Os intelectuais diante do racismo antinipônico no Brasil: textos e silêncios – NUCCI (A)

NUCCI, Priscila. Os intelectuais diante do racismo antinipônico no Brasil: textos e silêncios. São Paulo: Annablume, 2010. Resenha de: RAMOS, Alexandre Pinheiro. Antíteses, v.5, n.9, p.475-479, jan./jul. 2012.

A palavra japonesa hedatari significa “distância”, mas ela também expressa a forma como as relações interpessoais são construídas e afetadas pela distância física entre os indivíduos bem como as subjetividades encerradas em tais relações. Para os japoneses, a distância interpessoal exprime tanto o eventual reconhecimento dos diferentes níveis sociais dos quais os interlocutores fazem parte como uma atitude de reserva ou estranhamento diante de um desconhecido ou pessoa com a qual não se possui muita intimidade. A distância espacial entre os agentes é, assim, variável, pois está relacionada às circunstâncias subjetivas dos encontros – os japoneses alteram “as distância interpessoais conforme avaliações momentâneas de intimidade, reserva, superioridade ou inferioridade, e assim por diante” (Tada, 2009, p. 54). Situação distinta, por exemplo, do comportamento brasileiro, onde a eliminação ou diminuição da distância física – através de apertos de mão, abraços ou beijos no rosto – é, muitas das vezes, o primeiro passo para o engajamento dos indivíduos em uma relação social. Ora, se for possível, a partir daí, fazer uma analogia com a maneira como os pesquisadores relacionam-se com possíveis objetos de estudo, então não soará estranho dizer que, no tocante ao tema do racismo antinipônico no Brasil, nossos intelectuais apresentaram uma “postura japonesa”: o princípio da hedatari, da manutenção da distância diante do desconhecido, passou a informar, após a década de 1940, o modo como aqueles lidaram com a questão do antiniponismo – é o que se pode depreender, dentre outras questões, da leitura do livro de Priscila Nucci. O livro trata da questão do racismo contra os japoneses no Brasil, tomando como objeto privilegiado de análise os intelectuais que, sobretudo nas décadas de 1930 e 1940, envolveram-se em debates acerca da presença daqueles no país. Antes, porém, de proceder ao tratamento mais pormenorizado do conteúdo da obra, acredito ser importante ressaltar não só a iniciativa da autora em trazer à discussão um tema que, como apontado em vários momentos ao longo do texto, ficou por vários anos sob um ângulo morto – em silêncio, para retomar o propício subtítulo do trabalho –, mas também pelo fato deste ser um daqueles livros cujo mérito encontra-se relacionado, também, ao fato de não se deixar limitar pelas divisões entre os campos disciplinares: no prefácio, Elide Rugai Bastos aponta como a temática do livro é “objeto de reflexão nos campos da teoria política, sociologia, antropologia, filosofia do direito, para citar alguns” (Bastos, 2010, p. 16), com o que estou de acordo e prossigo: Os intelectuais diante do racismo antinipônico no Brasil pode ser lido como um estudo de história intelectual ou de pensamento social; é um trabalho que trata do tema do racismo em determinado momento histórico e da história das ciências sociais no Brasil. Isto pode ser verificado pela forma como a autora constrói seu texto e utiliza as fontes selecionadas, articulando-as com a devida contextualização do tempo e do espaço, ou seja, suas análises acerca dos debates intelectuais travados, por exemplo, durante a Constituinte de 1933-1934 e em periódicos (jornais e revistas especializadas) mostram a relação entre as ideias expressas e o contexto histórico bem como os lugares de onde tais ideias partiram e a maneira como eles transformaram-se em elementos de importância crucial nos processos de legitimação, crítica ou desqualificação daquilo que era debatido. Além disto, ao debruçar-se sobre a produção de Emilio Willems, intelectual privilegiado em seu trabalho, Priscila Nucci analisa ideias e conceitos caros à produção sociológica deste autor (aculturação, assimilação), enriquecendo a compreensão das obras de uma das principais figuras do processo de institucionalização das ciências sociais no Brasil. O livro possui três capítulos através dos quais a autora busca explorar os textos referentes à presença dos imigrantes japoneses no Brasil e os silêncios acerca do racismo contra os mesmos – enquanto os textos (artigos e livros) estendem-se por toda a pesquisa, fornecendo o material (ideias, argumentos) sobre o qual incidem as análises, os silêncios surgem a partir de determinado momento como uma névoa a encobrir aquilo que era, até então, visível, e conferem substância a uma ausência que se torna palpável em vista do tipo de reflexão empreendida pela autora, prospectiva ao invés de retrospectiva. O primeiro capítulo, “Mapeamento de um Tema”, apresenta a questão do racismo antinipônico, expresso de modo mais enfático em uma série de artigos e livros publicados entre nas décadas de 1930 e 1940, e a constatação da lacuna existente sobre tal assunto – por meio do levantamento crítico da bibliografia que abordou direta ou tangencialmente a questão – entre a década de 1940 e a década de 1980, quando surgiram trabalhos sobre o período Vargas que abordavam, dentre outros temas, o antiniponismo. Sublinha, aqui, a autora o fato de que, neste ínterim, os estudos sobre os japoneses no país centraram-se em aspectos internos deste grupo (relações interna, cultura) e sua inserção na sociedade brasileira (os “casamentos interétnicos”, ascensão sócio-econômica), estando de acordo com um tipo sociologia e antropologia praticada no Brasil cujas origens estavam na Universidade de São Paulo e na Escola Livre de Sociologia e Política. Ainda assim, Priscila Nucci não se furta a criticar tal postura, pois “sem se levar em consideração o racismo sofrido por eles, significa ignorar a própria dimensão histórica da vivência dos japoneses e seus descendentes no Brasil, silenciando um tema crucial para a compreensão dos modos de inserção do grupo no país” (p. 37).

