A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II: 1959-1965 / José O. Beozzo

BEOZZO Jose Oscar Concílio Vaticano II
BEOZZO J O A Igreja do Brasil no Concilio Vaticano II Concílio Vaticano IIJosé Oscar Beozzo / Foto: Faculdade Jesuíta /

Márcio de Souza Porto – Universidade Federal do Ceará.


BEOZZO, José Oscar. A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II: 1959-1965. São Paulo: Paulinas, 2005. Resenha de: PORTO, Márcio de Souza. Revista Trajetos, Fortaleza, v.4, n.8, p.301-305, 2016. Acesso apenas pelo link original. [IF].

BOLÍVIA jakaskiwa / Marilea M. L. Caruso e Raimundo Caruso

Antonio Caubi Ribeiro Tupinambá – Universidade Federal do Ceará.


CARUSO, Mariléa M. Leal; CARUSO, Raimundo C. BOLÍVIA jakaskiwa. Florianópolis: Inti Editorial, 2008. 292p. Resenha de: TUPINAMBÁ, Antonio Caubi Ribeiro. Revista Trajetos, Fortaleza, v.7, n.12, p.197-202, 2008. Acesso apenas pelo link original. [IF].

Museu do Ceará, 75 anos / Antônio L. M. Silva Filho e Francisco R. L. Ramos

Júnia Sales Pereira – Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.


SILVA FILHO, Antônio Luiz Macêdo e. RAMOS, Francisco Régis Lopes (org.). Museu do Ceará, 75 anos. Fortaleza: Associação Amigos do Museu do Ceará, 2007. Resenha de: PEREIRA, Júnia Sales. Revista Trajetos, Fortaleza, v.7, n.12, p.93-95, 2008. Acesso apenas pelo link original.

Images malgré tout / Georges Didi-Huberman

Meise Lucas – Universidade Federal do Ceará.


DIDI-HUBERMAN, Georges. Images malgré tout. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003. Resenha de: LUCAS, Meise. Revista Trajetos, Fortaleza, v.3, n.6, p.239-242, 2005. Acesso somente pelo link original. [IF].

Correspondência cordial: Capistrano de Abreu e Guilherme Studart / Eduardo L. G. Amaral

“HÁ MUITO TEMPO DESEJO-LHE ESCREVER…”:

ITINERÁRIOS HISTORIOGRÁFICOS NA ESCRITA DE CARTAS

Poucas figuras proeminentes do cenário intelectual brasileiro no séc. XIX tiveram sua imagem pública tão dissecada quanto João Capistrano de Abreu. De fato, as peripécias e infortúnios que cercam a vida deste historiador cearense serviram de matéria a um número vultoso de estudos e publicações. Espírito reservado, temperamento forte, estilo irônico, inteligência aguda, compulsão pela leitura, aversão a homenagens e honrarias, desmazelo nos cuidados com a aparência pessoal são algumas das características que tornaram Capistrano uma fonte quase inexaurível de situações inusitadas, oscilando em movimento pendular, do cômico ao trágico. Durante muito tempo, suas correspondências com amigos, parentes e colegas forneceram uma cornucópia de curiosidades, ensejando a difusão de anedotário que hoje praticamente se funde à personalidade do escritor.

Felizmente, o epistolário de Capistrano vem sendo revisitado por críticos e historiadores ocupados em apreender ali traços relevantes de seus métodos de pesquisa, interesses intelectuais e interpretações da história do Brasil. Na verdade, percebe-se atualmente uma certa tendência a devassar as idéias de pensadores e artistas por meio dos vestígios dessa escrita íntima. Paroxismo do fragmento? Entronização do indivíduo? Estratégia do mercado editorial? Não há dúvida quanto ao peso desses ingredientes no entusiasmo lucrativo de publicar correspondências pessoais. Contudo, existe uma força latente que brota de tais documentos. Nas cartas é possível encontrar declarações afetuosas, relatos de cenas cotidianas, troca de confidências, mas também a expressão de convicções políticas, a opinião ajuizada sobre comportamentos e fatos públicos, o questionamento ou afirmação dos preceitos morais e dos códigos axiológicos que marcam uma época. Entre a

idiossincrasia do missivista e o quadro das relações sociais de determinado tempo e lugar, desenha-se um itinerário pontuado de tensões, receios, incoerências atinentes às possibilidades de ação do sujeito histórico imerso nas circunstâncias específicas de sua existência.

No que diz respeito à figura de Capistrano de Abreu, a pertinência historiográfica de investigar suas cartas é superlativa, dado o esmero peculiar que envidou no manejo deste gênero literário. Algumas facetas dessa complexa trajetória intelectual, por vezes expressa na narrativa paralela dos diálogos manuscritos, pode ser aquilatada com a leitura de Correspondência cordial: Capistrano de Abreu e Guilherme Studart, de Eduardo Lúcio Amaral – volume 19 da Coleção Outras Histórias (linha editorial do Museu do Ceará). No livro se destaca a comunicação escrita, cultivada durante trinta anos (1892-1922), por dois expoentes da pesquisa histórica brasileira no séc. XIX, cujo encontro se dera em tempos de juventude, partilhando os mesmos bancos escolares na Fortaleza provinciana dos anos 1860. O autor observa que, à parte a conterraneidade, o respeito mútuo e a extrema dedicação à pesquisa documental, tinham ambos os historiadores pouco em comum. Capistrano se embrenhou arduamente na investigação empírica e na reflexão do passado nacional, alheio ao reconhecimento dos pósteros e à exaltação cívica. Studart, por seu turno, acreditava no papel civilizador do conhecimento e na elevação moral das camadas populares, quer pela instrução formal, quer pela virtude religiosa. O próprio título honorífico com que foi agraciado, outorgado pelo Vaticano – Barão de Studart –, indica a enorme diferença que separava os dois amigos: um enredado nas muitas confrarias e sociedades letradas em profusão nos alvores da república, o outro declaradamente arredio aos lugares de sociabilidade institucional, custoso que lhe era “pertencer à sociedade humana”.

No decorrer do trabalho, diversas questões de suma relevância são abordadas, como a intensa colaboração tecida entre Capistrano e Studart no andamento de suas pesquisas, a percepção de ambos sobre os primórdios da história do Ceará e a ênfase dada ao sertão e ao litoral como pólos da colonização do Brasil. Eduardo Lúcio salienta a opção metodológica de Capistrano por examinar as paragens interioranas, pois identificava ali o fluxo primordial das migrações e sedimentações provisórias que conformariam a dinâmica da sociedade colonial. Como a quase totalidade dos historiadores de sua época, Studart tomou direção oposta, pensando a história local e nacional com os olhos voltados para a costa litorânea, articulada a uma idéia conservadora de história, ainda submetida ao peso dos fatos grandiosos, dos atos do Estado português, dos personagens notáveis e das divisões administrativas.

Um dos pontos salientes do texto aborda a crítica metódica dos documentos, tal como desempenhada por Studart e Capistrano. Percebe-se ali a vivacidade e o engenho de ambos, especificamente em torno da verdadeira autoria de Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. A questão há muito inquietava numerosos pesquisadores, uns postulando a existência real daquele que assinou a referida obra – André João Antonil –, outros julgando tratar-se de um pseudônimo. Debruçando-se sobre esse desafio, os dois historiadores cearenses chegaram, por caminhos diferentes, à mesma conclusão: Antonil era o anagrama aproximativo de João Antonio Andreoni, eminente jesuíta italiano do fim do séc. XVII e início do XVIII que atuou em terras brasileiras. Ao recuperar, nas cartas, o relato de tão notória descoberta, Eduardo Lúcio convida a uma revisão de preconceitos arraigados, notadamente entre os aspirantes a historiador. Pois não é incomum a rotulação prévia de muitos pesquisadores oitocentistas, assaz diversos uns dos outros, reunidos sob a alcunha desabonadora de positivistas, como a indicar que comporiam uma esdrúxula tribo de fetichistas do documento, imbuídos de ingênua passividade ante os registros que o passado nos legou. Ao contrário, avulta o esforço investigativo quanto à procedência e autenticidade dos vestígios de outras épocas, demandando criatividade, astúcia e imaginação no cotejo das fontes. Mais que isso: reitera-se o exame meticuloso dos testemunhos como um dever indeclinável à faina do historiador.

Se, atualmente, a noção de crítica documental sobrepuja largamente as preocupações estritas com o “teor de verdade” dos fatos e registros passados, há que reconhecer, sem adulação, os esforços das gerações precedentes de eruditos e pesquisadores no amadurecimento das práticas, métodos e conceitos que presidem a disciplina histórica. Implicitamente, este livro observa que o exercício, ponderado e conseqüente, da reflexão crítica deve também nos resguardar do julgamento cômodo – e anacrônico – de outras épocas segundo nossas próprias categorias de pensamento e valoração.

Uma questão teórica pertinente, tocada apenas de soslaio, ficará contudo reservada (assim espero) para estudos vindouros. Refiro-me às correntes antagonistas dispostas a devassar a história do Ceará, uma sob a égide da ocupação litorânea, outra pautado em apreender a dinâmica das migrações pelo sertão da capitania. Ao contrário dos debates tradicionalmente levantados, cuja meta era afiançar uma das hipóteses às expensas da concorrente, Eduardo Lúcio destaca que está em jogo mais que porfias de eruditos, ou mesmo nuanças de adequação da análise aos fatos. Vislumbrar a história local com olhos postos sobre o mar ou priorizando os rincões do interior tampouco sugere a potência do determinismo geográfico. Ocorre que ambas as vertentes interpretativas são orientadas por noções diferenciadas de documento – escolha metodológica que iria repercutir decisivamente no modo de enfeixar os acontecimentos em favor de uma dada narrativa histórica. Alguns contornos dessa discussão vêm aduzidos à luz de trechos das cartas trocadas entre Capistrano e Studart.

