Arqueologia e Paisagem / Revista Mosaico / 2020

Os estudos sobre a paisagem se constituem hoje em um dos campos mais prolíficos e vibrantes da Arqueologia. Sua origem remonta à década de 1920 (ANSCHUETZ et al., 2001, p. 157), época em que se consolidaram os principais métodos e técnicas da disciplina, muitos deles ainda hoje empregados. Na sua trajetória, surgiram abordagens clássicas que influenciaram gerações de arqueólogos, do estabelecimento dos estudos sobre padrões de assentamento (WILLEY, 1953) à sua consolidação por meio de abordagens processuais (BINFORD, 1980) e funcionalistas (CLARKE, 1977); das abordagens distribucionais (DUNNELL, 1992) ao estudo das paisagens vividas e simbólicas (TILLEY, 1994; THOMAS, 2001). Essa trajetória, muito diversa, é uma prova indiscutível da sua energia, bem como do seu grande fôlego teórico e metodológico.

É admirável o projeto de perseguir uma definição ou paradigma que dê conta de abordar a paisagem pela Arqueologia da paisagem (ANSCHUETZ et al., 2001; ASHMORE, 2004) ou pela Geoarqueologia (GOLDBERG; MACPHAIL, 2007). É, todavia, inegável, e para além desse projeto, que é justamente dessa diversidade, em certo sentido difusa, que emana a sua vitalidade. É dentro desse entendimento que o dossiê Arqueologia e Paisagem foi organizado. Sua proposta fundamenta-se na ideia de que é a partir dos seus variados percursos que se abrem possibilidades para novas ideias, percepções e diálogos. Tendo isso em mente, nosso objetivo foi reunir trabalhos envolvendo a paisagem por meio de abordagens arqueológicas, sem que tivéssemos um compromisso estrito com recortes regionais, temporais, teóricos ou metodológicos. Traz essa proposta a vontade de transpor fronteiras tradicionalmente estabelecidas e, com isso, nos fazer olhar para o lado. Nossa crença é que a partir desse tipo de experiência podemos encontrar outras maneiras de interpretar as interações das pessoas com a paisagem.

Dos textos aqui reunidos, e levando em conta essa proposta, emergem alguns pontos que merecem ser destacados. O primeiro, bastante evidente no conjunto, diz respeito à capacidade da Arqueologia da paisagem para operar, seguindo uma prática corrente na Arqueologia, em conjunto com uma enorme variedade de campos dsciplinares. Alinham-se neste dossiê discussões desenvolvidas na interface com a geociências, botânica, arquitetura, museografia, etnologia e conservação.

É igualmente relevante a diversidade em termos dos conceitos empregados, que neste volume são claramente multidirecionais. Em Paisajes geoculturales de la region Este de Uruguay, Caffa, por exemplo, emprega o conceito de ‘paisagem geocultural’, de modo a buscar manifestações do binômio cultura / ambiente na região de Laguna Merín, Uruguai, tendo como foco a evolução geomorfológica da ecozona que favoreceu a ocupação e mobilidade dos grupos humanos. Em Bitucas e a materialização do equívoco: Qurna e suas paisagens potenciais, Pellini utiliza o conceito de ‘paisagens múltiplas’, no sentido de voltar-se às percepções locais de paisagem e, com isso, reconhecer mundos e experiências outros e alternativos à cosmovisão ocidental. Em Caminhos que levam à Glória: Villa Aymoré – apontamentos arqueológico-paisagísticos de um sítio histórico, Macedo e Andrade utilizam uma matriz conceitual denominada ‘arqueologia histórico-paisagística, que é voltada à análise de espaços edificados e baseada na capacidade da paisagem para produzir sentidos. Ao lado do uso desses conceitos, identifica-se neste dossiê análises clássicas e contemporâneas sobre a paisagem, com discussões que incluem temas como economia, território, mobilidade, constituições simbólicas, memória, poder, entre outros.

