Lajja – Shame / Taslima Nasrin

Os problemas que ora se agudizam na denominada região da Caxemira remontam ao período imediatamente posterior à separação das regiões noroeste e nordeste da Índia, respectivamente no dia 15 de agosto de 1947, quando os ingleses deixaram a Índia e foi criado o Estado do Paquistão, e em 26 de março de 1971, quando o Paquistão oriental ganhou sua independência, tornando-se o país Bangladesh. Houve um tempo em que povos de crenças distintas conviviam com relativa harmonia naquelas terras hoje divididas e rebatizadas. Com a formação dos Estados do Paquistão e de Bangladesh em conseqüência dessa partilha do território indiano, iniciou-se o reordenamento de fundamentalistas religiosos em busca de novas causas. O desastre do domínio imperial britânico na região resultou no que hoje conhecemos de Bangladesh ou da região de Bengala (atual Bangladesh, Calcutá e arredores). O que era antes um dos lugares mais ricos do mundo tornou-se um abrigo da miséria humana: Não resta dúvida de que o domínio imperial tenha sido um desastre. Veja a Índia por exemplo. Quando os britânicos chegaram pela primeira vez, Bengala era um dos lugares mais ricos do mundo. Os primeiros mercadores britânicos descreveram-na como um paraíso. Essa é, atualmente, a área de Bangladesh e Calcutá, um símbolo de desespero e pobreza (Chomsky, 1999 p. 84).[1] O Mahatma Gandhi, líder indiano da revolução pela não-violência, buscou liberdade para seu povo. Mas nem tudo gerou benefícios. Um dos conflitos oriundos dessa história nasceu com a reestruturação das fronteiras internacionais e a criação de novos países a partir da Índia. Falamos, portanto, de um conflito que se estende por mais de meio século. Não fazia parte dos desejos do Mahatma a divisão da Índia depois de sua libertação do jugo britânico. Para o líder indiano, problemas de convivência entre as diferentes religiões no subcontinente asiático não deveriam ser motivo para separar seus irmãos, fossem eles hindus ou muçulmanos. Mas essa visão romântica durou pouco. Após menos de um ano da independência, em 30 de janeiro de 1948, Gandhi foi assassinado por um extremista hindu. Os problemas na região estavam apenas por começar.

Primeiro veio a independência da Índia seguida pela criação do Paquistão cujo território compreendia parte do noroeste e do nordeste do subcontinente asiático. O Paquistão oriental deu origem ao que hoje conhecemos por Bangladesh, como resultado de uma guerra sangrenta na qual hindus e muçulmanos lutaram juntos em nome de uma nova pátria para os bengaleses. Os conflitos se somaram ao longo dos anos. A paz cultivada e almejada pelo Mahatma não foi duradoura. Mesmo os hindus e muçulmanos de Bangladesh, combatentes comuns contra a tirania do Estado do Paquistão ocidental, que corresponde ao atual Paquistão, voltaram a se dividir.

Posteriormente à criação da nova pátria bengali, surgiram diversos conflitos de cunho religioso. Um dos maiores ocorreu a 6 de dezembro de 1992, quando a mesquita de Babri Masjid em Ayodhya, cidade do norte da Índia, foi destruída por fundamentalistas hindus, levando os dois grupos religiosos em Bangladesh a entrar em uma nova fase de discórdia e sublevações. Ainda hoje, a minoria hindu vê-se acuada pela hegemonia muçulmana daquele país.

Por ocasião da tragédia de Ayodhya, causando conflitos intermináveis em Bangladesh, antigos camaradas da guerra libertária se tornaram, por força do fanatismo religioso local, inimigos sanguinários. Nesse cenário a autora do livro que ora comentamos viveu as agruras de uma apátrida em sua própria casa. Taslima Nasrin descreve as jornadas de então em um diário “psicológico”, que se apropria de sentimentos e nuanças das relações interpessoais metamorfoseadas em função das mudanças sociopolíticas em Mymensingh, o seu habitat. O amálgama afetivo oriundo do sentimento de pertinência nacional entre os dois grupos religiosos foi sendo progressivamente substituído pelo ódio elaborado e recriado a partir dos novos conceitos de povos e nações construídos sobre uma base de preconceito e intolerância.