O autor sintetiza a extrema riqueza que se descortina no escrutínio dessa correspondência cheia de mesuras, mas visivelmente pontilhada por inquietações historiográficas: “As cartas de Capistrano para Studart são exemplares para a compreensão do seu processo de construção do conhecimento, já que a partir da rede de informações construída entre os dois historiadores vêm à tona as sutilezas do trabalho de pesquisa e a subjetividade de Capistrano de Abreu.”

Ressalte-se, contudo, que ao leitor o sentido inverso e complementar também é plausível, ou seja: acercar-se dos métodos de trabalho e da produção científica do Barão de Studart, não somente através das cartas, como pela consulta a outro estudo de lavra do mesmo autor – Barão de Studart: memória da distinção (Coleção Outras Histórias, v. 9). Ali se descobre a figura de grande projeção que se firmaria no panteão da intelectualidade cearense, reunindo ao mesmo tempo os atributos modelares que o tornaram referência indisputável nos segmentos letrados de então: filho de inglês, cavalheiro, médico, erudito, católico, abolicionista, pesquisador incansável.

A leitura do texto de Eduardo Lúcio indica não ser este o resultado de investigação empírica previamente orientada. Deriva, sim, de análise centrada na fortuna crítica de Capistrano de Abreu, acrescida pela consulta de suas obras maiores, com especial atenção sobre a correspondência. Portanto, trata-se sobretudo de uma reflexão sedimentada em referências bibliográficas, a que vêm incorporar-se ponderações quanto aos possíveis sentidos da escrita da história, em fins do séc. XIX e alvores do XX.

“No princípio, era a pergunta” – essa a divisa de qualquer trabalho intelectual conduzido por historiadores. O opúsculo em questão, livre de pretensões biográficas e alheio a sínteses de vulto, traz na formulação de questionamentos o seu mérito: a que finalidades se presta o conhecimento histórico produzido naquele período? Quais os interditos duradouros que cerceavam a viabilidade de uma interpretação da época colonial menos subserviente à zona costeira e ao primado lusitano, mais atenta à ocupação lenta dos sertões? Como esses caminhos metodológicos divergentes influiriam nas futuras noções de história nacional? Sob que condições epistemológicas era plausível advogar a legitimidade de uma história local que remontasse à Colônia (como o projeto de história do Ceará defendido pelo Barão de Studart)? De que maneira a troca de cartas entre intelectuais pode se tornar um material elucidativo acerca dos rumos tomados pela historiografia brasileira? Qual o papel das celebrações e marcos cronológicos (a exemplo do “tricentenário do Ceará”) na consolidação de um modelo hegemônico de fundamentar, narrar e difundir a história? Indagações seminais, cujo enfrentamento poderá conduzir à aparição de novas pesquisas que tenham por objeto de estudo a própria criação historiográfica.

Com o lançamento de mais este livro, o Museu do Ceará reitera o compromisso com a reflexão crítica da história. Ao mesmo tempo, oferece ao leitor os contornos de duradoura interlocução privada, construída numa época em que os navios a vapor faziam as vezes de correio. Pródiga em descobertas eufóricas, estudos minudentes e recorrente solicitação de favores mútuos, a correspondência entre Capistrano e Studart nos sugere, acima de tudo, o empenho invulgar nas lides da pesquisa histórica e os tremendos obstáculos a serem vencidos. Registra, ainda, a notação de um outro ritmo, de comunicação e de vida, quando amigos distantes rascunhavam linhas para falarem de si ao outro, quando a ansiedade de uma carta por chegar exigia paciente expectativa, “à espera do próximo vapor”.

Antonio Luiz Macêdo e Silva Filho


AMARAL, Eduardo Lúcio Guilherme. Correspondência cordial: Capistrano de Abreu e Guilherme Studart. Fortaleza: Museu do Ceará; Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2003. Resenha de: SILVA FILHO, Antonio Luiz Macêdo. Revista Trajetos, Fortaleza, v.2, n.5, 2004. Acessar publicação original. [IF].

Holocaustos Coloniais. Calma, fome e imperialismo na formação do Terceiro Mundo / Mike Davis

Norberto O. Ferreras – Universidade Federal Fluminense.


DAVIS, Mike. Holocaustos Coloniais. Calma, fome e imperialismo na formação do Terceiro Mundo. Rio de Janeiro/São Paulo: Record Editora, 2002 (1ª ed. em inglês: 2001), 486 p. Resenha de: FERRERAS, Norberto O. Revista Trajetos, Fortaleza, v.2, n.4, p.237-241, 2003. Disponível apenas no link original. [IF].

Escrita singular: Capistrano de Abreu e Madre Maria José / Virgínia A. C. Buarque

Paula Virgínia Pinheiro Batista – Universidade Federal do Ceará.


BUARQUE, Virgínia A. Castro. Escrita singular: Capistrano de Abreu e Madre Maria José. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da Cultura, 2003. Resenha de: Revista Trajetos, Fortaleza, v.4, n.8, p.287-300, 2005. Acesso apenas pelo link original. [IF].

Nordestino: uma invenção do falo – uma história do gênero masculino | Durval Muniz de Albuquerque Júnior

Sander Castelo – Universidade Federal do Ceará.


ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. Nordestino: uma invenção do falo – uma história do gênero masculino (Nordeste – 1920/1940). Maceió: Edições Catavento, 2003. Resenha de: CASTELO, Sander. Revista Trajetos, Fortaleza, v.2, n.4, 2003. Disponível apenas no link original. [IF].

Discurso da Dissidência / Noam Chomsky

Talvez Chomsky seja mais lembrado por sua rica produção acadêmica na área da lingüística. Lecionando esta disciplina no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (EUA), desde 1955, tornou-se seguramente uma das maiores expressões no campo da lingüística. Hoje, através de seus inúmeros discursos políticos se credencia como uma das mais importantes vozes contra o establishment. Trata-se portanto de um especialista no estudo da linguagem com reconhecimento internacional que ora contribui com seus escritos e palestras para diminuir as injustiças sociais através de contundentes análises sobre a conjuntura mundial, particularmente sobre as conseqüências das políticas externas estadunidense e européia. Levando-se em conta o alcance que têm seus estudos face à problemática política atual pode-se dizer que é um autor relativamente pouco conhecido do grande público e, no caso brasileiro, também do público intelectual. Tendo em vista o seu indiscutível comprometimento em todas as situações que envolvem disputas internacionais e também a competência em tratar temas contemporâneos, mereceria maior atenção destes diferentes públicos.

O livro que escolhemos para comentar aqui é uma coletânea de diferentes artigos e entrevistas que apresentam um Chomsky ativista de direitos humanos e desmistificador da propaganda que objetiva controlar as pessoas nas mais diversas situações de exploração política e social.

Um exemplo do seu vanguardismo no tratamento de questões internacionais e do pragmatismo do seu trabalho pode ser ilustrado através da forma como abordou fatos da história recente do Timor Leste. Há quase três décadas não se via qualquer perspectiva de solução para os conflitos naquela região, tampouco qualquer voz entre os intelectuais que os denunciasse. Foi exatamente Noam Chomsky quem mais uma vez entrou em cena, denunciando a falta de comprometimento internacional para resolver problemas desta natureza. O silêncio jornalístico e literário mantido face aos desmandos indonésios no Timor foi quebrado através das palavras do nomeado autor. Para ele este terrível crime do século, pois: “…o assalto indonésio a Timor está nos lugares cimeiros, não só pela sua dimensão de holocausto – talvez o mais elevado número de mortes da população civil – mas porque poderia ter sido facilmente previnido ou pelo menos interrompido a tempo”, é um exemplo de como um pacto estabelecido entre governos e imprensa termina por beneficiar os agressores, colocando as vítimas na escuridão do esquecimento deliberado.

Nesta coletânea de textos pode-se portanto apreender muito da sua forma de pensar questões sóciopolíticas em perspectivas novas, que trazem às vezes consigo certo valor de previsão. Dizemos isso porque Chomsky escreve para intelectuais sem esquecer daqueles que estão fora de tal grupo, uma vez se tratar aqui também de pessoas interessadas em compreender o que de fato está acontecendo nas circunstâncias e regiões abordadas.

O autor afirmava já nos idos de 1996 que, ao contrário de outros conflitos como na Bósnia, Angola, Ruanda e Iraque-Kuwait, no caso do Timor, não havia ambigüidade nem complicações sobre a solução apropriada e nem necessidade da ameaça do uso de força para alcançá-la, nem mesmo a necessidade de sanções.

Fazia-se necessário, portanto, apenas o reconhecimento da mea culpa e a desistência dos cúmplices daquele crime. Certamente hoje se vê após toda a humilhação e sofrimento pelo qual passou o povo timorense, que aquelas nações outrora coniventes com a situação se viram acuadas pela opinião pública, cedendo espaço para a força de resistência da pequena população local. Mas o livro de Chomsky não se reduz ao problema do Timor. Há pois uma explanação de seus posicionamentos seguros face à política externa das nações ricas, em especial da norteamericana, encontrando novos paradígmas para analisar ações criminosas contra populações, muitas vezes esquecidas pela mídia. Os posicionamentos diferenciados “rebeldes e independentes” nos seus escritos e na sua fala mostram a distância que cultiva da maioria dos seus pares norte-americanos, o que não poderia deixar de lhe render grandes dificuldades no mercado editorial de peso daquele país e venha a justificar inclusive a dificuldade de difundir suas obras em língua portuguesa.

