Colégio Pedro II – lugar de memória da educação brasileira / Cadernos de História da Educação / 2015

Durante o Império, desde o início da tarefa de construção da nacionalidade brasileira, o discurso de legitimação da Monarquia levou políticos / intelectuais a formularem um projeto civilizatório de Nação, comprometido com o perfil identitário branco, europeu e cristão idealizado para os trópicos.

Como elementos constitutivos do projeto civilizatório do Império, podemos identificar os investimentos da diretriz política no campo da educação e cultura, tais como:

– A primeira Lei da Instrução Pública de 15 de outubro de 1827, que estabeleceu as “escolas das primeiras letras para meninos e meninas”, destinadas às camadas mais populares e vedadas aos escravos, em consonância com a organização do Estado patrimonialista e escravista;

– A criação das Escolas de Medicina de Salvador (1823) e do Rio de Janeiro, pela Lei de 03 de outubro de 1832, destinadas à formação de “especialistas na arte de curar” em farmácia, partos e procedimentos cirúrgicos, profissionais de formação científica, destinados a substituir, em longo prazo, o trabalho empírico dos curandeiros, parteiras e cirurgiões-barbeiros;

– A criação das Faculdades de Direito de Olinda e de São Paulo, em 1827, destinadas à formação de juristas, advogados, deputados, senadores, diplomatas e quadros da burocracia estatal. Centros de produção de saberes, modelados pela Universidade de Coimbra, caracterizados pelo autodidatismo e pela militância político-ideológica;

– A fundação da Academia Imperial de Belas Artes, em 1827, refundação da Escola de Artes (1816) e da Real Academia de Artes (1820), responsável pela produção iconográfica da imagem oficial do país. O didatismo nos temas de representação do Império – natureza exuberante, símbolos, rituais e retrato idealizado – oficializaram a memória do poder nacional; – A Escola Normal de Niterói, fundada em 1835, destinada a formar candidatas ao magistério público, segundo modelo das escolas francesas do século XVIII, criada com o objetivo de “ensinar como se ensina”. A formação das “mestras” em pedagogia representou o padrão idealizado do ensino público livre e laico da educação fundamental;

– A fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1838, lugar de produção da escrita da história nacional definida pelos critérios da pesquisa de fontes documentais, segundo princípios da historiografia do século XIX. O estudo da gênese da nação garantiu a identidade da civilização branca e europeia nos trópicos e delineou os contornos da nação brasileira;

– A criação do Arquivo Público, em 1838, também segundo modelo de arquivo nacional europeu, com a finalidade de recolher documentos oficiais para salvaguardar a memória do poder, hierarquizar e cristalizar as memórias do Estado. A autoridade institucional do Arquivo Público Nacional preservou um “patrimônio histórico que constitui a própria memória do país e possui a qualidade de acompanhar o desenvolvimento histórico brasileiro”;

– A fundação do Imperial Colégio de Pedro II, em 1837, instituído para servir de norma oficial da instrução secundária no Município da Corte e modelo nas demais províncias. Historicamente identificado como agência oficial de educação, criou uma cultura escolar própria e constituiu-se como um dos atores do processo de construção do regime monárquico e da nação civilizada, adquirindo, ao longo do tempo, uma segunda natureza institucional legitimada pela tradição.

A educação no Brasil Monárquico teve seu lugar demarcado no projeto civilizatório do Império de consolidação do Estado / Nação, sendo concebida como instrumento social de moralização dos indivíduos, garantia da ordem e caminho para o progresso. A fundamentação da política educacional, através das sucessivas Reformas do Ensino Primário e Secundário, evidencia a proposta ideológica de um Estado em formação que pretendeu assumir a responsabilidade pela instrução pública através de várias tentativas de criação de um sistema nacional para a configuração da identidade cultural da Monarquia.

O Imperial Colégio de Pedro II, fundado por Decreto de 02 de dezembro de 1837, pelo Ministro Interino do Império, o Bacharel Coimbrão Bernardo Pereira de Vasconcelos, para ser o modelo da instrução secundária, cumpriu seu papel de colégio padrão do ensino clássico no Município da Corte, projetando-se como instituição educacional de referência para as demais províncias, através de seus Estatutos organizacionais, seus Planos de Estudos, Programas de Ensino e compêndios didáticos de autoria dos seus professores catedráticos, que foram adotados na maioria das escolas do país.

