Un altro Parmenide – ROSSETTI (RA)

ROSSETTI, L. Un altro Parmenide. 2 Vols. Bologna: Diogene Multimedia, 2017. Resenha de: SANTOS, José Trindade. Revista Archai, Brasília, n.28, p 1-14, 2020.

I

Esta recensão pode ser lida como uma denúncia do equívoco dos que encaram a História da Filosofia como o invariável repositório de doutrinas e opiniões que o aparelho universitário não cessa de repetir ad nauseam. A obra em apreço tem como finalidade desafiar provocativamente “o caráter redutor da imagem” ainda hoje corrente de Parménides, mostrando que – como “fruto de sedimentações milenárias”(contracapa) –, ignora o poder visionário e a argúcia das descobertas contidas no saber do pensador eleático sobre a natureza.

A leitura do Poema aí proposta articula um conjunto de teses, incluindo os seus pressupostos implícitos e explícitos numa interpretação polêmica, dirigida à concepção de acordo com a qual “Parménides é o ‘filósofo do ser’”(Rossetti, 2017, p. 9), pelo fato de a doutrina acerca de “o que é” constituir o todo, ou o núcleo, da sua filosofia.

Ora, é precisamente neste ponto que reside a crux que aflige a generalidade dos estudiosos do Poema, condensada em diversas questões. Se para o Eleata “o ser é algo totalizante e exclusivo”, qual é o lugar da ambivalente doxa na sua mensagem e a que intenção visará a possível inclusão dela naquilo sobre que o jovem “terá de ser informado”(B1.28; p. 121-124)? Pois, mesmo que a referência às opiniões dos mortais – exprimindo a vigorosa condenação destas (B6.4-9, B7.3-6) –, possa não coincidir com o conteúdo da doxa de Parménides (o mundo das “coisas que agora são e, em seguida, depois de se terem nutrido, lhes acontecerá morrerem”– B19.1-2; p. 126), nesta “doutrina peri physeôs”Parménides inclui teses que expressam intenções suas originais sobre diversos domínios. Do que delas se segue alguém poderá concluir que “o tema do ser […] não constituiu senão um, entre tantos outros dos seus ensinamentos”(p. 64-65).

Vejam-se (p. 34-50):

* no domínio da astronomia, a reflexão sobre o “éter”e sinais que há nele, o Sol e os efeitos da luz solar e sua proveniência (B10); a natureza da Lua, de cara voltada para o Sol, e o céu que a circunda (B10, B14, B15); como o céu se originou (B10) e a Necessidade ligou os astros e os constrangeu a observarem limites bem precisos (B10); a Terra e o “leite celeste”e o calor dos astros (B11); a defesa de as estrelas da manhã e da tarde serem o mesmo astro (Aécio: DK28 A40: p. 40; 34-35);

* no domínio da fisiologia, o funcionamento dos sentidos e a natureza humana (B16); a fecundação e geração dos corpos: B17-18; p. 54-61);

* noutros domínios, outras temáticas, cuja relevância não é diminuída pelo fato de não serem enquadráveis em áreas específicas do conhecimento (p. 61-64).

Vejam-se ainda (p. 50-55) ousadas conjeturas como: a atribuição da forma esférica à Terra (B14), a tese de que “o Sol completa o seu percurso passando debaixo da Terra”(B14-15; p. 51; vol. 2, p. 1920), a existência dos antípodas (p. 51; vol. 2, p. 33-62), o assinalar da tendência para os corpos situados sobre a superfície da Terra caírem para o centro, implicando a ausência de “acima”e “abaixo”absolutos; a existência de “faixas climáticas”(vol. 2, p. 52-55).

Esta enumeração bastará para prenunciar a iminência de um conflito entre duas visões do Poema: de um lado, as “descobertas científicas”encontradas – de algum modo referenciáveis à doxa –; do outro, a hegemonia inequivocamente conferida à doutrina do ser.

Embora a violência desta concepção hegemónica deva ser atribuída outros, nomeadamente a Melisso (p. 108-113), a Platão e à diversificada tradição que com ele se inicia (médio e neoplatônica), responsável pelo contraste entre elas será o próprio Parménides (B6, B7, B8.50-61). E isto, não tanto pela sua proposta de duas leituras distintas da realidade – se, de fato, o são –, mas por não ter apontado a relação de uma com a outra. Esta observação leva-nos a prestar atenção à estrutura do Poema, considerando o modo como os diversos argumentos que o integram nele se acham distribuídos.