Além da reportagem onde mostrou à imprensa inglêsa a farsa dos países ricos envolvidos no genocídio de Timor Leste, alertando para a iminente extinção de um povo, caso países como os Estados Unidos, Inglaterra, Austrália continuassem cúmplices das investidas indonésias, Chomsky nos traz nesta obra outros critérios para compreender diversas problemáticas emergentes das relações internacionais como por exemplo, a investida das forças da OTAN no Kosovo ou do NAFTA na América Latina. Um tratamento detalhado é dado à reestruturação do livre mercado imposta pelas potências industriais cusadora de uma contínua deteriorização sócio-econômica dos países latino-americanos. Aborda os falaciosos benefícios da grande vitória do capitalismo mostrando suas verdadeiras conseqüências: (…) a porção dos bens do mundo controlada pelos países pobres e de rendimento médio desceu de 23 para 18 por cento entre 1980 e 1988. O informe do Banco Mundial de 1990 acrescentava que, em 1989, os recursos transferidos dos ‘países em vias de desenvolvimento’ para o mundo industrializado alcançaram um novo recorde. Calcula-se que o pagamento do serviço da dívida ultrapassou os novos caudais de fundos em 49,2 mil milhões de dólares, um aumento de cinco mil milhões de dólares desde 1988, e os novos fundos fornecidos pelos credores caíram ao nível mais baixo da década.

As imensas oportunidades do “novo mundo” pós Guerra Fria para a expansão e consolidação da democracia de mercado e vitória dos mercados abertos foi parte da retórica do governo Clinton no início da década de noventa e encontram uma análise no capítulo do livro intitulado de “Democracia e Mercados na nova Ordem Mundial.” A idéia da Guerra Fria como bloqueadora da política externa americana de dominação é contraposta ao fato de que no mesmo período nada impediu a continuidade e manutenção desta política.

No texto sobre “O acordo de Paz Para o Kosovo” busca esclarecer os denominados efeitos colaterais dos bombardeamentos americanos e da OTAN que se disseram vitoriosos após 10 semanas de luta com a rendição de Milosevic. Foi com esta ação bélica que os auto-proclamados “Estados esclarecidos” (Estados Unidos, GrãBretanha e alguns outros associados) afirmaram ter dado início a uma nova era na história da humanidade, guiados por ‘um novo internacionalismo, em que a repressão brutal de grupos étnicos não voltará a ser tolerada.'” Outros temas menos específicos, porém de igual intensidade, importância e atualidade no que tange às relações desiguais entre os denominados países ricos com aqueles do hemisfério sul e Europa Oriental encontram espaço no livro. O estrangulamento destas nações pelo rápido crescimento da dívida externa; os interesses de elementos de dominação interna naquilo que a Organização Mundial do Comércio defende; a política antidrogas norte-americana e sua relação com o terceiro mundo encontram análises à luz de novas vertentes. O livro é concluído com uma entrevista sobre “O Poder das Elites e a Responsabilidade dos Intelectuais” que concedeu a David Barsamian em fevereiro de 1988. Barsamian compilou posteriormente (no ano de 1993) três entrevistas por ele feitas com o autor em um trabalho intitulado “A minoria próspera e a Multidão Inquieta” traduzido por Mary Grace Figheira Perpétuo, editado no Brasil pela Universidade de Brasília (2a. edição, 1999). Trata-se de idéias complementares àquelas presentes no livro ora comentado e em especial às de seu último capítulo versando sobre temas diversos como o das minorias, do sionismo, da religião, dos limites da responsabilidade intelectual, do controle da informação pelas elites, dentre outros de semelhante envergadura.

As entrevistas, os artigos acadêmicos e as reportagens que formam o conjunto de textos interagem e se complementam. Anarquista confesso, Chomsky pode ser lido inclusive por não-anarquistas, pois sua linguagem é universal e não por menos é hoje considerado um dos mais conhecidos e influentes pensadores norteamericanos, apesar do ceticismo com que o trata a grande imprensa de seu país. Não por menos encontra o autor uma audiência cada vez maior e mais fiel para suas palestras sobre temas políticos, sejam elas proferidas nos Estados Unidos ou noutros países. Encontra-se ainda em anexo ao livro uma lista com os principais trabalhos de cunho político do autor, embora muitos deles acessíveis apenas em seu idioma de origem.

Antonio Caubi Ribeiro Tupinambá – Universidade Federal do Ceará.


CHOMSKY, Noam. Discurso da Dissidência. Tradução de Ana Barradas e Isabel Palha. Lisboa: Edições Dinossauro, 2000. Resenha de: Revista Trajetos, Fortaleza, v.1, n.2, 2002. Acessar publicação original. [IF].

Revistas em revista – imprensa e práticas culturais em tempos de República, São Paulo (1890-1922) / Ana L. Martins

A utilização de jornais e revistas como fontes no trabalho de pesquisa é algo corriqueiro no fazer historiográfico. Vez por outra recorremos a eles para verificar dados, analisar discursos, relacionar idéias dominantes de um período ou personagem que buscamos conhecer. Poucas vezes, no entanto, vemos esses veículos de comunicação no centro da cena. A busca dos significados de sua criação e dos detalhes de suas relações com a cultura e sociedade da época não é tratada com o rigor necessário, sendo subdimensionada na pesquisa.

A historiadora Ana Luíza Martins resolveu inverter essa lógica. Centrando foco na imprensa periódica das quatro primeiras décadas da República, através do estudo específico das revistas, a pesquisadora acabou compondo um verdadeiro painel da cultura e dos meios literários e jornalísticos paulistanos entre os anos de 1890 e 1922. O resultado pode ser conferido em Revistas em revista – imprensa e práticas culturais em tempos de República, São Paulo (1890-1922), produto de sua tese de doutorado na USP.

Utilizando-se de uma narrativa prazerosa, a autora busca recompor para nós, como num quadro, as condições conjunturais que permitiriam o florescimento e consolidação das revistas. Um dos méritos do trabalho, aliás, é essa recomposição, pela riqueza em detalhes. O que vemos é uma São Paulo, em plena virada do século, no compasso do desenvolvimento de sua agricultura movida pelo café e de uma indústria e comércio emergentes. A velocidade das transformações no espaço urbano corria no ritmo de trens e vapores e, mais tarde, no das rotativas, de onde surgiriam, em cores, as páginas de dezenas de títulos de revistas.

Estas traziam em seus textos e ilustrações a idéia de progresso e “civilidade”, profundamente inspiradas pelo periodismo francês. Muitos dos títulos, nos primeiros tempos, eram produzidos por brasileiros da elite agrária em seus escritórios em Paris. Essa relação foi fundamental para a divulgação de hábitos e produtos em voga na França, através da publicidade. A realidade das casas reais européias, o embevecimento com os hábitos aristocráticos e a vida elegante e refinada da nobreza, em permanente lazer, serviam como alimento para o panorama Belle Époque vivido em São Paulo. A cidade era assim vendida como a “Capital Artística”, a “Paulicéia”. O papel couché e a arte, presente nas riquíssimas gravuras, procuravam dissipar os rastros de tensão entre as classes e os conflitos urbanos em um espaço que se pretendia saneado e ordenado.

Num país onde 80% da população ainda era analfabeta, São Paulo destacava-se pelos investimentos públicos na esfera escolar, embora para a maioria da população, isso não representasse mais que aprender a ler, escrever e contar. O “saber ler” era chave para a participação do “cidadão” nas decisões políticas e no mundo da informação. Sem a presença de uma indústria livreira e com a dificuldade de acesso e entendimento dos jornais, “paladinos da verdade”, a revista com seus textos leves, ligeiros e profusão de ilustrações e gravuras, depois fotografias, seduzia pelo encanto da leitura facilitada e atraente, feita para entreter. Não era à toa que as revistas eram chamadas de “sorriso da sociedade”.

Do ponto de vista da história da imprensa brasileira, a pesquisa de Martins é de fundamental importância por recuperar um momento de transformações no fazer jornalístico. Isso se dá tanto no plano das condições estruturais para o desenvolvimento industrial – produção de papel, formação de pessoal qualificado para o trabalho em oficinas gráficas, estratégias de divulgação e venda dos produtos – como também no campo das representações ideológicas sobre esse fazer.

As contendas entre literatos e jornalistas são situadas nesse contexto de mudanças. O trabalho nas redações feito, em grande parte, por escritores, exigia a adaptação a um regime mais rígido de horários e novas formas de texto. A figura do jornalista boêmio dava lugar ao profissional disciplinado, apto a responder às necessidades de produção de um mercado competitivo e, a partir dali, remunerado.

O debate estimulante entre jornalismo e literatura no Brasil pode encontrar ali o seu elo perdido, uma vez que estamos tão acostumados a pensar essa questão, através da bibliografia norte-americana. A autora relata como a mercantilização imposta aos jornais vai gerar um mal-estar entre os literatos.

Subjugados em sua arte pelo “vil metal”, estes vão procurar nas revistas a maneira de se expressarem com integridade, obtendo a qualificação e o reconhecimento desejados como artistas e não como “operários da notícia”.

O trabalho de Ana Luíza Martins também nos fornece pistas para pensar a questão da linguagem jornalística propriamente dita, a partir da contribuição literária das revistas aos campos da reportagem e opinião. Mas a forte presença dos escritores e poetas nas revistas não estava retratada apenas nos contos, crônicas e sonetos publicados pelas ilustradas. Está também na publicidade e propaganda que estabelecia relação direta do comércio e indústria com essas publicações, afinal “o reclame é a vida do comércio”.

Quem imaginaria Olavo Bilac como um dos nossos primeiros publicitários, divulgando em sonetos as vantagens do xarope Bromil? A revista era a embalagem ideal para a divulgação de bebidas, medicamentos e novidades tecnológicas da indústria em seu começo.

O papel das revistas como formadoras e mesmo educadoras da sociedade paulistana pode ser depreendida do escrutínio feito pela autora nas bibliotecas de três importantes colaboradores das revistas e agitadores culturais nesse momento: Eduardo Prado, Lima Barreto e Mário de Andrade. Imbuída dos instrumentos da história da leitura, ela esmiúça e analisa as várias formas de consumo e utilização dessas publicações para os interesses de grupos culturais diversos na cidade de São Paulo, nos dando uma idéia do ecletismo desse veículo de comunicação. Ficamos sabendo que, para muitos dos intelectuais da época, as revistas ocuparam um papel tão importante quanto os livros.

