Os Lusitanos | Adriano Vasco Rodrigues

No primeiro número do Brathair apresentei um artigo sobre os lusitanos. Entendi que um grupo de estudo dedicado aos “Celtas e Germanos” deveria, em sua manifestação inicial ao público, lembrar o principal laço que pela tradição une os brasileiros aos celtas. Essa iniciativa a assumi por ser, no grupo do Brathair, o único português, provável descendente dos lusitanos. Sabia que seria difícil encontrar bibliografia que me fornecesse subsídios para redigir o artigo, e a de que dispunha estava desatualizada; mas contava com a colaboração de professores portugueses, e de livrarias de Lisboa. As expectativas, porém, foram fraudadas e tudo o que me respondiam era “não há obras disponíveis sobre esse assunto”, “não sei quem se interessa pelo tema”. Lembrando porém antigas leituras, consultando amigos esforçados em me ajudar, e comparando a literatura possível, cheguei a conclusões e definições que arrisquei expor, e que brevemente retomo aqui, com os retoques próprios de uma apresentação sumária, começando pela questão da ascendência lusitana dos portugueses. Ora neste ponto parece que se pode dizer com tranqüilidade que os lusitanos são prováveis antepassados dos atuais portugueses, mas não de todos, nem no todo: a área abrangida pela ocupação desse povo na Península Ibérica corresponde apenas à região entre o Douro e o Tejo, e avança pela Estremadura espanhola e Castela-a-Nova; e como ascendentes dos portugueses os lusitanos se miscigenaram em proporções variáveis com os romanos (mais no Sul), com os germanos (mais no Norte) com mouros e berberes (no Sul) e muitos outros povos; além disso, sobretudo se acreditarmos nos relatos dos romanos, na longa guerra de dois séculos que sustentaram contra o Império, os lusitanos foram dizimados, e não foram muitos os que ficaram para serem legítimos antepassados dos portugueses.

Outra questão controversa é a da origem dos lusitanos; parece que a maioria dos autores se inclina pela ascendência local, recuando às ocupações megalíticas da Península; os lusitanos seriam a resultante de um povo de migração muito antiga, de cultura aparentada com outras culturas pré-históricas européias, que sofreu influências ibéricas em muitos aspectos da vida quotidiana – embora também pouco se saiba sobre a origem dos iberos. Será preciso também, para abordar corretamente a origem étnica e a cultura dos lusitanos, distinguir os das montanhas do interior dos habitantes das cidades do litoral, bem como os do norte dos do sul, sobretudo pelo fato da região do Tejo Ter ficado muito mais exposta à penetração dos povos do sul: célticos, cinéticos, e cônios, por sua vez relacionados com turdetanos, fenícios, e norte africanos. Por outro lado, a arqueologia diz-nos muito pouco das relações deste povo com os celtas, e as narrativas gregas e romanas também não a confirmam. A influência celta sobre os lusitanos é inegável, mas limitada, pouco comprovada, e posterior à existência dos lusitanos como povo identificado, sendo portanto provavelmente incorreto dizer que os lusitanos eram celtas, ao menos perante os dados disponíveis hoje em dia. Contudo, uma vez que a celtização da Península partiu dos Pirinéus em direção ao Atlântico pode se supor que a influência céltica sobre os lusitanos foi maior nas montanhas (atual Beira Interior, pátria dos lusitanos, segundo a tradição mais forte) do que no litoral.

A ideologia lusitana no Renascimento foi determinante para a construção doutrinal da idéia de Pátria com raízes compostas, entre a romanização e a oposição ao Império. Desde André de Resende (sempre citado) e Gil Vicente (com seu Auto da Luzitânia, pouco lembrado) a Luís Vaz de Camões (da ocidental praia lusitana) em cerca de um século se montou e difundiu a idéia de que os portugueses são descendentes dos valorosos lusitanos e de seus inimigos romanos. A idéia de pátria, como todos os mitos políticos de qualquer época, é complexa; mas os nossos renascentistas souberam articulá-la muito bem: por um lado descendemos dos romanos, cujo Império colocou neste território marcos indeléveis na língua e nos costumes; por outro somos herdeiros do confronto nascido nas raízes do território, nos lusitanos, miticamente ligados a deuses (da mitologia romana, não céltica nem ibérica). Essa dualidade, esses dois gêmeos que lutam no seio da mãe, constitui um paradigma de origem conflituosa, que serve para explicar todos os antagonismos existentes no povo, os ciclos e os altos e baixos da História de Portugal, toso o mito e realidade dos descendentes dos lusitanos.