O capítulo 2 responde à pergunta: “Que saber caracteriza o segundo logos?”Considerando os saberes elaborados pelo Eleata, inquire sobre o seu potencial inovador. Lendo a doxa como um diálogo com Anaximandro (ver a doxografia do Milésio) e outros cosmologistas, configura este saber como “o primeiro passo, decisivo, em direção à ontologia”(p. 87), considerando-o “um saber incômodo, bem depressa posto de lado”(pelas doutrinas dos pluralistas: p. 81).

O capítulo 3 (p. 93-117) começa por referir-se a um Parménides “astrónomo”, “geólogo”e “biólogo”– não menos que filósofo –, para se concentrar sobre a divisória que separa a “Verdade”da “doxa”. Termina se interrogando sobre se deve se entender como a “filosofia da Parménides”. Passos de charneira, fórmulas de transição e raciocínios metadiscursivos.

A seção dedicada aos seis ou sete passos de charneira que o A. destaca, (p. 159-160) começa pela enumeração dos índices metadiscursivos usados no Poema: (“escuta atentamente”(B1.28), “começarei por ensinar-te A …”(B1. 29-32), “te digo quais estradas”(B2.1-2), “há muitos sinais … “(B8.3-4); “acabado o ensino de A, …”(B8.50-52), “agora te desvelarei …”(B10-11), até “e assim ficam as coisas …”(B19: 159), assinalando depois o, na época, raro uso de fórmulas de transição quando o argumento muda (p. 160). A finalidade destes passos é organizar o material que será exposto (p. 160-161), desenvolvendo um modelo estrutural de fixação e transmissão de conteúdos (ver: p. 61-64; vol. 2, p. 113-148).

Para muitos comentadores, B1.29-32 articula as duas seções do Poema que a tradição designou ‘Verdade’ e ‘Opinião’ (B2-B8.50, B8.51-B19). O A. discorda, encontrando diferenças estruturais entre este final de B1 e B8.50-51, lhes conferindo um tratamento diferenciado e levantando problemas de natureza distinta.

A segunda transição é inquestionável e acha-se perfeitamente marcada (B8.50-51). A outra é, contudo, objeto de debate, sendo contestada pelo A., que não crê que o segundo logos (o saber sobre a natureza) possa ser anunciado de forma tão reducionista (p. 121-129).

Por um lado, defende que a transição abrupta da Verdade para a Opinião (en tôi soi pauô: B8.50a), aliada à circunstância de “a deusa não volta r ao argumento do ser”, mostra que esse não-retorno a to eon “evita que o seu potencial se destacasse”“deixando inconclusiva a ontologia de Parménides”(p. 99). Por isso, este complexo “não originou nenhum material sistêmico, nem deu lugar a nenhuma doutrina dotada de virtualidades sistêmicas”(p. 114). Tendo se configurado como uma inconsciente e não intencional “filosofia virtual”(p. 21, 115, passim), acabou “dando lugar a implicações sistêmicas”, porém, “não só dezenas de anos depois, como, por iniciativa de outras mentes”(p. 115).

Por outro lado, e pelo contrário – apesar de a ambas as formulações ser comum o caráter paratático (exposição sequencial: “A depois B”) –, o passo B1.28b-32 é gerador de confusão, pois, a realidade ficaria dividida em “ser e doxai “(acrescendo que todo tipo de ‘opiniões’ – as do vulgo e as do “homem sabedor”– ficariam na mesma categoria: p. 101-102, 122-123).

A dificuldade foi objeto de análises por diversos intérpretes. Por exemplo, confirmando Cordero, Bredlow advoga a distinção das “opiniões dos mortais e das teorias físicas”(p. 125). Mas o recurso a Simplício (Cael.558.3-11) leva o A. duvidar do mérito da proposta, recomendando fortemente “a abstenção”do intérprete e reforçando a “debilidade”de B1.28-32 (p. 127-128; 1 46-157: onde o Proémio é recontextualizado numa “Retrospetiva”, na qual, mediante o recursos a outros comentadores, o conteúdo mítico de B1 é revalorizado).

No capítulo 4 – “Parménides e o irracional”(p. 119-157) –, o A. examina pontualmente alguns passos problemáticos. (B6, B7 e B8.38b), no que diz respeito à relação entre “o saber do ser”e o da “natureza”, ou à sua ausência, bem como às implicações da “debilidade”que esta ausência constitui. No entanto, nos fragmentos da “Verdade”em que “opiniões dos mortais”são avaliadas (p. 129-135), a análise oferecida pelo A. não diverge significativamente das leituras correntes destes passos (não essenciais para o objetivo de revalorizar o saber naturalístico de Parménides: p. 135).

Sempre em relação com a contaminação de “é”por “não é”, é conferida atenção a B8.38b-41. Mas dela sai reforçada a conclusão já manifesta de em nada o texto poder “estabelecer uma ponte entre ser e mundo real”(p. 139). E a incomunicabilidade entre um e outro é confirmada pela assunção da inexistência de quaisquer elementos de ligação entre o primeiro e o segundo logos (p. 140-143), ainda reforçada pela não manifestação de elementos que permitam, neste último, estabelecer relações com o saber do ser (p. 143-146).