O corpo docente de “notório saber”, nomeado pelo Ministério do Império, depois concursado e reconhecido pela sociedade; a seletividade do corpo discente, determinada pelos exames de admissão e promocionais; as exigências do curso de bacharelado de estudos simultâneos e seriado, expressas nos programas de ensino de tradição humanística; o pagamento das anuidades, apesar da existência de reservas de vagas para alunos necessitados; e a rígida disciplina imposta pelos Regulamentos – deram ao ensino secundário oficial, representado pelo Colégio de Pedro II, uma função formativa dirigida às elites, através da preparação dos alunos para o ensino superior. O Colégio foi o único estabelecimento de ensino secundário a conferir o Grau de Bacharel em Letras a seus formandos, título que dava o direito a ingressar nos cursos superiores do Império sem a obrigatoriedade dos exames das matérias preparatórias.

A concepção humanística da educação, patrimônio cultural iluminista, privilegiava o conhecimento erudito do latim e das línguas estrangeiras, notadamente o francês, garantia de participação social no mundo civilizado; dos saberes clássicos da literatura da retórica e da poética, formas de domínio do homem culto; e do conhecimento ilustrado da história universal, identificação da genealogia da nação brasileira branca, civilizada e cristã.

O curso das humanidades no Império foi defendido pelo grupo de políticos conservadores que consideravam o ensino secundário como uma etapa preparatória para os cursos superiores, sendo a educação clássica essencial ao brilho dos futuros Doutores no Parlamento. Os grupos de políticos mais liberais criticavam o modelo de educação ilustrada e procuravam introduzir, na legislação de ensino, disciplinas escolares de caráter mais científico, como “as matemáticas” e as ciências físicas e naturais, defendendo um ensino secundário mais prático e voltado para a modernização e o progresso. Nas duas visões culturais um ponto em comum: o ensino da História Universal e do Brasil como base da construção da identidade nacional e da formação do cidadão.

Instituição diretamente ligada ao poder constituído, o Colégio de Pedro II no período monárquico foi um celeiro de formação de grupos de elites culturais condutoras do país – “homens do mundo, homens das ciências, das letras e das artes”: políticos, legisladores, escritores e professores que se diplomaram nas tradicionais universidades europeias, ou nos cursos superiores de direito, medicina e engenharia do Império – “homens públicos” formados pelos paradigmas europeus de civilização e progresso. O Colégio Pedro II tem lugar na historicidade do poder cultural como guardião da herança civilizacional e órgão transmissor do patrimônio cultural, garantia da perenidade do Estado e de sua identidade nacional.

Durante o processo de desagregação do Estado Imperial, ficou patente a necessidade de se tornarem as instituições mais flexíveis e de se projetarem valores adequados à reordenação do Estado e das relações sociais.

No redesenhar do perfil do Estado nacional, a ideia libertária de república representou um “sentimento estético de crítica intelectual à ordem monárquica, retomando o discurso do progresso revitalizado pelas discussões em torno de novas atitudes civilizatórias”.

A tese da educação pública livre, laica e científica, foi um dos suportes do estado republicano. A importância da Instrução Pública foi redefinida segundo pressuposto de que um Estado para todos equivale a uma escola para todos, referência do aprendizado comum da vida coletiva para a formação da base para o progresso da razão pura e para o exercício efetivo da cidadania.

No início da República houve o boom da escola primária, pois era necessário “educar, controlar e ordenar a população livre do país”. Compartilhar a res publica exigia o conhecimento instrumental da preparação do cidadão. Pautada na “pedagogia do cidadão” e no dogma da liberdade do ensino, a escola republicana tinha a finalidade de desenvolver a moral e as virtudes cívicas, prioridades educacionais do novo regime.

Apesar da ruptura republicana com a tradição do Imperial Colégio – mudanças de nomes: Instituto Nacional de Instrução Secundária, 1889; Ginásio Nacional, 1890; Externato Nacional Pedro II e Internato Nacional Bernardo Pereira de Vasconcelos, 1909; extinção do bacharelado; abolição de títulos e diplomas (1911); e das políticas de equiparações dos ginásios estaduais e colégios particularidades (1892 / 1895 e 1911 / 1927) –, a existência de um passado comum entre o Colégio e a Monarquia foi o ponto de partida da construção da memória institucional dentro da memória nacional.

