debates da atualidade, ainda que reapareça com novas roupagens ou, até mesmo, seja silenciado.

Na leitura da cultura brasileira, a autora utiliza o olhar estrangeiro para dividir e somar impressões sobre o nacional. Assim, ao analisar as crônicas escritas por João Ribeiro, Sergio Milliet e Rodrigo Andrade, destaca o diálogo com a cultura francesa. Por outro lado, a presença brasileira se concretiza na esfera dos cronistas Martim Francisco, Gastão Cruls, Câmara Cascudo, Frederico Villar e Orlando Machado. Nessa subdivisão dos olhares em contraponto, há um lugar especial reservado ao estudo das crônicas de Mario de Andrade, que remete a um anexo com seis crônicas do escritor paulista. No capítulo que realiza a detalhada análise do corpus, os leitores experimentam o contato direto com as particularidades e minúcias dos textos; ao ler as crônicas pelo olhar crítico da autora, podem desvendar os sentidos das paródias, das imitações, da mistura de gêneros utilizados pelos cronistas e conseguem, assim, perceber como a memória nacional se constrói pelos ecos das palavras. A memória resgatada pela palavra aprofunda a ideia de que, no ato de transitar pelos sentidos da linguagem, recupera-se a possibilidade de entendimento do genuinamente humano.

O panorama estético da época, o perfil intelectual dos cronistas, os muitos projetos de nacionalismo, enfim, o mergulho no caudal das informações que podem ser apreensíveis por meio da análise do discurso, compõem os temas dos capítulos articulados de forma harmônica, que fazem do estudo crítico de Maria Inês Batista Campos uma bela oportunidade de ingresso na ordem da história e da cultura brasileira por meio de um texto envolvente e lúcido.

Ana Lúcia Trevisan – Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie – UPM, São Paulo, São Paulo, Brasil; [email protected].

Cómo hablar de los libros que no se han leído | Pierre Bayard

Pierre Bayard, profesor de Literatura francesa en la Universidad de París VIII y psicoanalista, nos entrega un particular ensayo bajo el título Cómo hablar de los libros que no se han leído, el cual puede sacar más de alguna mirada de extrañeza. El título – ciertamente, muy sugerente -resulta ser solo un estímulo hacia la lectura de una reflexión acerca de la percepción que tenemos socioculturalmente de la lectura y de todas las premisas y tabúes que nos asedian al momento de referirnos a tal o cual libro. Es precisamente ahí donde ahonda Bayard: en la relación que establecemos como individuos frente a los libros y cómo socialmente aceptamos tales relaciones.

El autor divide pequeños ensayos en tres grupos que confluyen linealmente en un gran ensayo que es la obra en cuestión: “Maneras de no leer”, “Situaciones de discurso” y “Conductas que conviene adoptar”. En el primer grupo, encontramos una tipología de lo que denomina “no-lectura”, en donde de clasifica gradualmente el nivel de conocimiento que tiene una persona con respecto a una obra en particular; así encontramos “los libros que no se conocen”, “los libros que se han ojeado”, “los libros de los que se ha oído hablar” y “los libros que se han olvidado”. En el segundo grupo, se presentan las situaciones en las cuales nos podemos ver obligados a hablar de libros que no hemos leído o, mejor dicho, de los que hemos hecho una no-lectura: “en la vida mundana”, “frente a un profesor”, “ante el escritor” y “con el ser amado”. Finalmente, en el tercer grupo engloba, a modo de consejo, la actitud que debemos adoptar frente a la inevitable situación de tener que referirse a un texto no-leído: “no tener vergüenza”, “imponer nuestras ideas”, “inventar los libros” y “hablar sobre uno mismo”. Leia Mais

Discursos, tecnologias, educação – BARRETO (ES)

BARRETO, Raquel Goulart. Discursos, tecnologias, educação. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2009. 186p. Resenha de: SCHAPPER, Ilka. Por entre discursos, tecnologias e educação. Educação & Sociedade, Campinas, v.31 no.110 jan./mar. 2010.