II

Contrastando com a diversidade temática do I volume, que integra  capítulos  com  funções  e  abordagens  bem  distintas  na economia da Obra, o II é quase todo dedicado ao aprofundamento do saber Peri physeôs de Parménides. É prestada detida atenção ao enquadramento dos fragmentos analisados num amplo contexto doxográfico,  oportunamente  apoiado  por  frequentes  referências bibliográficas.

Começando com “A Lua segundo Parménides (em B15)”(p. 15-32), são depois abordados: “Na origem da noção de antípodas (em sentido inverso, de Platão a Parménides)”(p. 33-62); “Patrimônio genético e identidade sexual (em B18)”(p. 63-84), com um apêndice, “Fecundação e geração segundo os médicos hipocráticos”(p. 85-96); “Direita-Esquerda e tantas figuras femininas”(p. 97-112).

Retornando à temática relativa à demonstração, se chega então a uma análise da argumentação desenvolvida em B8 “A arte da demonstração (em B8.1-33)”(p. 113-147). A ele se segue um extenso e bem articulado “Epílogo”(p. 149-184), em que é esboçado u m conjunto de questões geradas pelas teses desenvolvidas na Obra. A ele se sucedem as “Referências bibliográficas”(p. 185-199) e o “Índice dos nomes”(p. 201-206).

Após a enumeração dos fragmentos dos Poema em que é feita referência à Lua (B10.4-5, B14, B 15), o capítulo 5 (na sequência dos quatro que integram o I volume) concentra-se em duas questões. A primeira respeita à análise da doxografia, relativamente às variantes “pseudophaê “(“falsa luz”: Aécio, em DK28 A42; ver Diógenes Laércio 2.1, Anaximandro, DK12 A1) e “pseudophanê “(“falso esplendor”: Aécio 2.30.4, DK28 B21). O interesse da questão reside na atribuição à Lua de alguma luz própria, em pseudophaê, contra a explicação do luar como reflexo da luz solar, em pseudophanê.

Esta última possibilidade, em particular, é reveladora da imensa importância de B15 no grupo das referências do Eleata à Lua. “Sempre voltada e pronta aos olhares do Sol”atesta a profundidade da intuição de Parménides ao compor, na observação da Lua, simultaneamente, as perspectiv as, da Terra, no luar, e do Sol (iluminada por uma “luz estrangeira”: B14). A partir desta constatação, apoiando-se em A. Mourelatos (“Parmenides, Early Greek Astronomy and Modern Scientific Realism”), o A. expõe as oito principais consequências de B15 para a Ciência Grega, das quais se destacam:

  1. A Lua tem forma esférica;
  2. É um corpo sólido, por si, opaco;
  3. [No seu movimento] passa sob a Terra;
  4. [No seu movimento] o Sol passa sob a Terra;
  5. As órbitas dos corpos luminosos não são arcos, mas círculos completos.
  6. A órbita do Sol é maior que a da Lua

O capítulo 6, na sua maior parte, consiste numa ampla pesquisa sobre textos de diversos autores antigos, cuja finalidade é fortalecer a conjetura de acordo com a qual a noção de ‘antípodas’, bem como a teoria sobre as zonas climáticas, estão pelo menos implícitas em Parménides. A partir de dois passos do comentário de Proclo ao Paménides platônico, aos quais é agregada a única utilização do termo  nos  diálogos  (antipous: Tim. 63a3),  a  pesquisa  é sucessivamente alargada a Aristóteles, Eratóstenes, Lucrécio, Cícero e outros, relativamente aos climas e à forma da Terra.

Os dados compilados podem então convergir no Eleata mediante o recurso a numerosas outras fontes doxográficas (nomeadamente a Estrabão, Geogr.1. 84: DK28 A44a, cuja posição é amplamente comentada: p. 53-56; e Aristóteles, Meteor. 2.5, 2.7: p. 41-44, 56-59). Podemos talvez supor que remonte a Parménides a circulação na doxografia de uma teoria sobre a existência de três zonas climáticas: uma temperada, limitada a sul por uma tórrida, e a norte por outra, fria. A teoria é reforçada pelo registro de observações sobre a variação na direção das sombras ao viajar para Sul.