O segundo capítulo, “O antiniponismo brasileiro”, busca reconstruir o debate relativo à imigração japonesa, localizando-se aí os dois lados conflitantes: de um lado, os intelectuais antinipônicos, e do outro, os pró-nipônicos. Em um primeiro momento, a autora aborda, prospectivamente, os embates ocorridos entre os representantes destas posições no período da Constituinte de 1933-1934, utilizando os discursos parlamentares do advogado pró-nipônico Morais Andrade e seus principais antagonistas, os médicos Xavier de Oliveira e Miguel Couto e o sanitarista Arthur Neiva. A ênfase da análise recai nos discursos destes, onde a autora demonstra a posição racista destes personagens, ainda que buscassem, constantemente, negá-la, localizando o racismo fora do Brasil, ou seja, racismo era aquilo que acontecia, por exemplo, na Alemanha nazista. Em suas falas, o conhecimento científico da época (psiquiátrico, médico, eugênico) representado por autores estrangeiros e nacionais – aqui, Oliveira Vianna torna-se uma referência fundamental – era utilizado como argumento de autoridade para afirmar que os japoneses eram “inassimiláveis do ponto de vista antropológico, e principalmente do ponto de vista psíquico” (p. 79), e assim dar um aval pretensamente objetivo às restrições e ações contra a imigração japonesa – a presença e aceitação destas ideias, sem dúvida tributárias do prestígio de seus produtores e dos locais de produção, pode ser verificada na criação do Conselho de Imigração e Colonização (CIC), em 1938, a qual contou com uma publicação oficial, a Revista de Imigração e Colonização. Algumas ideias foram utilizadas, posteriormente, por Vivaldo Coaracy, que escreveu uma série de artigos no Jornal do Comércio publicados na forma de livro, em 1942, com o título O Perigo Japonês. Ao debruçar-se sobre este material, a autora mostra, por um lado, como o discurso racista achava-se rotinizado nos meios intelectuais brasileiros, e por outro, como o racismo antinipônico tornou-se mais virulento diante da participação do Japão na II Guerra Mundial, pois, naquele momento, os japoneses foram tratados como uma ameaça ainda maior à nação brasileira: de elemento “inassimilável”, foi transformado em inimigo do país, da “civilização” da qual este fazia parte e, finalmente, da humanidade, devendo, por isto, ser exterminado. O lado pró-nipônico é representado, no livro, pela atuação do advogado Morais Andrade no período de Constituinte e pelo médico Bruno Álvares da Silva Lobo, que publica, em 1935, o livro Esquecendo os antepassados, combatendo os estrangeiros como resposta aos antinipônicos da Constituinte, denunciando o racismo subjacente em suas falas e ideias a despeito dos esforços daqueles em mostrarem o contrário. A participação de ambos em um debate que extrapolou o período de 1933-1934 deu-se, como mostra a autora, através da refutação dos argumentos contrários à imigração japonesa e, em seguida, da defesa desta e dos benefícios que trariam para o país, também por meio do recurso ao argumento de autoridade fornecido pela ciência, aqui representado pelas referências aos estudos de Roquette-Pinto e Gilberto Freyre. O terceiro capítulo, “Novos paradigmas…”, ocupa-se com o estudo dos textos (da década de 1940) de Emilio Willems, Hiroshi Saito, Donald Pierson e Egon Schaden, mas a ênfase recai, principalmente, sobre a produção intelectual do primeiro. Ao lançar mão de livros e artigos publicados nas revistas Sociologia, Revista de Antropologia e Revista de Imigração e Colonização e no jornal O Estado de São Paulo, Priscila Nucci oferece uma análise multifacetada a qual se beneficia do espaço intermediário onde seu objeto é construído: os textos sobre a imigração japonesa estão articulados à institucionalização das ciências sociais e ao consequente abandono, em tese, da mistura entre política e ciência além de oferecerem o ponto de partida para a análise de algumas questões centrais da sociologia de Willems, tais como os conceitos de assimilação e aculturação e sua preocupação na elaboração de estudos com alto rigor científico e sem pretensões legisladoras. Mas, sem dúvida, um dos grandes benefícios desta posição fronteiriça do objeto, somada à perspectiva de estudo adotada pela autora, é a maneira como a década de 1940 apresenta-se como um período de transição para os trabalhos relativos à imigração japonesa, pois é o momento no qual, com possibilidades crescentes de estudo do racismo antinipônico no Brasil (agora baseados em nova metodologia científica e em pesquisa empírica), este tema vai perdendo força e sendo substituído por outras preocupações advindas desta mesma transformação sofrida pelos