Destaca-se entre essas análises a capacidade para revelar práticas, processos e formas de constituição social insuficientemente explorados até aqui ou envolvendo sujeitos antes invisibilizados. Esse, por exemplo, é o caso das discussões realizadas por Pellini, que expõe o afastamento forçado da população qurnawi, que vive em Qurna, Egito, com vistas a atender interesses turísticos associados ao passado faraônico. Em A floresta como esconderijo: arqueologia da paisagem na mata Atlântica do Rio de Janeiro, Oliveira, Patzlaff e Scheel-Ybert revelam algumas das práticas associadas aos carvoeiros, que integrando os extratos menos favorecidos da sociedade brasileira nos séculos 18 e 19, tiveram suas trajetórias invisibilizadas nas fontes documentais. Nesse caso, esses autores se valem da grande capacidade da Arqueologia da paisagem para pensar a constituição de experiências espaciais ligadas a segmentos ou classes sociais particulares no Mundo Moderno (MROZOWSKI et al., 1989; SHACKEL; PALUS, 2006; O’KEEFE, 2009).

Este dossiê abre-se também para a proposta de utilizar a Arqueologia da paisagem e a Geoarqueologia como um laboratório voltado ao desenvolvimento de abordagens regionais. Em A paisagem como elemento de análise: mesopotâmia dos rios Araguaia e Peixe, Goiás, Rubin e colaboradores apresentam alguns dos resultados de um projeto sobre as populações pré-coloniais do Brasil Central, examinando por meio de um ensaio teórico e de natureza exploratória, as alternativas interpretativas do estudo paisagístico dessa região. Considerando elementos advindos das fontes orais, arqueológicas, geoarqueológicas e etnográficas, buscam identificar percursos possíveis, com vistas ao desenvolvimento de novas interpretações dessa paisagem.

Um ponto de interesse em relação aos estudos da paisagem e que, no caso deste volume, merece ser destacado, diz respeito à possibilidade de construções no tempo longo, o que em última análise nos estimula a olhar com atenção as complexas relações estabelecidas entre pessoas, o espaço e o tempo. Esse é o caso, por exemplo, do trabalho de Gonçalves, Abreu e Pereira intitulado Arrábida, território da espiritualidade: geologia, arqueologia e arte, no qual apresentam a longuíssima e impressionante trajetória do gênero Homo na Cordilheira da Arrábida, Portugal, e sua relação com essa paisagem ao longo do tempo. Em Aproximación geoarqueológica en los ciclos de poblamiento y abandono del Cauca medio colombiano, Echeverri estabelece uma correlação entre atividades vulcânicas, formação das paisagens, manejos de plantas e o povoamento inicial do médio curso do Rio Cauca, Colômbia, em um contexto em que eventos sísmicos também estão presentes.

Nas análises apresentadas neste dossiê, e ainda levando em conta a perspectiva do tempo, é relevante assinalar também as interpenetrações entre memória e paisagem, ou entre os elementos a eles relacionados. A paisagem pode inscrever processos de esquecimento e lembrança, pertencimento e negação, apropriação e controvérsia, aversão e afeto (DUNCAN; LEY, 1993; VAN DYKE; ALCOCK, 2003; JONES, 2007; KOHL et al., 2007). Isso implica diretamente a forma como se organiza, por intermédio da paisagem, o patrimônio material de uma dada sociedade, e interessa aqui notar que um dos fios condutores desses processos é o tempo. Pode-se perceber nas contribuições de Macedo e Andrade, bem como de Pellini, que a Arqueologia da paisagem não se apresenta apenas no sentido de revelar processos encobertos, mas também como uma ferramenta para a transformação, na medida em que é capaz de oferecer à sociedade elementos para novas formulações ligadas à memória. Em Museu, cultura material e gravura rupestre: a construção da paisagem no universo das coisas polidas, Marques, Veríssimo e Santos apresentam uma perspectiva também de interesse. Seu texto envolve o estudo de artefatos líticos pré-coloniais usados para polimento, encontrados na Serra Azul, Ceará, e que foram deslocados da paisagem, na medida em que alguns deles foram retirados do seu lugar de origem e expostos em um museu local. O estudo feito pelos autores, que é fundamentado em uma perspectiva simétrica, aponta para uma possibilidade interessante, na medida em que abre-se para a criação de uma narrativa que pode permitir inscrever lugares, artefatos e seus produtores em um mesmo regime de memória, sem perder de vista as suas trajetórias no tempo presente.

Associa-se ainda ao tempo as inúmeras relações entre as variantes que compõem um dado ambiente e a conservação de sítios arqueológicos. Em Paisagem, gravuras, problemas de conservação: um olhar sobre o sítio Poço da Bebidinha, Lage, Lage e Nascimento desenvolveram um estudo sobre a paisagem do Cânion do Rio Poti, situado entre o Ceará e o Piauí, e onde se localiza o sítio Poço da Bebidinha. A proposta dos autores na análise dessa paisagem foi entender os problemas de conservação que agem sobre esse tipo de sítio com o intuito de enfrentá-los.