No livro intitulado discursos, tecnologias e educação, Raquel Goulart Barreto, logo na primeira linha da Apresentação, demarca o território em que a obra transita: “é um livro teórico-metodológico”. Este binômio já prepara o leitor para um texto circunscrito na fronteira do trabalho de pesquisa. Seus diálogos, nos dez capítulos, são tecidos a partir de cursos, percursos e discursos inscritos no grupo de pesquisa “Educação e Comunicação”, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Tendo como eixo a educação, a obra trata da análise crítica dos discursos (ACD) sobre as apropriações das tecnologias da informação e da comunicação (TIC).

O discurso pedagógico contemporâneo é o elemento que articula a tríade do título. Fundamentada em Norman Fairclough, Barreto estabelece significativa interface com autores como Mikhail Bakhtin e Eni Orlandi, que possibilitam ampliar o debate dos diferentes aspectos dos recortes selecionados.

Os capítulos estão organizados em três partes, que trazem o movimento entre fundamentação teórica e sua aplicação em “exercícios analíticos”. Na primeira parte, três capítulos traçam o horizonte teórico-metodológico da obra. Em “Para começo de conversa: texto, discurso(s), intertextualidade”, o leitor tem notícia das trilhas percorridas no livro: dimensiona o discurso como conceito teórico-metodológico, nas acepções discutidas por Fairclough. Essa discussão toma corpo no segundo texto, “Análise crítica do discurso (ACD): realismo crítico, performatividade e ideologia”, em que Barreto aborda as relações dialéticas entre elementos semióticos (“discurso”, no sentido mais amplo) e as outras práticas sociais, demarcando, em oposição ao idealismo, o realismo crítico na objetivação da linguagem. No terceiro texto, a autora, trazendo também Felinto e Mattelart, discute a tese de que as TIC têm sido fetichizadas no imaginário tecnológico, no enredo dos discursos nodais da globalização e da “sociedade do conhecimento”.

Na segunda parte do livro, o leitor tem um interessante encontro que é um interregno entre o primeiro e o terceiro momento da obra. No texto “O discurso da inclusão”, Barreto, em coautoria com Leher, discute os sentidos atribuídos ao termo, com base no materialismo histórico-dialético. Em “Cenários enunciativos no Admirável Mundo Novo“, em parceria com Ramos, há uma aproximação entre Bakhtin e Fairclough, a partir do recorte de cenas enunciativas do livro de Huxley.

Na terceira parte da obra, temos os exercícios analíticos em que podemos encontrar interessantes pesquisas que retomam a tríade do título. Em “Não só palavras: dos textos multimidiáticos à ressignificação das práticas escolares”, Barreto e Guimarães discutem a configuração multimidiática dos textos contemporâneos, focalizando, no conjunto das tendências discursivas transnacionais, as linguagens articuladas na produção, circulação e legitimação dos sentidos.

O debate se aprofunda no texto “Formação de professores: entre o discurso da falta e propostas de substituição tecnológica”, em que Barreto analisa a tendência a desqualificar a formação e o trabalho docente, no movimento de produzir alternativas centradas apenas nas TIC. O encaminhamento parte do conceito de recontextualização e assume como parâmetros as ressignificações de ensino e aprendizagem.

Os capítulos seguintes tratam de aplicações do referencial teórico-metodológico. Em “Dualidade escolar: os sentidos das TIC”, Barreto e Magalhães trazem o conceito gramsciano para a discussão dos sentidos atribuídos às TIC nas vozes de coordenadores, professores e alunos de dois contextos escolares caracterizados pelo atendimento a classes sociais desiguais. Em “Discursos de professores do ensino público noturno: entre o cotidiano e o imaginário”, Barreto e Fernandes abordam possibilidades de acesso ao imaginário tecnológico de professores, procurando detectar reflexão-refração do sentido hegemônico atribuído às TIC, nos territórios demarcados pelo título. Em ambos, a ACD é desenvolvida a partir de pontos de entrada que remetem a Fairclough: pressupostos, modalidade e escolhas lexicais.

