Histórias da moda / História – Questões & Debates / 2017

No final dos anos 1950, antes mesmo da publicação de O sistema da moda em 1967, o semiólogo francês Roland Barthes produziu alguns textos que tratavam do tema [1]. Ainda que seu objetivo em grande medida fosse, a partir dessas reflexões, começar a esboçar o método de análise textual que destrincharia no referido livro, algumas questões colocadas por ele nos artigos que escreve no período, são bastante pertinentes para pensar e entender os desenvolvimentos da historiografia de moda no século XX.

Em História e Sociologia do Vestuário, publicado em 1957 na revista dos Annales – cuja importância para as transformações ocorridas no pensamento historiográfico é bastante conhecida – ,Roland Barthes reclamava, por exemplo, do caráter inventariante das “histórias da moda” produzidas até então. Naquele momento, os livros que tratavam do vestuário por uma perspectiva histórica tinham por preocupação central recensear as transformações ocorridas nas roupas ao longo dos séculos, sem se beneficiarem, ainda, das “transformações ocorridas nos estudos históricos que ocorreu na França há uns trinta anos” conforme apontava o semiólogo. Barthes pontuava também que “ainda está faltando toda uma perspectiva institucional da indumentária, em termos de dimensão econômica e social da História, de relação entre o vestuário e os fatos de sensibilidade, conforme definidos por Lucien Febvre, de exigência de uma compreensão ideológica do passado, como a que pode ser postulada pelos historiadores” [2].

O semiólogo, que morreu em 1980, não viu a incorporação de seus questionamentos à produção historiográfica. Uma vez que é a partir dessa década que a historiografia sobre o tema sofrerá grandes transformações deixando de lado o recenseamento para analisar a moda em conexão com a cultura, o consumo, as relações sociais e os papeis de gênero. Neste sentido, podem ser considerados seminais os trabalhos Le travail des apparences ou les transformations du corps féminin XVIIIe-XIXe siècle, de Philippe Perrot, e La culture des apparences. Essai sur l’Histoire du vêtement aux XVIIe et XVIIIe siècles (A cultura das aparências: uma história da indumentária, séculos XVII-XVIII), de Daniel Roche, publicados respectivamente em 1984 e 1989, produzidos na França, e Adorned in Dreams: fashion and Modernity (Enfeitada de Sonhos) de Elizabeth Wilson lançado em 1985 na Inglaterra [3].

A partir de então, a produção historiográfica sobre moda cresceu e se diversificou rapidamente. De modo que em 1997, o historiador britânico Christopher Breward observava: “A roupa e a moda finalmente se tornaram veículos de debate que agora estão no centro dos estudos em cultura visual e material” [4]. A colocação, ainda bastante atual, aponta para a multiplicidade que passa a caracterizar a produção historiográfica em moda, a partir de abordagens e fontes diversificadas como a imprensa, as roupas propriamente ditas, a fotografia, a publicidade, os inventários, entre muitos outros. De tal modo, que hoje não podemos falar em “uma” história da moda, mas em Histórias da Moda.

Este dossiê tenta apresentar um pouco dessas Histórias da Moda, reunindo textos de pesquisadores brasileiros e estrangeiros que tratam de temas como indumentária e cultura material, a imprensa e a produção de significados para as roupas e os indivíduos que as vestem, as construções memoriais acerca do comércio de moda, o questionamento da própria “história da moda”, produção, acervo e atuação de arquivos de moda, as relações entre moda e interesse econômicos.

Abre este número o relevante artigo de Alessandra Vaccari, Moda na Autarquia: políticas de moda na Itália fascista nos anos 1930. Nele, a historiadora investiga os aspectos econômicos das políticas de Mussolini, examinando como a moda coloca em confronto tanto a construção de uma nova imagem da nação, quanto as formas de desobediência explícita ou implícita ao regime fascista, revelando-se, aqui particularmente, um objeto fascinante. Vale destacar a densa pesquisa documental e a análise da autora de como as políticas autárquicas serão importantes para conformar uma estética e uma metafísica da moda italiana, colaborando vivamente para o seu sucesso no pós-guerra.

Moda e política também estão presentes no texto de Maria Claudia Bonadio, Chatô: o Rei do Algodão, que aborda um tema ainda pouco estudado: o papel do empresário Assis Chateaubriand na promoção da moda brasileira no início da década de 1950. A historiadora analisa como as ações de Chatô visando associar matériaprima nacional à alta-costura francesa – que incluíram trazer ao Brasil Marcel Rochas, Jacques Fath e Elsa Schiaparelli – se afastavam das propostas nacionalistas que costumeiramente marcavam a sua atuação. Para Bonadio, essas estratégias buscavam chancelar a produção de algodão de fibra longa que, então, se concentrava na Paraíba, onde Chateaubriand atuava como senador e, provavelmente, mantinha investimentos econômicos.

