Homenagem a Pierre Ansart: quais suas herança para pensarmos as linguagens das paixões políticas? | História- Questões & Debates | 2022

Por que um dossiê da revista História: questões e debates homenageia academicamente o sociólogo Pierre Ansart (1922-2016), professor emérito da Université Paris VII-Denis Diderot? Com certeza por ser um sociólogo de prestígio internacional cuja ousadia, compartilhada pelo colega e amigo Eugène Enriquez, introduziu a psicologia no campo da sociologia tradicional. Aqui, entre nós no Brasil, foi decisiva sua contribuição teórica e organizacional ao Núcleo História e Linguagens Políticas: razão, sentimentos e sensibilidades (UNICAMP), criado no Convênio PARIS VII/ UNICAMP em 1991. Ansart, crítico declarado das ortodoxias e adepto das abordagens transdisciplinares, estudou a obra de Proudhon e as utopias políticas projetando suas significações sócio-históricas e em particular suas dimensões emocionais. Apontou questão sensível para historiadores e outros pesquisadores das ciências humanas – o lugar dos sentimentos e das paixões na história e sua relevância para a compreensão do político e sua gestão. Por duas décadas atuou significativamente neste Núcleo onde realizou conferências, participou dos debates e das publicações; na França editou coletâneas de três dos Colóquios aqui sediados: Sentiments et identités: les paradoxes du politique (Les Cahiers du Laboratoire de Changement Social, Paris: Ed.Paris VII, 1998); Le ressentiment (Bruxelas: Bruylant, 2002) e Le sentiment d’humiliation [Press Editions, 2006].

Os artigos se detêm na reflexão sobre a(s) herança(s) de Ansart, ele mesmo se reconhecendo herdeiro de vários outros autores, como legado presente de distintas maneiras nos trabalhos de membros do Núcleo, suscitando a questão: de que herança(s) Ansart e nós somos herdeiros? Herança(s) entendidas como re-afirmação do passado e inscrição na vida por vir, em usos não pre(e)scritos [Derrida; Roudinesco. De quoi demain. Dialogue. Paris: Galilée, 2001]. A iniciativa do dossiê se soma à tradução para o português, por Jacy Seixas, das obras mais conhecidas de Ansart: La Gestion des Passions Politiques (L’Age d’Homme, 1983), lançada em 2019; e Les Cliniciens des Passions Politiques (Éditions du Seuil, 1997), publicada agora em 2022, ambas pela Editora da UFPR. Leia Mais

Ascensão e queda do paraíso tropical | História – Questões e Debates | 2021

Ascencao e queda do paraiso tropical 2 Paraíso Tropical
Montagem sobre o cartaz de “Ascensão & queda do paraíso tropical“.

A imagem do Brasil como “paraíso tropical” tem uma longa história, como mostram os conhecidos estudos dos prestigiados intelectuais Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda e, posteriormente, os trabalhos de Ronaldo Vainfas, de Ronald Raminelli e de Richard Parker, entre outros.[1] Desde os inícios da colonização, apontam esses autores, os europeus perceberam os povos nativos como indolentes e preguiçosos, desrespeitando suas tradições e negando violentamente seus modos de existência. Não foi muito diferente a imagem que construíram dos negros e das negras africanos, aqui trazidos pelo tráfico negreiro para substituir o trabalho indígena, segundo a triste e nefasta imaginação cristã dos colonizadores europeus. Leia Mais

Religiões na grécia e roma antigas: contatos, encontros e trocas / História – Questões & Debates / 2021

RELIGIÃO NA GRÉCIA E ROMA ANTIGAS: CONTATOS, ENCONTROS E TROCAS [1]

A natureza fragmentária e variada do Mediterrâneo foi estudada por pesquisadores que se dedicaram, de fato, a entender a região. As ideias revolucionárias da obra pioneira de Fernand Braudel, La Méditerranée et le Monde méditerranéen à l’époque de Philippe II (1949), mudaram o foco do espaço mediterrânico, deslocando-o de suas fronteiras continentais para a bacia marítima, bem como reorientaram a pesquisa histórica da região, encaminhando-a da política para a cultura e a economia. É certo que, depois de Braudel, foram necessários muitos anos para que os estudos na escala mediterrânica se tornassem tendência. A nova contribuição significativa foi feita por Peregrine Horden e Nicholas Purcell, com a publicação The Corrupting Sea: A Study of Mediterranean History (2000), que identificou elementos comuns ao longo dos mais de três mil anos de história no Mediterrâneo. Explorando a extrema fragmentação da região em suas paisagens terrestres e marinhas, os autores produziram uma análise inovadora das relações entre suas diferentes microecologias. Horden e Purcell evidenciaram o peso do elemento da incerteza nos microcosmos mediterrânicos, seja quanto ao clima e à quantidade de precipitação, seja quanto à direção e a intensidade do vento, e ainda quanto à possibilidade de catástrofes vulcânicas e sísmicas. Por outro lado, se o Mediterrâneo passa então a ser pensado enquanto uma área de incerteza, entende-se que ele se constituiu também como região de grande mobilidade, dados seu elevado número de ilhas e a extensão de sua área costeira, a maior do planeta. Com efeito, o fato de seus navegadores raramente perderem de vista a terra e do sol brilhar durante todo o ano fez do Mediterrâneo um espaço de oportunidades, o que encorajou os homens a diversificarem, produzirem e explorarem.

Esse poder que o Mediterrâneo tem de conectar mundos é explorado num outro livro monumental do século XXI, The Making of the Middle Sea (2014). Seu autor, Cyprian Broodbank, utiliza uma vasta quantidade de dados arqueológicos para desvelar a história da região, de um milhão e oitocentos mil anos atrás até o Período Clássico, demonstrando como o mundo mediterrânico, facilmente navegável e ecologicamente fragmentado, evoluiu para uma oecumene através da agência dos habitantes de suas ilhas e costas.

A natureza fragmentária da região mediterrânica é, com efeito, uma de suas características mais distintivas. Ela atua como estímulo histórico para a formação de redes de transporte complexas, responsáveis por ligarem lugares de tamanhos e importância desiguais, da família aos estados imperiais, e por envolverem todo tipo de atores, do comerciante ao monarca (MALKIN; CONSTANTAKOPOULOU; PANAGOPOULOU, 2011). O Mediterrâneo, por isso, permitiu o movimento de multidões em torno da sua vasta área, não só devido à proximidade dos seus locais costeiros e suas ilhas, mas também devido às condições climáticas (ou seja, um verão semi-árido e um inverno úmido) amplamente favoráveis à disseminação de produtos e técnicas (agricultura, perfumaria, cerâmica, navegação) (BROODBANK, 2014). A extensa circulação de pessoas e bens no Mediterrâneo reflete-se também na natureza das práticas religiosas da região. Objetos provenientes de todo o mundo antigo eram apresentados como ofertas em túmulos e santuários pela região mediterrânica. As práticas religiosas, por sua vez, eram transmitidas durante diferentes ciclos de convulsões sociais e migrações, o que envolvia o contato tanto de habitantes de áreas próximas entre si quanto daquelas situadas a grandes distâncias, cuja comunicação se dava por meio da rede de rotas.

Este dossiê apresenta então estudos de caso que enfatizam a diversidade cultural e os intercâmbios religiosos no mundo greco-romano, centrando-se nas relações entre fragmentos da região mediterrânica (MALKIN, 2011). Com nove artigos em múltiplas áreas temáticas, os primeiros cinco se desenvolvem no campo da Arqueologia Clássica, e os quatro seguintes em História e Literatura. As contribuições (feitas em português, inglês e francês) provêm de pesquisadores que trabalham sobre diferentes aspectos da religião no mundo greco-romano. Iniciamos com uma investigação sobre trocas e práticas de culto no coração das Cíclades, onde se deu uma das mais importantes descobertas arqueológicas realizadas na Grécia nos últimos dez anos. Yannos Kourayos e Kornilia Daifa, que dirigem as escavações em Despótiko, apresentam em seu texto um panorama deste que é um importante santuário cicládico, só conhecido a partir de evidências arqueológicas. Localizado no centro da região cicládica, o santuário em questão foi erigido pela poderosa ilha de Paros e revelou uma quantidade impressionante de oferendas votivas originárias de múltiplos pontos das Cíclades e também de partes mais afastadas do Mediterrâneo. O segundo trabalho deste volume, escrito por Elena Korka e membros de sua equipe, divulga alguns dos recentes resultados das escavações em Tenea, situada nos arredores da aldeia de Chiliomodi em Corinto, um local cuja cultura material e ciclo de mitos estão ligados à Guerra de Tróia. Depois de sumarizar o trabalho arqueológico realizado até agora, os autores discutem a principal divindade adorada em Tenea, o deus Apolo, e os artefatos encontrados ali, importantes para a interpretação e o entendimento do antigo culto. Vale destacar que alguns dos objetos escavados têm suas imagens publicadas pela primeira vez neste dossiê. O próximo artigo, escrito por Michael Fowler da East Tennessee State University, examina os quatro monumentos tumulares arcaicos tardios da Necrópole Setentrional do povoado grego de Istros. O autor explora as características desses monumentos comparáveis à descrição das cerimônias heroicas de cremação, tal como narradas na poesia épica (particularmente, no caso do funeral de Pátroclo na Ilíada) e discute, ainda, a possibilidade surpreendente de sacrifício humano. Para além dos hábitos religiosos incomuns entre os gregos e das reconsiderações sobre a Pira A em Orthi Petra (Eleutherna, Creta), a discussão de Fowler inclui também em seu estudo um sítio arqueológico situado no Mar Negro, região que segue pouco estudada fora dos círculos acadêmicos russos. Do Mar Negro, nosso dossiê retorna para Corinto, desta vez às margens do golfo. Dora Katsonopoulou, diretora das escavações em Helike, discute o culto de Poseidon Helikonios com ênfase nos antigos altares ancestrais dos jônicos. Ela examina o estabelecimento do culto de Poseidon Helikonios, trazido pelos aqueus para a costa da Ásia Menor, transmitido em seguida para a já mencionada região do Mar Negro. O próximo trabalho, escrito por Lilian Laky da Universidade de São Paulo, explora a interconectividade do Mediterrâneo examinando a iconografia das moedas com imagens de águias e relâmpagos, atributos de Zeus. A autora utiliza como fontes moedas cunhadas por Crótone na Magna Grécia e por Olympia no Peloponeso para discutir a difusão do culto de Zeus Olympios. Contribuindo para o tema da relação entre Olympia Sicília, o artigo, ademais, dá um importante aporte para os estudos sobre a disseminação regional dos epítetos locais, tema pouco abordado que, porém, está lentamente ganhando a atenção necessária.

Os próximos quatro textos de nosso dossiê examinam os contatos e as trocas entre as religiões gregas e romanas pelas lentes da História e da Literatura antiga. Esta seção é aberta com um artigo de Pierre Ellinger, da Université de Paris. O autor analisa os raptos de estátuas divinas de santuários à beira-mar, a partir de mitos gregos, especialmente o de Ártemis Táurida, tal como elaborado pela tragédia euripideana, enfatizando-o. O texto explora a presença do mar nesses registros antigos, dando destaque às rotas mediterrânicas e sua articulação com determinados pontos, à experiência de partida e de chegada e ao contexto em que tais estórias teriam sido narradas. Ao ressaltar a dimensão marítima dessas fontes, o autor põe em questão a nossa familiaridade com o espaço grego, reorientando nossa perspectiva da visão da cidade para a visão do mar ao longo de suas margens. O artigo, portanto, não só lança luz sobre o culto enigmático de Ártemis Táurida, cujo culto continua a confundir e intrigar os estudiosos modernos, como apresenta uma grande contribuição para os estudos emergentes sobre as religiões mediterrânicas.

Em seguida, o texto de autoria de Lucio Maria Valletta da École Pratique des Hautes Études, discute novos cultos da região do Mar Negro. O autor examina uma passagem de Heródoto sobre o povo cita para refletir sobre a existência de elementos culturais que seriam próprios a povos que viveram e se deslocaram nas regiões circundantes da bacia do Mediterrâneo, incluindo o Mar Negro. O dossiê segue com o trabalho de Júlia Avelar, da Universidade Federal de Uberlândia, que aborda cultos romanos e festivais religiosos do início do Império por meio do trabalho do poeta romano Ovídio. Avellar examina as intersecções entre cultos privados e festivais públicos na Roma antiga. A autora demonstra de que forma os cultos religiosos da poesia ovidiana seriam recriações poéticas que, através de elementos religiosos, provocam reflexões sobre as relações de poder na Antiguidade. Voltando às Cíclades e a Paros, o último trabalho deste volume, escrito por Rafael Silva e Teodoro Rennó Assunção da Universidade Federal de Minas Gerais, parte de fragmentos ditirâmbicos atribuídos a Arquíloco (fr. 120 W, fr. 96 Lasserre) para desenvolver considerações sobre a relação entre o culto de Dioniso e a difusão do ditirambo.