Ao chegar a este ponto – que no meu artigo do Brathair entrevia, mas explicitei com outras palavras – duvidando ainda da consistência das minhas hipóteses, continuava esperando que as explicações dos especialistas de campo e de prática me confirmassem os pontos de vista. Mas foi só depois da edição desse primeiro número da nossa revista que me chegou às mãos o livro de Adriano Vasco Rodrigues. Adriano é arqueólogo e pesquisador da Universidade Portucalense e da Academia Internacional de Cultura Portuguesa, dirigiu uma instituição de ensino na Bélgica, criou o Instituto de Estudos Lusitanos no Porto (1961); em 1956 localizou uma inscrição lusitana (no Cabeço das Fráguas, Guarda, Beira Alta) que tem sido estudada pelo Professor António Tovar e considerada decisiva para o conhecimento da língua e do modo de vida dos antepassados (se não étnicos, ao menos simbólicos) dos portugueses. O que encontrei no livro de Rodrigues, anterior ao meu trabalho de busca de fontes para o artigo do Brathair, veio, para minha tranqüilidade, confirmar as hipóteses acima expostas, com algumas variantes ou pequenas diferenças que passo a explicar.

Em primeiro lugar vamos apreciar a composição e o conjunto do livro. No que se refere ao método de distribuição dos assuntos o texto deixa a desejar: está dividido em dezenove capítulos de tamanho muito desigual, variando de duas até 47 páginas de extensão; freqüentemente no corpo do mesmo capítulo misturam-se digressões e interpolações sobre temas de outros capítulos bem distintos, e que, não vindo a propósito, prejudicam o acompanhamento da argumentação. Contudo é possível distinguir-lhes uma ordem agrupando-os em três partes: 1. Questões gerais e metodológicas, incluindo historiografia e a problemática do estudo dos lusitanos, além do enquadramento etnológico e geográfico (p.13 – 142): 2. A cultura lusitana: economia, sociedade, religião, medicina, tática militar (143 – 308); e 3. O comunitarismo agro-pastoril lusitano e português (309 – 353). O índice está mal distribuído, e não há uma bibliografia final, mas apenas referências bibliográficas (notas) após cada capítulo; também não há índices de nomes, de temas, ou de autores citados, o que, dada a frequente discussão de questões, seria importante para nos localizarmos no texto. Estas falhas de metodologia, que prejudicam a apresentação e dificultam a consulta, não invalidam porém o conteúdo da obra e as teses apresentadas, que estão bem documentadas, cuidadosamente discutidas, e claramente definidas, além de apoiadas numa variedade consistente de fatores: geográficos e climáticos, de fontes históricas e etnográficas, de economia e de religião… É importante, por exemplo, a longa exposição da organização da Mesta, que desde pelo menos a Idade Média controla e disciplina a transumância na região central da Península, comparando-a com o modo de vida pastoril das montanhas e com as estratégias de guerra de Viriato; ou o paralelo que se estabelece entre o comunitarismo trasmontano e beirão, que perdurou até ao século XX, e a estrutura comunitária lusitana. Neste ponto, porém, o autor aparenta certa incoerência: por um lado utiliza a etnografia pastoril contemporânea para entender o modo de vida lusitano de dois mil anos atrás; por outro critica aqueles que usam relatos de escritores romanos, redigidos após a dominação dos lusitanos pelo Império, para discutir o modo de vida pré-romano – de dois séculos antes. Dizemos “aparenta “ porque de fato é inegável que a ocupação romana produziu sensíveis alterações no modo de vida dos lusitanos – sobretudo na maior sedentarização, ênfase na economia agrícola, e controle do bandoleirismo; enquanto, por outro lado, deve-se reconhecer que há traços da economia e das relações sociais dos montanheses e dos pastores nômades que têm tendência a longa vitalidade. É preciso ressaltar esta questão porque ela perpassa todo o livro de Adriano Rodrigues.