Embora seja integralmente dedicado a B18, o capítulo 7 aborda uma conjunto de teses cuja discussão se prolonga nos seguintes, incorporando um “Apêndice”(da autoria de Franco Giorgianni). Depois de uma introdução, justificada pela circunstância de nos encontrarmos perante uma tradução latina do original grego, do séc. IV d.C., realizada por Célio Aure liano (p. 63-67), o A. aborda a primeira tese a debater: para a fecundação, macho e fêmea concorrem (Censorino: DK24 A13), ou não (Ésquilo, Eum. 658-666; Eurípides, Or. 552 ss.; Aristóteles sobre Anaxágoras: GA 4.1 763b30: DK59 A107, passim), com dois patrimónios genéticos distintos?

De acordo com a primeira tese, da fusão dos patrimônios genéticos presentes nos dois espermas resulta, quando tudo corre bem, uma virtus que vai determinar a formação do feto de uma fêmea ou de um macho, preservando o equilíbrio (B18.1-3). Quando não corre bem, contudo, e os dois patrimônios guerreiam um com o outro (ibid. 4-6), devido a uma incerta identidade sexual, podem ocorrer: seja a manifestação de comportamentos homossexuais, seja casos de hermafroditismo (H. Diels, M. J. Henn), seja a incapacidade para decidir qual das duas interpretações aceitar (Tarán). Uma outra explicação  para  a  determinação  do  sexo  do  feto  reside  na possibilidade de, da perspectiva de B17, aquele se formar à direita ou à esquerda do útero, gerando m achos ou fêmeas (Lactâncio: DK28 A54; E. Lesky, O. Kember, G. Lloyd).

O breve apêndice “Fecundação e geração segundo os médicos hipocráticos”analisa a teoria atribuída a Parménides, atrás exposta, detendo-se sobre as “Provas a favor da existência de um contributo feminino para a geração”(p. 86-89). Passando à “Teoria do duplo sêmen”(p. 89-91), evidencia a “Difusão entre os médicos hipocráticos da teoria do sêmen feminino”(p. 92-94), em particular a do “duplo sêmen”, que acentua a prevalência do “poder d o número”sobre a eventual “força”ou “fraqueza”do sêmen (Geração/Natureza da criança 6.2; ver cap. 4.1).

Com uma nota conjetural (p. 107-111), o capítulo 8 encerra o trajeto esboçado por B17-18 em torno de questões de gênero, emergentes das problemáticas da fecundação e da geração dos seres humanos. Notando a abundância de referências ao gênero feminino – começando em B1 com as “éguas”(v. 1, 4, 15, 21, 25) e continuando com as “jovens”(v. 5, 15, 21) “filhas do Sol”(9), condutoras do carro que  transporta o “jovem”(v. 24) “homem sabedor”(v. 3), culminando na presença da “deusa”(v. 3, 22) que o acolhe, e a presença desta divindade cósmica –, o A. sugere o interesse de Parménides pela “valorização do feminino”. A menção “da divindade que tudo governa, rainha absoluta do odioso parto e do coito”, que impele macho e fêmea um para o outro (B12. 3-6), “põe em evidência o protagonismo da componente feminina”(p. 106), apontando o Eleata como “o primeiro [… ] entre os intelectuais capazes de perceber nitidamente a exigência de se descondicionar do machismo e deixar entrever uma bem diversa ideia sobre as relações de gênero”(p. 111).

Com a entrada no capítulo 9, caímos diretamente na polêmica entre os intérpretes que vêem no Da natureza um tratado de Lógica, ou ao menos um seu precursor, e aqueles que não acham no texto “inequívocos traços de formalização dos enunciados”(p. 113). Dos primeiros, o A. faz diversas citações, que de seguida questiona, inquirindo de que construções lógicas constituem o prelúdio (p. 119) e propondo como paradigmas obras de Górgias (DK68 B3) e os fragmentos 1, 7 e 8, de Melisso (p. 120-123).

Passa então, pelo elenco dos conectores relevantes (p. 124), a enumerar exemplos de “relações hipotáticas”e do princípio “quod erat demonstrandum “(p. 123 ss.). Após a apresentação da lista de demonstranda, é construída uma cadeia inferencial, periodicamente selada com expressões equivalentes ao QED dos matemáticos (p. 132), conducente à “formalização de um percurso inferencial, mos Euclideum “(p. 133). O objetivo é conceder à audiência o direito ao acordo, em contextos fortemente contraintuitivos, delineando um modelo argumentativo, exemplificado nos textos atrás referidos de Górgias e Melisso (p. 134-142; ver vol. 1, p. 108-113).

No sentido da influência exercida sobre Górgias – penso –, Parménides poderá ser visto como “um mestre da retórica”, que “constrói discursos com alto quociente epistêmico”, “que suscitam a aprovação da audiência”(p. 143). Expressa como uma submissão, esta é, mediante a colocação da “persuasão ao serviço da verdade”(B2.4; p. 145), surpreendentemente “vista como gratificante”(p. 143-144). Este efeito retórico (p. 143) é obtido pelo recurso à reductio ad impossibilem, através do uso “sistemático da ideia da total insustentabilidade daquilo que é contraditório”(p. 146).