Juntos, os artigos apresentados neste volume expõem a riqueza das trocas religiosas no Mediterrâneo, particularmente no mundo greco-romano. Enquanto alguns revelam pesquisas arqueológicas originais sobre regiões sócio-políticas estratégicas, outros apresentam autênticos quadros teóricos, capazes de iluminar a complexidade dos intercâmbios culturais observados pela disseminação tanto da cunhagem oficial quanto dos mitos vernáculos.

Nota

1. Nós gostaríamos de agradecer o convite para organizarmos este dossiê e toda a assistência durante a confecção do número à Renatta Garraffoni (UFPR) e Priscila Vieira (UFPR), agora à frente da editoria da Revista História: Questões & Debates. Somos também enormemente gratas a Yannos Kourayos, que cedeu os direitos de uso da foto de capa, com o recém-restaurado edifício A do santuário de Despótiko. Estendemos nosso agradecimento ainda a Andrew Gipe Lazarou (Diakron Institute) que produziu a capa e fez a revisão do texto em inglês desta introdução. Qualquer erro que persista é, no entanto, de nossa inteira responsabilidade.

Erica Angliker (Institute of Classical Studies, University of London).

Lorena Lopes da Costa (Universidade Federal do Oeste do Pará).


ANGLIKER, Erica; COSTA, Lorena Lopes da. Introdução. História – Questões & Debates. Curitiba, v.69, n.1, jan. / jun., 2021. Acessar publicação original [DR]

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História do esporte / História – Questões & Debates / 2020

I

Embora ocorra uma confusão conceitual relacionada à gênese do esporte – seja no âmbito acadêmico ou leigo – em essência, confundindo práticas ritualísticas de civilizações antigas com as atividades corporais sistematizadas que surgiram, sobretudo, ao longo do século XIX, não há como negar que a ideia de competitividade tem uma origem remota. Provavelmente até mais distante do que os antigos jogos realizados nas diversas pólis gregas (o mais conhecido era, obviamente, aquele realizado em Olimpia) e os combates entre gladiadores (atividade de entretenimento popular pelos recônditos do mundo romano), a competição pode, de forma grosseira, remeter à luta por alimento, inclusive contra outras espécies. Talvez o ímpeto à competição esteja ali, impresso em nosso código genético, relacionado à adrenalina, aquele hormônio produzido pelas glândulas suprarrenais tão propalado por nos preparar para a movimentação intensa e súbita. Ainda no plano especulativo, é uma possibilidade que a descarga hormonal que nos levava a correr de um predador ou atrás de uma presa ou ainda a lutar pela sobrevivência ou por alimento, hoje, desnecessária, leve-nos a uma busca – tremendamente difícil de explicar – por uma espécie de catálise. Buscamos, despropositadamente, a prática física competitiva, mesmo que seja apenas para apreciá-la.

O que conhecemos, no seu formato acabado de hoje, como esporte – mesmo sendo registradas algumas iniciativas pontuais e prematuras no final do século XVIII – surgiu, considerando o seu volume, na segunda metade do século XIX, na Europa recém industrializada. Não se tem como negar que o processo de industrialização levou ao surgimento de grandes metrópoles que, por sua vez, foram ponto fulcral para que aquelas práticas físicas se desenvolvessem. Porém, atualmente, existem outros aspectos que são considerados pelos estudiosos dos esportes e práticas corporais, como fundamentais para que estes se transformassem em uma exibição de vigor físico, destreza e estética corporal de considerável impacto na sociedade contemporânea. O primeiro e mais evidente – e que, por incrível que possa parecer, passou desapercebido do meio acadêmico por um bom tempo – foi o avanço da tecnologia agrícola, o que permitiu que, ao menos a uma parcela considerável do mundo dito civilizado, houvesse um aumento do consumo alimentar. Não é de se estranhar, então, que durante a Idade Média, na Europa, fosse observada uma carência de atividades físicas (ao menos, as lúdicas sem propósito) tendo em conta que o consumo calórico médio era algo em torno de 1.500 calorias. Sabe-se hoje que consumo energético semelhante, perdurado por um tempo relativamente longo, leva à subnutrição. Logo, um indivíduo que mal tinha força para a labuta diária, não apresentaria, consequentemente, vontade de se exercitar além do necessário. O segundo aspecto foi o significado social que o tempo livre obteve na modernidade. Ter tempo disponível, seja para viajar com fins turísticos, praticar esportes ou exercícios físicos regularmente ou até mesmo para, simplesmente, “flanar” pelas cidades sem ter necessidade de um horário definido para o retorno, passou a ser um símbolo de status social. O golfe e o tênis, por exemplo, estão historicamente entre as modalidades mais elitistas e uma condição elementar para isso é que não existe uma definição precisa de tempo para duração de uma disputa. Uma partida pode durar quatro ou cinco horas e os competidores sabem desta possibilidade desde o início, sendo assim, são donos do seu próprio tempo. Não necessitam se preocupar em ter que interromper a prática no meio devido aos compromissos laborais típicos do dia a dia. Ao contrário, modalidades que caíram rapidamente no gosto popular – como o futebol americano, rúgbi, futsal e basquete – apresentam um tempo previamente definido, embora, para manter o senso de justiça, o cronômetro seja paralisado em momentos previstos nas regras. O futebol de campo foi mais longe: o tempo nunca para, então o praticante e / ou apreciador pode saber com a precisão variável de alguns poucos minutos (os acréscimos) o horário de início e encerramento da disputa.

O esporte, aquele surgido no novecentos, atualmente, galgou tamanha popularidade a ponto de ser considerado um fenômeno social. No início, tinha um interesse apenas restrito, o dos jovens (homens) praticantes em busca de um corpo estético renascentista, de sociabilidade e – com algumas exceções – de um símbolo de distinção social. Mas não foi necessário mais do que alguns anos para que passasse a angariar também apreciadores com outros perfis. É possível que este público interessado, os “simpáticos aos esportes”, reles apreciadores chamados de “a assistência”, fosse formado por minorias excluídas do processo: mulheres, idosos, deficientes, inábeis ao esforço físico, enfim. Só que a presença de interessados / curiosos, além dos próprios esportistas, nos locais de realização das práticas fez com que estas se transformassem em eventos sociais. Consequentemente, despertando também a atenção da mídia (ainda circunscrita aos diários e revistas). Quando a presença do público se avolumou, ganhou também outro significado: o de parte ativa do espetáculo esportivo. A “assistência” virou torcida.

Não é estranho, assim, que aqueles grupos minoritários, vetados na sociogênese da prática esportiva, gradativamente (e não na velocidade que gostaríamos), fossem incluídos e ganhassem o seu devido espaço. Além do crescimento do esporte de mulheres, também é sensível o crescimento do esporte para deficientes, sobretudo, nas últimas décadas. Hoje o esporte – com um pouco de otimismo – tem a capacidade de comportar a diversidade com dignidade e respeito. Embora existam inevitáveis aspectos biológicos que impliquem em subdivisões por sexo, peso, idade e até nível de rendimento – obviamente, variando de acordo com a modalidade – para assegurar condição de igualdade na disputa. Esta salutar diversidade se manifestou nas temáticas que compõem este dossiê, como será detalhado adiante.

Mas explicar o súbito e contínuo crescimento da popularidade do esporte talvez seja uma tarefa tão árdua quanto descobrir os motivos da queda de Roma. Dentre os principais aspectos que podemos, por enquanto, somente especular, constam: 1- o sentimento de pertencimento a um grupo, condição que, como explica a Psicologia Social, traz segurança; 2- a adequação ao discurso médico-científico, o qual considera o esporte um suposto meio à saúde (é fato que hoje o esporte de rendimento se afasta cada vez mais desta máxima); 3- a percepção generalizada de que o esporte segue (mesmo com vários desvios) princípios humanistas e civilizados; 4- estar, desde o início, coadunado a um dos valores mais marcantes nas sociedades contemporâneas, o de família.

É fato que tais aspectos, juntos a outros secundários, alçou o esporte a mais marcante atividade de entretenimento global. Seria inevitável que uma das consequências paralelas ao seu desenvolvimento e popularização fosse a sua expansão econômica e hoje podemos crer em uma quase inesgotável indústria de consumo do esporte. Além do consumo direto dos espectadores / torcedores, seja comprando ingressos e assistindo in loco ou pela TV e pelas emergentes plataformas digitais, existe um interesse cada vez maior por bens de consumo derivados: vestuário com alto recurso tecnológico; bebidas, alimentos e suplementos que aumentam o rendimento; equipamentos específicos a cada modalidade; o turismo com fins esportivos (tanto para assisti-los quanto para praticá-los); produtos ligados aos cuidados com o corpo (cremes, desodorantes, etc.); mídias diversas (revistas especializadas, programas de debates televisivos, lives em plataformas digitais); enfim tudo isto é avidamente consumido.

II

É certo que nem o mais bem informado cientista do mundo poderia antecipar, no findar de 2019, que teríamos, já no início de 2020, uma pandemia de impacto global. Tampouco que tal pandemia – entre consequências muito mais graves, como a morte de centenas de milhares de pessoas – poderia resultar no adiamento por um ano dos Jogos Olímpicos de Tóquio. Nós, então, não poderíamos continuar a apresentação deste dossiê se não com adjetivos como inacreditável, terrível, lamentável e pesaroso.

Quando propusemos às editoras da Revista História, Questões e Debates a temática história dos esportes para um dossiê temático, a ideia era exatamente aproveitar a aproximação dos XX Jogos Olímpicos, aqueles que seriam realizados em agosto. A ideia foi bem aceita, a chamada do dossiê foi lançada e, mesmo sem a realização do principal evento esportivo do mundo, a recepção da proposta por parte de nossos pares foi amplamente aceita. Recebemos quase três dezenas de artigos sobre o tema, dos quais, preservando as normativas da própria revista, foram selecionados os onze que compõem o dossiê.

A nossa preocupação como organizadores foi, primeiramente, preservar a multiplicidade temática. Sabíamos que, ainda mais no Brasil, existe uma predominância do futebol como modalidade de maior popularidade e tal condição não poderia deixar de se refletir no meio acadêmico. Com o agravante de que a própria Revista História, Questões e Debates já havia publicado anteriormente um dossiê acerca do tema – Futebol, Sentimento e Política (2012), organizado por Luiz Carlos Ribeiro. Para o nosso alento – embora, inevitavelmente, o futebol tenha sido a temática central de maior predominância dentre as submissões – recebemos propostas ecléticas o que assegurou que o dossiê se concretizasse, efetivamente, como de história do esporte.

Abrimos o dossiê com o artigo mais panorâmico, mas no sentido mais rico que o termo possa significar. Com maturidade acadêmica e requinte intelectual, JeanFrançois Loudcher em Processo civilizador e transformações sociais: uma análise das teorias elisianas em relação às Ciências Sociais do Esporte, revisa as possibilidades de uso da teoria de Norbert Elias nos estudos acerca dos esportes. Loudcher não idealiza Elias, respeita-o como intelectual que formulou um modelo histórico / interpretativo das sociedades (principalmente as ocidentais), mas não nega suas limitações e fragilidades.

Prova da amplitude das temáticas presentes são os artigos sobre os esportes ditos californianos. Dropando sobre as pranchas: os impactos das transformações conceituais das práticas do surfe e do skate refletidos no anúncio do Comitê Olímpico Internacional, escrito por Monique de Souza Sant’Anna Fogliatto e José Carlos Marques, trata, evidentemente, da completude da esportivização de tais práticas. Pensar que o surfe e skate carregavam junto a si nos anos 1980 / 90 o ideário “estilo de vida”, cuja principal característica era a aversão às regras (basta lembrarmos do impactante Kids de Larry Clark ou do descolado Caçadores de Emoção de Kathryn Bigelow) e que hoje são modalidades olímpicas altamente regradas é uma mostra do constante movimento adaptativo dos esportes. Reforçando a condição inconteste de que o surfe galgou a condição de esporte, o texto de Pedro Cezar Duarte Guimarães e Rafael Fortes, A transmissão ao vivo de campeonatos de surfe pela internet: padrões televisivos, inovação e questões para a história do esporte, examina o uso (e popularização) da plataforma de transmissão online da World Surfing League, focando o estudo na bateria final do Corona Open J-Bay no ano de 2017.