Uma questão de ordem teórica ligada à relação cultura-natureza merece ainda ser contemplada, sobretudo em função da sua importância crescente na disciplina. Atualmente, dois desafios têm se apresentado aos estudiosos da paisagem na Arqueologia, sobretudo em algumas regiões das Américas. O primeiro desafio, que gradualmente vem sendo rompido, envolve o uso diferencial de paradigmas teóricos nas arqueologias histórica e pré-colonial, uma vez que, na primeira, têm predominado abordagens com uma orientação humanista, subjetivista e contextual, geralmente abrigadas no amplo guarda-chuva da arqueologia pós-processual, enquanto na segunda, têm predominado abordagens com uma orientação positivista, objetiva e cientifica. O segundo desafio, intimamente conectado a esse problema e cujas bases são claramente ontológicas, envolve, por um lado, uma preferência da Arqueologia histórica por análises envolvendo a denominada ‘paisagem social’, que geralmente está limitada ao ambiente edificado e onde quase que invariavelmente a cultura parece triunfar sobre a natureza. Por outro lado, na Arqueologia pré-colonial verifica-se uma predileção por análises voltadas ao que poderia ser denominado de ‘paisagem natural’ e que, muitas das vezes, dão aos elementos presentes no meio-ambiente um peso mais decisivo, na medida em que eles geralmente aparecem influenciando ou complicando certas práticas culturais ou sociais (SOUZA; COSTA, 2018).

A dicotomia cultura / natureza está não apenas presente na origem da Antropologia enquanto área do conhecimento, mas também no fulcro da constituição moderna (COLLINGWOOD, 1945; LATOUR, 1991). Seu enfrentamento na arqueologia passa, por exemplo, pelas escolhas que têm orientado os estudos sobre a paisagem nos termos acima expostos, o que, no nosso entendimento, precisa ser desafiado, em benefício de todos. Parte do problema reside no fato que, independente do contexto ou período que está sendo tratado, cultura e natureza se inter-relacionam de uma forma recíproca, permeável e sempre mutante. Para seu enfrentamento, faz-se necessária a compreensão de que a experiência na paisagem envolve, fundamentalmente, interações amplas entre as pessoas e o mundo. Conforme pontuado especialmente por Ingold (2000, 2011), nossa experiência na paisagem é um processo de coprodução que ocorre por meio de transformação mútuas e contínuas. Nos termos por ele colocados, o mundo é um local de misturas e entrelaçamentos. Nos cabe, portanto, analisá-las, não em termos de influências ou trocas, mas de constituições recíprocas, essencialmente híbridas.

No que se refere a essas questões, este dossiê oferece alguns elementos muito interessantes para repensarmos o que até aqui temos praticado. O trabalho realizado por Oliveira e colaboradores, por exemplo, traz para a Arqueologia histórica uma vertente, ainda que bem conhecida na Arqueologia pré-colonial, pouquíssimo explorada nesse campo e que inclui o estudo de espécies vegetais. Quando examinada de perto, a vegetação, ou em termos mais abrangentes, a ‘paisagem natural’, mostra-se para o caso dos contextos históricos, assim como em outros tantos, como um mosaico ecológico de usos pretéritos e, a nosso ver, parte indissociável da experiência moderna. Igualmente importante é a perspectiva assumida por alguns autores que levam em conta a ideia de coprodução entre pessoas e coisas, como nas discussões elaboradas por Rubin e colaboradores no seu trabalho sobre a paisagem dos rios Peixe e Araguaia, e Marques, Veríssimo e Santos, na sua análise sobre a Serra Azul.

Convidamos então os leitores a percorrerem este dossiê. Nossa proposta, em especial, é que façam isso pensando para além dos seus interesses de pesquisa mais imediatos. Estamos certos de que assim procedendo irão encontrar novas e produtivas possibilidades para pensar a paisagem por meio de uma perspectiva arqueológica.

Referências

ANSCHUETZ, Kurt F.; WILSHUSEN, Richard H.; SCHEICK, Cherie L. An archaeology of landscapes: perspectives and directions. Journal of Archaeological Research, v. 9, n. 2, p. 157-221, 2001.

ASHMORE, Wendy. Social Archaeologies of Landscape. In: MESKELL, Lynn e PREUCEL, Robert W. (ed.): A companion to social archaeology. Oxford: Blackwell, 2004. p. 255-271.

