História e práticas cotidianas  | SÆCULUM – Revista de História | 2012

Algumas décadas se passaram desde que Fernand Braudel, em seu clássico Civilização Material, Economia e Capitalismo, afirmou a necessidade, por parte dos historiadores, do estudo das estruturas do cotidiano, aquilo que ele chamou de “os fatos miúdos que quase não deixam marca no tempo e no espaço”. Na confluência entre a História e a Antropologia, os fatos do cotidiano se caracterizam por sua repetição em longos períodos de tempo, bem como por sua relativa invisibilidade nos documentos. Representam, portanto, um grande desafio para os historiadores, acostumados à pesquisa dentro de períodos bem determinados e, geralmente, mais curtos do que a longue durée braudeliana.

No dossiê desta edição da Sæculum procuramos explorar as possibilidades de estudo das práticas cotidianas pela historiografia. Desde as técnicas alimentares e etílicas do Brasil colonial, passando pelos “fatos miúdos” da vida brasileira no século XIX, até as técnicas educacionais e sociais que visavam a “civilização” do povo brasileiro durante o século XX, ou o modo como a literatura pode dar ao historiador uma visada privilegiada sobre um determinado cotidiano. Desse modo, o dossiê é composto por catorze artigos, com autores provenientes de instituições as mais diversas e de formação também variada. Leia Mais

História e práticas cotidianas / Sæculum / 2012

Algumas décadas se passaram desde que Fernand Braudel, em seu clássico Civilização Material, Economia e Capitalismo, afirmou a necessidade, por parte dos historiadores, do estudo das estruturas do cotidiano, aquilo que ele chamou de “os fatos miúdos que quase não deixam marca no tempo e no espaço”. Na confluência entre a História e a Antropologia, os fatos do cotidiano se caracterizam por sua repetição em longos períodos de tempo, bem como por sua relativa invisibilidade nos documentos. Representam, portanto, um grande desafio para os historiadores, acostumados à pesquisa dentro de períodos bem determinados e, geralmente, mais curtos do que a longue durée braudeliana.

No dossiê desta edição da Sæculum procuramos explorar as possibilidades de estudo das práticas cotidianas pela historiografia. Desde as técnicas alimentares e etílicas do Brasil colonial, passando pelos “fatos miúdos” da vida brasileira no século XIX, até as técnicas educacionais e sociais que visavam a “civilização” do povo brasileiro durante o século XX, ou o modo como a literatura pode dar ao historiador uma visada privilegiada sobre um determinado cotidiano. Desse modo, o dossiê é composto por catorze artigos, com autores provenientes de instituições as mais diversas e de formação também variada.

O primeiro artigo do dossiê, da profª Leila Algranti (UNICAMP), trata do uso de plantas e sementes na culinária e como panaceia terapêutica no vasto Império português, entre os séculos XVI e XVIII. Trata de saberes botânicos adquiridos no contato entre os navegadores / conquistadores lusos e os diversos povos autóctones que aqueles foram encontrando na costa africana, nas rotas e portos do extremo Oriente e na América portuguesa, bem como sua adaptação a outros ambientes naturais, fomentando uma das maiores aclimatações de espécies vegetais a novos ambientes que qualquer povo tenha feito até então.

O artigo seguinte, do prof. José Newton Menezes (UFMG), quase que complementa o anterior, ao mostrar as práticas de uso de acessórios os mais diversos na mesa das casas mineiras do século XVIII, tratando de talheres, louças e outros apetrechos e identificando sua importância no dia a dia, sempre a partir de inventários post mortem. Inserido no recentíssimo campo da História da Alimentação, o texto demonstra o quão rica pode ser a pesquisa nesta abordagem e como há, ainda, inúmeras possibilidades de expansão dos estudos que tenham foco sobre tal objeto.

Dando continuidade a suas pesquisas sobre as bebidas alcoólicas na América portuguesa, em seu texto o prof. João Azevedo Fernandes (UFPB) se volta para o contexto da região amazônica no século XVIII e se debruça sobre os relatos e descrições acerca das beberagens e seu consumo, relacionando tais escritos à construção de um discurso colonial bem específico e característico do Império português.

A profª Rosângela Leite (UNIFESP), por sua vez, ocupa-se do cotidiano interno das embarcações e também de algumas das personagens envolvidas na transferência da corte portuguesa dos Bragança para o Brasil, no início do século XIX. Em seu paper a pesquisadora pretende assinalar os mecanismos de negociação que se estabeleceram naquele contexto e suas consequências para o destino de personagens cujos planos eram bem diversos daquilo que efetivamente viveram.

No artigo da profª Patrícia Araújo (UFV), a preocupação gira em torno do contexto riquíssimo das festas e sua importância no cotidiano de uma próspera e estratégica vila de Minas Gerais no século XIX. Sociabilidades as mais diversas, ordenamento urbano e política se amalgamam numa análise acurada de um contexto do qual saíram indivíduos atuantes na política da Corte do Império brasileiro.

O prof. Divino Sena (UFMS) volta-se para o cotidiano de estrangeiros numa zona de fronteira durante o Segundo Reinado, apreendendo suas relações de trabalho e os acordos, conflitos, alianças e amizades surgidas entre estes indivíduos a partir de processos-crime depositados no Arquivo do Fórum de Corumbá (MS).

Com um recorte temporal que vai de 1890 a 1940, cobrindo cinco décadas da História da cidade de Fortaleza, o doutorando Emy Maia Neto (UFC) volta sua análise para o lazer aquático de meninos. Banhos de chuva, mergulhos em riachos e lagoas da cidade, a burla de normas para a realização destas brincadeiras e a maneira como tais eventos aparecem nos relatos e memórias utilizados como fonte documental são os elementos que dão suporte a uma análise cuidadosa de um contexto que, inexoravelmente, se perdeu com o crescimento e urbanização da capital cearense entre fins do século XIX e meados do século XX.