O surfe é um esporte que exige, além do confronto com os adversários, uma rápida e harmônica relação com a natureza e sua condição inconstante. Mas desafiar a natureza já era uma ideia recorrente desde o surgimento do esporte. A natação – modalidade realizada hoje, sobretudo, no ambiente extremamente controlado das piscinas (com o adendo de que a Maratona Aquática em mar seja uma das provas olímpicas) – nos seus primórdios, era praticada em locais inóspitos. Dois artigos abordam o assunto. O primeiro, de autoria de Daniele Cristina Carqueijeiro de Medeiros, Evelise Amgarten Quitzau e Marcelo Moraes e Silva, A Travessia de São Paulo à Nado (1924-1944) e o processo de esportivização aquática paulistana, detalha como uma prática que nasce imbricada à máxima de desafio à natureza e superação pessoal começa a ganhar contornos esportivos na primeira metade do século XX. Mesmo focados no processo que tornava as exóticas travessias no Rio Tietê algo de maior seriedade, ao analisar os periódicos Correio Paulistano e A Gazeta, os autores conseguiram com maestria mostrar também a presença na época de um ideal estético, por eles chamado, com propriedade, de “cultura física”. O segundo artigo, Los Diferentes sentidos sobre la ‘naturaleza’ y su relación con la feminidad y la nacionalidade – la prensa y el primer cruce a nado del Río de La Plata, 1923, um estudo de caso feito por Pablo Ariel Scharagrodsky, foca no feito inédito realizado pela atleta Lilian Harrison. A superação do desafio inóspito por Harrison fez com que esta se tornasse um símbolo de mulher argentina moderna – aquela que poderia superar adversidades originárias da masculinização da natureza – como os jornais nacionais argentinos faziam questão de enfatizar.

Ainda na intensa década de 1920, período focal dos dois artigos da natação em rios, em Da celebração à comoção: os discursos da imprensa escrita paulista em relação a uma célebre luta de boxe, Rick Lise, eu (André Capraro) e Fernando Cavichiolli detalhamos um caso emblemático do boxe, a controversa luta entre o brasileiro Benedicto dos Santos e o italiano Ermínio Spalla. Transcendendo a própria prática do esporte, o confronto pugilístico demonstrou a volatilidade dos jornais brasileiros ao tratar de um incidente.

Como prática sociocultural, seria inevitável que o esporte também tivesse uma interface com a literatura. Centenas de obras literárias, cujo tema central é o esporte, são publicadas todos os anos mundo afora. Dentre os gêneros literários que se sobressaem, figuram aqueles de caráter híbrido, como a biografia e a autobiografia. Estes gêneros – ao lado da crônica, do romance histórico e do ensaio de cunho sociológico – são os memorialísticos. Com sofisticação acadêmica, circulando a análise entre os preceitos da Teoria Literária e da História, Elcio Cornelsen, em Memória e futebol no Brasil: escritas da vida de jogadores brasileiros, analisa 18 obras pertencentes a tais gêneros. Pesquisa robusta, com resultados inéditos.

Não faltaram no dossiê dois subtemas clássicos em se tratando de esporte: 1) a presença da mulher no esporte e 2) a proximidade do esporte – diríamos até que em uma relação simbiótica – com a ginástica. No artigo de Alice Beatriz Assmann, Ester Liberato Pereira e Janice Zaperllon Mazo, Personagens na rede: indivíduos, posições sociais e identidades construídas por meio do Turnen no Rio Grande do Sul, as autoras descrevem o surgimento e as nuances de uma prática física tipicamente alemã, amplamente aceita pelas comunidades teutas estabelecidas no Brasil. Focando no caso específico do Rio Grande do Sul e, sobretudo, na atuante figura de Jacob Aloys Friederichs, o texto conclui que, mesmo sendo uma prática que aceitava a competição, o seu caráter era mesmo o de integração e harmonia. Quanto ao avanço das mulheres no cenário esportivo, consequentemente, estabelecendo complexas relações entre gêneros, Ana Flávia Braun Vieira e eu (Miguel A. de Freitas Júnior), em Relações de poder entre os sexos nos Jogos Olímpicos: análise da participação das atletas brasileiras a partir da perspectiva sociológica de Norbert Elias (1920-2020), apresentamos uma reflexão sobre a presença da mulher brasileira no eventomor do esporte; aproximando-se metodologicamente, inclusive, da proposta analítica feita por Loudcher no texto de abertura.

Finalizando o dossiê temos como foco os atuais Jogos Olímpicos. Em um ensaio crítico e contundente, A (des)politização dos Jogos Olímpicos modernos, Luiz Carlos Ribeiro nos brinda com uma avaliação conjectural de três momentos emblemáticos do olimpismo: o início sob a égide do amadorismo e fair-play; os anos 1930, com o totalitarismo em ascensão, materializado na emblemática Olimpíada de Berlim (1936); e, por fim, o período no qual se tornou um palco para as tensões da Guerra Fria. O artigo escolhido para o encerramento foi The legacy of a cultural elite: the British Olympic Association, de autoria de Dave Day e Jana Stoklasa. A dupla descreve o desenvolvimento do esporte olímpico britânico, com ênfase na presença e controle exercido por uma elite cultural que tinha com princípio a ética do amadorismo. O texto exacerba a ideia de que, tratando-se de esporte olímpico, há um forte exercício de poder (e controle), na maioria dos casos, externo à própria prática, que idealiza um modelo amadorístico – porém, tal modelo, ao menos no caso britânico, é suscetível ao desempenho atlético.

Complementam esta edição da Revista História, Questões e Debates o artigo de Roberta Barros Meira e Daniel Campi, Uma nova paisagem açucareira: os técnicos versus os modos tradicionais de produzir açúcar na Argentina e no Brasil nas primeiras décadas do século XX, fruto de uma parceria acadêmica entre Brasil e Argentina; e a resenha de Maria Eloisa de Oliveira e Pauline Iglesias Vargas, Reflexões sobre uma das obras de Svetlana Aleksiévich: as memórias das crianças que sobreviveram à Segunda Guerra Mundial, focadas no livro “As últimas testemunhas: crianças na Segunda Guerra Mundial”. Embora as obras de celebradíssima Nobel de Literatura, Svetlana Aleksiévich, não tenham relação explícita com a temática do dossiê, as resenhistas – também pesquisadoras do esporte – usam-nas como um exemplo para quem trabalha com a oralidade.

III

Durante a pandemia COVID-19 não há como negar que o esporte (de alto rendimento) assumiu a sua condição de protagonista entre as atividades de entretenimento. Prova é que tais práticas competitivas se tornaram foco de um amplo e acalorado debate.

As opiniões oscilavam radicalmente. De um lado aqueles que o viam como apenas mais uma atividade trivial e que, consequentemente, os seus agentes deveriam participar da quarentena como outros quaisquer; de outro, como contraponto, um grupo que o considerava uma forma de entretenimento televisivo fundamental, logo, elemento que poderia até colaborar para que as pessoas permanecessem em casa por mais tempo. Entre as posições extremas acima, outras tantas mais ponderadas apareceram.

Mas o debate não era somente se os treinos e campeonatos deveriam retornar e quando. Já em março o Comitê Olímpico Internacional foi duramente criticado por postergar em exagero o anúncio de cancelamento dos Jogos Olímpicos de Tóquio. Também causou polêmica a decisão do Ultimate Fight Championship, maior organizador de eventos de MMA, de recomeçar os combates sem público, só que no auge da pandemia nos Estados Unidos da América. Alguns poucos campeonatos que não foram cancelados também foram motivo de cobertura da imprensa – Cuba, Nicarágua, Bielorrússia, Cingapura, Taiwan, Burundi entre outros países não paralisaram as suas atividades esportivas. Assim como os posicionamentos contundentes de alguns atletas não se sentindo seguros para o retorno nos momentos definidos pelas instituições regulamentadoras (por exemplo, o caso NBA versus Lebron James). Enfim, raras exceções, o esporte, mesmo paralisado, nunca perdeu o protagonismo como a mais popular atividade de lazer / entretenimento.

O esporte é parte do nosso cotidiano. Não só do nosso, mas na verdade, do mundo todo. Nem mesmo os sherpas – pessoas de etnia de origem tibetana outrora desconhecida por viver na região do sopé nepalês do Himalaia – escaparam do impacto da indústria esportiva. Estes intrépidos “homens da montanha” agora são conhecidos mundialmente. Do best-seller No Ar Rarefeito de Jon Krakauer chegando à recente série Everest: o preço da escalada do Discovery Channel, os sherpas foram alçados à condição de heróis. Sua tarefa, em síntese, é viabilizar a estrutura para escalada e (não raro) resgatar atletas (a maioria, amadores) que se dispõem a pagar vultosas quantias às empresas que organizam excursões para a escalada e ataque ao cume do Everest. É fato que uma camada significativa da população global não tem predileção por esportes (seja para praticá-los ou assisti-los), porém, mesmo os avessos não conseguem se desvencilhar de sua presença.

Mas mesmo com toda a sua popularidade e altiva presença no globo, o esporte já parou. Parou em grandes e traumáticos eventos históricos. São os casos dos Jogos Olímpicos de Berlim (1916), cancelados por causa da Primeira Grande Guerra; ou os Jogos Olímpicos de Tóquio (1940) e Londres (1944), além das Copas do Mundo de Futebol de 1942 (provavelmente seria na Alemanha) e 1946 (provavelmente seria na Argentina), todos por causa da Segunda Guerra. Parou também durante o período de pandemia global da Gripe Espanhola, entre os anos de 1918-19. No caso brasileiro, vários campeonatos regionais de futebol foram cancelados e, para comoção geral, nem mesmo jovens atletas com elevada condição de saúde escaparam da impactante estimativa de 40 mil mortos pela Espanhola, apenas no Brasil. O esporte não parou, mas deveria parar em outras situações. É o caso, por exemplo, dos Jogos Olímpicos de Munique, quando um atentado terrorista promovido pela Organização Setembro Negro ceifou brutalmente a vida de atletas e treinadores da delegação de Israel. O esporte parou também no trágico acidente aéreo com o voo fretado pela Associação Chapecoense de Futebol em 2016. O impacto do acidente causou um luto nacional, mas foi deveras reconfortante a homenagem prestada pelos torcedores do Atlético de Nacional de Medellín – gesto que, sem dúvida, fez-nos lembrar o quanto o esporte nos une, mesmo na intensa dor. Nós, proponentes deste dossiê, não temos dúvida: parou e deveria parar por causa da pandemia COVID-19, mas irá se erguer novamente. “O show não pode parar!”

Não poderíamos deixar de agradecer as pessoas que colaboraram conosco na realização deste dossiê. Marcelo Moraes e Silva comprou a ideia e participou de forma tão ativa quanto nós da empreitada. Luiz Carlos Ribeiro, nosso eterno orientador, estimulou que tentássemos e confiou no nosso trabalho. Renata Senna Garraffoni era a editora da Revista História, Questões e Debates quando propusemos o dossiê e foi muito atenciosa com a transição. Mas o nosso maior agradecimento é a Priscila Piazentini Vieira, atual editora da Revista, sem a sua orientação, apoio e, sobretudo, paciência (ainda mais em época de pandemia) a concretização deste dossiê não seria possível.

André Mendes Capraro (Universidade Federal do Paraná)

Miguel A. de Freitas Junior (Universidade Estadual de Ponta Grossa)

Os organizadores


CAPRARO, André Mendes; FREITAS JUNIOR, Miguel A. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.68, n.2, jul./dez., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Direitos humanos e políticas de memória / História – Questões & Debates / 2020

O Dossiê que temos a satisfação de apresentar ao olhar crítico dos leitores da Revista História: Questões & Debates, reafirma nossas convicções sobre as exigências que a história nos impõe em não permitir apagamentos, silenciamentos, ocultações e censuras em face de experiências traumáticas que afetaram (e afetam) o cotidiano do Brasil e da América Latina. Elaborar o traumático por meio de um trabalho de memória, como destacou Elizabeth Jelin (2002), implica colocar uma distância entre o passado e o presente. Mas esta distância implica igualmente em não recusar as interações dinâmicas e as contínuas reapropriações que marcam as temporalidades históricas. Significa, ao contrário, recordar que algo ocorreu, e ao mesmo tempo, reconhecer a vida presente e os projetos futuros. Levando em consideração as circunstâncias políticas passadas e presentes que repercutem no modo pelo qual as nossas sociedades produzem suas representações; preocupados com os processos históricos que maximizam as situações de vulnerabilidade de grupos sociais e comunidades, e atentos à lição de Jelin, nossa crença é que são cada vez mais urgentes as reflexões que congregam o binômio “direitos humanos” e “memória”. Quer nos parecer, portanto, que tal urgência está plenamente contemplada no conjunto dos artigos que compõem este Dossiê. Um Dossiê tecido por narrativas plurais; construído pelas vozes da persistência, e, sobretudo, concebido pela coragem de não tangenciar ou se omitir diante da responsabilidade de enfrentarmos um duplo desafio: educativo e político.