A tradição reinventada e revivida nos rituais de lembrança sustentou a instituição escolar nas fases de crise de identidade de sua natureza elitista e esgotamento do modelo de educação clássica e humanística, como resultantes da modernização imposta pela República e pela indefinição da política educacional. Esse processo de reenquadramento da memória que se alimenta do material da história é, segundo Michel Pollack, um “trabalho que reinterpreta incessantemente o passado em função dos combates do presente e do futuro, no sentido [de reconstrução institucional] da identidade individual e grupal”.

Nas primeiras décadas republicanas, a luta pela volta da designação histórica ao colégio, empreendida pelo Instituto dos Bacharéis, comunidade afetiva de ex-alunos, e pela comunidade escolar como um todo, foi um processo de recriação formal da memória coletiva, onde o poder pessoal e aristocrático do patrono foi preservado no patrimônio cultural escolar como um atributo afetivo e garantia hipotética da qualidade de ensino, bem como sua presença moral e protetora de avaliador erudito, evocada nos rituais de lembrança, que constitui marca de seu zelo paternal e um dos fundamentos da “memória petrossegundense”.

O movimento de preservação da memória coletiva e do nome histórico da instituição conseguiu, em 1911, a adesão do mais ilustre ex-aluno do Ginásio Nacional da época, o Chefe de Governo Marechal Hermes Rodrigues da Fonseca, sobrinho do fundador da República, cujo apoio e aprovação da nova reforma de ensino do Ministro Rivadávia Correa foi fundamental não só para a “restauração do nome Colégio Pedro II ao estabelecimento reunificado”, mas também para a redefinição de seu papel de instituição oficial de ensino, em sua nova natureza e finalidade: “Art. 1º O Colégio Pedro II tem por fim proporcionar uma cultura geral de caráter essencialmente prático, aplicável a todas as exigências da vida e difundir o ensino das ciências e das letras, libertando-o da preparação subalterna de curso preparatório”.

Como parte das comemorações do 1º centenário da Independência do Brasil, o Governo republicano revogou o decreto de banimento da família real e autorizou o translado dos despojos mortuários de D. Pedro e D. Teresa Cristina do Mosteiro de São Vicente de Fora, em Lisboa, para a Catedral de Petrópolis, cidade-capital de verão do Império, no Rio de Janeiro. A República do Café com Leite, carente de heróis nacionais e de popularidade, recebeu o ex-monarca como um “herói do passado”.

Também as comemorações do centenário natalício de D. Pedro II, em 1925, representaram uma aliança política em prol da reabilitação do monarca e não do regime monárquico, ambos mortos e descontextualizados. O dia 2 de dezembro, dia do aniversário de D. Pedro, foi declarado feriado nacional e comemorado com uma série de festejos populares, missas, desfiles, bandas e inaugurações de obras de arte. Estes festejos contribuíram para a formulação do mito do “Monarca magnânimo” fora da monarquia, perpetuando a imagem do “Monarca cidadão de barbas brancas de pé no meio da Quinta da Boa Vista”, e da representação oficial de “D. Pedro o intelectual de jaquetão surrado e chapéu preto sentado na Praça de Petrópolis”.

As instituições culturais ligadas ao seu patronato aproveitaram a oportunidade da comemoração para a produção de documentos-monumentos de celebração da história- -memória.

O Arquivo Nacional – a casa da memória oficial do país – organizou a “Publicação Temática: Infância e adolescência de D. Pedro II. Documentos interessantes publicados para comemoração do primeiro centenário do grande brasileiro ocorrido em 02 de dezembro de 1825”. Rio de Janeiro: Officinas Graphicas do Archivo Nacional, 1926.

A produção do IHGB apresenta D. Pedro como um político de visão, capaz de manter a unidade nacional, ponto nodal da opção monárquica e do princípio da alteridade em relação às Repúblicas da América Hispânica; um estadista culto, capaz de arbitrar dissidências internas e conflitos externos; um monarca atento aos princípios liberais, e gestor da política educacional.