No Epílogo (p. 149-183), passando em revista as principais teses desenvolvidas ao longo da Obra, o A. articula um conjunto de questões que delas decorrem:

1. É evidentemente necessário alterar a “imagem de Parménides”que a tradição nos legou. Por um lado, porque “a doutrina do ser não chega a configurar-se como um ensino dotado de virtualidades sistêmicas ”; por outro, por ser mister reconhecer que “o ensinamento de Parménides sobre céu, Terra e organism os vivos é mais articulado do que a comunidade científica tem até agora reconhecido”(p. 149).

2. Registrando a dificuldade de integrar a doutrina do ser no todo do Poema, deve se constatar que, após B8.50, “do saber sobre o ser [… ] a deusa nada faz, quase como se não soubesse que fazer dele”(p. 157).

3. Por isto, é altura de reconhecer que foi Melisso quem não se deteve no ponto em que a deusa parou, sustentando que: “‘ se a terra, o ar, a água, o fogo ’, etc., ‘ fossem de verdade, não se transformariam ’ (DK 30 B8.2-5), portanto, ‘ que deveriam ser como eu digo que o uno é ’ “(ibid. 7; p. 163). Deste modo, “começamos a compreender como Parménides pode acolher  sem  dificuldade  no  Poema  o  saber naturalístico, enquanto Melisso se desembaraça dele a ponto de lhe não fazer menção”(p. 164).

4. A pergunta sobre o modo como se chega ao primado de “é”– ou de “o que é”– começa por apontar para a justificação em que se apoia para rapidamente se fixar na “potência da proibição de se contradizer”(p. 165; B7.1). “Se X é, então seguramente de X não pode se dizer que não é, porque apenas dissemos que é. Se X não é, então seguramente de X não pode se dizer que é, porque apenas dissemos que não é”, sem qualquer possibilidade de coabitação, ou de combinação entre “é”e “não é”(p. 166).

Esta  obrigação  de pensar  sob  a  ameaça  da contradição gera um ente de razão ante litteram, vivendo numa terra de ninguém, que não tem modo de por-se em reação com o mundo em que vivemos […]. Com isto nos avizinhamos de toda ontologia [… ]. (p. 167-168)

5. Sobre o alcance das propostas do Poema, há que reconhecer que se trata de um ponto de chegada, que “põe à disposição da humanidade uma modalidade inédita de organização e objetivação de ideias [… ] “(p. 168-169). Esboçado “um segundo inventário das ideias filosoficamente relevantes”, colhidas nos setenta e cinco hexâmetros estudados (p. 169-171), o A. dá conta que delas resultam duas “conspícuas primícias”, duas artes: “da demonstração”e “da comunicação”de um saber estruturado, capaz de convencer, de uma “arte de ensinar”, condensando conjuntamente “retórica, lógica, didática e especulação”, uma “máquina que não funcionaria se os seus componentes não  concorressem  de  modo  apropriado  ao conseguimento de um resultado final”(p. 172).

6. Ameaçando a estabilidade deste constructo, o A. nota dois ou três “fatores de fragilidade encontráveis na doutrina do ser”(p. 173-177). O primeiro, motivado pela circunstância de o termo ‘ser’ ser refratário à análise, explica que se circunscreva ao uso de uma categoria profissional: a dos “filósofos”(p. 174-175). Nascem desta constatação duas ingentes perguntas: 1. Estamos seguros de que à palavra corresponda uma realidade? 2. Ou podemos afirmar que Parménides nos revelou uma Grande Verdade? Como se explica que par a falar de to eon a deusa tenha recorrido à negação, que ela mesma interditou? (p. 175). Com isto, a deusa edificou um “‘ ente de razão ’, mas ‘ deixou ficar ’ a realidade “(p. 177).

7. Haverá uma “filosofia de Parménides”? Tiveram de “passar séculos para que se  começasse  a  falar  de  uma ‘ filosofia  de Parménides ’ ”, pois Platão, Aristóteles, Teofrasto e muitos outros se referem aos seus ensinamentos, sem neles encontrar “a sua filosofia”(p. 178). Esta será uma “filosofia virtual”que mal conseguirá dizer “que id eia fará Parménides do nosso mundo”. Faltando à teoria o se achar ancorada na realidade e o desenvolvimento do potencial sistêmico, “restam apenas dados de fato”(p. 179).

