O Público e o Privado na Educação Brasileira / Revista Brasileira de História da Educação / 2003

A idéia de reunir artigos que tomam como objeto de investigação o público e o privado na educação brasileira justifica-se com base em dois argumentos principais. Em primeiro lugar, busca somar esforços de toda uma tradição de estudos que abordam essa temática, geralmente produzindo análises conjunturais em momentos de redefinição política e legislativa [1]. Em segundo lugar, pretende convidar o leitor a dar um mergulho na história com vistas a buscar, em diferentes temporalidades, elementos que permitam ampliar a compreensão de questões que afetam a educação brasileira no tempo presente. Em certa medida, o conjunto de textos aqui reunidos expressa a forma pela qual pesquisadores de diferentes instituições sediadas na cidade do Rio de Janeiro [2] desenvolveram suas análises sobre determinados aspectos da relação entre o público e o privado no âmbito da educação brasileira.

Acreditamos que o conhecimento da questão em uma perspectiva de longo prazo nos permitirá perceber com maior nitidez o fluxo estrutural de nossa história [3] , permitindo-nos articular as inflexões ocorridas no próprio processo de constituição das noções de público e privado em articulação com o movimento dinâmico que envolveu o debate de idéias em torno da educação das crianças e do povo brasileiro de uma maneira geral, assim como das disputas e dos consensos que acompanharam a estruturação e generalização das instituições escolares no Brasil.

Nessa perspectiva, o primeiro artigo, intitulado “A construção da escola pública no Rio de Janeiro imperial”, recompõe aspectos relevantes da trajetória de construção do sistema público de ensino brasileiro, abordando a sua gênese no Rio de Janeiro imperial, quando foram implantadas ao Aulas Régias ou Aulas Públicas, como eram chamadas. Segundo a autora, mesmo na fase final do Império, as instâncias do público e do privado confundiam-se ora em projetos comuns e em alianças, ora disputando interesses diferentes, observando-se, todavia, sua relação com as propostas que eram discutidas tanto no âmbito do governo imperial quanto no âmbito da sociedade, como, por exemplo, a obrigatoriedade do ensino primário, o desenvolvimento do ensino profissional e a alfabetização de adultos em cursos noturnos, entre outras.

O segundo artigo intitulado “A quem cabe educar? Notas sobre as relações entre a esfera pública e a privada nos debates educacionais dos anos de 1920-1930” aborda a preocupação com a (re)construção na nação, no sentido já clássico de republicanização da república, que marcou o ambiente cultural brasileiro do início do século XX. A autora demonstra que a cruzada pela educação em curso na época, ao mesmo tempo em que mobilizou esforços em prol da expansão da escola pública a segmentos amplos da sociedade, também produziu um conjunto de ações educativas destinadas às famílias, sendo tais ações educativas entendidas como de responsabilidade do Estado, da escola ou da Igreja. Como se poderá verificar com a leitura do texto, se a preeminência da escola e do Estado diante da família aparece como um dos eixos norteadores do pensamento renovador, no pensamento católico a família ocupa lugar primordial como instituição educativa, atuando ao lado do Estado e da Igreja, porém, na visão do padre Leonel Franca, gozando de primazia ante essas duas instituições.

O artigo intitulado “Oscilações do público e do privado na história da educação brasileira”, apresenta uma interpretação acerca dos limites, da interação e dos conflitos estabelecidos entre o público e o privado, ao longo do processo de institucionalização da educação em nosso país. Se a perspectiva de longo prazo não permite um aprofundamento das questões ali esboçados, ela propicia, em contrapartida, uma visão global do tema.

O quarto e último artigo, intitulado “O público e o privado na educação brasileira: inovações e tendências a partir dos anos 1980”, inserese no debate sociológico sobre o papel do Estado e do setor privado na educação brasileira, buscando esclarecer o sentido que vem tomando a restruturação das relações entre essas instâncias. Ao levantar os problemas básicos presentes na tensão entre o público e o privado, a autora identifica alguns pontos-chave no redesenho operado nessas relações a partir dos anos 1980, recorrendo a exemplos selecionados entre as iniciativas educacionais recentes. Assim, apresenta uma visão geral dos mecanismos responsáveis pela definição de um novo padrão de política educacional, diferente daquele que se consolidou entre os anos de 1930 e 1970. Medidas associadas à descentralização político-administrativa e financeira dos sistemas educacionais, assim como a tendência à redução do volume, da capacidade e da qualidade dos serviços produzidos pelo Estado no âmbito da educação compõem o repertório da análise desenvolvida no referido estudo.

A soma desses artigos mescla abordagens características dos estudos históricos e dos estudos de caráter sociológico, entendendo que a interação entre essas duas áreas disciplinares permite a fertilização da reflexão em torno da relação presente e passado, assim como potencializa a interseção entre teoria e empiria, entre interpretação e descrição. Os quatro estudos procuraram compor, cada um com seu recorte específico, um conjunto no qual se buscou abordar a relação público e privado na educação brasileira, inventariando as suas formas históricas de manifestação, observando as imbricações, as aproximações e os afastamentos operados entre essas duas dimensões e procurando identificar os termos da oposição que marcou o conflito entre publicistas e privatistas no âmbito do debate e da participação nos rumos da política educacional. Fez parte de nossas preocupações verificar a emergência de novas formas de relacionamento entre o Estado, a sociedade e os setores privados no que tange à questão educacional, reafirmando, assim, a centralidade desse tema na educação brasileira contemporânea.

Notas

1. Em um levantamento preliminar, destacam-se os seguintes estudos: Buffa (1979), Ideologias em conflito: escola pública e escola privada, São Paulo, Cortez; Cunha (1981), “Escola particular x escola pública”, Revista ANDE, 1 (2); Cury (1988), Ideologia e educação brasileira: católicos e liberais, e Cury (1992), “O público e o privado na educação brasileira: posições e tendências”, Cadernos de Pesquisa, 81 (maio); Pinheiro (1996), “O público e o privado na educação: um conflito fora de moda, em Fávero (org.), A educação nas constituintes brasileiras, Campinas, Autores Associados; Vieira (1998), “O público e o privado nas tramas da LDB,” em Brzezinski (org.), LDB reinterpretada: diversos olhares se cruzam, São Paulo, Cortez.

2. A saber, UFRJ, CEFET-RJ, UERJ e PUC-Rio.

3. O termo foi tomado por empréstimo de Novais (1997) no Prefácio à obra História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa, São Paulo, Companhia das Letras.

Libânia Nacif Xavier


XAVIER, Libânia Nacif. Apresentação. Revista Brasileira de História da Educação. Maringá, v.3, n.1, jan. / jun., 2003. Acessar publicação original [DR]

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