As várias imagens de São Paulo, unificadas pela idéia do progresso e modernidade, nas publicações destinadas à agricultura, ciência, comércio, agremiações literárias, ligas de operários e ao público feminino, são cuidadosamente analisadas na pesquisa. O livro nos brinda ainda com ilustrações de capas, anúncios e gravuras, retirados de algumas das publicações estudadas. Estes elementos gráficos e artísticos só vêm somar informações ao texto denso e bem trabalhado de Ana Luíza Martins nessa que, sem dúvida, pode ser considerada obra de referência na história da imprensa brasileira.

Ana Rita Fonteles Duarte – Universidade Federal do Ceará.


MARTINS, Ana Luíza. Revistas em revista – imprensa e práticas culturais em tempos de República, São Paulo (1890-1922). São Paulo: Edusp / Fapesp / Imprensa Oficial do Estado, 2001. Resenha de: DUARTE, Ana Rita Fonteles. Revista Trajetos, Fortaleza, v.1, n.2, 2002. Acessar publicação original. [IF].

Lajja – Shame / Taslima Nasrin

Os problemas que ora se agudizam na denominada região da Caxemira remontam ao período imediatamente posterior à separação das regiões noroeste e nordeste da Índia, respectivamente no dia 15 de agosto de 1947, quando os ingleses deixaram a Índia e foi criado o Estado do Paquistão, e em 26 de março de 1971, quando o Paquistão oriental ganhou sua independência, tornando-se o país Bangladesh. Houve um tempo em que povos de crenças distintas conviviam com relativa harmonia naquelas terras hoje divididas e rebatizadas. Com a formação dos Estados do Paquistão e de Bangladesh em conseqüência dessa partilha do território indiano, iniciou-se o reordenamento de fundamentalistas religiosos em busca de novas causas. O desastre do domínio imperial britânico na região resultou no que hoje conhecemos de Bangladesh ou da região de Bengala (atual Bangladesh, Calcutá e arredores). O que era antes um dos lugares mais ricos do mundo tornou-se um abrigo da miséria humana: Não resta dúvida de que o domínio imperial tenha sido um desastre. Veja a Índia por exemplo. Quando os britânicos chegaram pela primeira vez, Bengala era um dos lugares mais ricos do mundo. Os primeiros mercadores britânicos descreveram-na como um paraíso. Essa é, atualmente, a área de Bangladesh e Calcutá, um símbolo de desespero e pobreza (Chomsky, 1999 p. 84).[1] O Mahatma Gandhi, líder indiano da revolução pela não-violência, buscou liberdade para seu povo. Mas nem tudo gerou benefícios. Um dos conflitos oriundos dessa história nasceu com a reestruturação das fronteiras internacionais e a criação de novos países a partir da Índia. Falamos, portanto, de um conflito que se estende por mais de meio século. Não fazia parte dos desejos do Mahatma a divisão da Índia depois de sua libertação do jugo britânico. Para o líder indiano, problemas de convivência entre as diferentes religiões no subcontinente asiático não deveriam ser motivo para separar seus irmãos, fossem eles hindus ou muçulmanos. Mas essa visão romântica durou pouco. Após menos de um ano da independência, em 30 de janeiro de 1948, Gandhi foi assassinado por um extremista hindu. Os problemas na região estavam apenas por começar.

Primeiro veio a independência da Índia seguida pela criação do Paquistão cujo território compreendia parte do noroeste e do nordeste do subcontinente asiático. O Paquistão oriental deu origem ao que hoje conhecemos por Bangladesh, como resultado de uma guerra sangrenta na qual hindus e muçulmanos lutaram juntos em nome de uma nova pátria para os bengaleses. Os conflitos se somaram ao longo dos anos. A paz cultivada e almejada pelo Mahatma não foi duradoura. Mesmo os hindus e muçulmanos de Bangladesh, combatentes comuns contra a tirania do Estado do Paquistão ocidental, que corresponde ao atual Paquistão, voltaram a se dividir.

Posteriormente à criação da nova pátria bengali, surgiram diversos conflitos de cunho religioso. Um dos maiores ocorreu a 6 de dezembro de 1992, quando a mesquita de Babri Masjid em Ayodhya, cidade do norte da Índia, foi destruída por fundamentalistas hindus, levando os dois grupos religiosos em Bangladesh a entrar em uma nova fase de discórdia e sublevações. Ainda hoje, a minoria hindu vê-se acuada pela hegemonia muçulmana daquele país.

Por ocasião da tragédia de Ayodhya, causando conflitos intermináveis em Bangladesh, antigos camaradas da guerra libertária se tornaram, por força do fanatismo religioso local, inimigos sanguinários. Nesse cenário a autora do livro que ora comentamos viveu as agruras de uma apátrida em sua própria casa. Taslima Nasrin descreve as jornadas de então em um diário “psicológico”, que se apropria de sentimentos e nuanças das relações interpessoais metamorfoseadas em função das mudanças sociopolíticas em Mymensingh, o seu habitat. O amálgama afetivo oriundo do sentimento de pertinência nacional entre os dois grupos religiosos foi sendo progressivamente substituído pelo ódio elaborado e recriado a partir dos novos conceitos de povos e nações construídos sobre uma base de preconceito e intolerância.

O livro em forma de diário descreve apenas 13 dias em um crescente bélico, iniciando em 7 de dezembro de 1992, dia fatídico, depois que a mesquita de 450 anos foi posta ao chão por fanáticos hindus. Os problemas da família Dutta-Sudhamay que povoa o romance autobiográfico da sra. Nasrin apenas começavam. O dr. Sukumar Dutta, patriarca e médico respeitado, vivia com a família em um Bangladesh de maioria muçulmana, mas que até então ainda tinha na memória a libertação de seu país pela força da união de todos os seus filhos. A autora descreve o dilema do povo hindu em Bangladesh por meio da saga da nomeada família Dutta, que se recusa a deixar seu país em conseqüência da intolerância religiosa de outrora amigos muçulmanos, acreditando na vitória da razão e no retorno aos tempos em que Bangladesh emergiu como uma república secular, democrática e socialista. A longa trajetória iniciada nos idos da década de 60 do século passado, quando juntos conseguiram se libertar da tirania do Estado paquistanês, parecia não terminar. Continuava para além daqueles tempos, só que dessa vez a guerra se fazia entre irmãos: os hindus por serem minoria eram preteridos em seus direitos de concidadãos. Com sua históriaromance a autora informa-nos ao mesmo tempo que nos sensibiliza para um trecho da história da humanidade geralmente negligenciado e esquecido. A linguagem é simples, mas rica em detalhes psicológicos captados a partir das experiências pessoais relatadas pela autora-narradora. Daí poder-se compartilhar sentimentos os mais diversos de quem se vê abduzido de seu meio e tem roubados seus projetos de vida por motivos irracionais. Motivos esses que culminaram com a verdadeira ameaça dos extremistas em Bangladesh, decretando o Fatwa (punição de cunho religioso) sobre a autora, tendo esta que se ausentar de fato do seu país para não sofrer retaliações. No seu livro, como na sua vida, a religião termina sendo, à sua revelia, o ponto de partida para o bem ou mal (con)viver: Suranjan got up. The sense of pain and suffering which had already found root in his heart was now growing… He left Palashi behind and headed in the direction of Tikatuli. He decided against taking a rickshaw, because he had only five takas with him. He bought a cigarette at Palashi crossing. When he asked for a Bangla Five, the shopkeeper gave him a strange look.

Suranjan’s heart sank. Did the shopkeeper guess he was a Hindu? And did he know that ever since the breaking of the Babri Masjid, every Hindu could be beaten up with impunity? He quickly paid for the cigarette and moved on. He was surprised by the way he felt, especially as he had never really felt this way before. To think he had left the shop without lighting his cigarette, just because he thought they would make out that he was a Hindu! (p. 82).

Taslima Nasrin tem origem em uma família de classe média de Bangladesh, médica e escritora de outros trabalhos de repercussão local, conseguiu por meio do seu livro Lajja – Shame informar o mundo sobre as mulheres e os seus destinos, sobre a impossibilidade do seu devir em uma sociedade na qual o fanatismo sobrepõe-se à razão. Impossibilitada de viver em seu próprio país, encontra abrigo, como outras vítimas de violências político-religiosas naquela região, na Índia. É um erro absurdo o mundo virar as costas e não tratar diferencialmente uma das maiores democracias do mundo e a única da região. A Índia pode refletir num grande círculo geográfico uma tendência oposta ao totalitarismo religioso e político característico das nações que a cercam.

Apesar do caráter ficcional de seu trabalho, a autora é fiel a aspectos históricos, tendo sido fonte de informação as publicações regionais sobre os eventos que subsidiam sua trama. Por motivos óbvios a questão da delicada relação entre os Estados do Paquistão e da Índia que se complica nos dias de hoje não é abordadada diretamente em seu trabalho, mas Taslima Nasrin aborda os seus antecedentes e pressupostos ideológicos. Pode-se, portanto, acompanhar em segundo plano a problemática atual, muito relacionada com aqueles fatos que deram origem ao seu trabalho literário. É por isso que vimos, com ajuda de sua compreensão da cultura local, que o modelo sociopolítico indiano poderia promover uma convivência melhor e mais humanizada para os diferentes povos da região em se comparando com outros modelos políticos vizinhos. Pois desde que conquistou sua independência, a Índia tem provado ser o único país da região com uma certa vocação democrática. A despeito dos problemas que enfrenta com as desigualdades sociais em quase todo o seu território, vem sendo reconhecida internacionalmente como um celeiro de talentos nos mais diversos campos da ciência e pelo respeito à sua integridade nacional. Ao contrário de muitos países do Terceiro Mundo, a Índia não se deixou encantar pelas falsas promessas da globalização. Pode-se falar, portanto, da maior democracia no globo, com seus 35 estados, mais de cinco mil cidades, 18 idiomas reconhecidos oficialmente e uma população de cerca de 1 bilhão de pessoas que se confessam majoritariamente como hindus. Margareth Tatcher, a dama de ferro do Reino Unido, conhecida por sua fria política em relação ao Terceiro Mundo, não pôde deixar de reconhecer na Índia uma veia democrática que a fazia preferi-la à poderosa Alemanha em pleitos de novos membros para o Conselho de Segurança da ONU.