Os três artigos seguintes, cada um a seu modo, evidenciam as revoluções promovidas pela indumentária no período compreendido entre o final dos anos 1950 e o dos anos 1960, bem como os sentidos sociais da moda e a sua associação com a transgressão, num sentido amplo. Em Aniki Bobó: desbunde e psicodelia nos anos de chumbo, Maria do Carmo Rainho investiga a trajetória de uma das mais criativas lojas cariocas dos anos 1960-1970. A Aniki Bobó, criada em 1968, por Celina Moreira da Rocha, se diferenciava tanto das butiques inauguradas no Rio de Janeiro nas décadas anteriores como daquelas que emergiram no final dos anos 1960 e, que, assim, como ela, emulavam as lojas de Londres. A partir da análise dos produtos comercializados, do público consumidor e de sua proprietária, a historiadora discute temas como gênero, sexualidade e política. Os modos como a memória sobre a butique foram e são construídas também são abordados.

Maíra Zimmerman, em A criminalidade transfeita em estilo: Caso Aída Curi e os irmãos Kray na passagem dos anos 1950-60 analisa a cultura de consumo neste período, relacionando crime, moda e mídia. Num linha cara à história comparativa, Maíra estuda a repercussão da morte da jovem Aída Curi, ocorrida em Copacabana, e os atos criminosos dos irmãos Kray, na Inglaterra, examinando os padrões de elegância desses criminosos e como a vilania se transmutou em estilo, em grande medida, graças à atuação da mídia.

Roupas para mamães: corpo e gravidez nas representações para a maternidade na revista Manequim (1963), de Ivana Similli, se dedica às representações da maternidade em editoriais de moda, notadamente, na edição especial “Futura mamãe”, da revista Manequim, de 1963. A autora aponta como a gestação foi incorporada pela moda e como esta produziu e difundiu representações para o corpo grávido. No artigo são analisados, ainda, os modos como as transformações corporais definiram linhas de indumentárias apropriadas à gestação naquela década e como estas assimilaram tendências e estilos da moda jovem, colaborando para a ampliação do consumo.

O instigante texto de Vania Carvalho, Quando sonhar está na moda – a nostalgia do feminino na cultura de consumo examina os filmes de princesas de Walt Disney, como Branca de Neve e os Sete Anões (1937) e Cinderela (1950) para discutir como os repertórios materiais e visuais da aristocracia do século XVIII foram reapropriados pela sociedade moderna ocidental, no sentido de estabelecer clivagens entre os gêneros masculinos e femininos. Mais do que isso, ela discute como a distinção e a hierarquização dos gêneros, deram origem a novos territórios para o cultivo de subjetividades sexualizadas.

Rita Andrade em Vestires indígenas em bonecas karajá: argumentos para uma história da indumentária no Brasil reflete sobre os modelos de pensamento que deram origem à categoria “indumentária indígena” na história da indumentária no Brasil e sobre os modos como a formação dessa tipologia de coleções nos museus pode interferir na construção de valores éticos e estéticos dos modos de vestir. Para tanto, ela analisa a indumentária indígena nas bonecas karajá, as ritxoko. O trabalho, além da contribuição ao campo da metodologia de pesquisa em indumentária, entre outras, chama a atenção para a necessidade da construção de uma história da indumentária brasileira que considere a cultura material e as visualidades.

Fecha o dossiê, o texto de Fred van Kan, Preserving Dutch Fashion Archives. The Fashion Network Arnhem. O autor, que dirige o Arquivo de Gelders, na Holanda, apresenta um projeto de preservação dos acervos da moda holandesa, intitulado Modekern, que reúne o Museu de Arte Moderna de Arnhem, o Instituto de Artes ArtEz e o Arquivo de Gelders. A proposta do Modekern é trabalhar em rede, com cada parceiro tendo uma responsabilidade específica. O Arquivo de Gelders conserva e preserva os registros de importantes designers de moda holandeses, incluindo esboços, experimentos com tecido e portfólios. A academia de moda do Instituto de Artes ArtEz utiliza esses registros para pesquisa e educação. Quanto ao Museu de Arte Moderna de Arnhem, organiza exposições baseadas nos arquivos e no uso de objetos de moda.

O presente número é composto ainda por quatro textos de temática livre que compõem a seção Artigos e uma Resenha. O primeiro deles Virgem Senhora Nossa Mãe Paradoxal, de autoria de Paola Basso Menna Barreto Gomes Zordan, analisa as diferentes séries de sentido que convergem na figura de Nossa Senhora, com vistas a construir outros modos de pensar o feminino a partir da semiologia barthesiana e as invaginações e o pensamento genital de Gille Deleuze.