Quanto à noção de ‘verdade’, pode se dizer que no Poema o termo se mostra a par de uma variedade de expressões associadas. “Em particular, o percurso demonstrativo parece ser regido pela tentativa de dizer que a contradição do não-ser serve para discriminar impecavelmente o verdadeiro e o falso. Mas falta compreender se o tema da verdade se constitui como uma ideia-guia, ou se tomou a forma de um embrião de epistemologia ante litteram “(p. 179-180).

8. Talvez a mais surpreendente conquista do saber de Parménides esteja condensada no modo como da sua polymathia deriva uma lição de método. Pois, cada uma das descobertas atrás referidas implica uma rede conceitual profunda, inacessível ao comum dos mortais, como será evidente pela atualidade de algumas das suas descobertas (p. 181-182).

III

Em breve avaliação, considero essencial a atenção concedida a esta Obra por quantos – na docência ou na pesquisa – se confrontam com a necessidade de apontar o contributo de Parménides para a Filosofia. Parece-me urgente que não fiquem indiferentes à denúncia da inautenticidade da imagem do pensador que a prática corrente divulga. Tendo o juízo sobre o mérito comparativo das leituras “ontologista”e “naturalista”do Eleata de ser feito por cada um, é capital que o façam com o conhecimento de causa que esta Obra substancia.

Dito isto, estaria tudo dito, se a questão fosse fácil. Mas não é, porque a imagem de Parménides que ficou na tradição, como o Diels-Kranz a registra, está focada no “filósofo do Ser”(bastará referir a conjetura “afasto”– B6.3b – e os “meros nomes”, de B8.38b). Mas pensemos em Melisso, em Platão – para quem o ser é a “verdadeira realidade”– e em Aristóteles – para quem não é –; em Plotino e na linhagem que dele deriva. Ora, como entender o lugar do Eleata, nos diálogos de Platão, ou, na Física, de Aristóteles (A2-3), sem as teorias da “unidade e imobilidade do Ser”? Como entender estas obras sem encontrar no Poema as teses que as motivam?

A incompatibilidade da teoria do ser com o saber naturalístico leva-nos a atribuir ao Eleata uma teoria que ele nunca defendeu, ao custo de ignorarmos os saberes que fixou com as suas próprias palavras.  Mas  era  impossível  que  assim  não  fosse,  já  que  o ‘Parménides’ que a História da Filosofia fixou existe sobretudo, se não apenas, nas obras dos que o comentaram (vol. 1, p. 115), ficando o silêncio dos pluralistas como testemunho da quase nula atenção prestada ao seu saber sobre a natureza (vol. 1, p. 1).

Não é, porém, caso para desesperar, pois deverá haver uma diversidade de soluções para o conundrum criado pelo intransponível obstáculo que o argumento da “Verdade”opõe a qualquer outra forma de saber.

Seja como for, não é este o lugar para as propor.

Referências

ROSSETTI, L. (2017). Un altro Parmenide. 2 Vols. Bologna, Diogene Multimedia.

José Trindade Santos – Universidade Federal do Ceará – Fortaleza – CE – Brasil. http://orcid.org/0000-0002-0631-4348, E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

I Precetti della Dea: Non Essere e Contraddizione in Parmenide di Elea – GALGANO (RA)

GALGANO, Nicola Stefano. I Precetti della Dea: Non Essere e Contraddizione in Parmenide di Elea. Bologna: Diogene Multimedia, 2017. Resenha de: PRIVITELLO, Lucio Angelo. Revista Archai, Brasília, n.25, p. 1-7, 2019.

Nicola Stefano Galgano (2017), I Precetti della Dea: Non Essere e Contraddizione in Parmenide di Elea deserves to be seriously considered for translation into various languages. In this text, there resides a truly persuaded Parmenidean spirit, one that has lived by an inspired  vision,  while  having  demonstrated  the  courage,  and measured cr aft in carving out its fortune. Due to its length and its conjectures, dutiful scholarship, and engagement with many studies and scholars of Parmenides, this admirable text also deserves a substantially longer critical review, of which this can merely serv e as a short preface. To my delight, Galgano realizes how discussions in Parmenidean  scholarship  can  easily  slip  into  fields  of  battle (Galgano, 2017, p. 216), and yet, even though Galgano has wounded, or tried to wound, more than a few theoretical positio ns, or details therein, and suffered his own wounds, his overall strategy remains “un discourse affidabile”(a trustworthy discourse) (Galgano, 2017, p. 207). With atremes ētor, Galgano seeks to follow the maxims of the goddess.