Como não poderia deixar de ser, o centenário natalício de D. Pedro foi comemorado junto com o aniversário de 88 anos de fundação do “seu-colégio”. Em Sessão Solene do dia 2 de dezembro de 1925, no Salão Nobre do Externato, a Colenda Congregação, o corpo docente e discente e os Bacharéis do passado e do presente receberam as mais conceituadas personalidades políticas, sociais e intelectuais do Rio de Janeiro, como o Ministro Affonso Penna Júnior, o Príncipe D. Pedro de Orleans e Bragança, neto de D. Pedro II, e o Conde de Affonso Celso, Reitor da Universidade do Brasil, dentre outras autoridades civis, militares e eclesiásticas.

Como autoridade máxima, o Presidente Vargas encerrou a solenidade parabenizando o Colégio pelo transcurso de seu centenário e acentuou o compromisso do governo de cumprir a diretriz cultural de formação integral e os objetivos da política educacional estadonovista representada pela escola de massa com qualidade.

Nesta temporalidade histórica o Colégio Pedro II teve sua função de estabelecimento padrão do ensino oficial ratificada pelo programa de política educacional do Governo Federal, através da reordenação de seu papel no âmbito da instrução pública.

O Colégio Pedro II patrocinou a geração de documentos monumentos – produção de uma história institucional desde a origem setecentista – especialmente elaborados como legados de história memória, que constituem a permanência institucional no tempo presente. São eles: “Memória Histórica do Colégio Pedro II. (1837-1937)” – Luiz Gastão d`Escragnolle Dória. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1938. “Anuário Comemorativo do 1º Centenário da Fundação do Colégio Pedro II”. Raja Gabaglia (Org). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944. “O Colégio Pedro II cem anos depois” = “Álbum do Centenário”. Ignesil Marinho e Luiz Inneco (Coord). Comissão Organizadora dos Festejos Comemorativos do 1º Centenário (Patrocínio). Rio de Janeiro: s / d.

A recriação da memória coletiva possibilitou a institucionalização das práticas e representações sociais de resgate do “passado de glórias do Imperial Colégio” e a superação do esvaziamento do Ginásio Nacional no contexto de crise e indefinição político-educacional da República Velha.

Como patrimônio cultural, o “novo-velho” Colégio Pedro II teve sua origem imperial preservada pelo acervo de memória que guarda a história vivida pela comunidade escolar no tempo, operando com as categorias passado / presente, sempre em processo de atualização / expansão como “um elo vivido no eterno presente […] onde a memória está em permanente evolução, aberta a dialética da lembrança e do esquecimento […] que se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem e no objeto”, configurando a secular instituição de ensino como “lugar de memória” da História da Educação no Brasil.

Para salvaguardar todo o patrimônio histórico institucional foi criado pela Portaria da Direção Geral nº 1019, de 22 de agosto de 1995, o Núcleo de Documentação e Memória do Colégio Pedro II – NUDOM.

O NUDOM constitui-se como um guardião da memória coletiva petrossegundense, tanto pelos documentos únicos referentes à história do Colégio, como pelas memórias de seus antigos alunos e professores, registradas em livros, depoimentos escritos e orais e imagens que retratam as marcas muito características de uma formação educacional. Representa um setor institucional de pesquisa interdepartamental do Colégio Pedro II, aberto ao público desde 1998, com os seguintes objetivos: “Preservar, tratar e divulgar o acervo documental, bibliográfico e iconográfico do Colégio Pedro II; Estimular o trabalho de pesquisa na comunidade escolar junto aos professores e alunos; Dar suporte ao trabalho de pesquisa de graduação e pós-graduação de instituições nacionais e estrangeiras”.

Para este dossiê temático foram selecionados seis artigos representativos dos estudos desenvolvidos por pesquisadores de diferentes instituições de ensino em nível de Pós-Graduação. Os autores são: Ariclê Vechia (Universidade Tuiuti do Paraná), Karl Michael Lorenz (Sacred Heart University, Fairfield, Connecticut, EUA), Arlette Medeiros Gasparello (Universidade Federal Fluminense – UFF), Beatriz Boclin Marques dos Santos (Colégio Pedro II), Carlos Fernando Ferreira da Cunha Júnior (Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF), Jefferson da Costa Soares (Pontifícia Universidade Católica – PUC-Rio), Márcio Ferreira Nery Corrêa (Universidade de São Paulo – USP), e Vera Lucia Cabana de Queiroz Andrade (Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, Colégio Pedro II – CPII, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB). O conteúdo dos trabalhos destaca o processo de construção do ensino das disciplinas História, Geografia, Sociologia e Educação Física, que compõem até hoje a base curricular das escolas brasileiras, a partir do contexto de escolarização proporcionado pelo Colégio Pedro II como personagem da História da Educação no Brasil.