Na sequência, o texto de André Luiz Moscaleski Cavazzani e Sandro Aramis Richter Gomes, Família, hierarquia e imigração portuguesa: trajetórias e atividades econômicas dos Viera dos Santos (Vila de Morretes e Paranaguá, Província de São Paulo, 1812- 1848) investiga a trajetória de quatro indivíduos da família Vieira dos Santos, os quais habitaram os municípios de Morretes e Paranaguá, localizados no litoral do atual Estado do Paraná, na primeira metade do século XIX. O objetivo principal é evidenciar as dificuldades econômicas e as restrições de oportunidades sociais vivenciadas pelos descendentes de imigrantes portugueses que se estabeleceram, a partir do fim do século XVIII, em áreas litorâneas do Brasil Meridional.

Observar as condições de emergência para constituição de um sujeito gaúcho, que é tomado como herói a partir de alguns acontecimentos históricos e da música pampeana é a proposta do artigo A Natureza e o Gaúcho Herói nas tramas da história: tensionamentos foucaultianos, que tem por autores Virgínia Tavares Vieira e Paula Corrêa Henning. Como o título anuncia, as análises desenvolvidas no texto baseiam-se no pensamento do filósofo francês Michel Foucault e, em especial, no conceito de Genealogia, uma vez que ele objetiva problematizar a fabricação de um espaço geográfico e cultural marcado por um ideal de beleza e romantismo.

Encerrando a seção de artigos, apresentamos o texto O filme As Sufragistas e as transformações nos modos de vida pela militância política: deslocamentos subjetivos, sacrifício do corpo e afinidades feministas de Priscila Piazentini Vieira, que debate As Sufragistas, lançado em 2015, e dirigido por Sarah Gavron. O filme é analisado especialmente a partir do jogo que as sufragistas praticam com os direitos, tendo como principal objetivo aprovar o voto das mulheres na Inglaterra no início do século XX e ainda as transformações subjetivas pelas quais passam ao entrarem para a militância – em especial em suas relações com os maridos, patrões e filhos. A importância dos usos do corpo das sufragistas, tanto de forma sacrificada nas fábricas, quanto como forma de militância também é foco da análise.

Fechando o presente número apresentamos a resenha do livro Fashion victims: the dangers of dress past and present de Alison Matthews David, publicado em 2017 pela Bloomsbury Visual Arts e escrita por Luz Neira Garcia. Em seu texto, a pesquisadora deixa claro para o leitor, de que maneira a obra analisada levanta novos questionamentos acerca da história e produção contemporânea de objetos do vestuário, observando que, longe de ser apenas uma futilidade, as modas e sua produção podem gerar inúmeros riscos para os consumidores e também para aqueles que trabalham nas confecções e em outros setores do fabrico de vestuário.

Notas

1. BARTHES, Roland. Sistema da moda. São Paulo, Companhia Editora Nacional / Edusp, 1980. A versão francesa denominada Système de la mode foi publicada em 1967 pela editora Seuil.

2. BARTHES, Roland. História e sociologia do vestuário. In: Inéditos. Vol. 3: imagem e moda. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 258.

3. Os livros mencionados além de receberem diversas reedições, também foram publicados em mais de um idioma, o que indica o impacto e a repercussão dos trabalhos. O livro de Philippe Perrot curiosamente foi publicado inicialmente em italiano (Il sopra e il sotto della borghesia. Storia dell’abbigliamento nel XIX secolo) em 1982, antes mesmo de sua edição em francês. A obra recebeu edições em alemão (Werken aan de schijn; de veranderingen van het vrouwelijk lichaam in de achttiende en negentiende eeuw, Nijmegen, SUN, 1987) e inglês (Fashioning the Bourgeoisie: A History of Clothing in the Nineteenth Century, Princeton University Press, 1994, com reedição em capa dura em 1996). O livro de Daniel Roche foi traduzido para o inglês e publicado sob o título The culture of clothing: Dress and Fashion in the ‘ancien régim’ em 1994, pela Cambridge University Press e recebeu diversas reimpressões. A obra também foi publicada em português pela editora Senac-SP, que lançou o livro em 2007 sob o título A cultura das aparências: uma história da indumentária, séculos XVII-XVIII. O trabalho de Elizabeth Wilson teve a primeira edição publicada em 1985 pela editora inglesa Virago, a segunda edição publicada pela University of California Press em 1987 e recebeu em 2013 uma edição revisada e ampliada publicada pela I.B.Thauris. O livro foi editado ainda em alemão (Klædt i drømme: om mode, Tiderne Skifter, 1987), português (Enfeitada de sonhos, Edições 70, 1989) e italiano (Vestirsi di sogni. Moda e modernità, Franco Angelli, 2008).

4. Traduzido de: Clothing and fashion have finally become a vehicle for debates that now lie at heart of visual and material culture studies. BREWARD, Christopher. Cultures, identities: fashioning a cultural approach to dress. In: Fashion Theory, vol. 2, issue 4, December 1998.

Maria Claudia Bonadio e Maria do Carmo Rainho


BONADIO, Maria Claudia; RAINHO, Maria do Carmo. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.65, n.2, jul./dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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