História e Patrimônio Industrial / Faces da História / 2017

A temática do Patrimônio vem ganhando cada vez mais espaço dentro das discussões do campo da História. Um esforço realizado não apenas por historiadores, mas por diversos pesquisadores de diversas áreas acadêmicas. Dentre as diversas possibilidades de compreensão dessa temática, temos as que se dedicam às estruturas provenientes da industrialização, que atualmente ganha destaque nas pesquisas nacionais.

De modo geral, as primeiras iniciativas que destacaram os vestígios industriais e sua importância, ocorreram na Inglaterra, por volta dos anos de 1950. Passado mais de uma década de discussões, em 1965, seria promovido um inventário do patrimônio industrial britânico e, a partir dai, a discussão ganharia mais espaço em diferentes países, surgindo nos anos seguintes, espaços de preservação de estruturas e vestígios industriais. Congressos e Convenções para discutir a temática, também se tornaram mais frequentes. Já em finais dos anos de 1970 e início de 1980, após a criação do Comitê Internacional para Conservação do Patrimônio Industrial – TICCHI, durante o Terceiro Congresso Internacional para a Conservação dos Monumentos Industriais, na Suécia (1978), a temática do patrimônio industrial é reconhecida institucionalmente e ganha destaque e força nas discussões acadêmicas em diversos países.

No Brasil, o tema e preocupação com estruturas e vestígios da industrialização ganhou destaque na academia a partir de finais dos anos de 1980 e início de 1990. Contudo, a preservação de bens, que hoje são caracterizados como patrimônios industriais, remetem os anos de 1950, quando foi considerado e preservado como patrimônio nacional o trecho da ferrovia Mauá-Fragoso e a locomotiva a vapor “Baronesa” (1954), e as estruturas remanescentes da Real Fábrica de Ferro São João de Ipanema, em Iperó (1964). Dentre os diferentes tipos de Patrimônio Industrial, o Ferroviário se destaca, principalmente, a partir da promulgação da lei 11.483 de 31 de maio de 2007, em que as estruturas e complexos ferroviários foram reconhecidos como patrimônio e necessários à preservação da memória e história nacional, devendo ser preservadas pelo IPHAN.

Assim, o dossiê que se segue é pautado pelo objetivo de apresentar resultados de pesquisas que tenham em foco a análise do Patrimônio Industrial e de seus conteúdos, buscando demonstrar seu caráter amplo e, dentro do possível, multidisciplinar, e suas relações com o universo social, político e cultural.

Nossa proposta foi sistematizada e composta por uma entrevista e 7 artigos, de especialistas de diferentes áreas acadêmicas, o que engrandece ainda mais a temática, trazendo diferentes perspectivas e olhares que contribuem para o enriquecimento da História. A entrevista foi feita com o historiador português José Lopes Cordeiro, pesquisador de grande importância mundial para a temática do Patrimônio e um dos responsáveis por chamar a atenção para a importância do Patrimônio Industrial e suas possibilidades.

Na seção de artigos, o primeiro texto é Reflexões acerca do Conceito de Patrimônio Cultural sob a Ótica do Patrimônio Industrial e da Arqueologia Industrial, de autoria de Ronaldo André Rodrigues da Silva e José Manuel Lopes Cordeiro. Os autores dissertam sobre a evolução histórica da ideia de patrimônio, problematizando o surgimento do conceito / ideia de Patrimônio Industrial, demonstrando sua importância para a compreensão socioeconômica e cultural da sociedade brasileira.

Por sua vez, o texto de Daniela Pistorello, Uma usina hidrelétrica ao sul do Brasil: tombar para preservar?, problematiza a ideia de preservação de estruturas industriais no país. Ao contextualizar o processo de tombamento e inscrição de seu objeto, a Usina Hidrelétrica Gustavo Richard (Santa Catarina), demonstra que a preservação gera diversos conflitos de interesses entre órgãos e secretarias, o que, por sua vez, acabou deixando a estrutura em questão sem qualquer uso, ou melhorias, sendo então o tombamento ineficaz ao propósito do Patrimônio.