Os trabalhos selecionados utilizaram essencialmente os documentos históricos que compõem o acervo do NUDOM, como fontes para suas pesquisas acadêmicas: Reformas da Instrução Pública, no Império e nos primeiros períodos da República; Programas de Ensino do Colégio desde sua criação; livros didáticos e teses de professores catedráticos; coleções de Manuscritos, como Atas da Congregação, Atas de Concurso, Livros de Matrícula, Livros de Nomeação de Professores e Funcionários. Estas são algumas das fontes primárias de pesquisa que compõem o acervo documental do NUDOM, essenciais para a fundamentação teórica dos trabalhos desenvolvidos por estudiosos da educação. O desenvolvimento dessas pesquisas caracteriza o NUDOM como centro interdepartamental de estudos e configura o Colégio Pedro II como “lugar de memória” da História da Educação Brasileira.

Vera Lucia Cabana de Queiroz Andrade – Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora aposentada de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e do Colégio Pedro II. Pesquisadora do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do Núcleo de Documentação e Memória do Colégio Pedro II. E-mail: [email protected]


ANDRADE, Vera Lucia Cabana de Queiroz. Apresentação. Cadernos de História da Educação. Uberlândia, v. 14, n.1, jan. / abr., 2015. Acessar publicação original [DR]

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O Público e o Privado na Educação Brasileira / Revista Brasileira de História da Educação / 2003

A idéia de reunir artigos que tomam como objeto de investigação o público e o privado na educação brasileira justifica-se com base em dois argumentos principais. Em primeiro lugar, busca somar esforços de toda uma tradição de estudos que abordam essa temática, geralmente produzindo análises conjunturais em momentos de redefinição política e legislativa [1]. Em segundo lugar, pretende convidar o leitor a dar um mergulho na história com vistas a buscar, em diferentes temporalidades, elementos que permitam ampliar a compreensão de questões que afetam a educação brasileira no tempo presente. Em certa medida, o conjunto de textos aqui reunidos expressa a forma pela qual pesquisadores de diferentes instituições sediadas na cidade do Rio de Janeiro [2] desenvolveram suas análises sobre determinados aspectos da relação entre o público e o privado no âmbito da educação brasileira.

Acreditamos que o conhecimento da questão em uma perspectiva de longo prazo nos permitirá perceber com maior nitidez o fluxo estrutural de nossa história [3] , permitindo-nos articular as inflexões ocorridas no próprio processo de constituição das noções de público e privado em articulação com o movimento dinâmico que envolveu o debate de idéias em torno da educação das crianças e do povo brasileiro de uma maneira geral, assim como das disputas e dos consensos que acompanharam a estruturação e generalização das instituições escolares no Brasil.

Nessa perspectiva, o primeiro artigo, intitulado “A construção da escola pública no Rio de Janeiro imperial”, recompõe aspectos relevantes da trajetória de construção do sistema público de ensino brasileiro, abordando a sua gênese no Rio de Janeiro imperial, quando foram implantadas ao Aulas Régias ou Aulas Públicas, como eram chamadas. Segundo a autora, mesmo na fase final do Império, as instâncias do público e do privado confundiam-se ora em projetos comuns e em alianças, ora disputando interesses diferentes, observando-se, todavia, sua relação com as propostas que eram discutidas tanto no âmbito do governo imperial quanto no âmbito da sociedade, como, por exemplo, a obrigatoriedade do ensino primário, o desenvolvimento do ensino profissional e a alfabetização de adultos em cursos noturnos, entre outras.