É imperativo destacar dois aspectos. Primeiro, o potencial crítico e analítico alicerçado sob o binômio “direitos humanos” e “memória” e em seus desdobramentos temáticos possíveis, é o que temos nos empenhado em desenvolver no âmbito de uma rede de investigadores brasileiros e de outros países que, afortunadamente, tem se ampliado nos últimos anos, justamente, a partir de interesses comuns de pesquisa e pelo intenso grau de similitudes entre seus objetos de estudo. Destarte, os debates gerados no Grupo de Pesquisas DIHPOM (Direitos Humanos e Políticas de Memória), sob coordenação da pesquisadora e professora Marion Brepohl, têm auspiciado uma série de publicações e encontros científicos que contribuem para refinar e reformular as percepções sobre o mundo no qual atuamos. Em segundo lugar, reforçamos como estatuto epistemológico de nossas práticas, a opção por uma vertente profundamente crítica tanto em relação ao uso instrumental e etnocêntrico da noção de direitos humanos; quanto aos modismos que inflacionam e despolitizam o conceito multiforme de memória. É sob tal orientação que se organizam os nove artigos oferecidos ao leitor pelo Dossiê “Direitos Humanos e Políticas de Memória”.

No artigo que abre o Dossiê, de título “Desafios para a história nas encruzilhadas da memória: entre traumas e tabus”, Marcos Napolitano enfoca as categorias de trauma e tabu vinculando-as à análise dos processos de memorização e suas conexões com o conhecimento histórico, sobretudo, na apreensão dos períodos marcados por violências extremas. O autor constrói uma reflexão em que visualiza o “trauma” como categoria recorrentemente apropriada pelo campo de saberes historiográficos; enquanto o “tabu” é identificado como uma espécie de negação produzida pelos perpetradores das violências e seus herdeiros. Ambos são mobilizados para analisar e compreender as mutações na memória hegemônica da ditadura militar brasileira.

Em seguida, Diogo Justino no artigo “Uma responsabilidade pelo que não fizemos? A memória como fundamento da responsabilidade histórica em Walter Benjamin e Reyes Mate” explora as relações entre memória e história a partir de um diálogo entre Benjamin e Reyes Mate. Justino pauta sua análise pensando os vínculos entre passado e presente, centrais na reflexão do filósofo alemão, conectando-os com a noção de memória da injustiça como fundamento de uma ideia de responsabilidade histórica em Reyes Mate. O autor conclui que a operação de pensar o presente a partir do passado, incluindo as experiências de injustiça, é como pensar sobre as responsabilidades que as gerações do futuro possuem em relação às gerações do passado.

No terceiro artigo, “La violencia dictatorial y la violencia estatal de largo plazo en el Cono Sur de América Latina: entre lo excepcional y lo habitual”, o historiador argentino Daniel Lvovich propõe uma série de perguntas e vinculações entre as modalidades mais gerais da violência estatal contra a próprias populações, e as formas de violência especificamente políticas instauradas pelos estados nos períodos ditatoriais. Para Lvovich, a violência política representa a potencialização em escala geométrica da violência cotidiana previamente existente e que atinge as comunidades nacionais, tendo como alvos involuntários os setores mais vulneráveis da população.

Magdalena Figueredo Corradi e Fabiana Larrobla Caraballo, em “Una aproximación a la metodologia de investigación de los crímenes de lesa humanidad en las dictaduras del cono sur. La experiencia del Equipo de Investigación Histórica (EIH) – Uruguay”, tratam do processo de construção de uma abordagem metodológica cujo enfoque trandisciplinar, permite às autoras trazer ao leitor o exitoso trabalho realizado durante mais de quinze anos na investigação sobre os crimes cometidos pelo estado uruguaio dentro de seu território, e no marco do Plano Condor. O empenho sistemático no âmbito do EIH tem como princípios contribuir para os processos de verdade, justiça e reparação em relação às graves violações de direitos humanos cometidas pelas últimas ditaduras do século XX no cone sul, mas também almeja gerar um campo de estudo que possa ampliar o escopo de metodologias favoráveis ao trabalho dos investigadores.

As percepções do direito internacional humanitário quanto à reparação jurídica e ao direito à memória são desenvolvidas por Melissa Martins Casagrande e Ana Carolina Contin Kosiak, no artigo “Reparação jurídica e direito à memória: o papel das sentenças condenatórias internacionais e estrangeiras sobre desaparecimentos forçados”. As autoras propõem que sentenças condenatórias referentes às violações de direitos humanos cometidas em períodos ditatoriais têm um duplo papel: prover reparação jurídica às vítimas e / ou aos seus familiares; assim como produzir meios documentais que permitam o acesso ao passado contribuindo para a consolidação do direito à memória. O recorte temático mais específico repousa na atuação transnacional da Operação Condor e as suas responsabilidades no desaparecimento forçado de opositores das ditaduras na América do Sul entre as décadas de 1960 e 1990.

No artigo seguinte, de título “Los refugiados chilenos residentes en Argentina como un ‘problema de seguridad nacional’, 1973-1983”, Maria Cecilia Azconegui estuda as repercussões do golpe pinochetista no cenário político argentino. Azconegui explora os impactos provocados pelo ingresso de milhares de refugiados chilenos no território argentino, e analisa as mudanças nas percepções e nas políticas de governo com respeito a esses refugiados. A autora sugere que, gradativamente, os chilenos passaram a ser considerados uma ameaça cuja permanência na Argentina devia ser objeto de regulação, controle, e mesmo, repressão, eliminação física ou expulsão, a despeito dos mecanismos de proteção proporcionados pelo ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.

Ao relacionarem as Comissões da Verdade e a literatura no artigo “Experiências de ditadura na Argentina e no Brasil: notas sobre a reelaboração da memória a partir da literatura”, José Carlos Freire e Alexandre Fernandez Vaz discutem aspectos gerais sobre a Justiça de Transição ocupando-se do papel assumido pela CNV – Comissão Nacional da Verdade implantada no Brasil em 2011. Em perspectiva comparativa, os autores refletem sobre a CONADEP na Argentina, e trazem à luz quais as possíveis contribuições da literatura de testemunho a partir de dois relatos: K. Relato de uma busca de Bernardo Kuncinski (2011), e Mi nombre es Victoria, de Victoria Donda (2009). Os autores concluem que tanto os trabalhos das Comissões instaladas nos dois países em temporalidades distintas, como a diferença entre as duas narrativas literárias sobre desaparecimentos evidenciam a dificuldade do Brasil em elaborar o seu passado ditatorial.

Na sequência, Leandro Brunelo e Angelo Priori no artigo “Resistência democrática versus graves violações dos direitos humanos durante a ditadura militar no Paraná: a atuação dos advogados na defesa dos presos políticos” problematizam o Inquérito Policial Militar 745 (IPM 745), que, durante a ditadura militar brasileira, apurou o envolvimento dos comunistas na suposta organização do partido no estado do Paraná em 1975. Os autores contrapõem as instituições políticas que controlam e formulam leis, e os advogados de defesa das pessoas presas que denunciaram as violações dos direitos humanos. Ao ressaltarem as disputas que ocorriam em um campo específico, o jurídico, Brunelo e Priori demonstram os modos pelos quais agentes díspares na escala do poder travaram uma batalha legal e jurídica, e, por sua vez, como os advogados valiam-se do mesmo substrato burocrático-legal fomulado pelo estado para tornar menos rígidos os limites da lei e do campo jurídico.

Encerra nosso Dossiê, o artigo escrito pela historiadora Carla Cristina Nacke Conradi: “Gênero, memória e ditadura: a militância política de Lídia Lucaski no Paraná”. Neste artigo, Carla Conradi aborda a complexa relação entre gênero e ditadura, partindo de uma escrita sobre a história da ditadura civil-militar no Paraná, por meio da memória autobiográfica de uma militante paranaense. A autora retrata o retorno que Lídia Lucaski faz ao seu passado e como esse relato está entrelaçado pelas análises que Lídia, a protagonista, tece sobre sua militância política. Conradi destaca que, muito mais do que narrar sua trajetória, Lídia problematiza a relação que tem no presente com sua memória, dimensionando sua capacidade de arquivar o passado ou de fazer apropriações das experências vividas.

Este volume da Revista História: Questões & Debates conta ainda com três artigos em sua Seção Livre. “Saber histórico e desenvolvimento das competências de leitura e escrita no currículo oficial do estado de São Paulo”, de Jorge Eschriqui Vieira Pinto, pelo qual o autor argumenta como o saber histórico de sala de aula a partir do desenvolvimento de leitura e escrita pode se tornar uma importante ferramenta cidadã dos alunos. Na sequência, Diogo da Silva Roiz e Tiago Alinor Hoissa Benfica, em “Elza Nadai: a formação da papisa do ensino de História”, apresentam a trajetória intelectual de Elza Nadai, no intuito de visualizar os locais institucionais e as proposições teóricas que edificaram a área de pesquisa de ensino de História. Por fim, no artigo “Estado do conhecimento sobre história da alimentação indígena no Brasil”, Tamiris Maia Gonçalves Pereira, Sônia Maria de Magalhães e Elias Nazareno discutem as recentes abordagens desenvolvidas no âmbito da História da Alimentação, com foco específico na alimentação indígena.

Os organizadores deste Dossiê desejam agradecer a contribuição de autoras e autores na concretização de mais esta edição da Revista, e, sobretudo, a generosidade pela qual as editoras acolheram a nossa proposta.

Uma boa leitura!

Angelo Priori (Universidade Estadual de Maringá)

Marcos Gonçalves (Universidade Federal do Paraná)

Silvina Jensen (Universidad Nacional del Sur)

Organizadores


PRIORI, Angelo; GONÇALVES, Marcos; JENSEN, Silvina. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.68, n.1, jan. / jun., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Foucault e anarquia: histórias do presente / História – Questões & Debates / 2019

Foucault e a história da anarquia no presente

O filósofo Michel Foucault, em curso proferido em 1979-1980, O governo dos vivos, comentou possuir uma certa relação com a anarquia e com o anarquismo. Sua demolidora analítica do poder e suas proposições sobre a estética da existência como um “trabalho paciente que dá forma à impaciência da liberdade” interessam aos anarquistas. Informado dessa via de mão dupla, o leitor mais apressado poderia dizer que a relação entre Foucault e a anarquia é “evidente” e até mesmo “natural”. Mas não é assim que essa relação se dá.

A relação entre Foucault e a anarquia existe em tensão, se dá no agonismo das forças. Se apresenta, assim, como um campo de batalha, mas não dado ao extermínio do outro. Ela produz diferenças, onde se quer similitudes. Este dossiê propõe um diagnóstico dessa relação e de suas diferenças a partir da exposição de uma história do presente. Para isso, convidou pesquisadores de diversas áreas que lidam nessa peleja há mais de três décadas e os que se lançaram nessa batalha mais recentemente para produzirem artigos inéditos acerca dessa relação.

Um inicial registro dessa relação pode ser encontrado no volume 5 da revista MargeM da Faculdade de Ciências da PUC-SP, de 1996, na qual aparece um conjunto de textos assinados por Edson Passetti, Wilhelm Schmid, Salvo Vaccaro e Todd May que se dedicam, de perspectivas bastante diversas, às intersecções entre o pensamento anarquista e a obra do filósofo francês. Mas, ao menos no Brasil, essas relações já apareciam nos trabalhos da historiadora Margareth Rago (Unicamp), nas pesquisas em educação de Silvio Gallo (Unicamp) e, um pouco mais adiante, nas análises de Salete Oliveira (PUC-SP). Desde então, desdobramentos dessa relação aparecem em trabalhos de mestrado e doutorado orientados por esses iniciais instauradores. Um registro mais contínuo, de quase duas décadas, pode ser encontrado nos 35 números da verve – revista autogestionária do nu-sol. Em 2015, a pesquisadora da obra do Foucault no Brasil e professora da UERJ, Heliana de Barros Conde Rodrigues, fez uma primeira sistematização dessa população em verve no artigo “anarqueologizando Foucault”, in verve, 28: 2015, 91-123.