Outras autoras também se debruçaram sobre um objeto em Santa Catariana, Michele Gonçalves Cardoso e Elaine Rodrigues, em Indústria Carbonífera em Siderópolis: Reflexões e disputas em torno dos patrimônios da Companhia de Siderurgia Nacional. Não obstante à Daniela Pistorello, relatam as disputas em torno do uso e preservação das estruturas da CSN, após o término de suas atividades no município em questão. Por meio de fontes orais, as pesquisadoras demonstram as diferentes tentativas de preservação e memória dos diferentes grupos e agentes, problematizando seus interesses e o processo de tombamento e preservação pelo poder público.

Em Biscoitos históricos: a musealização da Fábrica Leal Santos – Rio Grande / RS, Oliva Silva Nery discute a ideia de Patrimônio, com foco no Industrial, buscando compreender as possibilidades na reutilização de bens patrimoniais para compreender a história local. Em seu estudo, dedica-se às propostas de musealização de objetos de uma fábrica de biscoitos, parte do acervo de um museu local, a fim de problematizar a real abrangência e eficiência desse modelo de preservação patrimonial e se realmente contribui para preservação da história e memória.

Por fim, contamos com três manuscritos que se dedicam à compreensão de estruturas industriais similares e que, atualmente, é a mais discutida: as estruturas e complexos ferroviários. O primeiro texto a tratar dessa temática é o de Taís Schiavon, Patrimônio da Mobilidade no Brasil e o processo de identificação e valorização do território. Ferrovias e as paisagens industriais da região Oeste do Estado de São Paulo. Partindo da compreensão das estruturas ferroviárias enquanto estruturas da industrialização, essa autora faz um retrospecto histórico das ferrovias paulistas e sua função estruturante, como impulsionadora do surgimento de centros urbanos. Problematiza a relação das ferrovias com o crescimento e desenvolvimento, não apenas de cidades, mas de espaços industriais. Para atingir esses objetivos, faz uso de algo ainda pouco trabalhado pelos historiadores, ferramentas de georreferenciamento, resultando em diversos e importantes mapas. Por fim, ressalta a importância da preservação dessas estruturas e complexos industriais para a compreensão da memória e história de todo território paulista.

Já com objetivo de compreender como estão sendo realizados os processos de preservação do patrimônio ferroviário, Alice Bemvenuti, em Aspectos Históricos da musealização do Patrimônio Ferroviário brasileiro, busca problematizar a ação dos grupos que atuam em prol da conservação das estruturas das ferrovias no Brasil, mais especificamente da PRESERVE / PRESERFE. Essa pesquisadora, valendo-se de fontes orais, demonstra os conflitos e as memórias que esses grupos buscam preservar sobre as estradas de ferro no país.

Como último texto do dossiê, A História e o Patrimônio Industrial a partir de outro olhar: o que dizem os pisos do Complexo FEPASA (Jundiaí / SP, Brasil)?, de autoria de Juan Manuel Cano Sanchiz, procura agregar ao campo dos historiadores, a visão e compreensão da temática do Patrimônio Industrial Ferroviário brasileiro, a partir da ótica da Arqueologia Industrial, que ainda é pouco estudada. Valendo-se das metodologias da Arqueologia esse pesquisador demonstra como a arqueologia de vestígios materiais recentes, contribui de modo significativo para o campo da História. Dedicando-se ao estudo dos diferentes pisos do Complexo de Oficinas FEPASA, na cidade de Jundiaí, Sanchiz disserta que as estruturas industriais ferroviárias, principalmente as Oficinas, são locais de trocas de tecnologias e técnicas do Brasil, com outros países, demonstrando que o que era utilizado naquele espaço, era aplicado após o estudo e visitas em espaços industriais de outros países, como Inglaterra e Estados Unidos. Por fim, demonstra a importância da multidisciplinaridade e cruzamento de diversas fontes (orais, escritas, materiais), para compreender e preservar esses importantes espaços.