O livro em forma de diário descreve apenas 13 dias em um crescente bélico, iniciando em 7 de dezembro de 1992, dia fatídico, depois que a mesquita de 450 anos foi posta ao chão por fanáticos hindus. Os problemas da família Dutta-Sudhamay que povoa o romance autobiográfico da sra. Nasrin apenas começavam. O dr. Sukumar Dutta, patriarca e médico respeitado, vivia com a família em um Bangladesh de maioria muçulmana, mas que até então ainda tinha na memória a libertação de seu país pela força da união de todos os seus filhos. A autora descreve o dilema do povo hindu em Bangladesh por meio da saga da nomeada família Dutta, que se recusa a deixar seu país em conseqüência da intolerância religiosa de outrora amigos muçulmanos, acreditando na vitória da razão e no retorno aos tempos em que Bangladesh emergiu como uma república secular, democrática e socialista. A longa trajetória iniciada nos idos da década de 60 do século passado, quando juntos conseguiram se libertar da tirania do Estado paquistanês, parecia não terminar. Continuava para além daqueles tempos, só que dessa vez a guerra se fazia entre irmãos: os hindus por serem minoria eram preteridos em seus direitos de concidadãos. Com sua históriaromance a autora informa-nos ao mesmo tempo que nos sensibiliza para um trecho da história da humanidade geralmente negligenciado e esquecido. A linguagem é simples, mas rica em detalhes psicológicos captados a partir das experiências pessoais relatadas pela autora-narradora. Daí poder-se compartilhar sentimentos os mais diversos de quem se vê abduzido de seu meio e tem roubados seus projetos de vida por motivos irracionais. Motivos esses que culminaram com a verdadeira ameaça dos extremistas em Bangladesh, decretando o Fatwa (punição de cunho religioso) sobre a autora, tendo esta que se ausentar de fato do seu país para não sofrer retaliações. No seu livro, como na sua vida, a religião termina sendo, à sua revelia, o ponto de partida para o bem ou mal (con)viver: Suranjan got up. The sense of pain and suffering which had already found root in his heart was now growing… He left Palashi behind and headed in the direction of Tikatuli. He decided against taking a rickshaw, because he had only five takas with him. He bought a cigarette at Palashi crossing. When he asked for a Bangla Five, the shopkeeper gave him a strange look.

Suranjan’s heart sank. Did the shopkeeper guess he was a Hindu? And did he know that ever since the breaking of the Babri Masjid, every Hindu could be beaten up with impunity? He quickly paid for the cigarette and moved on. He was surprised by the way he felt, especially as he had never really felt this way before. To think he had left the shop without lighting his cigarette, just because he thought they would make out that he was a Hindu! (p. 82).

Taslima Nasrin tem origem em uma família de classe média de Bangladesh, médica e escritora de outros trabalhos de repercussão local, conseguiu por meio do seu livro Lajja – Shame informar o mundo sobre as mulheres e os seus destinos, sobre a impossibilidade do seu devir em uma sociedade na qual o fanatismo sobrepõe-se à razão. Impossibilitada de viver em seu próprio país, encontra abrigo, como outras vítimas de violências político-religiosas naquela região, na Índia. É um erro absurdo o mundo virar as costas e não tratar diferencialmente uma das maiores democracias do mundo e a única da região. A Índia pode refletir num grande círculo geográfico uma tendência oposta ao totalitarismo religioso e político característico das nações que a cercam.

Apesar do caráter ficcional de seu trabalho, a autora é fiel a aspectos históricos, tendo sido fonte de informação as publicações regionais sobre os eventos que subsidiam sua trama. Por motivos óbvios a questão da delicada relação entre os Estados do Paquistão e da Índia que se complica nos dias de hoje não é abordadada diretamente em seu trabalho, mas Taslima Nasrin aborda os seus antecedentes e pressupostos ideológicos. Pode-se, portanto, acompanhar em segundo plano a problemática atual, muito relacionada com aqueles fatos que deram origem ao seu trabalho literário. É por isso que vimos, com ajuda de sua compreensão da cultura local, que o modelo sociopolítico indiano poderia promover uma convivência melhor e mais humanizada para os diferentes povos da região em se comparando com outros modelos políticos vizinhos. Pois desde que conquistou sua independência, a Índia tem provado ser o único país da região com uma certa vocação democrática. A despeito dos problemas que enfrenta com as desigualdades sociais em quase todo o seu território, vem sendo reconhecida internacionalmente como um celeiro de talentos nos mais diversos campos da ciência e pelo respeito à sua integridade nacional. Ao contrário de muitos países do Terceiro Mundo, a Índia não se deixou encantar pelas falsas promessas da globalização. Pode-se falar, portanto, da maior democracia no globo, com seus 35 estados, mais de cinco mil cidades, 18 idiomas reconhecidos oficialmente e uma população de cerca de 1 bilhão de pessoas que se confessam majoritariamente como hindus. Margareth Tatcher, a dama de ferro do Reino Unido, conhecida por sua fria política em relação ao Terceiro Mundo, não pôde deixar de reconhecer na Índia uma veia democrática que a fazia preferi-la à poderosa Alemanha em pleitos de novos membros para o Conselho de Segurança da ONU.

A Caxemira é na atualidade diferenciada por ser a única região da Índia com maioria muçulmana. Essa característica termina por aproximá-la da região de mesmo nome em território paquistanês, tornando-se solo fértil para a propagação da Jihad (guerra santa). As autoridades indianas acusam os grupos terroristas de atrapalharem o restabelecimento da paz na Caxemira e de disseminarem a miséria entre a população da região. Trata-se, portanto, na lógica da ação indiana, de uma luta contra um terrorismo subsidiado pela ditadura militar paquistanesa. Por meio desses métodos, Islamabad pode vir a pagar um alto preço por suas incursões além-fronteiras em vez de reprimir as ações terroristas dos grupos extremistas islâmicos que agem sob diferentes denominações. Levando-se em conta os modelos políticos dos dois países, é mais presumível que haja liberdade no mosaico multicultural e religioso da democracia indiana do que em países liderados por extremistas religiosos.