Ao retomar essas relações nesse dossiê da revista História: Questões & Debates não se buscam continuidades, tampouco rupturas, mas marcar um registro dessa história no presente. Outras escritas para que se possa passar, para que se possa avançar, para que se possa fazer caírem os muros. São artigos de pesquisadores e militantes da anarquia que, cada a um à sua maneira, não se furtam ao campo de tensão entre a obra de Foucault e a vida anarquista.

Abre esse dossiê o ensaio de Edson Passetti, professor na PUC-SP e coordenador do nu-sol (núcleo de sociabilidade libertária), “A presença de Michel Foucault nos anarquismos”, que situa, a partir da genealogia do poder e de uma instigante leitura da obra do artista chinês Ai Weiwei, os riscos dos anarquismos serem tragados pelo ativismo da atual democracia neoliberal que convoca todos a participar e busca empoderar os vulneráveis e afirma a diferença da anarquia como militantismo, que desvia da dissidência e da convocação à participação.

Em seguida, Camila Jourdan, professora de filosofia da UERJ, no artigo “Foucault e a ruptura com a representação”, sustenta que a aproximação possível entre os anarquistas está na recusa da lógica da representação. Ao retomar a dialética serial proposta por Proudhon, afirma uma ontologia do múltiplo que se dispensa da dialética sintetista hegeliana, do conceito marxista de ideologia e do materialismo com a verdade de real. Afirma a tensão, o corpo e a imanência da ação como pontos de intersecção do pensamento de Michel Foucault com os anarquistas, afastando os dois do liberalismo e do socialismo de Estado, que são, por sua vez, colocados à lógica dualista e unidirecional da representação.

O somaterapeuta e psicólogo João da Mata apresenta, em seu ensaio “Anarquismos e Foucault”, a anarquia como uma pratica éticopolítica que encontra nas formulações de Michel Foucault elementos que sacodem-nos da anarquia contemporânea reminiscências iluministas e identitárias para a produção de um ethos ingovernável, fazendo do corpo um campo de batalha contra a autoridade e as hierarquias. O autor ainda indica na obra de Michel Onfray uma via de atualização possível da relação entre anarquismos e crítica da modernidade e com isso, sugere uma prática anarquista cotidiana que começa no corpo.

Thiago Rodrigues, internacionalista e professor na UFF, sugere um percurso sobre a noção de agonismo na obra de Foucault que teria, genealogicamente, como ponto de inflexão o curso de 1974, O poder psiquiátrico. Além de afirmar o agonismo como condição da vida em liberdade, a conexão com a anarquia se dá pela recusa do Estado como fonte de poder e as conexões, traçadas no artigo, entre a genealogia foucaultiana de inteligibilidade guerreira e a obra do instaurador da anarquia, Pierre-Joseph Proudhon, A guerra e a paz. Em resposta aos universais do poder, sugere que é preciso revirar-se agonicamente.

A historiadora Maria Clara Pivato Biajoli, no artigo “Lendo a experiência e a memória das Mujeres Libres em um diálogo com Foucault”, revira as memórias das lutadoras Mujeres Libres de uma perspectiva da genealogia da história. A autora destaca, na obra de Michel Foucault, as noções de cuidado de si, estéticas da existência e biopolítica para pensar a atuação do grupo para a libertação feminina. Sem apologias ou panegíricos, realiza a retomada de uma história menor em meios a batalhas libertárias da Revolução Espanhola (1936- 1939). Acusa ainda a própria transformação como historiadora ao lidar, libertariamente, com o referencial foucaultiano e mulheres anarquistas.

E o silêncio.

O músico, compositor e politólogo Gustavo Simões, no ensaio “john cage e a vida como arte de escrever anarquista”, apresenta a escrita musical de John Cage e as vidas libertárias como formas de escrita de si como ação direta. Uma escrita que se afasta da historiografia como erudição inútil e se afirma como história-efetiva que, à maneira dos cínicos, se faz como escândalo. Essa forma de escrita anarquista, catada em Cage e nos anarquistas, recusa o conteúdo doutrinário “para sobressair demolições-invenções em cada acontecimento da existência contra a história factual e a dialética, tão apreciadas pela História”.

O conjunto de seis artigos desse dossiê compõe um registro heterogêneo e heterodoxo fincados no presente das lutas. Não sugerem, mesmo que reunidos em proximidade, nenhuma lógica de afinidade, tampouco reclamam filiação. Nada reclamam entre os verdadeiros intérpretes dos ditos e escritos de Michel Foucault, tampouco engrossam as fileiras dos que entendem o anarquismo como doutrina ou ideologia política. São textos de práticas de liberdade, já que liberdade não é uma ideia ou um valor tanto para os anarquistas quanto na analítica do poder proposta por Foucault. A Anarquia aqui registrada é uma história do presente que das atuais reformas, conservações, inovações e restaurações se afirma pela revolta como atitude antipolítica que sabe bem que a política é tecnologia de governo moderna de si e dos outros.

O volume ainda conta com uma seção aberta bastante diversificada em seus temas, e contempla quatro artigos, uma tradução e uma resenha. No primeiro artigo, “Flávio Suplicy de Lacerda: aliado das forças armadas e combatente contra comunistas e estudantes”, os autores Névio de Campos e Eliezer Feliz de Souza discutem a relação de Flávio Suplicy de Lacerda com as representações e as práticas sociais das forças armadas brasileira, no governo civil-militar de 1964 a 1985. No segundo, “Jean Giono e a reinvenção da Odisseia na literatura francesa do pós-guerra”, a autora Lorena Lopes da Costa analisa a relação entre guerra, experiência e ficção, a partir de Naissance de l’Odyssée, uma releitura francesa da Odisseia. No terceiro, “Nos tempos da mudança. Aberturas possíveis, acordos revistados e concepções sobre consumo (1808-1821), a autora Rosângela Ferreira Leite trata das relações diplomáticas entre Portugal e Grã-Bretanha, no período já referido no título. No quarto e último artigo, “As mulheres dos governadores das colônias portuguesas na segunda metade do século XVIII e início do XIX”, o autor Magnus Roberto de Mello Pereira, investiga o papel exercido por tais mulheres nas colônias portuguesas, apontando uma mudança de mentalidade em relação à família, nas últimas décadas do século XVIII.

Temos, ainda, a tradução do artigo do classicista Ray Laurence, intitulado “Saúde e curso da vida em Herculano e Pompeia”, de autoria de Martha Helena Loeblein Becker Morales e Alexandre Cozer. Para finalizar a publicação, contamos com a resenha “Histórias que seguem atuais: sobre infâncias e juventudes”, de Chirley Beatriz de Silva Vieira e Otoniel Rodrigues Silva, ao livro Infâncias e juventudes no século XX: histórias latino-americanas, que foi organizado por Silvia Arend, Esmeralda de Moura e Susana Sosenski, e publicado em 2018.

Que seja uma boa, mas desestabilizadora leitura.

Saúde e anarquia!

Acácio Augusto – Departamento de Relações Internacionais da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios – UNIFESP.


AUGUSTO, Acácio. Introdução. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.67, n.2, jul./dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Poéticas feministas na história, arte e literatura / História – Questões & Debates / 2019

Esse dossiê reúne pesquisas e reflexões historiográficas contemporâneas que elaboram a perspectiva poética e criativa de mulheres nas artes, na literatura e na história. As elaborações das subjetividades numa dimensão de gênero, o dinamismo dos processos históricos e as críticas culturais feministas são alguns dos principais enfoques dessas pesquisas que abordam a produção cultural feminina. Os campos literário, artístico e ativista são, assim, estudados em suas articulações culturais, políticas e históricas, tendo como eixo de análise a transformação cultural incitada pelos feminismos contemporâneos, em suas intersecções com as questões étnico-raciais, de classe e geracionais. Poéticas feministas, dessa forma, podem ser encontradas em diferentes práticas discursivas, relações intersubjetivas, militâncias políticas e mais claramente nas produções artísticas e literárias. Esse dossiê, portanto, pretende refletir sobre suas especificidades, sentidos, impulsos éticos e subjetivos.

Tais reflexões advindas da elaboração epistemológica feminista no campo historiográfico e na crítica literária merecem destaque e reflexão, posto que apenas muito recentemente elas têm avultado maior espaço.[1] Os trabalhos aqui reunidos demonstram o esforço inventivo e investigativo de grande fôlego por pesquisadoras do Brasil como Norma Telles, Margareth Rago e Mônica Campo acompanhadas das argentinas Tania Diz e María Laura Rosa. Merece destaque, também, o espaço dado no dossiê para a publicação de um artigo da escritora Julia Lopes de Almeida que repousava esquecido nos arquivos nacionais. Escritora de grande fama em seu tempo, Julia Lopes de Almeida mostrava entre finais do século XIX e início do XX a necessidade premente de dissolvermos a noção de gênio artístico e de compreendermos o rico universo imaginário e político oferecido pelas mulheres. Os esforços da pesquisadora Gabriela Trevisan, junto ao da historiadora Margareth Rago para trazer esse texto a público, nos mostram, assim, como o pensamento sobre a poética feminista é assunto de longa data, com ressonante atualidade. Julia Lopes de Almeida proclamava que “tudo se pode escravizar no mundo, menos o pensamento”.

A imaginação das mulheres ganhou espaço de reflexão crítica por meio da História Cultural, ao lado dos debates de gênero e pósestruturalistas, que advogam a necessidade de investigarmos as contracondutas para utilizarmos o conceito foucaultiano, existentes em formas de vida ligadas às artes, à literatura e aos ativismos. O conceito de contracondutas permite evidenciar a arte como espaço de construção de discursos radicalmente novos e de práticas de liberdade sempre atentas às estratégias de poder-saber em nossa sociedade. [2] Norma Telles, por exemplo, aborda como a imaginação feminina sobre o reino animal, presente nas escritoras inglesas como Leonora Carrington, carrega o potencial crítico das metamorfoses, dos trânsitos interregnos e devires animais: “Bachelard lembra que é possível ultrapassar formas humanas para tomar posse de outros psiquismos, e que é preciso perceber o animal em suas funções, não em suas formas. ‘A vida animalizada é a marca de uma riqueza e de uma mobilidade dos impulsos subjetivos’ E ainda, ‘é o excesso do querer viver que deforma os seres e que determina suas metamorfoses’ (Bachelard:1995:12).” Margareth Rago, ao analisar a produção artística da italiana Carol Rama, inaugura a compreensão de como a imaginação feminista carrega sofisticadas elaborações sobre os discursos de verdade que incidem sobre os corpos femininos. Subversão do corpo, da sexualidade e do desejo são percorridos por Rago: “Aliás, a serpente é uma figura recorrente na obra de Rama, evocando continuamente a figura da primeira mulher diante da tentação do diabo e na iminência da queda. O pecado ronda as mulheres, nessas paisagens quentes, avermelhadas, chocantes dos quadros da pintora italiana.” Sua postura crítica é luminosa: “Aliás, é Rama quem afirma que ‘pecar é uma das coisas mais importantes da vida, (…) pecar é uma das coisas mais bonitas do mundo’ (RAMA apud VERGINE, 2015: 50), e assim ela se coloca no lugar do pecado para produzir rupturas e desfazer a queda.”

Mônica Campo aborda a produção fílmica das argentinas Lucrecia Martel e Albertina Carri, apreendendo suas linguagens, temáticas e perspectivas, sob a ênfase da subjetividade que: “busca compreender como o ponto de vista das narrativas incide sobre a escrita da história e expressa o tempo presente. O uso inventivo da linguagem e possibilidades do audiovisual marcam a produção destas diretoras e constroem suas especificidades enquanto artistas. Em suas obras, se destacam os temas dos conflitos, tanto aqueles referentes à violência existente no interior da família como também relativos ao trato em sociedade, instigando-nos a pensar sobre a singularidade destas como expressões contemporâneas em nossa história.” Tania Diz, abordando a década de 1970 na Argentina, problematiza revistas conectadas ao ativismo homossexual e feminista e seu espaço na arena política: “En las dos revistas se leen las huellas de la historia que tienen en sus espaldas, el feminismo y la disidencia sexual, a la vez que intervienen con una demanda subversiva en años de represión: aparecer. Tanto la afirmación inclusiva de “somos” como la versión más objetivada de “persona” apuntan a sostener el derecho a ser reconocidos como sujetos políticos y desde allí ambos hacen tambalear la certeza del heterosexismo”. María Laura Rosa apresenta os vínculos políticos e afetivos que permitiram às artistas argentinas Alicia D’Amico e Ilse Fusková elaborarem por meio do corpo, em seus trabalhos fotográficos e em sua militância feminista, críticas culturais contundentes na década de 1980: “(…) cómo la libertad sobre el propio deseo y el cuerpo femeninos podían crear otras imágenes de mujeres, diferentes a las que por entonces circulaban masivamente a través de los medios de comunicación. Los géneros del retrato y el desnudo fueron centrales para ello.”