Por fim, esperamos cumprir com nosso objetivo de propor essa temática e que, com a leitura dos artigos e entrevista, possamos contribuir com a discussão e promoção da importância do Patrimônio Industrial, enriquecendo ainda mais suas relações com as pesquisas da área da História.

Eduardo Romero de Oliveira

Lucas Mariani Corrêa


OLIVEIRA, Eduardo Romero de; CORRÊA, Lucas Mariani. Apresentação. Faces da História, Assis, v.4, n.1, jan / jun, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Patrimônio Industrial / Urbana / 2011

Desconhecido ou mal- compreendido há 30 anos, o tema do patrimônio industrial faz hoje parte inegável do panorama da discussão patrimonial internacional, assim como do debate dentro do Brasil. País de indiscutível riqueza em termos de remanescentes de processos de produção longevos como engenhos ou fiações ou recentes como a produção industrial pesada, o Brasil aos poucos tem encontrado no espaço acadêmico da pesquisa, no espaço institucional dos órgãos de proteção e preservação e dentro da sociedade, as formas para lidar com este patrimônio. Cresce a percepção da importância da valoração da memória do trabalho e dos trabalhadores, que nos permite conhecer técnicas e rotinas de produção e as formas de organização política e social dentro e fora do espaço de produção. Ao mesmo tempo, crescem as urgências relativas à proteção de acervos documentais, muitas vezes desmembrados e descartados e aos antigos espaços arquitetônicos de produção, que hoje ocupam áreas cobiçadas dentro das cidades e que tem, via de regra, sido demolidas ou fortemente descaracterizadas, impedindo a conservação física dos bens industriais e a compreensão ampla das redes de beneficiamento-produção-escoamento que os definia.

A Carta Patrimonial voltada ao Patrimônio Industrial, firmada em julho de 2003 na cidade russa de Nizhny Tagil culminou um longo processo de valoração do patrimônio industrial ligado em suas origens à arqueologia industrial e à atuação de órgãos como o TICCIH (The International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage, fundado em 1978 e principal organismo internacional de preservação do patrimônio industrial). Também nos países latino-americanos a percepção da importância dos remanescentes da atividade de produção de açúcar, exploração de minas ou da atividade industrial mais geral trouxe a organização de comitês de preservação, a realização de colóquios e seminários, a elaboração de documentos que buscam tanto circunscrever o campo do patrimônio industrial quando fazer recomendações quanto a sua proteção, a prática de restauros e tombamentos de exemplares.

No Brasil, os estudos em arqueologia industrial foram pioneiros nos levantamentos e reflexões sobre o tema. O primeiro tombamento de exemplar de produção industrial, a Fábrica de Ferro Patriótica de São Julião, localizada nos arredores de Ouro Preto e fundada pelo barão de Eschwege em 1812, inscrita no livro do Tombo Histórico em 30 de junho de 1938 antecedeu em 30 anos o tombamento da Real Fábrica de Ferro São João de Ipanema (Iperó, São Paulo). Entretanto, dentro dos princípios do SPHAN do patrimônio como expressão do caráter nacional, o patrimônio industrial encontrou pouco espaço, embora suas manifestações tenham sido mais positivamente avaliadas (e protegidas) por órgãos estaduais e municipais, devido, sobretudo, à sua freqüente escala de abrangência regional. Apesar do crescente número de exemplares protegidos nestas esferas, na maior parte dos casos, as definições e recomendações propostas pelos documentos e instituições de preservação do patrimônio industrial não são levadas em conta na instituição destes bens como patrimônio. Além do distanciamento das entidades que tratam do patrimônio industrial, a ausência de envolvimento de outros setores governamentais, que não os órgãos de preservação, implica em uma tutela muitas vezes frágil e arbitrária dos bens industriais.