No último capítulo do livro, a autora traz como título uma pergunta: “Ponto final?”. Barreto destaca que o que cabe no desfecho “deste desmonte das tramas constitutivas da ideologia como hegemonia de sentido, na objetivação das relações entre as TIC e a educação, é a aposta na produção de possibilidades outras” (p. 177). Uma aposta que traz as marcas de outra interrogação: o que fazer com tudo isso? E, na tentativa de responder à questão, mais uma vez, a autora presenteia o leitor com uma importante reflexão: pensar um projeto “que aponte para o redimensionamento da formação de professores a partir de alternativas de formação-trabalho docente que estão sendo forjadas nas universidades e nas escolas” (idem). Nas produções do grupo de pesquisa “Educação e Comunicação”, a autora desenvolve, junto com os demais pesquisadores, estudos que buscam compreender essas tensões e trazer possibilidades outras para o encaminhamento de questões que atravessam a relação entre os discursos presentes na díade tecnologias/educação.

No entremeio das discussões sobre discursos, tecnologias e educação, Barreto traz importantes contribuições para o debate das TIC no cenário educacional. Trata-se de uma obra de densidade teórico-metodológica que instiga a importantes reflexões e, por isso, a pergunta no último capítulo: Ponto final? A dúvida procede, já que, da maneira como a autora dialoga e instiga o leitor a novas construções, não há ponto final na obra, mas uma vírgula, materializada como reticências, uma pausa em um diálogo que continua com você, leitor.

Ilka Schapper – Doutoranda em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (PUC-SP) e professora adjunta da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: [email protected]

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Identidades, discurso e poder: estudos da arqueologia contemporânea | Pedro Paulo Abreu Funari, Charles E. Orser Júnior e Solange Nunes de Oliveira Shiavetto

Pensar as múltiplas identidades possíveis ao homem implica refletir sobre a interação conceitual entre identidade, discurso e poder no estudo da formação e da organização social. Nesse quadro de interdependência, verificam-se, ao longo da história, práticas políticas direcionadas à construção de discursos normativos e mantenedores do poder pela edificação de identidades, cujas definições interagem com a distribuição dos espaços sociais e geográficos. Tal diversidade espacial retrata a heterogeneidade da ocupação do solo, demonstrando que essa variável deve ser considerada no labor de arqueólogos e historiadores. Sob essa perspectiva, o livro Identidades, discurso e poder: estudos da arqueologia contemporânea, organizado por Pedro Paulo Abreu Funari, Charles E. Orsen Jr. e Solange Nunes de Oliveira Schiavetto, fomenta o debate a respeito dos usos das fontes materiais e literárias para o entendimento das ações humanas situadas no passado, revelando descompassos entre escritos e espaços, e estimula o repensar dos modelos teóricos acatados por arqueólogos e historiadores.

A primeira parte do livro, intitulada “Identidades e conflitos”, principia com o capítulo “A mulher aborígine nas Antilhas no início do século XVI”, de Lourdes S. Domingues. A autora tece reflexões sobre os anos de 1492 a 1542, período com escassa documentação primária e, por esse motivo, fonte de polêmica entre os estudiosos. O recorte da autora contempla a época em que a Coroa Espanhola promulgou as Leyes Nuevas, as quais, segundo Domingues, influenciaram sobremaneira o processo de construção das identidades das mulheres aborígines do Caribe. Leia Mais

Terra à vista: Discurso do confronto: velho e novo mundo – ORLANDI (RBH)

ORLANDI, Eni. Terra à vista: Discurso do confronto: velho e novo mundo. São Paulo: Cortex Editora, 1990. 255p. Resenha de: MICELLI, Paulo. Conhecer, nomear, governar… O Índio como se fosse o Ìndio. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.11, n.21, p.241-254, set.1990/fev.1990.

Paulo Micelli – Professor da Universidade de Campinas.

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