A Caxemira é na atualidade diferenciada por ser a única região da Índia com maioria muçulmana. Essa característica termina por aproximá-la da região de mesmo nome em território paquistanês, tornando-se solo fértil para a propagação da Jihad (guerra santa). As autoridades indianas acusam os grupos terroristas de atrapalharem o restabelecimento da paz na Caxemira e de disseminarem a miséria entre a população da região. Trata-se, portanto, na lógica da ação indiana, de uma luta contra um terrorismo subsidiado pela ditadura militar paquistanesa. Por meio desses métodos, Islamabad pode vir a pagar um alto preço por suas incursões além-fronteiras em vez de reprimir as ações terroristas dos grupos extremistas islâmicos que agem sob diferentes denominações. Levando-se em conta os modelos políticos dos dois países, é mais presumível que haja liberdade no mosaico multicultural e religioso da democracia indiana do que em países liderados por extremistas religiosos.

Conflitos religiosos como o que moveu a autora para escrever seu livro ainda fazem parte da ordem do dia naquela região. Tais conflitos têm se intensificado após o ataque contra o Parlamento indiano em Nova Délhi, no dia 13 de dezembro de 2001, que causou a morte de 14 pessoas. Segundo os indianos, esse ataque foi perpetrado por grupos separatistas apoiados pelos paquistaneses, em uma espécie de terrorismo de estado. As dificuldades para o premier indiano Atal Bihari Vajpayee e o líder paquistanês Pervez Musharraf negociarem uma solução para o problema na sua versão atual terminaram por dominar a pauta da reunião dos países que formam a Cúpula da Ásia do Sul, realizada em Katmandu (Nepal), em 6 de janeiro de 2002, sob os auspícios da Associação da Ásia do Sul para a Cooperação Regional (Saarc). A Saarc foi criada em 1985 e é formada pela Índia, Paquistão, Sri Lanka, Nepal, Bhutan e as Maldivas. O problema da pobreza que atinge 40% de 1,5 bilhão de habitantes do sul da Ásia deveria dominar as preocupações do encontro, mas foi tirado de cena pelos conflitos indo-paquistaneses.

No quadro atual de caça às bruxas não há como Musharraf querer se deixar associar ao patrocínio de terrorismo internacional, mesmo que as ações terroristas se limitem aos seus vizinhos. Para o governo da Índia, grupos muçulmanos extremistas com base na Caxemira se fortalecem com o apoio financeiro e estratégico oriundo de solo paquistanês. Nos altos e baixos das negociações entre Paquistão e Índia, foram algumas vezes proferidas palavras bonitas expressando boas intenções dos líderes locais sem, contudo, lograr êxito na diminuição do fosso entre os inimigos declarados. As guerras que vêm ocorrendo desde a independência dos dois países, que só na última década deixou cerca de 30 mil mortos, se repetidas, podem virar tragédia, pois neste caso estamos falando de inimigos com armas atômicas. Espera-se que o aperto de mão dos dois líderes no final da reunião de Cúpula da Saarc signifique a intenção de fazer valer as palavras de Musharaf, proferidas em maio de 2001, em reação à proposta do premier indiano de negociar o fim da violência na região. Naquela altura parecia haver mais esperança de se encontrar uma saída para a crise por vias diplomáticas, como pode ser percebido na afirmação do líder paquistanês: “No início do novo século, nossos dois países devem fazer seu melhor para superar esse legado de falta de confiança e hostilidade, para que possamos construir um futuro melhor para nossos povos”.

Como relata a autora, desde que a Índia foi dividida em dois “Paquistãos” e uma “Índia”, muitos hindus tiveram que abandonar suas casas em busca de um porto seguro no qual o extremismo religioso não fosse a tônica da convivência humana. Talvez Taslima Nasrin sonhe muito ao querer secularizar nações governadas por tiranos religiosos, mas, sem dúvida, todo o seu livro está impregnado de certo otimismo em meio ao caos anunciado nos piores dias de seu personagem Suranjan: Suranjan explodiu em risos, como Goon. Ele tinha senso de humor e a capacidade de se sentir em casa onde quer que estivesse. Ele jogaria confortavelmente em um cassino em Las Vegas como, da mesma forma, ficaria nas favelas de Palashi sendo picado por mosquitos. Parecia que não ligava pra nada, nunca se irritava. Demonstrava ser feliz no seu pequeno quarto, passando seus dias com pequenos prazeres insignificantes. Suranjan se admirava como ele podia viver tão feliz? Era sua felicidade de fato uma fachada para todas as mágoas que ele tinha escondidas em seu coração? Esteve ele se obrigando a ser feliz por que não havia qualquer chance de fugir da cruel realidade da vida? [2]

Notas

1 CHOMSKY, Noam. A minoria próspera e a mutidão inquieta. Brasília: Editora da UnB, 1999, p.82.

2 Traduzido pelo autor a partir da versão inglesa de Tutul Gupta: “Suranjan burst out laughing, as did Goon. He had a good sense of humor and the ability to be at home anywhere. He would be equally comfortable gambling in a casino in Las Vegas as he would be in the slums of Palashi getting bitten by mosquitoes. He never seemed to mind anything, never showed his irritation. He was quite happy in his tiny room, spending his days enjoying small insignificant pleasures. Suranjan wondered how he could live so happily? Was his happiness in fact a facade for all the sorrows that he was hiding in his heart? Was he compelling himself to be happy because there was no getting away from the grim realities of life?” (p. 82).

Antônio Caubi Ribeiro Tupinambá – Universidade Federal do Ceará.


NASRIN, Taslima. Lajja – Shame. (Tradução do bengali para o inglês: Tutul Gupta.) Nova Délhi, Índia: Penguin Books, 1994. Resenha de: TUPINAMBÁ, Antônio Caubi Ribeiro. Revista Trajetos, Fortaleza, v.2, n.3, 2002. Acessar publicação original. [IF].

O Trabalhador Gráfico (Edição fac-similar) / Adelaide Gonçalves e Allyson Bruno

A História sempre teve incontáveis narradores, em quaisquer épocas e lugares. Sabese, porém, que nem todas as narrativas se prestam à construção da História dita “oficial”. Por isto, em seu laborioso trabalho de fabricar mitos e heróis, os escribas da Corte se esmeram em filtrar informações, descartando aquelas que antagonizam a autoridade de plantão e alijando para os bastidores personagens que eventualmente desagradam, incomodam ou – suprema ousadia – afrontam as forças dominantes.

Preciosas versões dos acontecimentos acabam, dessa forma, desaparecendo nos desvãos do tempo. O que é lamentável, pois muitas vezes a face oculta dos conflitos, dos pactos e celebrações, dos pequenos e grandes inventos e descobertas, guarda informações imprescindíveis: a crônica do soldado revela-se mais rica e colorida que a do general; a do peão, mais contundente e esclarecedora que a do patrão.

Felizmente, vem-se disseminando a consciência de que há essa outra História para ser contada e, sobretudo no ambiente acadêmico, os pesquisadores têm-se dedicando ao resgate de uma memória que, por conta do descaso – quando não, da destruição consciente – ameaçava perder-se para sempre. Na Universidade Federal do Ceará, a Profª Adelaide Gonçalves, do Curso de História, lidera um trabalho de extraordinário alcance, voltado em especial para o restauro da crônica operária. Fragmentos representados por jornais, panfletos, manifestos, programas partidários, hinos, fotografias, revistas e outras peças ligadas ao mundo do trabalho têm sido pacientemente recolhidos, resultando em contribuição inestimável para o patrimônio imaterial de nossa gente.

Em “A imprensa libertária do Ceará – 1908-1922”, lançado pelas Edições UFC e Sindicato dos Jornalistas, em 2001, Adelaide reproduz alguns jornais que difundiram as teses libertárias no início do Século XX. Ao analisar esse período, ela se reporta à violência policial exercida contra aquelas folhas. Revela, como exemplo do arbítrio, a invasão da tipografia de O Operário, de Camocim, em 1928, e a prisão de seu editor, Francisco Theodoro Rodrigues.

Trabalho do mesmo alcance e significado é “Ceará Socialista – Anno 1919”, também apresentado ao público no ano passado, sob a mesma chancela editorial. Aqui é mostrada, em fac-símiles, a coleção completa daquele semanário, reunida ao longo de laboriosa busca em arquivos públicos e particulares.Agora, em parceria com Allyson Bruno, e sempre com o selo das Edições UFC e apoio do Sindicato dos Jornalistas, a Profª Adelaide entrega ao público “O Trabalhador Gráfico”, onde reproduz a coleção inteira desse jornal, preservada pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Gráficas no Estado do Ceará.

Realça, em todo o trabalho desenvolvido a partir do Curso de História da UFC, a preocupação em socializar resultados. A publicação dos dados coletados, em edição facsimilar, amplia o sentido da pesquisa, na medida em que facilita o acesso a um material que jazia nas gavetas do esquecimento e, assim, pedagogicamente, contribui para disseminar a consciência da preservação da memória. Enriquece ainda mais a iniciativa o estudo preliminar inserido nessas publicações, onde os pesquisadores analisam o material coletado, lançam um olhar crítico sobre seu conteúdo, interpretam tendências e sublinham pormenores que não poderiam passar despercebidos.

Em sua maioria de pequeno formato e duração efêmera, parcos de recursos técnicos e beirando a indigência em termos financeiros, os jornais operários que circularam no Ceará no Século XIX e início do Século XX enquadram-se na tradição dessa imprensa, que se voltava para a defesa do emergente movimento dos trabalhadores e que, heroicamente, procurava evidenciar as contradições do sistema vigente. Como acontecia no resto do País, os periódicos da província empenhavam-se na denúncia das condições gerais de trabalho, sem dispensar as intervenções de caráter doutrinário. Antes de mais nada, procuravam mobilizar o trabalhador para a luta, destacando-se pelo vigor dos seus editoriais, inspirados tanto nas questões locais quanto nos princípios do internacionalismo proletário.