Even though the field and s ubfields of Parmenidean studies receive careful tending, more than a few brambles, thorns, and brier impede the way to its fruits. The fields of battle of scholarship tend to proliferate their own ensnaring bittersweet vines and creepers. There is a tenden cy for this to hinder and haunt the very composition of scholarly texts, of which Galgano’s is no exception. These texts become greater puzzles than what has remained of Parmenides’ poem. Hope for a greater unanimity of interpretation (Galgano, 2017, p. 13) is impossible without first retranslating and resequencing the fragment citations. This applies to puzzles that are philosophical, purely textual-philological, or stylistic (Galgano, 2017, p. 28-29, 58). Galgano offers us some delightful and telling tran slations of various fragment lines, and the reader would hope for a full view of the poem. Though Galgano accepts and uses the DK order of the fragments (Galgano, 2017, p. 37, n. 22) with very few exceptions, he gives Diels-Kranz the lie by stating that th e division of the poem in two parts (alētheia and doxa) is purely and superficially (and justly, I might add), a “didactic cliché”(Galgano, 2017, p. 102). However, Galgano then waivers. He sees the two parts of the poem as Parmenides’ two separate respons es to inherent human cognitive distortion (Galgano, 2017, p. 169). Galgano should follow this text with a new translation and sequence of Parmenides’ poem.

A few irksome thorns are: under 2.5 Il frammento 4, on page 69, should read see 6.2 “Il frammento 4”page 189, not 187, but more importantly 2.5 should be expunged from the text. After 2.6.2 “I versi 6.4-9”, the table of contents must include the important subsections and titles from 2.6.2.1 through 2.6.2.6. The same applies for the important subsections 3.2.4.1, “La meditazione del non essere”through 3.2.4.5 that follow section 3.2.4 “Il secondo cammino (versi 5-8)”. Subsection 4.1.1.1 “I versi 6.3-4”is also missing from the contents page as is 4.2.2.1 “I versi 8.6b-7a”, 4.2.2.2 “I versi 8.7b-9a”, and 4.2.2.3, “Ripresa dei versi 8.7b-9a”. The table of contents for part 6 also requires 6.1.2.1 “Versi 12 e 13a”that should read “Versi 8.12 e 13a”and the same would apply to 6.1.2.2, read “Versi 8.13b-15a”, and 6.1.2.3 “Versi 8.15-18”. While these editoria l minutiae seem inconsequential, the puzzle pieces of a text should retain the utmost clarity   in   outline   and   comprehensiveness.   As   a   final recommendation, and due to firmly believing in the worth of Galgano’s text, and its hopeful lives in translation, or in a second Italian edition, there is need of a carefully crafted Index Locorum, Index of Authors, and a general index. These will greatly enhance the “cammino di ricerca”already provided.

Galgano’s focus is found, and gains its fascination, from the Par menidean theme of to me eon (that which is not). In tracking its many mentions through the poem, we confront the Eleatic aporia, and the object of the text, viz., to overcome the history of relegating nonbeing to a formal logic or linguistic operation, an d instead to see it as the very condition of the possibility of contradiction and the foundational comportment of human cognitive behavior. Galgano claims that the turning away from investigating to me eon (that which is not) derives from Plato, who was th e first to use and incorporate snippets of Parmenides’ poem. Galgano was justly bewildered at the vastness of his undertaking when embarking on this thematic journey (Galgano, 2017, p. 23), and more so in framing Parmenides as the first psychologist (p. 26). Nietzsche must be turning in his grave. Galgano also states that Parmenides is “the philosopher of non-being”(Galgano, 2017, p. 109), and “invented the notion of non being”(Galgano, 2017, p. 163). At this point, the reader’s lifeline appears taut betw een M. J. Henn’s category of “ontophobia”, and a quase eastern function of nihilphilia. This is due to the chase after contradictions (oute phrasais) and negative definitions that will inevitably point (phrazō) back to the subject’s cognitive operations; o r more realistically, their juridical/social Ecce Animus from the impasse of living in nots (Galgano, 2017, p. 131, n. 143, and p. 132).