Um dos temas que mais nos interessa é o da relação entre os lusitanos e os celtas. O Autor começa por ser bastante explícito na negação do relacionamento étnico, para depois mostrar certa hesitação. Nas páginas 40-41 afirma: “A leitura da inscrição do Cabeço das Fráguas veio mostrar que a linguagem dos lusitanos não era céltica. Se compararmos agora um elemento de interesse etnográfico importante, o vestuário, veremos que se afasta daquele que nos chegou das descrições dos celtas (…) Pois os Celtas foram os inventores das calças. Os lusitanos não usavam calças. Os Celtas combatiam servindo-se de carros de guerra, praticando uma luta totalmente diferente da seguida pelos Lusitanos, que nunca recorrem ao carro de combate “. Aparte o detalhe de escrever Celtas com maiúscula e lusitanos geralmente com minúscula, sem motivo aparente, o Autor utilizou três elementos relevantes para demonstrar que os lusitanos não eram celtas: a língua, o traje, e as táticas de guerra. Podem se fazer vários reparos a distinções tão taxativas (e, ao contrário do que faz em outras questões, apressadas), porque: (a) sabe-se muito a respeito das línguas celtas para se conhecer grande variedade de idiomas distintos, e sabe-se muito pouco da língua lusitana para poder afiliá-la – ou não – com certeza a algum grupo lingüístico; (b) se o uso das calças fosse determinante na cultura celta os escoceses, que têm no saiote o traje tradicional, teriam que ser excluídos dessa família; (c) os celtas não usavam nem todos nem sempre os carros de guerra quando combatiam. Mas Adriano Rodrigues foi claro ao afastar o parentesco céltico dos lusitanos, como também foi claro ao não o negar completamente: “os Lusitanos poderão ter recebido aculturação do tipo céltico, gerada pelos contactos (…)” (ib.) Portanto, para o A. os lusitanos não eram originários nem descendentes dos grupos celtas que invadiram a Península Ibérica a partir do século VI ou V a.C., mas receberam influências culturais desses grupos.

Contudo, no decorrer das suas explicações e exposições, Rodrigues insiste tantas vezes em mostrar elementos celtas em território lusitano que parece duvidar de suas afirmações iniciais. Essa insistência aparece por exemplo a propósito dos topônimos, já que em terras lusitanas muitas localidades têm nomes derivados do celta, e o A. lembra todos eles, mesmo quando a distância torna as filiações lingüísticas muito improváveis, como ao sugerir relação entre a portuguesa Panóias e a imperial Panônia. Também na vida religiosa Rodrigues está sempre a lembrar o celtismo dos lusitanos, tanto nos nomes dos deuses como nas práticas de culto: até as tão conhecidas alminhas (pequenos nichos de rua com imagens dos santos populares) ele faz remontar ao culto dos mortos dos celtas (p.182). Ora se as localidades têm nomes celtas é porque os celtas andaram por lá, e não apenas mantiveram contactos com os lusitanos, como se estes se lembrassem de termos ouvidos em viagem por terras dos celtas peninsulares. Quanto à religião, sendo algo tão íntimo e arraigado à tradição, não se copia facilmente nem se abandona só por influência distante: é preciso um parentesco mais sólido para que se adotem deuses alheios. O A. pode até ter razão em descartar parentesco étnico entre os dois povos, mas como não discute o problema nos deixa em dúvida sobre as provas de que os lusitanos não eram celtas, mas só vagamente celtizados.

Pela nossa parte achamos mais provável, e já o dissemos no artigo do n. 1 do Brathair, que alguns grupos celtas tenham se estabelecido em terras lusitanas e contribuído não só para a formação cultural mas também para a composição étnica dos lusitanos, e por isso vamos deter-nos um pouco mais na questão.