A profª Fernanda Alves (IFPB), por sua vez, discute as diversidades sociais e culturais dos habitantes da cidade de Parahyba do Norte nas primeiras décadas do século XX, tendo como uma de suas fontes privilegiadas os jornais publicados na capital paraibana. Em sua análise vão aparecendo as tensões surgidas com a imposição de novos comportamentos e valores na cidade que se modernizava, ao mesmo tempo em que tenta perceber as táticas e artifícios utilizados pelas camadas mais pobres da população para burlar os novos valores e códigos de conduta que se consolidavam na cidade.

O prof. Augusto Silva (FAL – PE), por meio da análise de matérias jornalísticas e dos relatos orais e da memória de alguns sambistas, descortina um painel muito interessante sobre a chegada do samba à capital pernambucana e a fundação de suas primeiras agremiações dedicadas ao ritmo “alienígena”, importado do Rio de Janeiro a partir da década de 1940 e veementemente combatido pela intelectualidade recifense, incluindo-se aí Gilberto Freyre e Mário Melo.

Prosseguindo seus estudos sobre a modernidade nas décadas iniciais do século XX, o prof. Iranilson Buriti (UFCG) busca, por meio da análise de matérias e colunas publicadas no jornal Diário de Pernambuco nas décadas de 1920 e 1930, identificar os diversos discursos veiculados acerca do perfil feminino que, ao abrir-se para as novas premências da sociedade brasileira, escandalizava setores mais conservadores, que reagiam em artigos arraigados de conservadorismo nas páginas do periódico recifense.

A profª Mariseti Lunckes (UFT) lança seu olhar sobre as práticas cotidianas de policiais militares de baixa patente lotados no norte de Goiás, entre 1934 e 1964. Num meio de opções de trabalho limitadas, o engajamento na vida na caserna era uma das poucas alternativas ao garimpo, à pesca ou ao trabalho no meio rural, bem como à atuação como milícia armada dos grandes proprietários rurais. Neste processo de preparação para a vida militar nos quartéis, hábitos rústicos tinham de ser deixados de lado, ao mesmo tempo em que a disciplinarização do corpo era imposta a tais sujeitos.

Já o prof. Antonio Clarindo de Souza (UFCG) aborda as diversas formas encontradas pela elite da cidade de Campina Grande para controlar as expressões e momentos de vivência de lazer das camadas populares em ambientes públicos entre os anos de 1945 e 1965.

Em artigo sobre os usos e saberes tradicionais relacionados ao cipó cabi, a profª Maria Betânia Albuquerque (UEPA) aborda seu uso entre comunidades indígenas e nas práticas populares de cura em meio à população mestiça que habita a ilha de Colares, no Estado do Pará.

Fechando o dossiê, a profª Telma Dias Fernandes (UFPB) levanta questões sobre elementos que possibilitam que, a partir da ficção, o historiador possa construir sua narrativa histórica, com base nas práticas cotidianas presentes na arte literária.

Na seção de artigos, esta edição da Sæculum traz, como lhe é de costume, um leque diversificado de pesquisas, que vão desde uma análise acerca dos dispositivos de controle sobre as municipalidades do Rio Grande do Norte durante o Império; passam por questões ligadas à Instrução Pública oitocentista na Paraíba; tratam das formas pelas quais o retrato fotográfico serviu para a construção de modelos e estereótipos sociais na segunda metade do XIX; analisam a presença feminina numa revista de esportes na Bahia da década de 1920; abordam a repressão aos movimentos sociais na capital maranhense após o Golpe de 1964; mostram as consequências da atribuição do status de bem patrimonial a ser preservado e as implicações deste processo para a população local numa cidade do interior sergipano; voltam-se ao chargismo na imprensa de Fortaleza durante os anos de 1980; e, por fim, discutem as práticas cotidianas envolvidas na formação dos docentes de História e sua posterior atuação profissional na Educação básica. São 8 artigos de autores de diversos Estados brasileiros, o que demonstra a consolidação de nosso periódico em meio a este campo de temas tão extenso que se constitui como o do ofício do historiador.

Sem querer chegar a soluções definitivas, os textos reunidos aqui apontam para a abertura e extensão dos temas disponíveis para os historiadores, assim como realçam as dificuldades em tratar de forma historiográfica aspectos da vida que, muitas vezes, parecem se repetir ao infinito, escapando das definições tradicionais do fato histórico.

Esta edição de Sæculum publica uma resenha sobre a coletânea mais recente lançada pelo Grupo de Pesquisas Escravidão e Mestiçagens, vinculado à Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais. Nela a profª Kalina Vanderlei mostra justamente a ampliação das possibilidades de investigação e abordagens para a pesquisa histórica no período colonial que a obra Escravidão, mestiçagens, ambientes, paisagens e espaços – organizada por Eduardo França Paiva, Isnara Pereira Ivo e Márcia Amantino – demonstra.

Na entrevista desse número, conversamos com o historiador Henrique Carneiro, do Departamento de História da Universidade de São Paulo. Carneiro vem construindo uma carreira acadêmica que se confronta com as questões que apresentamos nesse dossiê. As práticas alimentares e etílicas, o uso de ervas e remédios naturais pela ciência médica moderna, a história das substancias psicoativas e seus desafios políticos foram discutidos em nossa conversa. Nos resta, nesta altura, deixar que o leitor mergulhe nestas páginas do mundo de Clio. Boa viagem!

A Comissão Editorial.


Comissão Editorial. Editorial. Sæculum, João Pessoa, n.27, 2012. Acessar publicação original [DR]

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