Present in Galgano’s text is a highly speculative example of comparative philosophy that sneaks in (and is then brushed off) due to having sidestepped the everyday position of Parmenides as legislator, and healer to his Elean community. As a deeply respected lawgiver (in the spirit of Solon, Cadrondas, or Zaleucus), Parmenides would have plenty of examples, (and was an awe some example), with no need to import something new from the Chāndogya Upani ṣ had, to teach  an  Elean kouros of  their  social  and  juridical  duties  in trustworthy speech (Galgano, 2017, p. 151-153, 163, n. 163, p. 207). The realism Galgano is after is a social ontology, more than a gnosiological realism, or even a cosmology, and this is mentioned, but quickly glossed over, as “la dignità esistenziale di ogni essere, il che impone l’impossibilità di eliminare qualunque essere, anche quello che si giudica – in un modo o nell’altro, a torto o a ragione…”(the existential dignity of every being, that sets the impossibility to eliminate any being, even one which is judged – in one way or the other, whether wrong or right) (Galgano, 2017, p. 166). Here we see the  hard kernel  (zoccolo  duro),  and  distinctive  isonomy  of Parmenides’ approach, and perhaps the very reason for the poem’s existence, and a page out of the book of the concrete everydayness of a social setting. Parmenides’ poem has a pre-Epicurean undertone to it from being directed at his community as a way to secure conviction in their social/cultural setting, and the world/phenomena around them, while remaining free from the disturbance of contrived unthinkable paths and hearsay. Galgano timidly gestures toward s this, but overlooks it in his otherwise very commendable text (Galgano, 2017, p. 91, 171, 177-178, 213), and his own lived and supported “quotidianità dello sviluppo della ricerca del libro”mentioned on page 216. This would have answered Galgano’s searc h for the possibility of “un altra struttura cognitive”(Galgano, 2017, p. 177-178). Look no further than to the social/cultural being, and that would in turn answer to “natural”, “super-natural”, and cognitive eccentricities (p. 178). This is how the thre e precepts of the goddess (Galgano, 2017, p. 213) return as one, for “it is all the same/ from where I begin; from there I return back again”(DK 5.1-2, best placed as fragment 2).

What presents a deeper problem (inciting further rereading of the text) is Galgano’s view of Parmenides as psychologist. On a trivial level, of course he was. On a more profound level, certainly, but as an iatromantis. Recall, “Parmenide figlio di Pyrês, Ouliadês, medico”; sounds more Freudian with a touch of Rank, Jung, or Reik, if anything. Yet, it is not clear, nor explained in any detail, what type of cognitive psychology, or “cognitive operations”, (which is Galgano’s favorite and overused nomenclature), is at stake (Galgano, 2017, p. 84, 86-88, 92-93, 98, 179, 192, 210). Cog nitivist? No individual can internalize a total system of language, and this problematizes nativism. A system (or operation) is only lived as consensual practices by an entire society, culturally acquired and emergent  over  time,  and  afterwards  merely  appro ximated  by idealized theories in a general heuristic sense. Galgano does not point out what specific innate capacities are acquired, save perhaps the most basic laws of logic (Galgano, 2017, p. 168-177). The term polypeiron points in a direction of cultura l and socially acquired experiences, and should be further pursued (Galgano, 2017, p. 85, n. 88-89, and p. 86), and might even lead to an actual direction in a specific cognitivist methodology known as pattern recognition. In all, very general mentions on psychology are present throughout the text, beginning on page 14, through to page 100, then disappearing until page 168, and again mentioned up until page 210. There Galgano states that Parmenides the psychologist would “probably be what we today call cogn itivist”. Unlikely. All this is very unhelpful without actual details as to issues of attention, memory, consciousness, perception, and thinking. To substitute “operare cognitivamente”for noein does not cut the muster (Galgano, 2017, p. 70). We are not su re if Galgano is pointing towards an extreme, moderate, or a cognitivist position at all. Perhaps Galgano is wrestling with Parmenides as a social psychologist, but not enough is given to the reader for that methodology. We might be able to dig out some ex amples of cognitively innate (and unavoidable) competence from what Galgano presents from crucial terms in Parmenides fragment 6, that follow chapter 2.6.2 “I versi 6.4-9. Yet, could these not be purely socially acquired conceptual abilities, or social con tingencies of language acquisition? How particular and extensive are these possible innate competences? This would jeopardize, or at least problematize, any robust cognitivist or nativist reading.

Engaging these mentions would require a substantially longe r, and more detailed critical review. What remains to be questioned, and then developed by Galgano (as if he has not done enough already), is his claim that his is a study on the “psychology”in the work of Parmenides (Galgano, 2017, p. 26, 34-35, 39, 50, 70) that has not been previously undertaken in a sustained manner. We must then ask Galgano for a clear and distinct list of what he calls a “vocabolario psicologico”(Galgano, 2017, p. 68, 71, 83, 194). Without this list, we remain without the resources (amēchaniē) to conclude anything about Parmenides as psychologist. More than a cognitivist approach, the readings of specific terms, and fragments, especially fragment 6, could lead to an even more radical Lacanian approach, and stepping through  the  snares, registers  and  knots  of  the  Imaginary,  the Symbolic, and the Real (Galgano, 2017, p. 69-81). However, Lacan would side with Heraclitus. In all, Parmenidean studies is lucky to have Galgano on their side as a valiant scholar in the field.

ReferênciaS

GALGANO, N.S (2017). I Precetti della Dea: Non Essere e Contraddizione in Parmenide di Elea. Bologna, Diogene Multimedia.

Lucio Angelo Privitello – Stockton University – Galloway – NJ – USA. https://orcid.org/0000-0002-5875-6068. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original