BINFORD, Lewis R. Willow smoke and dog’s tails: hunter-gatherer settlement systems and archaeological site formation. American Antiquity, v. 45, n. 1, p. 4-18, 1980.

CLARKE, David L. Spatial archaeology. London, Academic Press, 1977.

COLLINGWOOD, Robin G. The idea of nature. Oxford, Claredon Press, 1945.

DUNCAN, James S.; LEY, David. Place / culture / representation. London, Routledge, 1993.

DUNNELL, Robert C. The notion site. In: ROSSIGNOL, Jacqueline; WANDSNIDER, LuAnn (ed.). Space, time and archaeological landscapes. New York: Springer, 1992. p. 21-42.

GOLDBERG, Paul; MACPHAIL, Richard. Practical and theoretical geoarchaeology. Oxford, Blackwell, 2007.

INGOLD, Tim. Being alive: essays on movement, knowledge and description. London, Routledge, 2011.

INGOLD, Tim. The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling & skill. New York, Routledge, 2000.

JONES, Andrew. Memory and material culture. Topics in contemporary archaeology. Cambridge, Cambridge University Press, 2007.

KOHL, Philip L.; KOZELSKY, Mara; BEN-YEHUDA, Nachman. Selective remembrances: archaeology in the construction, commemoration, and consecration of national pasts. Chicago, University of Chicago Press, 2007.

LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro, Editora 34, 1991.

MROZOWSKI, Stephen A. et al. Living on the Boott: health and well being in a boardinghouse population. World Archaeology, v. 21, n. 2, p. 299-319, 1989.

O’KEEFE, Tadhg. What landscape means to me. Landscapes, v. 10, n. 1, p. 123-130, 2009.

SHACKEL, Paul A.; PALUS, Mattew. Remembering an Industrial Landscape. International Journal of Historical Archaeology, v. 10, n. 1, p. 49-71, 2006.

SOUZA, Marcos André Torres de; COSTA, Diogo Menezes. Introduction: historical archaeology and environment. In: SOUZA, Marcos André Torres de; COSTA, Diogo Menezes (ed.). Historical Archaeology and Environment. New York: Springer, 2018. p. 1-15.

THOMAS, Julian. Archaeologies of place and landscape. In: HODDER, Ian (ed.): Archaeological theory today. Cambridge: Polity Press, 2001. p. 165-186.

TILLEY, Christopher Y. A phenomenology of landscape: places, paths, and monuments. Oxford, Berg, 1994.

VAN DYKE, Ruth M.; ALCOCK, Susan E. Archaeologies of memory. Malden, Blackwell, 2003.

WILLEY, Gordon R. Prehistoric Settlement Patterns in the Virú Valley. Bulletin. Ethnology, Bureau of American. Washington D.C., 1953.

Marcos André Torres de Souza – Doutor em Antropologia por Syracuse University, EUA. Mestre em História pela Universidade Federal de Goiás. Graduado em Arqueologia pela Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro. Professor Adjunto do Museu Nacional / Universidade Federal do Rio de Janeiro, Departamento de Antropologia, Programa de Pós-Graduação em Arqueologia (PPGArq). Pesquisador do CNPq. E-mail: [email protected]

Julio Cezar Rubin de Rubin – Doutor em Geociências e Meio Ambiente pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2002). Graduado em Geologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1988). Professor Adjunto I na Pontifícia Universidade Católica de Goiás dos cursos de graduação em Arqueologia e Biologia e dos Mestrados em Ciências Ambientais e Saúde e História. E-mail: [email protected]


SOUZA, Marcos André Torres de; RUBIN, Julio Cezar Rubin de. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.13, n.2, jul. / dez., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Paisagem e memória entre Celtas e Germanos / Brathair / 2019