No capítulo “ Sobrevivências actuais da religião dos lusitanos” Rodrigues trata da religião pré-romana, da influência céltica, celtibérica e romana, e da continuidade do paganismo nos cultos populares cristianizados – mas sem observar esta ordem de assuntos, antes todos eles mesclados. Nas 26 páginas do capítulo as palavras celta ou céltico aparecem 23 vezes, mas sem que em nenhum momento se faça uma análise detida do relacionamento entre as religiões em causa; apenas vai dizendo: “também os Celtas “(180) , “faz lembrar o deus celta “(181) , “tal como entre os Celtas “(181) , “o mesmo aconteceu com os Celtas “ (185), e vai justapondo radicais de nomes de deuses, festas cíclicas, cultos, e símbolos, mas sempre de passagem, sem ordem, para concluir : “(…) os lusitanos, que, como está provado, sofreram influências religiosas célticas “ (195) . A impressão é de que Adriano Rodrigues já estava convencido dessa influência e apenas se foi referindo a ela à medida que se lembra. Certamente não negamos a adoção de elementos religiosos celtas pelos lusitanos, mas fica a dúvida sobre se uma influência tão marcante, como AR aponta, viria só por contato externo, e não seria devida a uma presença céltica na Lusitânia. Dito de outro modo: a romanização da religião lusitana foi forte porque os romanos estavam no meio desse povo e o dominavam; não seria o caso de pensar que, de modo semelhante, os celtas se tivessem mesclado (em pequena proporção) com os lusitanos, pois desse modo se explicaria melhor a celtização da religião dos primeiros ocupantes dessa região? Ora o A., que afirma a relação entre as duas religiões mas nega a relação étnica entre os dois povos, nos deixa, pela sua forma de argumentar, a dúvida acerca da sua própria convicção e razão. Por outro lado, a presença dos celtas em manifestações religiosas e lápides de cemitérios em terras lusitanas comprovada incontestavelmente pelos trabalhos arqueológicos de Fernando de Almeida na Idanha (que citamos no nosso artigo) não é discutida, como se fosse para AR uma lembrança incômoda. Mas se os celtas morreram na Lusitânia é porque viveram por lá.

Os três últimos capítulos, que designamos por terceira parte, e que tratam das sobrevivências do comunitarismo agro-pastoril no Norte de Portugal, mais se deveriam considerar um apêndice, que parece que o A. pretendia colocar como introdutório, pois numa das páginas finais (321) escreveu: “(…) que ao longo deste livro iremos referindo (…)”. O caráter de anexo deve-se a que pouco faz menção do personagem principal da obra – os lusitanos – no decorrer dessas quase cinqüenta páginas. A hipótese básica é de o comunitarismo lusitano tenha de alguma forma persistido no português, “sem pretendermos que o sistema comunitário actual seja o dos lusitanos (…) “(30() pois as posteriores ocupações da Península por outros povos alterou a estrutura e o funcionamento do sistema de relações sociais e econômicas.. E após a descrição narrativa dos usos portugueses, sem se deter em análises e comparações, fecha o livro (p. 348, antes das notas finais) com a seguinte frase: “Apesar de mais de dois mil anos nos separarem dos lusitanos e profundas mudanças acentuarem as diferenças entre dois mundos, o deles e o nosso, nem tudo o tempo apagou na sua marcha inexorável.”

A obra de Adriano Vasco Rodrigues ficará certamente como uma referência importante para o estudo dos lusitanos: é alicerçada em vastas pesquisas arqueológicas, do autor e alheias, num considerável e por vezes exaustivo trabalho de campo etnográfico, e por demorada análise de fontes documentais antigas e de investigadores modernos. A desordem, ou quase desarrumação do texto, e a falta de revisão ortográfica e sintática prejudicam o entendimento do texto a tal ponto que muitas vezes deixam dúvidas sobre o que o A. pretende dizer. Quanto ao que procurávamos parece que as teses principais que Rodrigues defende são claras: a constituição da etnia e da comunidade de lusitanos, e sua presença contínua nas terras de Entre-Douro-e-Tejo são anteriores às migrações celtas; a cultura celta influenciou a lusitana em muitos aspectos, mas sobretudo na vida do espírito, sem alterar seus traços básicos; as migrações celtas não atingiram a Lusitânia com a sua presença física mas só pela sua influência cultural; os lusitanos contam-se entre os antepassados de uma parte dos portugueses mas também dos espanhóis da Estremadura e de parte de Castela-a-Nova; muitos outros povos e culturas contribuíram para a formação do povo português cabendo aos lusitanos um lugar predominante porém mais simbólico do que efetivo; a ascendência lusitana é desigual nas diversas regiões de Portugal, sendo mais forte nas regiões montanhosas do interior central e norte do País.

João Lupi – Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected]


RODRIGUES, Adriano Vasco. Os Lusitanos. Mito e realidade. Lisboa: Academia Internacional da Cultura Portuguesa, 1998. Resenha de: LUPI, João. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.2, n.1, p.64-68, 2002. Acessar publicação original [DR]