O papel desses periódicos na sociedade seria reconhecido pelos profissionais presentes ao 1º Congresso Brasileiro de Jornalismo, realizado no Rio, em setembro de 1918. Entre as recomendações emitidas, ao final do evento, contemplavam-se temas ainda atuais nos dias de hoje, como a imprescindibilidade da ética jornalística, a necessidade da escola de jornalismo e o cuidado que deveriam ter os editores diante da publicidade nociva e do noticiário policial.

Com relação à imprensa operária, o documento recomendava às classes trabalhadoras fundar e manter órgãos de comunicação ligados às suas corporações, “pelos quais sejam afirmados os seus intuitos e os seus propósitos, com a elevação da linguagem indispensável à defesa de todas as causas justas”.

Protótipo desse gênero de periodismo, o Trabalhador Gráfico é entendido, pelos pesquisadores da UFC, como “uma das expressões da luta e do ascenso do movimento dos trabalhadores no Ceará, nos anos de 1920”. Órgão do Sindicato dos Trabalhadores Gráficos, recém-fundado, reunia não apenas dirigentes da categoria, mas também militantes de outros ofícios, alguns deles ligados ao Bloco Operário e Camponês (BOC). Seus artigos e editoriais, seções e colunas são um rico manancial de informações sobre os personagens e temas que aqueciam o movimento operário cearense naquela época. Circulou entre abril e outubro de 1930 e, no primeiro número, ao apresentar suas credenciais, descarta a idéia de ser “uma tribuna em que se discutem assuntos políticos ou religiosos, científicos ou literários”. Queria, talvez, exorcizar-se com relação à pasmaceira e mediocridade imperantes nos pasquins da intelectualidade burguesa. Preferia ser uma “bigorna onde muitos malhos rebatam, produzindo um só ruído – o de despertar a classe de operários gráficos do Ceará dessa modorra letárgica em que se acha”.

O projeto do jornal era, pois, tornar-se uma ferramenta da conscientização e mobilização de toda uma categoria profissional, que parecia, na época, indiferente ao próprio destino. A poderosa simbologia da bigorna e do malho sugere o propósito de ter a organização sindical um instrumento forte para fazer ressoar uma nova mensagem, aguilhoar os sonolentos gráficos, que, segundo o editorialista, se mostravam apáticos diante dos ideais que então agitavam outros segmentos dos trabalhadores. “É este o único motivo que nos trouxe à arena”, arremata o texto de primeira página.

Bigorna, malho, arena… Fica patenteada a disposição para a luta. E as armas são vigorosos instrumentos de trabalho que, metaforicamente, deveriam traduzir o poder da palavra escrita. Assim era o Trabalhador Gráfico. Assim se comportava a imprensa operária naqueles tempos de medo e arbítrio, quando, malgrado o tacão dos poderosos, começavam a disseminar-se idéias renovadoras, no mesmo ritmo em que se forjava a consciência de classe e se aglutinavam, em sindicatos, as hostes dos oprimidos. Ao reconstituir a memória da imprensa operária, os pesquisadores do Curso de História fazem pulsar de novo as manchetes e textos flamejantes que incitavam o trabalhador a defender os seus direitos. Para os que não se contentam em conhecer apenas a transcrição oficial da história – ou seja, a narrativa produzida sob encomenda, inspiração e com total aprovo das elites – a leitura de “O Trabalhador Gráfico” é um convite à reflexão sobre o nosso passado recente e, quem sabe, um guia para os embates futuros.

Italo Gurgel – Universidade Federal do Ceará


GONÇALVES, Adelaide; BRUNO, Allyson (Orgs.) O Trabalhador Gráfico (Edição fac-similar) Fortaleza: Edições UFC, 2002. Resenha de: GURGEL, Italo. Revista Trajetos, Fortaleza, v.2, n.3, 2002. Acessar publicação original. [IF].

Weapons of the Weak: everyday forms of Peasant Resistance. Domination and the Arts of Resistance: hidden transcriots / James Scott

Infelizmente, a obra de James C. Scott ainda é pouco conhecida entre os historiadores brasileiros. Seus trabalhos nem sequer foram traduzidos, o que demonstra o parco interesse editorial. No entanto, as temáticas levantadas em seus estudos convergem intimamente com os interesses de pesquisa desenvolvidos no Brasil, especialmente nos programas de pós-graduação em História.

Pesquisas sobre resistência dos trabalhadores de variadas origens e condições, assim como sobre movimentos sociais, consistem em uma importante vertente atual dos interesses teóricos e políticos dos historiadores. Pode-se afirmar que esta tendência afirma-se particularmente entre os historiadores acadêmicos, que, em suas teses e dissertações, buscam reatar o fio perdido das lutas sociais obscurecidas pela propaganda neoliberal pós-Guerra Fria. De fato, os programas de pós-graduação e muitos cursos de graduação em História aglutinam cada vez mais seus focos de interesse temático dentro de uma linha teórica/metodológica que se convencionou chamar de História Social. Muito embora a advertência de que a história é inteiramente social por definição não tenha sido esquecida, há uma certa ênfase nessa especificação “social” que reafirma o lugar da política no interior dos estudos históricos, ao mesmo tempo em que amplia este conceito de modo a permitir análises que extrapolam a tradicional referência ao Estado como relação primordial ou central que configurava os estudos de História Política.

No caso da história “vista de baixo”, a vida dos trabalhadores fora dos sindicatos, partidos e organizações passa a ser um importante tema de pesquisa que amplia as possibilidades de entendimento de dimensões mais obscuras ou imperceptíveis das relações de poder. A procura sistemática das formas e lugares da “resistência” passou a dominar as preocupações dos historiadores, mesmo que uma série de divergências – de natureza teórica ou política – ainda permaneça.

Nessa perspectiva, os trabalhos de James C. Scott podem acrescentar uma rica reflexão a este debate contemporâneo. Os dois livros aqui sumariamente resenhados representam um esforço do autor em precisar empiricamente este debate e dar uma nitidez teórica ao conceito de “práticas de resistência cotidiana”. Esta noção foi inicialmente discutida no livro W eapons of the Weak: everyday forms of Peasant Resistance (1985), que é o resultado de um trabalho de dois anos de observação participante em uma pequena vila rural da planície de Muda, no estado de Sedaka, no nordeste da Malásia. Esta aldeia se dedicava tradicionalmente à agricultura do arroz, e as mudanças trazidas pela revolução verde aumentavam a desigualdade entre pobres e ricos, especialmente com a utilização de novas máquinas e técnicas agrícolas. A atenção de Scott se centrou mais nas tensões e lutas não visíveis dentro da estrutura social local do que em conflitos de massa contra o governo, dedicando-se a analisar formas de resistência cotidiana, individual ou coletiva.

As práticas de resistência cotidiana, para ele, se constituem na “luta prosaica mas constante entre o campesinato e aqueles que buscam extrair trabalho, comida, impostos, rendas e juros dos camponeses” (p. 32-33). A prática do “corpo mole”, a dissimulação, a condescendência, o furto, a simulação, a fuga, a fantasia, a difamação, a maledicência, o incêndio culposo, são atitudes encontradas pelo autor que apontam para uma compreensão interiorizada e sutil da exploração e do antagonismo. Para ele, estas “formas brechtianas de luta de classes têm certos traços em comum”: mesmo requerendo “pouca ou nenhuma coordenação ou planejamento”, são mecanismos de “auto-ajuda individual” que “geralmente evitam qualquer confrontação simbólica direta com as autoridades ou com as normas da elite”. Assim, como os caminhos da resistência cotidiana não estão somente impressos nas lutas abertas e institucionais contra os dominantes, é preciso ver “o que os camponeses fazem entre revoltas para defender seus interesses da melhor forma possível” (p. 29).

Assim, tanto as práticas cotidianas quanto os movimentos sociais institucionalizados são considerados por Scott como formas de resistência. Desta forma, ele discorda da separação entre “resistência real” e “resistência incidental”, o que implica em um importante discussão metodológica.

Resistência real, se argumenta, é (a) organizada, sistemática e cooperativa, (b) guiada por princípios e não egoísta, (c) tem conseqüências revolucionárias, e/ou (d) incorpora idéias ou intenções que negam as bases da dominação em si mesmas. Atividades incidentais ou epifenomênicas, por contraste, são (a) desorganizadas, não sistemáticas, e individuais, (b) oportunistas e de auto-satisfação, (c) não tem conseqüências revolucionárias, e/ou (d) implicam, na sua intenção ou significado, em uma acomodação com o sistema de dominação (p. 292).

O autor entende, portanto, que esta diferenciação, mesmo que seja útil para fins de classificação das formas de resistência, não consegue captar as práticas cotidianas como instrumentos populares de manifestação de um sentimento de injustiça e de luta contra a opressão social. Se as práticas cotidianas não apontam caminhos revolucionários ou, às vezes, até reafirmam a ordem social, continuam, apesar de tudo, sendo mecanismos encontrados para driblar ou sublimar a opressão e/ou a exploração de classe, constituindo-se, portanto, em importante janela para a compreensão das lutas sociais e das condições de vida dos setores populares subalternos. No entanto, dado o caráter fragmentado e difuso destas práticas, a questão que se coloca é como identificá-las e que metodologia utilizar para estudá-las.

Em trabalho posterior, Domination and the Arts of Resistance (1990), a preocupação de Scott é desenvolver uma abordagem teórica para compreender as relações de dominação a partir das interações sociais cotidianas. Nesse trabalho, o autor trata não só de camponeses, mas também de outros grupos ou classes, tais como escravos, servos, etnias e povos colonizados.