Elen Biguelini colabora com reflexões sobre as escritoras portuguesas e o debate sobre suas visões da masculinidade no artigo “‘Fiar n’um amigo? é homem. / Tem d’essencia a falsidade’. A masculinidade na obra de Francília (Francisca Paula Possolo da Costa) e Sóror Dolores (Maria da Felicidade de Couto Browne)”; Beatriz Polidori Zechlinski e Stéfani Oliveira Verona, no artigo “Do coelho esperto à ratinha corajosa: representações de gênero nas histórias infantis de Beatrix Potter” exploram como as histórias infantis guardam visões históricas complexas, abordando as dimensões do sonho e da fantasia em Potter, e Viviane Bagiotto Botton, com o artigo “A mulher e o eterno feminino em Rosario Castellanos”, abre espaço para a análise de obras dessa importante escritora mexicana do século XX, em que são denunciados o machismo e as narrativas de violência presentes na América Latina, mas em que também se reivindicam espaços de constituição de si fora das normas sociais estabelecidas:

Meditação no umbral: Não, não é a solução / jogar-se debaixo de um trem como a Ana de Tolstoy / nem preparar o arsênico de Madame de Bovary / nem aguardar nos campos de Ávila a visita do anjo com dardo / antes de atar-se o manto na cabeça / e começar a agir. Nem concluir as leis geométricas, contando / as vigas da cela do castigo / como fez Soror Juana. Não é a solução / escrever, enquanto chegam as visitas, / na sala de estar da família Austen / nem encerrar-se no sótão / de alguma residência na Nova Inglaterra / e sonhar, com a Bíblia dos Dickinson, / debaixo de uma almofada solteira. / Debe haver outro modo que não se chame Safo / nem Mesalina nem María Egipciaca / nem Magdalena nem Cemencia Isaura. / Outro modo ser humano e livre. Outro modo de ser (Castellanos, 1972)

Pensadoras feministas têm demonstrado que as poéticas das mulheres no passado e no presente constituem potentes críticas culturais, instigando a desconstrução de discursos binários e hierárquicos, inventando, sobretudo, narrativas e espaços relacionais para a atualidade. Sua pertinência, assim, repousa tanto nas ricas perspectivas teóricas apresentadas nesse dossiê, quanto no esforço de análise das produções, poéticas e práticas das mulheres no intuito de fazer ver sua potência dinâmica e inventividade de vida.

Integra também o volume uma seção aberta que conta com ricas e estimulantes reflexões, com os artigos de Rodrigo Müller Marques e Jane Márcia Mazzarino, “O audiovisual como produtor de histórias”; Fabiana de Oliveira e Maria Aparecida Avelino, “As abordagens acerca da história ibérica medieval em livros didáticos”; Rodrigo Otávio dos Santos, com o artigo “Medo, paranoia, macarthismo e o século XXI: usando o episódio 22 de Além da Imaginação em sala de aula” e o artigo de Rodrigo Cabrera e Renate Marian van Dijk-Coombes, “Desde el Cielo al Inframundo. Reflexiones sobre las representaciones corporales de Inanna y Dumuzi a partir de la evidencia iconográfica y textual”.

Assim, com grande alegria convidamos os leitores e leitoras a percorrerem as páginas desse Dossiê, abrindo espaço aos domínios transversais da criação, do sonho e do devaneio, fundamentais para nossa existência ética e política, sobretudo na atualidade brasileira, em que vemos ameaçadas conquistas feministas históricas, onde vozes de incitação à violência bradam com força cada vez maior. No entanto, as ironias sutis, as zonas de desterritorialização da arte, os espaços de lucidez e reinvenção de si, oferecidos pelas poéticas feministas, permitem-nos saber que nossas tradições femininas não serão facilmente apagadas e que a história das mulheres artistas é um campo primordial desse modo de sublevação.

Notas

1. Além dos trabalhos aqui apresentados, gostaria de destacar as fundamentais produções de Heloisa Buarque de Hollanda, Ana Paula Cavalcanti Simioni, Roberta Barros e Roberta Stubs, que considero fundamentais para tal debate circunstanciado. Cf. TVARDOVSKAS, L. Dramatização dos corpos: arte contemporânea e crítica feminista no Brasil e na Argentina. São Paulo: Intermeios, 2015.

2. FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

Luana Saturnino Tvardovskas – Departamento de História da Unicamp


TVARDOVSKAS, Luana Saturnino. Introdução. História – Questões & Debates. Curitiba, v.67, n.1, jan. / jun., 2019. Acessar publicação original [DR]

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O que o patrimônio muda (II) / História – Questões & Debates / 2018

Within this issue, readers will find the remaining papers resulting from the session we organized at the 2016 meeting of the Association of Critical Heritage Studies (ACHS), in Montréal, Canada. The first papers of the session were published in early 2018, in volume 66, issue 1, of História: Questões & Debates. While some papers in that issue relate to the practice of archaeology and the management of buried heritage locally, in the Province of Quebec, other papers explore international examples, such as management of heritage in Turkey and the impact of archaeology on the local population in Egypt, a centre for cultural tourism since the 19th century. A methodological case study presents the classification of Chinese large-scale archaeological sites. Several First Nations were present at the meetings, and five of these Nations presented papers or participated in our session. The Waban-Aki Nation contributed to the first set of published papers, presenting its approach to co-managing cultural heritage and natural resources.

The present group of papers brings together a variety of topics surrounding how heritage studies can serve the development of identity. Their contents span community archaeology in Newfoundland and Labrador, a 14th-century mythical figure having built castles in southern France, a hermit living on a small island in the St. Lawrence River, the need for an emic perspective in archaeological research into Huron-Wendat heritage, the Cherokee conception of landscape, the memory of enslavement in French Guiana, and public archaeology in Brazil.

What do these seven papers have in common? First, they all answer the question “What does heritage change?” The answers stem from a thoughtful and purposeful archaeology that considers visitor interest and the development of knowledge. Second, they all relate to the theme of economics, reminding us of a question asked two years ago by economists concerning heritage. They argued that, rather than asking “What does heritage cost?” to a society that values the study of its past, we should be asking “How much does heritage contribute to societal development?” Through the spirit and meaning it gives to a place, heritage can be a means of creating a sense of belonging. Together, economic benefits and a sense of belonging enhance the quality of life.

As we mentioned above, the ACHS meetings are an appropriate venue for bringing together scholars who have chosen to study heritage as a field of critical inquiry. Critical heritage studies challenge conservative views and encourage inclusive, participatory practices while increasing dialogue and debate among researchers, practitioners, and communities. Critical heritage studies also contribute to the decolonization of the humanities through the encouragement and training of communities and through collaborations with indigenous communities (BAIN & AUGER, 2018).

In the current issue, the first paper, by Gaulton and Rankin, discusses the use of archaeology as a catalyst for public engagement. The authors eloquently demonstrate how the Province of Newfoundland and Labrador was the first to ask itself “What does heritage change and what can it bring to the province?” rather than “How much does it cost?” Through conscious community engagement – first at the World Heritage Red Bay site and now at the Ferryland site, which has become an important purveyor of employment – archaeology has been making a difference in Newfoundland and Labrador since 1979. The authors’ most recent community archaeology project, in southern Labrador, has brought a sense of identity and recognition to Labrador Métis communities. Their public engagement “prioritized community-based research agendas, promoting social justice at the local scale by providing education; training; and economic opportunities; and, more recently, paths toward reconciliation with indigenous communities.” Gaulton and Rankin show how each project learned from the previous ones about the economy of heritage studies.

What characterizes the next two papers is that both of these projects in public archaeology were initiated at the request of the local community, both involved a local legend, and both were intended to stimulate the economy through tourism. The archaeology undertaken went beyond simply reinforcing local lore and, instead, documented history properly, through good archaeological practices. Béague challenges the existence of a legend from the Middle Ages which insists that a particular style of castle construction can be attributed to a larger-than-life figure, that of Gaston Fébus.

Béague developed a project in the Béarn region of southwestern France, where the mythical figure was supposed to have built a defensive line as protection against an English invasion. This is an exemplary project in public archeology, as it demonstrates that a scientific approach to archaeology can appeal to a wider audience in search of a sound explanation of history and legend.

As for Savard and Beaudry’s contribution, they took the opportunity that was offered to them, in a project conceived by a well-intentioned group of laypeople, and went beyond proving what was already known about a mythical figure reputed to have lived during the 18th century on an island in the estuary of the St. Lawrence River, opposite the town of Rimouski, Quebec. They used the assignment at hand to show their sponsor that anchoring a regional tourism attraction with a single event or character is problematic. They eventually expanded their mandate to include the interpretation of the prehistory of a wider area. Although the project was short-lived, it did allow for the creation of a field school to train students registered in the history and geography programs at the University of Québec in Rimouski.

Two other papers examine indigenous history. The first paper, by Sampeck, discusses how research on landscape heritage is used as a tool for the development of self-identity, while the second paper, by Hawkins and Lesage, takes the reader one step further in making explicit the need to draw up a research design which tries to take into account an emic perspective when practicing archaeology with First Nations peoples.

The central argument of Sampeck’s paper is that cultural dispossession has worked against the Cherokee Nation. Their culture was almost destroyed during the contact period, when trans-Atlantic colonists took half of their territory. The current collaboration helps restore the Cherokee’s connection to their lands. Spaces that were previously simply considered “empty” have been identified as being crucial to the construction of Cherokee communities.

As exemplified by the first set of papers published in História: Questões & Debates, a theme that has developed over the past decade is the decolonization of archaeology and anthropology. The paper on Huron-Wendat heritage is an example of what the practice of decolonization can mean in archaeology. The authors show that First Nations are now actively making decisions related to the study of their past. Citing Warrick and Lesage (2016), Hawkins and Lesage define the respective limits of competence and responsibility of each: “… archaeology can make meaningful contributions to interpretations about technology, economy, and settlement patterns but […] archaeologists are not qualified to make pronouncements on the ethnic identity of past peoples.” Quoting Warrick and Lesage (2016, p.139), they state, “Indigenous people know best who they are and where they come from.” This position highlights two contrasting, yet valid, paradigms of their history.

The paper by Auger, on the work he and his collaborators conducted on a plantation cemetery in French Guiana, discusses their experience of making archaeology socially relevant. They created a lieu de mémoire, with the intention of memorializing the place occupied by the local population and their ancestors in France’s colonial history and of thus beginning a dialogue about this history. They discuss the dilemma of working on the delicate issue of slavery in the Caribbean and the reaction of the local, French authorities.

The last paper, presented by three Brazilian scholars, Garraffoni, Funari, and de Almeida, focusses on the use of archaeology and material culture as tools of social inclusion in Brazil. The authors discuss the history of Brazilian archaeology across various political regimes and examine how archaeology can be “instrumentalized” to suit a specific political vision. During the 20th century, archaeology in Brazil was heavily influenced by European practices. Today, Brazil is strongly invested in developing its own brand of public archaeology, which strives to be inclusive, while being aware of the present political climate.

Our Ontario colleague Gary Warrick, who was present at the ACHS meetings in Montréal, has kindly prepared a discussion that addresses the conference’s main question: “What does heritage change?” Covering both sets of papers, this discussion is presented at the end of this issue. He has grouped the papers into two themes: ownership and management of archaeological heritage and community-based archaeology. While his discussion highlights both strengths and challenges facing our discipline, Warrick rightfully reminds us that “archaeological heritage is best conserved, examined, and interpreted through collaborative partnerships of archaeologist and community members, in which ownership […] and production of knowledge is shared.”

Acknowledgments

We offer our sincere acknowledgment to the organizing committee and to Lucie K. Morrisset, chair of the 2016 ACHS meetings, for the invitation to participate. The CELAT research centre of Université Laval, Québec, and the Groupe de recherche en archéométrie at Université Laval also generously supported our initiative. We wish to thank all the participants in our session for the lively discussions and for preparing their contributions to these two issues of História: Questões & Debates in a timely manner. Finally, we wish to mention the support we received from the editorial board of História: Questões & Debates while preparing the papers for publication; it has been a wonderful collaboration.

Referências

BAIN, Allison, and AUGER, Réginald. Introduction. História: Questões & Debates, n. 66 (1), 2018, p. 7–9.