Paisagem e Natureza são temas que se tornaram largamente difundidos nas pesquisas em História, Arqueologia, Letras e Arte, sobretudo nos últimos vinte anos. Deixando de ser entendida apenas como um mero cenário ou “pano de fundo” para a existência humana, a paisagem passou ser entendida como construto cultural e arena central da vida social. Hoje, entendemos que paisagem é mais do que a “Natureza” ou “o mundo lá fora” em oposição à cultura e ao nosso ambiente construído. Sabemos que a paisagem é produto da interação entre seres humanos e ambientes, ou seja, é construída pela prática e experiência de comunidades e indivíduos (cf. Ingold 1993, 1996, 1998). Os atuais estudos da paisagem estão aliados ao que costumamos designar como “nova virada espacial” (cf. Bodenhamer 2010), que trazem a reflexão sobre o espaço para o centro de análise, visando compreender os processos não apenas de construção, mas igualmente de alteração da paisagem pelas formas de sociabilidade, práticas cotidianas e pela historicidade da vivência local e regional. São pesquisas que buscam, portanto, entender as articulações entre paisagens imaginadas (suas concepções, imagens e representações) e paisagens vividas (sua morfologia, ambiente construído e formas de monumentalização). É na interação dessas experiências do espaço e da paisagem que temos os usos diferenciados e processos de apropriação, que tanto nos têm interessado.

Nesse dossiê da revista Brathair, trazemos ao público brasileiro algumas dessas discussões atuais sobre os temas de paisagem e natureza aplicadas ao estudo das sociedades celtas e germânicas a partir da cultura material, dos registros históricos, assim como dos mitos e lendas dessas sociedades. Para elas, a relação entre os indivíduos e ambiente destaca-se não só como um modo de vida, uma preocupação e compreensão com a terra e o meio-ambiente em si, como largamente têm mostrado os pesquisadores de correntes ambientalistas, mas também, e sobretudo, na produção e alteração de paisagens mentais e materiais.

Aqui, esses debates estão organizados a partir de três eixos temáticos, a saber: 1) Paisagens e visões literárias; 2) Território, Etnogênese e Mitos de Origem; e 3) Construindo paisagens materiais.

No primeiro eixo, abrimos essa edição com o texto do saudoso docente da Universidade Federal Fluminense (UFF), Ciro Flammarion Cardoso† (1942-2013), que traz uma brilhante contribuição para a percepção da relação entre paisagem e religião. Nesse artigo, o autor analisa aspectos da religião nórdica na Islândia através de livros de assentamentos (Landnamabók) em suas diferentes versões e em algumas sagas, incluindo aquela que se refere a Olaf Tryggvason (contida no Heimskringla de Snorri Sturluson), abordando a relação da paisagem com as divindades locais. Fruto de sua conferência de encerramento no V Simpósio Nacional e IV Internacional de Estudos Celtas e Germânicos, ocorrido no ano de 2012, essa foi uma de suas últimas participações em eventos e agradecemos à sua família a gentileza de nos permitir a publicação desse trabalho.

Também avançando nas reflexões sobre religião e paisagem, Elva Johston, professora do University College de Dublin (UCD), analisa as relações entre paisagem, História e Literatura na obra Navigatio Sancti Brendanni Abbatis (A Viagem de São Brandão). A narrativa é um conto de viagem, abordando um percurso imaginário de uma personagem real, São Brandão, abade de Clonfert no século VI, que, de acordo com a narrativa mítica do século X teria chegado até o Paraíso Terrestre. O santo neste relato vai e volta ao mesmo ponto de partida. A autora analisa a relação da narrativa com diversos tipos de paisagem – reais, monásticas, liminares, entre outras, além de vincular esta viagem com o conceito de peregrinatio.

Seguindo em linha semelhante, mas atentando para paisagens imaginadas, Adriana Zierer, professora da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), analisa os espaços míticos cristãos, relacionados ao Inferno e Paraíso e à paisagem numa obra composta por um monge irlandês chamado Marcus, intitulada Visio Tnugdali, bem como a sua circulação no período medieval. A obra destaca a passagem de um cavaleiro pecador, após a sua morte aparente, inicialmente por lugares infernais, onde sofre por seus pecados e depois por espaços paradisíacos, com o objetivo de levar ao arrependimento e à salvação. Destaca ainda o papel dos monges nas construções de paisagens imaginárias acerca do Além Medieval e a figura de heróis irlandeses míticos, como Fergus e Connal, diabolizados no relato, guardando a imensa mandíbula de um monstro (Boca do Inferno).

Já do ponto de vista da Geografia Humanista Cultural aplicada à literatura contemporânea, Márcia Manir Feitosa, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), analisa sob o romance Um deus passeando pela brisa da tarde (1994), de Mário Carvalho. Este, considerado uma obra-prima do autor, transporta o leitor da Contemporaneidade para paisagens da Antiguidade Clássica, na Antiga Lusitânia do século II a.C. A narrativa discute os conflitos do protagonista Lúcio com o declínio dos valores da Roma Antiga e a ascensão da cultura cristã. Aqui, a autora analisa a paisagem aliada às concepções do personagem-narrador sob a ótica dos estudos literários.