As interações sociais são analisadas como teatralização, em que os indivíduos se utilizam de diversas “máscaras” para situarem-se nas relações de poder. Há uma nítida aproximação, aqui, com os trabalhos do historiador inglês E. P. Thompson, que examina as práticas de um teatro dos dominantes em confronto com um contra-teatro dos dominados, os quais, através de discursos de submissão e deferência, manifestam contraditoriamente insatisfações, ressentimentos, revoltas ou descontentamentos. As práticas de representação, confirmadas pela detalhada pesquisa empírica de Scott, indicam a constituição de um jogo de papéis e lugares em que as normas ou regras elaboradas pelos dominantes ganham significados diferentes, e às vezes contrastantes, quando colocadas em ação pelos grupos populares. Mais uma vez, a distinção entre “resistência ativa” e “resistência passiva”, como definidores de um campo da política e outro do conformismo, perde consistência teórica e prática. Neste livro de 1990, o autor desenvolve de forma mais ampla a noção de “práticas cotidianas de resistência”, procurando entendê-las na confluência entre “transcrito público” (public transcript) e “transcrito invisível” (hidden transcript).

No “transcrito público”, ambas as partes tendem a orientar suas atitudes por estratégias de respeito, dissimulação e vigilância. A análise destas atitudes pode ser um caminho metodológico importante para compreender os padrões culturais de dominação e subordinação. Esta perspectiva se assenta numa crítica à visão de que os grupos e/ou indivíduos dominantes conseguem efetivamente manter o controle total sobre os grupos dominados e sobre as práticas determinadas pelas normas que regem o espaço público, assim como suas decorrências. Os subordinados, mesmo que estejam em conflito aberto com o dominante, procuram agir com deferência e consentimento, garantindo assim um campo perceptível e seguro de negociação. Trata-se de um “gerenciamento de aparência” em situações de hierarquia de poder, quando o subordinado tenta interpretar a expectativa do dominante.

A dominação precisa ser reafirmada socialmente através de um trabalho político sistemático, representado no “transcrito público”. As principais formas deste transcrito são afirmações, eufemismos e unanimidades. Afirmações ocorrem através de pequenas cerimônias, chamadas por Scott de “etiqueta”, que constituem uma espécie de “gramática da interação social” (p. 47).

Eufemismos têm como objetivo mascarar os fatos cruéis e violentos da dominação e dá-los um aspecto inofensivo ou simpático, neutralizando-os enquanto possibilidades de fraturas do tecido social – como exemplo, o autor cita o uso da palavra “pacificação” para a ocupação e o ataque armado. Unanimidades são mecanismos utilizados pelos dominantes não para ganhar a concordância dos subordinados, mas para intimidá-los de modo a garantir um relacionamento durável de submissão.

As expressões do “transcrito público” são fundamentais para a análise das relações de poder e, segundo Scott, a única forma de alcançar estas manifestações é “conversar” com o ator (ou com as evidências deixadas no registro das fontes históricas) “fora do palco”, ou seja, distante do contexto hierárquico de poder, onde as regras do teatro da dominação tendem a prevalecer. Este espaço “seguro”, “livre”, é chamado de “transcrito invisível”, que “consiste de falas, gestos e práticas que confirmam, contradizem ou enfatizam o que aparece no transcrito público”. Scott esclarece que não se trata de uma oposição entre espaço da necessidade e da liberdade, ou contexto do falso e do verdadeiro, mas atos teatrais para audiências diferentes (p. 5).

O interesse de Scott vai particularmente para situações de dominação, que, embora institucionalizadas através da ideologia, do ritual e da etiqueta, são permeadas por relações pessoais, como é o caso das relações entre servo e senhor, do sistema de castas e das relações sociais do campesinato. Entretanto, os grupos que se orientam por relações pessoais – tradicionais – têm também uma existência social “fora do palco”, o que lhes permite desenvolver uma renitente crítica ao poder. Há, aqui, um interesse particular para os estudos sobre situações vinculadas ao sertão cearense, com suas relações intensamente marcadas pelo paternalismo, pelo coronelismo e pelo compadrio.

Assim, as pesquisas de Scott se dirigem para os temas da resistência, das estratégias, da representação, da ação como atos que obedecem a determinadas regras de comportamento mas que permitem uma ressignificação em função de contextos de desigualdade e confronto. As “práticas de resistência cotidiana” constituem, para os populares de maneira geral, um território de negociação (público), em que as regras de atuação são definidas pelos dominantes, e um território de liberdade relativa (oculto), onde as expressões de crítica podem circular mais livremente, constituindo assim um “vocabulário da exploração”.

A identificação desses territórios pelo pesquisador é fundamental, pois as expressões de revolta e/ou de conformismo só adquirem significado efetivo no interior desses contextos de enunciação, configurando um gerenciamento criativo e persistente das condições da exploração e da dominação social. Mais uma vez, a ampliação do conceito de política é condição fundamental para o entendimento das ações populares de resistência à dominação de classe.

Os rumores, a dissimulação, o ressentimento, os eufemismos, o “corpo mole”, são formas possíveis de resistência em contextos de dominação e de controle cultural. Possuem, portanto, um sentido político de antagonismo de classe que o foco exclusivamente centrado nas instituições formais dos trabalhadores não permitia ver.

A riqueza das análises de James C. Scott já está a merecer uma boa tradução para o português, para que a comunidade de historiadores, interessada nas formas de resistência popular à dominação social, possa se beneficiar desse amplo, complexo e comprometido arsenal de combate ao conformismo teórico e ao determinismo econômico.

Frederico de Castro Neves – Universidade Federal do Ceará.

Marilda Aparecida de Meneses – Universidade Federal da Paraíba.


SCOTT, James C. Weapons of the Weak: everyday forms of Peasant Resistance. New Haven: Yale University Press, 1985; Domination and the Arts of Resistance: hidden transcriots. New Haven: Yale University Press, 1990. Resenha de: NEVES, Frederico de Castro; MENESES, Marilda Aparecida. Revista Trajetos, Fortaleza, v.1, n.1, 2001. Acessar publicação original. [IF].

 

A História vai ao Cinema: vinte filmes brasileiros comentados por historiadores / Jorge Ferreira

Para os irmãos Lumiére, o cinema seria uma curiosidade passageira. Reza a lenda que um dos inventores do cinematógrafo (1895), ou o pai dele, chegara a proferir: “o cinema é uma invenção sem futuro”. O palpite não vingou e, em pleno alvorecer do século XXI, a captação de imagens em movimento sobrevive muito bem, seja em fotogramas, seja nos seus avatares em novas tecnologias (do vídeo analógico aos processos digitais).

E o cinema não apenas teria um futuro, mas ainda deixaria, em sua secular existência, um rastro imensurável de registros desse próprio tempo, bem como de tempos mais ou menos remotos, bem ou mal reinterpretados em celulóide. Presentificando outras etapas da história, o cinem também tornou-se uma invenção com o olho (câmera) no passado. O problema é que os historiadores, em princípio, não perceberam isso.

A História, que aperfeiçoa seus métodos antes de surgir o cinematógrafo, prefere ignorá-lo, como lembra Marc Ferro, acrescentando: “a linguagem do cinema revela-se ininteligível e, como a dos sonhos, é de interpretação incerta”. Mais prudente, naquele campo do conhecimento, seria manter a tradição documental da palavra escrita. Além de tudo, em sua fase heróica, era o cinema uma curiosidade inculta, destinada portanto à “ralé”. Os elitistas não o levariam a sério. Muitas décadas depois, mesmo mudando-se esse conceito, ainda haveria resistência dos historiadores para se valer do filme, seja ficcional ou mesmo documental, como fonte. Ferro foi um dos profissionais desse campo a apontar a legitimidade do material cinematográfico junto aos estudiosos.

No Brasil, os historiadores seguiram o descompasso de seus pares estrangeiros no trato com o cinema. Mas o audio-visual tanto cresceu em nossas vidas (com a televisão e o videocassete), que logo se impôs como suporte pedagógico. Várias disciplinas o acolheram em salas de aula, impondo aos professores a urgente necessidade de se melhor compreender o que até então era “mera diversão”.

O livro A História vai ao Cinema, organizado por Jorge Ferreira e Mariza de Carvalho Soares, é um rico e estimulante passo do pensamento acadêmico para se compreender uma manifestação artística que já tinha ido à História desde seu surgimento em fins do século XIX.

Não se trata de um compêndio que teoriza sobre tais relações entre as duas matérias apreensoras do tempo (o diretor Sílvio Tendler, na introdução, apenas esboça algo nesse sentido).

A coletânea em pauta reúne vinte filmes brasileiros, cada um deles analisado por um historiador. A seleção dos títulos teve critério um tanto elástico. Incidiu sobre fitas lançadas entre 1976 e 1998 – de “Dona Flor e seus dois Maridos” a “Central do Brasil”. A ênfase em filmes de sucesso comercial, ou de boa ressonância junto à crônica especializada, coincidentemente ou não, redundou em filmes associados a uma idéia de “bom gosto” artístico – o que implica na exclusão não justificada de produções absurdamente populares, como as comédias de Mazzaropi, dos Trapalhões ou do ciclo pornochanchadeiro (dois terços do que se produziu em cinema brasileiro, nos anos 70, eram filmes eróticos). Se tais filmes não foram sucesso de crítica (de resto, algo subjetivo), foram avalizados pelo público. Além do mais, a pornochanchada esteve no centro das discussões daquela década, seja associada ao “pão e circo” imposto pela ditadura, seja por suas supostas “transgressões” sexuais num período de liberação dos costumes, particularmente da mulher – assunto que, por si só, legitimaria uma observação mais ampla das relações basilares entre obras como “Dona Flor…” e “Xica da Silva” e esses filmes de menor extração.