WARRICK, Gary, and LESAGE, Louis. The Huron-Wendat and the St. Lawrence Iroquoians: New Findings of a Close Relationship. Ontario Archaeology, n. 96, 2016, p. 133–143.

Réginald Auger

Allison Bain – Professors of Archaeology, CELAT, Université Laval, Québec, QC, CANADA, G1V 0A6. E-mail: [email protected]


BAIN, Allison; AUGER, Réginald. Introduction. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.66, n.2, jul./dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

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O que o patrimônio muda (I) / História – Questões & Debates / 2018

This collection of papers, featured in two issues of História: questões e debates, is the result of discussions held at the 2016 Association for Critical Heritage Studies (ACHS) conference in Montréal, Canada. Over two days, participants from seven countries and four indigenous nations (referred to as First Nations in Canada) presented a diverse array of papers. These meetings were an appropriate venue to bring together these scholars, as the ACHS strives to study heritage as a field of critical inquiry, challenging more conservative views, while encouraging inclusive, participatory practices. The ACHS Manifesto prepared for the 2012 conference suggests “the integration of heritage… with studies of memory, public history, community, tourism, planning and development… while increasing dialogue and debate between researchers, practitioners and communities.” Furthermore, it seeks to democratise “heritage by consciously rejecting elite cultural narratives and embracing the heritage insights of people communities and cultures that have traditionally been marginalised in formulating heritage policy… thereby including diverse non-Western cultural heritage traditions.”[1] Like many archaeologists, we feel that the ACHS Manifesto expresses how we hope archaeology will evolve as a discipline. Since the 2000s, an increasing amount of scholarship is devoted to decolonising the humanities, encouraging training and collaboration with First Nations (ATALAY, 2006; CHALIFOUX and GATES ST-PIERRE, 2017; LYDON and RIZVI, 2010; SAILLANT et al. 2011), as well as creating a more collaborative, or public, archaeology (see the journal Public Archaeology; MATSUDA and OKAMURA, 2011; MOSHENKA, 2017; SKEATES et al., 2012). While most archaeology is robustly multi-disciplinary, a decidedly Western narrative continues to dominate archaeological practice.

In proposing a session that corresponded to the ACHS 2016 theme What does heritage change? and in the spirit of the ACHS 2012 Manifesto, we argued that archaeology, in going above and beyond the traditional goals of research and post-excavation analyses, may indeed contribute to education and to the creation of identities and communities. Our session began with papers on how the practice of archaeology is managed and legislated. Regardless of planned outcomes, the legislation and management of buried heritage is a key part of the archaeological process. Archaeological sites are managed by multiple forms and branches of legislation at the local, regional, provincial / state, and national levels. Competing and at times conflicting interests, poor funding, and weak legislation may hinder the proper integration of archeological heritage in the planning and management of cities, First Nations lands, outlying regions slated for development, and parklands. Four papers and two case studies present some of these shared challenges while also highlighting archaeological success stories.

Desrosiers’ paper outlines how archaeology is legislated and practiced in the Canadian province of Québec, while Moss discusses management at the municipal level in the city of Québec. They discuss the experiences of archaeologists in a legislative setting that is ambiguous about the roles and responsibilities of different stakeholders. Tanaka’s paper focuses on the complex management of archaeology at the site of Patara, Turkey, and explains how a variety of government bodies apply their specific legislations to the site. The perception of what is an archaeological site has evolved since excavations began at Patara, and Tanaka’s paper grapples with these diverging narratives. Treyvaud and her colleagues from the Abenaki Nation in southern Québec explain the Waban-Aki approach to comanaging cultural heritage and natural resources. Incorporating and exploring a variety of research methodologies, they view archaeology as a means to study the Nation’s past as well as to affirm its presence today.

This volume concludes with the presentation of two case studies. Wang and Nakamura discuss the relatively recent classification of Chinese large-scale archaeological sites and presents us with three examples, while Hesham and Baller focus on Luxor, Egypt, and how archaeology has impacted both the local community and the cultural landscape since the nineteenth century. Their papers propose concrete recommendations for improved management and legislation of these sites that, if applied, would improve the lives of local community members, while also respecting the need to maintain and interpret archaeological sites deemed to be significant symbols of national heritage.

Acknowledgments

We wish to thank all participants in our session and for their lively discussions and their contributions to these volumes. Warm thanks also go to Lucie Morrisset, Université de Québec à Montréal, and the Chair of the 2016 ACHS meetings for the invitation to organize our session. The CELAT research centre of Université Laval, Québec, and the Groupe de recherche en archéométrie at Université Laval generously supported this initiative.

Nota

1. Association for Critical Heritage Studies, 2012 Manifesto, www.criticalheritagestudies.org / history /

Referências

ATALAY, Sonya. Indigenous Archaeology as Decolonizing Practice. American Indian Quarterly, n. 30 (3 / 4), pp. 280-310, 2006.

CHALIFOUX, Éric and Christian GATES ST-PIERRE. Décolonisation de l’archéologie : émergence d’une archéologie collective. Salons Érudit, 2017. salons.erudit.org / 2017 / 08 / 01 / decolonisation-de-larcheologie /

LYDON, Jane and Uzma Z. RIZVI (eds.) Handbook of Postcolonial Archaeology. New York: Taylor and Francis, 2010.

MATSUDA, A., and OKAMURA, K. Introduction: New Perspectives in Global Public Archaeology. In: A. Matsuda and K.Okamura, (eds). New Perspectives in Global Public Archaeology. London: Springer, pp. 1–18, 2011.

MOSHENSKA, G. Key Concepts in Public Archaeology. London: UCL Press, 2017.

SAILLANT, Francine, KILANI, Monder and Florence Graezer BIDEAU, (eds.). Le Manifeste de Lausanne : pour une anthropologie non hégémonique. Montréal, Québec : Éditions Liber, 2011.

SKEATES, Robin, MCDAVID, Carol and J. CARMAN (eds.), The Oxford Handbook of Public Archaeology. Oxford: Oxford University Press, 2012.

Allison Bain – Professors of Archaeology, CELAT, Université Laval, Québec, QC, CANADA, G1V 0A6. E-mail: [email protected]

Réginald Auger


BAIN, Allison; AUGER, Réginald. Introduction.História: Questões e Debates. Curitiba, v.66, n.1, jan. / jun., 2018. Acessar publicação original [DR]

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Histórias da moda / História – Questões & Debates / 2017

No final dos anos 1950, antes mesmo da publicação de O sistema da moda em 1967, o semiólogo francês Roland Barthes produziu alguns textos que tratavam do tema [1]. Ainda que seu objetivo em grande medida fosse, a partir dessas reflexões, começar a esboçar o método de análise textual que destrincharia no referido livro, algumas questões colocadas por ele nos artigos que escreve no período, são bastante pertinentes para pensar e entender os desenvolvimentos da historiografia de moda no século XX.

Em História e Sociologia do Vestuário, publicado em 1957 na revista dos Annales – cuja importância para as transformações ocorridas no pensamento historiográfico é bastante conhecida – ,Roland Barthes reclamava, por exemplo, do caráter inventariante das “histórias da moda” produzidas até então. Naquele momento, os livros que tratavam do vestuário por uma perspectiva histórica tinham por preocupação central recensear as transformações ocorridas nas roupas ao longo dos séculos, sem se beneficiarem, ainda, das “transformações ocorridas nos estudos históricos que ocorreu na França há uns trinta anos” conforme apontava o semiólogo. Barthes pontuava também que “ainda está faltando toda uma perspectiva institucional da indumentária, em termos de dimensão econômica e social da História, de relação entre o vestuário e os fatos de sensibilidade, conforme definidos por Lucien Febvre, de exigência de uma compreensão ideológica do passado, como a que pode ser postulada pelos historiadores” [2].

O semiólogo, que morreu em 1980, não viu a incorporação de seus questionamentos à produção historiográfica. Uma vez que é a partir dessa década que a historiografia sobre o tema sofrerá grandes transformações deixando de lado o recenseamento para analisar a moda em conexão com a cultura, o consumo, as relações sociais e os papeis de gênero. Neste sentido, podem ser considerados seminais os trabalhos Le travail des apparences ou les transformations du corps féminin XVIIIe-XIXe siècle, de Philippe Perrot, e La culture des apparences. Essai sur l’Histoire du vêtement aux XVIIe et XVIIIe siècles (A cultura das aparências: uma história da indumentária, séculos XVII-XVIII), de Daniel Roche, publicados respectivamente em 1984 e 1989, produzidos na França, e Adorned in Dreams: fashion and Modernity (Enfeitada de Sonhos) de Elizabeth Wilson lançado em 1985 na Inglaterra [3].

A partir de então, a produção historiográfica sobre moda cresceu e se diversificou rapidamente. De modo que em 1997, o historiador britânico Christopher Breward observava: “A roupa e a moda finalmente se tornaram veículos de debate que agora estão no centro dos estudos em cultura visual e material” [4]. A colocação, ainda bastante atual, aponta para a multiplicidade que passa a caracterizar a produção historiográfica em moda, a partir de abordagens e fontes diversificadas como a imprensa, as roupas propriamente ditas, a fotografia, a publicidade, os inventários, entre muitos outros. De tal modo, que hoje não podemos falar em “uma” história da moda, mas em Histórias da Moda.

Este dossiê tenta apresentar um pouco dessas Histórias da Moda, reunindo textos de pesquisadores brasileiros e estrangeiros que tratam de temas como indumentária e cultura material, a imprensa e a produção de significados para as roupas e os indivíduos que as vestem, as construções memoriais acerca do comércio de moda, o questionamento da própria “história da moda”, produção, acervo e atuação de arquivos de moda, as relações entre moda e interesse econômicos.

Abre este número o relevante artigo de Alessandra Vaccari, Moda na Autarquia: políticas de moda na Itália fascista nos anos 1930. Nele, a historiadora investiga os aspectos econômicos das políticas de Mussolini, examinando como a moda coloca em confronto tanto a construção de uma nova imagem da nação, quanto as formas de desobediência explícita ou implícita ao regime fascista, revelando-se, aqui particularmente, um objeto fascinante. Vale destacar a densa pesquisa documental e a análise da autora de como as políticas autárquicas serão importantes para conformar uma estética e uma metafísica da moda italiana, colaborando vivamente para o seu sucesso no pós-guerra.

Moda e política também estão presentes no texto de Maria Claudia Bonadio, Chatô: o Rei do Algodão, que aborda um tema ainda pouco estudado: o papel do empresário Assis Chateaubriand na promoção da moda brasileira no início da década de 1950. A historiadora analisa como as ações de Chatô visando associar matériaprima nacional à alta-costura francesa – que incluíram trazer ao Brasil Marcel Rochas, Jacques Fath e Elsa Schiaparelli – se afastavam das propostas nacionalistas que costumeiramente marcavam a sua atuação. Para Bonadio, essas estratégias buscavam chancelar a produção de algodão de fibra longa que, então, se concentrava na Paraíba, onde Chateaubriand atuava como senador e, provavelmente, mantinha investimentos econômicos.

Os três artigos seguintes, cada um a seu modo, evidenciam as revoluções promovidas pela indumentária no período compreendido entre o final dos anos 1950 e o dos anos 1960, bem como os sentidos sociais da moda e a sua associação com a transgressão, num sentido amplo. Em Aniki Bobó: desbunde e psicodelia nos anos de chumbo, Maria do Carmo Rainho investiga a trajetória de uma das mais criativas lojas cariocas dos anos 1960-1970. A Aniki Bobó, criada em 1968, por Celina Moreira da Rocha, se diferenciava tanto das butiques inauguradas no Rio de Janeiro nas décadas anteriores como daquelas que emergiram no final dos anos 1960 e, que, assim, como ela, emulavam as lojas de Londres. A partir da análise dos produtos comercializados, do público consumidor e de sua proprietária, a historiadora discute temas como gênero, sexualidade e política. Os modos como a memória sobre a butique foram e são construídas também são abordados.

Maíra Zimmerman, em A criminalidade transfeita em estilo: Caso Aída Curi e os irmãos Kray na passagem dos anos 1950-60 analisa a cultura de consumo neste período, relacionando crime, moda e mídia. Num linha cara à história comparativa, Maíra estuda a repercussão da morte da jovem Aída Curi, ocorrida em Copacabana, e os atos criminosos dos irmãos Kray, na Inglaterra, examinando os padrões de elegância desses criminosos e como a vilania se transmutou em estilo, em grande medida, graças à atuação da mídia.