No segundo eixo, Território, Etnogênese e Mitos de Origem, Vinícius C. D. Araujo, da Universidade Federal de Montes Claros (UNIMONTES), discute o mito de origem (origo gente) dos saxônios no livro 1 da Res gestae Saxonicae escrita pelo monge Widukind de Corvey (967- 74), buscando estabelecer as origens nobres deste grupo e o seu papel na ocupação das terras com o objetivo de legitimar inicialmente os saxônios, bem como, suas conexões com a dinastia Otônida e a legitimação da da monarquia imperial germânica em períodos subsequentes.

Já Elton Medeiros, docente do Centro Universitário Sumaré (SP), analisa a origem dos saxões na obra Historia Ecclesiastica da Gentis Anglorum, de Beda. Esta obra produzida no século VIII foi retomada por Alfredo, o Grande, em fins do século IX, o qual, na sua luta por afirmação contra os escandinavos e fortalecimento do território de Wessex, buscou inspiração espiritual em mitos de origem. Inspirado nas obras de Beda e em outras, defendia que os saxões eram descendentes dos hebreus e os reis do passado germânico estavam associados a uma linhagem sagrada.

Em contraste, João Lupi, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), traz uma abordagem do ponto de vista da Ciência da Religião para o estudo da mística e do misticismo na Renânia medieval. Para o autor, o idealismo germânico não apenas se fundamenta em embates contra a hierarquia eclesiástica, mas também em uma nova concepção da Divindade.

No último eixo, abordando a construção de paisagens a partir da cultura material, Maria Isabel D’Agostino Fleming e Silvana Trombetta, ambas vinculadas ao Laboratório de Arqueologia Romano-Provincial (LARP) do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo (USP) vêm pensar o caso da Península Ibérica. Enquanto, Fleming (fundadora do LARP) faz um balanço do debate peninsular e de suas implicações para a construção do “céltico”, Trombetta empreende uma análise dos enterramentos entre celtas e celtiberos, analisando a inscrição da memória na paisagem a partir das práticas funerárias.

Para além do dossiê, essa edição conta ainda com dois artigos livres, da autoria de Maria Izabel Oliveira (UFMA) sobre o pensamento do jesuíta Antônio Vieira sobre a escravidão no Brasil e de Carlos Silva (Faculdade de Letras da Universidade do Porto), acerca do substrato celta nas línguas hispânicas. Para auxiliar os pesquisadores iniciantes e experientes a edição conta com duas traduções de documentos textuais, Tiago Quintana, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apresenta a tradução de A Vingança de Amlet, registrada por escrito no século XIII, mas fruto da tradição oral dos povos nórdicos, provável ancestral de Hamlet, de Shakespeare, enquanto Cristiano Couto, doutor em História pela UFRGS, apresenta uma parte da tradução de uma importante obra da tradição mitológica irlandesa Táin Bó Cuailnge.

Por fim, essa edição é concluída com a resenha de Elisângela Morais (PPGHIS / UFMA / CAPES) sobre o livro Viagens e Espaços Imaginários na Idade Média, organizado pela docente Vânia Fróes e outros pesquisadores, que de certa forma está associado ao tema “paisagem” na medida em que os viajantes se deslocavam por novos espaços construindo novas memórias e paisagens reais e imaginárias.

Referências

BODENHAMER, D.J. The Potential of Spatial Humanities. In: BODENHAMER, D.J.; CORRIGAN, J.; HARRIS, T.M. (eds.) The Spatial Humanities: GIS and the Future of Humanities Scholarship. Bloomington / Indianápolis: Indiana University Press, 2010, pp. 14-30.

INGOLD, T. The temporality of the landscape. World Archaeology, 25, 1993, pp. 152–74.

INGOLD, T. Culture, nature, environment: steps to an ecology of life. In: CARTLEDGE, B. (Ed.). Mind, Brain and the Environment. The Linacre Lectures 1995-6. Oxford: Oxford University Press, 1998, pp. 158–80.

Adriene Baron Tacla – Docente IH / UFF / NEREIDA. E-mail: [email protected]

Adriana Zierer – Docente PPGHIST-UEMA Docente PPGHIS-UFMA. E-mail: [email protected]


TACLA, Adriene Baron; ZIERER, Adriana. Editorial. Brathair, São Luís, v.19, n.1, 2019. Acessar publicação original [DR]

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