A compreensão, pelo prisma da História, de obras fílmicas requer que se aventure um pouco na própria história do cinema – no caso, o brasileiro. Assim, à guisa de exemplo, é pertinente, na análise de “Marvada Carne”, a observação da ancestralidade do personagem Nhô Quim, que hoje mantém os “poucos mesmos artefatos da cultura material dos bandeirantes paulistas”.[1] Mas o mesmo tipo caipira – e todo esse filme de André Klotzel – é também uma citação do cinema caipira de Mazzaropi, inclusive contando no elenco com a presença de Geny Prado, veterana atriz de seus populares filmes. A cultura remota, sem dúvida, ressoa nos personagens e em seu mundo rural. Mas a cultura imediata do cinema também está, mais conscientemente, arrisco dizer, na construção da obra, que visa tocar no imaginário de amplo público, emocionando-o de algum modo.

O processo cinematográfico, por injunções comerciais, implica em se agrupar filmes em gêneros reconhecíveis. As tramas, os tipos humanos (heróis e vilões) etc. se repetem, bem como as formatações narrativas de pura imagem. Estas tendem a ser recorrentes (o uso dos planos, os movimentos de câmera, a montagem e seu ritmo, a cor etc.). Produzem discursos em consonância com o roteiro meramente literário. Às vezes, porém, deliberadamente ou não, há dissonâncias entre o que é verbalizado na tela e a montagem audiovisual adotada. Na análise de “Pra frente Brasil” cita-se o modelo thriller norte-americano para o filme político, fórmula esta difundida por Costa Gavras.[2] A comparação procede, mas seria também pertinente observar que tal modelo redunda na espetacularização da trama política, engolida pelo ilusionismo hollywoodiano, não surtindo maior efeito nas platéias que só se interessam na “ação pela ação”. Roberto Farias, o diretor, sobretudo está, com seu filme, ajustando-se a uma solicitação comercial num momento em que a abertura política supostamente aceitaria filmes dessa natureza. Farias opta pela linguagem conservadora plenamente adequada à “ideologia” que adota: a do mercado. Da chanchada ao ensaio do Cinema Novo, passando por filmes modernosos sobre Roberto Carlos, o cineasta sempre se guia por caminhos que devem ser também lembrados na análise da obra em pauta. Essa contextualização de cultura cinematográfica e sua adequação ao plano lingüístico não são elementos desprezíveis numa análise envolvendo História e Cinema.

Concorde-se ou não com toda a opinião e abordagem de tantos estudiosos, o livro em questão é, desde já, uma referência obrigatória para se estudar aqueles dois campos do conhecimento. Os autores são especialistas dos temas retratados nos filmes em foco. Alguns podem ter mais familiaridade ou não no trato da linguagem cinematográfica. O projeto editorial assemelha-se ao livro Passado Imperfeito – A História no Cinema (Record, 1997), organizado por Marc C. Carnes, em que historiadores e outros especialistas rastreiam e criticam a história da humanidade expressa em filmes europeus e notadamente hollywoodianos. Ressalvas aqui cabem também no que tange às especificidades do meio cinematográfico, mas o resultado é sempre estimulante. Num outro ângulo dessa aproximação cinema-história, cabe lembrar que os criadores audiovisuais precisam também mergulhar no que há de específico e mais avançado noutras áreas do conhecimento. Há um atraso brutal em relação ao saber, haja vista os resultados medíocres de tantos filmes. “Canudos”, de Sérgio Rezende (que também se baseia no romance O Rei do Cangaço, de Manuel Benício, e não somente traduz Euclides da Cunha), é exemplo desse mau resultado. Um fracasso artístico, inclusive, o que me faz discordar de que seja “bom cinema”, como se lê no texto.[3] O formato do espetáculo comercial de gênero “épico guerreiro”, implica na redução do fenômeno messiânico a uma sucessão de batalhas mal realizadas.

O Nordeste, com esse filme e outros como “Cabra Marcado para Morrer”, “O Homem que virou Suco”, “Central do Brasil” etc. é um tema recorrente na cinematografia brasileira, herança da redescoberta do Brasil via Cinema Novo dos anos 60. Mas outros temas, nessa antologia, se cruzam em vários filmes. Assim, vemos o problema das migrações tanto em “Aleluia Gretchen”, “Quatrilho”, “Gaijin” e “Lição de Amor” quanto em “O Homem que virou Suco” e “Cabra Marcado para Morrer” – esse último diretamente ligado a outro subtema: o Brasil pré e pós-64, ao lado de “Jango”. Temos, enfim, um amplo espectro de possibilidades de análises, por vários ângulos, inclusive com filmes cujo tema histórico situado no passado mais remoto é, de fato, uma crítica ao Brasil contemporâneo, como se observa em “Xica da Silva, por exemplo. Adotemos, pois, esse livro como suporte para discussões mais aprofundadas sobre nosso imaginário histórico, sem esquecer a perspectiva de fazermos “a história audiovisual da história”, como propôs o sociólogo Gilberto Vasconcelos em recente estudo sobre Glauber Rocha.

Notas

1. ALMEIDA, Jayme de. Marvada Carne: uma comédia caipira épica. In: p. 195.

2. BATALHA, Cláudio H. Pra frente Brasil: o retorno do cinema político. In: p. 137.

3. HERMANN, Jacqueline. Imagens de Canudos. In: p. 246.

Firmino Holanda – Universidade Federal do Ceará.


FERREIRA, Jorge; SOARES, Maria de C. (Orgs.) A História vai ao Cinema: vinte filmes brasileiros comentados por historiadores. Rio de Janeiro: Record, 2001. Resenha de: HOLANDA Firmino (Res), Revista Trajetos, Fortaleza, v.1, n.1, 2001. Acessar publicação original. [IF].

 

Bibliografia Libertária – O Anarquismo em Língua Portuguesa / Adelaide Gonçalves e Jorge E. Silva

Em edição revista e ampliada, a editora Imaginário lança A Bibliografia Libertária – O Anarquismo em Língua Portuguesa, de Adelaide Gonçalves e Jorge E. Silva, trabalho que sintetiza informações acerca da atividade editorial voltada para o pensamento e prática anarquistas em Portugal e no Brasil, constituindo um importante guia para leituras e estudos sobre o tema.

Buscando contemplar a atividade editorial libertária lusófona desde a década final do século XIX, a catalogação corrige e amplia consideravelmente àquela da primeira edição, que incluía apenas livros publicados em Portugal após 1974 e, no Brasil, a partir de 1980, datas que marcaram o ocaso das ditaduras que assolaram os dois países. A listagem, desta forma, inclui também as edições feitas no período de maior visibilidade do movimento anarquista, a fase de seu surgimento e propagação como movimento socialmente representativo, que vai da última metade do século XIX até meados dos anos 30 do século XX.

Os vários títulos reunidos nesse período de mais de 100 anos refletem, em si, a longevidade do ideal ácrata, ao passo que as obras posteriores à década de 60 atestam o ressurgimento do interesse pelo pensamento libertário, ocorrido em nível mundial e marcado, entre outros acontecimentos, pela emergência das críticas aos regimes despóticos que advogavam-se a alcunha de socialistas e pelo aparecimento dos movimentos contra-culturais nas décadas de 50 e 60. Desta forma, é possível verificar, nesta bibliografia libertária, não apenas a obstinação dos primeiros tempos da atividade editorial anarquista, como também o impulso editorial que receberam alguns clássicos teóricos da Anarquia nas décadas mais recentes (como, por exemplo, a obra de Bakunin), o aparecimento de trabalhos de caráter acadêmico sobre o movimento operário influenciado pelo sindicalismo revolucionário e pelo anarco-sindicalismo das primeiras décadas do século XX, bem como o aparecimento de obras críticas de viés libertário à chamada modernidade.

Estão presentes, ainda, diversos livros de memórias de militantes anarquistas e anarco-sindicalistas portugueses, editados após a derrubada da ditadura portuguesa em 1974, e obras publicadas por editoras que se mantém à margem da cultura massificante que apregoa a morte das ideologias, como a Achiamé e a própria Imaginário. Em anexo, o livro traz uma listagem de temas afins ao anarquismo, tais como as idéias anti-clericais, o cooperativismo e o anti-autoritarismo, que como afirmam os autores, são “bastante presentes na propaganda libertária e que contribuíram para a formação da visão de mundo dos anarquistas.”

O leitor, no entanto, não será simplesmente levado a conhecer esta variedade de edições acerca do anarquismo e temas afins. Os autores enriquecem o trabalho com uma bela introdução à bibliografia libertária na qual encontram-se informações que incluem o aparecimento das primeiras idéias socialistas nos dois países, o intercâmbio de publicações entre portugueses e brasileiros durante o século XX, a efervescência das idéias na busca da formação de uma cultura genuinamente popular e libertária e, por fim, os obstáculos e transformações conjunturais enfrentadas por aqueles que se dedicaram à divulgação das idéias socialistas.

Mas o que de mais importante se sobressai no conhecimento desta atividade editorial libertária, que em meio a tantas adversidades se manteve firme propagando ideais de elevação humana, é que ela foi fruto da espontaneidade e do voluntarismo de militantes livres, que não cessaram de acreditar na grandeza de seus propósitos, na pluralidade e no anti-dogmatismo. A determinação e a perseverança com que as adversidades foram enfrentadas e superadas por todos aqueles que lutaram pela divulgação das idéias ácratas devem, acima de tudo, servir de exemplo aos que, nos dias de hoje, nesse contexto social tão hostil dominado pelos “mass media”, continuam acreditando e trabalhando pela liberdade e pela emancipação humana.

Desta forma, a “Bibliografia Libertária” é não apenas um guia capaz de instrumentalizar pesquisas sobre o vasto e importante legado da Anarquia, mas também um convite para que mergulhemos nessa grande herança das lutas sociais, de cujo conhecimento depende não só a compreensão da nossa sociedade atual, mas também os caminhos para sua transformação.

Allyson Bruno Viana – Universidade Federal do Ceará GONÇALVES, Adelaide; SILVA, Jorge E.


Bibliografia Libertária – O Anarquismo em Língua Portuguesa. São Paulo: Ed. Imaginário, 2001. Resenha de: VIANA, Allyson Bruno. Revista Trajetos, Fortaleza, v.1, n.1, 2001. Acessar publicação original. [IF].