Conflitos religiosos como o que moveu a autora para escrever seu livro ainda fazem parte da ordem do dia naquela região. Tais conflitos têm se intensificado após o ataque contra o Parlamento indiano em Nova Délhi, no dia 13 de dezembro de 2001, que causou a morte de 14 pessoas. Segundo os indianos, esse ataque foi perpetrado por grupos separatistas apoiados pelos paquistaneses, em uma espécie de terrorismo de estado. As dificuldades para o premier indiano Atal Bihari Vajpayee e o líder paquistanês Pervez Musharraf negociarem uma solução para o problema na sua versão atual terminaram por dominar a pauta da reunião dos países que formam a Cúpula da Ásia do Sul, realizada em Katmandu (Nepal), em 6 de janeiro de 2002, sob os auspícios da Associação da Ásia do Sul para a Cooperação Regional (Saarc). A Saarc foi criada em 1985 e é formada pela Índia, Paquistão, Sri Lanka, Nepal, Bhutan e as Maldivas. O problema da pobreza que atinge 40% de 1,5 bilhão de habitantes do sul da Ásia deveria dominar as preocupações do encontro, mas foi tirado de cena pelos conflitos indo-paquistaneses.

No quadro atual de caça às bruxas não há como Musharraf querer se deixar associar ao patrocínio de terrorismo internacional, mesmo que as ações terroristas se limitem aos seus vizinhos. Para o governo da Índia, grupos muçulmanos extremistas com base na Caxemira se fortalecem com o apoio financeiro e estratégico oriundo de solo paquistanês. Nos altos e baixos das negociações entre Paquistão e Índia, foram algumas vezes proferidas palavras bonitas expressando boas intenções dos líderes locais sem, contudo, lograr êxito na diminuição do fosso entre os inimigos declarados. As guerras que vêm ocorrendo desde a independência dos dois países, que só na última década deixou cerca de 30 mil mortos, se repetidas, podem virar tragédia, pois neste caso estamos falando de inimigos com armas atômicas. Espera-se que o aperto de mão dos dois líderes no final da reunião de Cúpula da Saarc signifique a intenção de fazer valer as palavras de Musharaf, proferidas em maio de 2001, em reação à proposta do premier indiano de negociar o fim da violência na região. Naquela altura parecia haver mais esperança de se encontrar uma saída para a crise por vias diplomáticas, como pode ser percebido na afirmação do líder paquistanês: “No início do novo século, nossos dois países devem fazer seu melhor para superar esse legado de falta de confiança e hostilidade, para que possamos construir um futuro melhor para nossos povos”.

Como relata a autora, desde que a Índia foi dividida em dois “Paquistãos” e uma “Índia”, muitos hindus tiveram que abandonar suas casas em busca de um porto seguro no qual o extremismo religioso não fosse a tônica da convivência humana. Talvez Taslima Nasrin sonhe muito ao querer secularizar nações governadas por tiranos religiosos, mas, sem dúvida, todo o seu livro está impregnado de certo otimismo em meio ao caos anunciado nos piores dias de seu personagem Suranjan: Suranjan explodiu em risos, como Goon. Ele tinha senso de humor e a capacidade de se sentir em casa onde quer que estivesse. Ele jogaria confortavelmente em um cassino em Las Vegas como, da mesma forma, ficaria nas favelas de Palashi sendo picado por mosquitos. Parecia que não ligava pra nada, nunca se irritava. Demonstrava ser feliz no seu pequeno quarto, passando seus dias com pequenos prazeres insignificantes. Suranjan se admirava como ele podia viver tão feliz? Era sua felicidade de fato uma fachada para todas as mágoas que ele tinha escondidas em seu coração? Esteve ele se obrigando a ser feliz por que não havia qualquer chance de fugir da cruel realidade da vida? [2]

Notas

1 CHOMSKY, Noam. A minoria próspera e a mutidão inquieta. Brasília: Editora da UnB, 1999, p.82.

2 Traduzido pelo autor a partir da versão inglesa de Tutul Gupta: “Suranjan burst out laughing, as did Goon. He had a good sense of humor and the ability to be at home anywhere. He would be equally comfortable gambling in a casino in Las Vegas as he would be in the slums of Palashi getting bitten by mosquitoes. He never seemed to mind anything, never showed his irritation. He was quite happy in his tiny room, spending his days enjoying small insignificant pleasures. Suranjan wondered how he could live so happily? Was his happiness in fact a facade for all the sorrows that he was hiding in his heart? Was he compelling himself to be happy because there was no getting away from the grim realities of life?” (p. 82).

Antônio Caubi Ribeiro Tupinambá – Universidade Federal do Ceará.


NASRIN, Taslima. Lajja – Shame. (Tradução do bengali para o inglês: Tutul Gupta.) Nova Délhi, Índia: Penguin Books, 1994. Resenha de: TUPINAMBÁ, Antônio Caubi Ribeiro. Revista Trajetos, Fortaleza, v.2, n.3, 2002. Acessar publicação original. [IF].