estudos sociológicos e antropológicos. Embora alguns trabalhos de Emilio Willems já apontassem indícios de discriminação racial contra os japoneses, e seus artigos publicados no jornal O Estado de São Paulo e na Revista de Imigração e Colonização – principal ambiente do racismo antinipônico – deixassem explícito seu posicionamento contra o racismo científico praticado pelos intelectuais brasileiros, isto não foi o suficiente para que os cientistas sociais se voltassem para este tema – com exceção, talvez, de Egon Schaden, que em artigo publicado na revista Sociologia, chamou a atenção, através dos estudos de Willems, para o antiniponismo. Contudo, como demonstra a autora, quando não era aceita a ideia de que no Brasil não havia preconceito racial, e sim de classe – como defendido por Donald Pierson, colaborador fixo da Sociologia – a questão do preconceito não abarcava aos grupos de estrangeiros no país, limitandose, sobretudo, à população negra; além disto, o abandono (benéfico) do conceito de raça, bem como sua desqualificação, sendo, assim, substituído pelo de cultura, acabou por contribuir para a perda do foco sobre o racismo contra os estrangeiros imigrados. A denúncia do racismo, em sua forma “científica” ou não, foi enfraquecida, curiosamente, por aquilo mesmo que poderia fortalecê-la, e os intelectuais brasileiros distanciaram-se do problema do antiniponismo. Para finalizar, gostaria de fazer uma última consideração relacionada a alguns aspectos da reconstrução do debate sobre a imigração japonesa e seus envolvidos. Através da análise do material selecionado, a autora conseguiu localizar a atuação e o embate entre duas “comunidades argumentativas” (Pocock, 2003) envolvidas com a discussão de um tema em comum, mostrando, assim, não só a forma como construíam e lançavam no meio intelectual suas ideias, mas também as estratégias adotadas pelos participantes ao responder e refutar os argumentos contrários, valendo-se, para isto, de seu prestígio e posições nos lugares de saber, o que lhes fornecia tanto proeminência nos debates – a atenção que recebiam por parte do público que os acompanhava – como a legitimidade de suas posições. As disputas simbólicas empreendidas pelos intelectuais antinipônicos e pró-nipônicos, por um lado, revelam a dinâmica e os elementos (os discursos parlamentares, livros, artigos em jornais e revistas, as próprias revistas) constitutivos do ambiente intelectual e político em determinado período da história republicana brasileira, mostrando como há uma relação bastante estreita entre ambos ao ponto de sua influência recíproca refletir-se, de algum modo, na organização social – não há como não pensar, aqui, na dupla hermenêutica de Anthony Giddens (2003) diante da apropriação, por parte da sociedade, daquilo produzido pelos intelectuais e que acaba por reentrar na vida social, pois os significados e interpretações produzidos por eles incorporam-se nas relações entre as pessoas e nas instituições. Por outro lado, elas apontam para as formas como transformações no contexto intelectual tomam corpo através, neste caso, da relação direta entre ideias e seu espaço de produção, ou seja, a mudança na percepção do racismo antinipônico achava-se diretamente ligado ao processo de institucionalização das ciências sociais. A localização deste turning point, que esclarece e justifica o vazio bibliográfico entre 1940-1980, indica, assim, os rumos tomados pela discussão da imigração japonesa a qual não se manteve igual e sofreu com os efeitos do contexto nacional e internacional, e os efeitos, ainda que não intencionais, da busca pela separação entre ciência e política. Neste sentido, o que gostaria de sublinhar é a possibilidade de, por meio do estudo de um objeto em particular (o racismo antinipônico) e bem localizado (no campo intelectual brasileiro nas décadas de 1930 e 1940), verificar: os modos como os intelectuais – em grupo ou não – atuavam e se expressavam, em determinado momento, construindo um determinado vocabulário, cujos elementos são apropriados ou mudam de sentido, que permite a identificação dos participantes entre si – e ao pesquisador, a identificação dos grupos envolvidos – e as mudanças que informam ou são provocadas pela atuação intelectual. Ao localizar o debate intelectual e seus participantes, torna-se possível rastrear, a partir deles e dos conteúdos de seus textos, sejam as relações destes com as instituições das quais fazem parte ou com outros intelectuais ou grupos.

Alexandre Pinheiro Ramos –  Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro do Núcleo de Pesquisas em Sociologia da Cultura (NUCS/IFCS/UFRJ). Bolsista CAPES.