Parece evidente que o caminho para a valoração do patrimônio industrial não pode residir exclusivamente na atuação dos órgãos governamentais de preservação, sendo que a sociedade organizada tem igualmente envolvido- se com o tema. No mesmo ano em que foi firmada a Carta de Nizhny Tagil (alguns meses antes, no mês de março), um grupo de interessados, acadêmicos e não acadêmicos, havia se reunido em São Paulo, em uma sala da Escola de Sociologia e Política, para subscrever uma Carta Manifesto que estabelecia um “Comitê Provisório pela Preservação do Patrimônio Industrial no Brasil”, iniciativa que desembocou na criação do Comitê Brasileiro para a Preservação do Patrimônio Industrial, fundado no ano de 2004 durante um encontro na Universidade Estadual de Campinas e que conta hoje com 42 filiados.

O esforço não era novo nem inédito. Trabalhos como os de Ruy Gama sobre os engenhos, o artigo do historiador norte-americano Warren Dean ainda em 1976 sobre a fábrica São Luiz de Itu, o inventário fotográfico ainda inédito preparado por Philip Gunn e Telma Correia, os estudos sobre o cotidiano fabril de Edgar De Decca e de Maria Auxiliadora de Decca, as reflexões de Ulpiano Bezerra de Meneses e estudos como os de Odilon Nogueira de Matos e Bandeira Júnior, entre outros, vinham embasando uma metodologia e uma reflexão sobre o tema no Brasil. Assim como ocorrera com a experiência inglesa, os primeiros a perceberem a importância desse patrimônio foram aqueles envolvidos no estudo da história da tecnologia e do maquinário, ainda na década de 1960. Progressivamente, contaram com a companhia de historiadores e arquitetos interessados nas práticas do trabalho industrial e nos vestígios arquitetônicos. Todo este compromisso é frágil ainda para impedir que o vasto patrimônio industrial brasileiro, com seus engenhos, minas, portos, ferrovias, moradias operárias, barragens e represas, complexos industriais do século XIX e também os mais recentes (o que inclui um vasto patrimônio arquitetônico moderno das décadas de 1930, 1940 e 1950, hoje igualmente ameaçado) ainda seja pouco estudado ou perca exemplares a cada dia. O Brasil não possui um inventário nacional de seu patrimônio industrial e mesmo a documentação relativa à atividade da indústria encontra-se apenas parcialmente organizada. Há dezenas de acervos desestruturados, em péssimo estado de conservação ou sendo descartados, tanto no que se refere à memória ferroviária do país, quanto no caso de documentação relativa a certas indústrias e moinhos demolidos, ou a campos de atuação específica, como os monjolos no sul do país, as fiações têxteis na região sudeste e nordeste ou mesmo a indústria pesada mais recente. A documentação que se associa ao patrimônio industrial por vezes perde-se antes do desaparecimento dos vestígios físicos do bem, e perde-se por diversas razões: encontra-se separada fisicamente dos objetos a que fazem referência, é encaminhada a diferentes acervos como parte de falências, concordatas ou demolição de imóveis, ou incorporadas a outros acervos. Do mesmo modo, há a perda irrecuperável de artefatos, maquinários, ferramentas, utensílios e peças de reposição que definem os usos da indústria, apenas comparável à perda da dimensão arquitetônica destes bens. Um possível antídoto a estas perdas é a prática diligente do estudo, do inventário, do registro, com esforços partindo de diversas disciplinas. Nesta direção, apresentam-se os estudos aqui reunidos, neste número temático da URBANA.

Cristina Meneguello – Professora Doutora

Denise Fernandes Geribello


MENEGUELLO, Cristina; GERIBELLO, Denise Fernandes. Apresentação. Urbana. Campinas, v.3, n.1, 2011. Acessar publicação original [DR]

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