O segundo artigo intitulado “A quem cabe educar? Notas sobre as relações entre a esfera pública e a privada nos debates educacionais dos anos de 1920-1930” aborda a preocupação com a (re)construção na nação, no sentido já clássico de republicanização da república, que marcou o ambiente cultural brasileiro do início do século XX. A autora demonstra que a cruzada pela educação em curso na época, ao mesmo tempo em que mobilizou esforços em prol da expansão da escola pública a segmentos amplos da sociedade, também produziu um conjunto de ações educativas destinadas às famílias, sendo tais ações educativas entendidas como de responsabilidade do Estado, da escola ou da Igreja. Como se poderá verificar com a leitura do texto, se a preeminência da escola e do Estado diante da família aparece como um dos eixos norteadores do pensamento renovador, no pensamento católico a família ocupa lugar primordial como instituição educativa, atuando ao lado do Estado e da Igreja, porém, na visão do padre Leonel Franca, gozando de primazia ante essas duas instituições.

O artigo intitulado “Oscilações do público e do privado na história da educação brasileira”, apresenta uma interpretação acerca dos limites, da interação e dos conflitos estabelecidos entre o público e o privado, ao longo do processo de institucionalização da educação em nosso país. Se a perspectiva de longo prazo não permite um aprofundamento das questões ali esboçados, ela propicia, em contrapartida, uma visão global do tema.

O quarto e último artigo, intitulado “O público e o privado na educação brasileira: inovações e tendências a partir dos anos 1980”, inserese no debate sociológico sobre o papel do Estado e do setor privado na educação brasileira, buscando esclarecer o sentido que vem tomando a restruturação das relações entre essas instâncias. Ao levantar os problemas básicos presentes na tensão entre o público e o privado, a autora identifica alguns pontos-chave no redesenho operado nessas relações a partir dos anos 1980, recorrendo a exemplos selecionados entre as iniciativas educacionais recentes. Assim, apresenta uma visão geral dos mecanismos responsáveis pela definição de um novo padrão de política educacional, diferente daquele que se consolidou entre os anos de 1930 e 1970. Medidas associadas à descentralização político-administrativa e financeira dos sistemas educacionais, assim como a tendência à redução do volume, da capacidade e da qualidade dos serviços produzidos pelo Estado no âmbito da educação compõem o repertório da análise desenvolvida no referido estudo.

A soma desses artigos mescla abordagens características dos estudos históricos e dos estudos de caráter sociológico, entendendo que a interação entre essas duas áreas disciplinares permite a fertilização da reflexão em torno da relação presente e passado, assim como potencializa a interseção entre teoria e empiria, entre interpretação e descrição. Os quatro estudos procuraram compor, cada um com seu recorte específico, um conjunto no qual se buscou abordar a relação público e privado na educação brasileira, inventariando as suas formas históricas de manifestação, observando as imbricações, as aproximações e os afastamentos operados entre essas duas dimensões e procurando identificar os termos da oposição que marcou o conflito entre publicistas e privatistas no âmbito do debate e da participação nos rumos da política educacional. Fez parte de nossas preocupações verificar a emergência de novas formas de relacionamento entre o Estado, a sociedade e os setores privados no que tange à questão educacional, reafirmando, assim, a centralidade desse tema na educação brasileira contemporânea.

Notas

1. Em um levantamento preliminar, destacam-se os seguintes estudos: Buffa (1979), Ideologias em conflito: escola pública e escola privada, São Paulo, Cortez; Cunha (1981), “Escola particular x escola pública”, Revista ANDE, 1 (2); Cury (1988), Ideologia e educação brasileira: católicos e liberais, e Cury (1992), “O público e o privado na educação brasileira: posições e tendências”, Cadernos de Pesquisa, 81 (maio); Pinheiro (1996), “O público e o privado na educação: um conflito fora de moda, em Fávero (org.), A educação nas constituintes brasileiras, Campinas, Autores Associados; Vieira (1998), “O público e o privado nas tramas da LDB,” em Brzezinski (org.), LDB reinterpretada: diversos olhares se cruzam, São Paulo, Cortez.

2. A saber, UFRJ, CEFET-RJ, UERJ e PUC-Rio.

3. O termo foi tomado por empréstimo de Novais (1997) no Prefácio à obra História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa, São Paulo, Companhia das Letras.

Libânia Nacif Xavier


XAVIER, Libânia Nacif. Apresentação. Revista Brasileira de História da Educação. Maringá, v.3, n.1, jan. / jun., 2003. Acessar publicação original [DR]

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