Roupas para mamães: corpo e gravidez nas representações para a maternidade na revista Manequim (1963), de Ivana Similli, se dedica às representações da maternidade em editoriais de moda, notadamente, na edição especial “Futura mamãe”, da revista Manequim, de 1963. A autora aponta como a gestação foi incorporada pela moda e como esta produziu e difundiu representações para o corpo grávido. No artigo são analisados, ainda, os modos como as transformações corporais definiram linhas de indumentárias apropriadas à gestação naquela década e como estas assimilaram tendências e estilos da moda jovem, colaborando para a ampliação do consumo.

O instigante texto de Vania Carvalho, Quando sonhar está na moda – a nostalgia do feminino na cultura de consumo examina os filmes de princesas de Walt Disney, como Branca de Neve e os Sete Anões (1937) e Cinderela (1950) para discutir como os repertórios materiais e visuais da aristocracia do século XVIII foram reapropriados pela sociedade moderna ocidental, no sentido de estabelecer clivagens entre os gêneros masculinos e femininos. Mais do que isso, ela discute como a distinção e a hierarquização dos gêneros, deram origem a novos territórios para o cultivo de subjetividades sexualizadas.

Rita Andrade em Vestires indígenas em bonecas karajá: argumentos para uma história da indumentária no Brasil reflete sobre os modelos de pensamento que deram origem à categoria “indumentária indígena” na história da indumentária no Brasil e sobre os modos como a formação dessa tipologia de coleções nos museus pode interferir na construção de valores éticos e estéticos dos modos de vestir. Para tanto, ela analisa a indumentária indígena nas bonecas karajá, as ritxoko. O trabalho, além da contribuição ao campo da metodologia de pesquisa em indumentária, entre outras, chama a atenção para a necessidade da construção de uma história da indumentária brasileira que considere a cultura material e as visualidades.

Fecha o dossiê, o texto de Fred van Kan, Preserving Dutch Fashion Archives. The Fashion Network Arnhem. O autor, que dirige o Arquivo de Gelders, na Holanda, apresenta um projeto de preservação dos acervos da moda holandesa, intitulado Modekern, que reúne o Museu de Arte Moderna de Arnhem, o Instituto de Artes ArtEz e o Arquivo de Gelders. A proposta do Modekern é trabalhar em rede, com cada parceiro tendo uma responsabilidade específica. O Arquivo de Gelders conserva e preserva os registros de importantes designers de moda holandeses, incluindo esboços, experimentos com tecido e portfólios. A academia de moda do Instituto de Artes ArtEz utiliza esses registros para pesquisa e educação. Quanto ao Museu de Arte Moderna de Arnhem, organiza exposições baseadas nos arquivos e no uso de objetos de moda.

O presente número é composto ainda por quatro textos de temática livre que compõem a seção Artigos e uma Resenha. O primeiro deles Virgem Senhora Nossa Mãe Paradoxal, de autoria de Paola Basso Menna Barreto Gomes Zordan, analisa as diferentes séries de sentido que convergem na figura de Nossa Senhora, com vistas a construir outros modos de pensar o feminino a partir da semiologia barthesiana e as invaginações e o pensamento genital de Gille Deleuze.

Na sequência, o texto de André Luiz Moscaleski Cavazzani e Sandro Aramis Richter Gomes, Família, hierarquia e imigração portuguesa: trajetórias e atividades econômicas dos Viera dos Santos (Vila de Morretes e Paranaguá, Província de São Paulo, 1812- 1848) investiga a trajetória de quatro indivíduos da família Vieira dos Santos, os quais habitaram os municípios de Morretes e Paranaguá, localizados no litoral do atual Estado do Paraná, na primeira metade do século XIX. O objetivo principal é evidenciar as dificuldades econômicas e as restrições de oportunidades sociais vivenciadas pelos descendentes de imigrantes portugueses que se estabeleceram, a partir do fim do século XVIII, em áreas litorâneas do Brasil Meridional.

Observar as condições de emergência para constituição de um sujeito gaúcho, que é tomado como herói a partir de alguns acontecimentos históricos e da música pampeana é a proposta do artigo A Natureza e o Gaúcho Herói nas tramas da história: tensionamentos foucaultianos, que tem por autores Virgínia Tavares Vieira e Paula Corrêa Henning. Como o título anuncia, as análises desenvolvidas no texto baseiam-se no pensamento do filósofo francês Michel Foucault e, em especial, no conceito de Genealogia, uma vez que ele objetiva problematizar a fabricação de um espaço geográfico e cultural marcado por um ideal de beleza e romantismo.

Encerrando a seção de artigos, apresentamos o texto O filme As Sufragistas e as transformações nos modos de vida pela militância política: deslocamentos subjetivos, sacrifício do corpo e afinidades feministas de Priscila Piazentini Vieira, que debate As Sufragistas, lançado em 2015, e dirigido por Sarah Gavron. O filme é analisado especialmente a partir do jogo que as sufragistas praticam com os direitos, tendo como principal objetivo aprovar o voto das mulheres na Inglaterra no início do século XX e ainda as transformações subjetivas pelas quais passam ao entrarem para a militância – em especial em suas relações com os maridos, patrões e filhos. A importância dos usos do corpo das sufragistas, tanto de forma sacrificada nas fábricas, quanto como forma de militância também é foco da análise.

Fechando o presente número apresentamos a resenha do livro Fashion victims: the dangers of dress past and present de Alison Matthews David, publicado em 2017 pela Bloomsbury Visual Arts e escrita por Luz Neira Garcia. Em seu texto, a pesquisadora deixa claro para o leitor, de que maneira a obra analisada levanta novos questionamentos acerca da história e produção contemporânea de objetos do vestuário, observando que, longe de ser apenas uma futilidade, as modas e sua produção podem gerar inúmeros riscos para os consumidores e também para aqueles que trabalham nas confecções e em outros setores do fabrico de vestuário.

Notas

1. BARTHES, Roland. Sistema da moda. São Paulo, Companhia Editora Nacional / Edusp, 1980. A versão francesa denominada Système de la mode foi publicada em 1967 pela editora Seuil.

2. BARTHES, Roland. História e sociologia do vestuário. In: Inéditos. Vol. 3: imagem e moda. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 258.

3. Os livros mencionados além de receberem diversas reedições, também foram publicados em mais de um idioma, o que indica o impacto e a repercussão dos trabalhos. O livro de Philippe Perrot curiosamente foi publicado inicialmente em italiano (Il sopra e il sotto della borghesia. Storia dell’abbigliamento nel XIX secolo) em 1982, antes mesmo de sua edição em francês. A obra recebeu edições em alemão (Werken aan de schijn; de veranderingen van het vrouwelijk lichaam in de achttiende en negentiende eeuw, Nijmegen, SUN, 1987) e inglês (Fashioning the Bourgeoisie: A History of Clothing in the Nineteenth Century, Princeton University Press, 1994, com reedição em capa dura em 1996). O livro de Daniel Roche foi traduzido para o inglês e publicado sob o título The culture of clothing: Dress and Fashion in the ‘ancien régim’ em 1994, pela Cambridge University Press e recebeu diversas reimpressões. A obra também foi publicada em português pela editora Senac-SP, que lançou o livro em 2007 sob o título A cultura das aparências: uma história da indumentária, séculos XVII-XVIII. O trabalho de Elizabeth Wilson teve a primeira edição publicada em 1985 pela editora inglesa Virago, a segunda edição publicada pela University of California Press em 1987 e recebeu em 2013 uma edição revisada e ampliada publicada pela I.B.Thauris. O livro foi editado ainda em alemão (Klædt i drømme: om mode, Tiderne Skifter, 1987), português (Enfeitada de sonhos, Edições 70, 1989) e italiano (Vestirsi di sogni. Moda e modernità, Franco Angelli, 2008).

4. Traduzido de: Clothing and fashion have finally become a vehicle for debates that now lie at heart of visual and material culture studies. BREWARD, Christopher. Cultures, identities: fashioning a cultural approach to dress. In: Fashion Theory, vol. 2, issue 4, December 1998.

Maria Claudia Bonadio e Maria do Carmo Rainho


BONADIO, Maria Claudia; RAINHO, Maria do Carmo. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.65, n.2, jul./dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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História da assistência / História – Questões & Debates / 2017

Este dossiê reúne pesquisadores do Brasil, da Argentina, de Portugal e da Espanha. Coloca em pauta um assunto relevante, que carece de maior discussão na historiografia brasileira, ainda que muito se tenha produzido sobre isso nas Ciências Humanas e Sociais – a História da Assistência. Entende-se por assistência o ato de apoiar, socorrer, ajudar, auxiliar os necessitados. Desde tempos remotos, as adversidades e vicissitudes da vida mobilizaram indivíduos e grupos sociais a prestar assistência aos que se encontravam em situação de risco e vulnerabilidade.

No Ocidente, a assistência aos desvalidos, fruto da caridade, passou a ser uma questão central do cristianismo. As novas formas de espiritualidade e devoção estimulavam os cristãos a imitarem a pobreza e humildade de Cristo e a vivenciarem a sua fé através da prática da caridade. Segundo Maria Antónia Lopes, entende-se por caridade o bem que se faz aos filhos de Deus por amor ao Seu nome – “é, pois, porque se ama Deus que se faz o bem àqueles que Ele ama”. [1] O pobre era então o pobre de Deus, revestido de um manto santificado, e atribuía-se às ações benemerentes o mesmo caráter sacro.

Na Europa medieval a Igreja pregava o desapego aos bens terrenos como via de salvação da alma, condenando a usura, o lucro e o comércio. A pobreza voluntária era então uma condição desejável, mas na impossibilidade de se contrapor e condenar totalmente os ricos, a Igreja lhes oferecia um caminho para a salvação após a morte: a prática da caridade para com os pobres. A caridade poderia ser praticada em espaços públicos, através da distribuição de esmolas, da visitação aos pobres em seus domicílios ou em espaços institucionais, em grande parte, multifuncionais. [2] Além da promessa de salvação, os favores e o cuidado prestados aos pobres conferiam prestígio social aos mais abastados. Conforme destaca Castel, a economia da salvação estabelecia situação vantajosa tanto para os pobres quanto para os ricos.[3]

Entre os séculos XIII e XV, todavia, observou-se uma crescente pauperização da população europeia, decorrente de guerras, epidemias, crises econômicas e migrações internas. A pobreza tornou-se então ameaçadora e incômoda. O pobre passou a ser visto como uma ameaça à ordem e à higiene urbana, à integridade dos ricos e da propriedade privada. A partir de então a caridade deixou de ser indiscriminada, passando a ser dispensada apenas aos que fossem considerados merecedores.

Com a expansão do capitalismo, aprofundou-se o debate sobre os pobres merecedores e não merecedores de auxílio. A pobreza passou a ser encarada como uma condição daqueles que nada faziam para superá-la. Havia mecanismos de repressão para os que viviam no ócio, na vadiagem, cujo comportamento afrontava a lei e os bons costumes. Eram tolerados, todavia, os que por alguma incapacidade física ou de saúde não podiam trabalhar, os que estavam temporariamente desempregados ou que, mesmo trabalhando, careciam de recursos pecuniários suficientes para prover a própria subsistência.

Como bem assinala Geremek, “em épocas diferentes, muda a função principal da imagem do pobre, altera-se a ordem dos valores em que ele está inscrito, modifica-se a avaliação ética e estética dessa personagem”.[4] As divergentes percepções do pobre e da pobreza informaram as distintas atitudes em relação a estes. Ao traçar o perfil do “pobre merecedor” em contraste com aqueles que não são dignos da caridade ou assistência, no Portugal moderno, Laurinda Abreu argumenta que a delimitação do conceito foi “um elemento estruturante das políticas sociais da Europa moderna”.5 Durante o século das Luzes, no entanto, buscou-se compreender as causas da pobreza estabelecendo-se uma relação desta com a organização socioeconômica, atribuindo-se ao Estado o dever público de prover a assistência na perspectiva da beneficência, não da caridade. Conforme explica Lopes, “beneficência que procedia da filantropia”, ou seja, do “amor aos homens, e não da caridade, o amor a Deus”.6

Historicamente, os pobres, os peregrinos, os enfermos, os prisioneiros, as viúvas, as mães e recém-nascidos, os enjeitados, os órfãos, os velhos, os loucos, dentre outros considerados incapazes, foram os alvos preferenciais das ações assistencialistas. Contudo, assim como os conceitos de pobre e pobreza são complexos e dinâmicos, os alvos da assistência assumiram maior ou menor importância, conforme o contexto em que estavam inseridos os sujeitos ou grupos envolvidos no processo de prestar e receber assistência. Idealizadas e dirigidas por indivíduos, grupos ou entidades, as ações e instituições benemerentes ou filantrópicas surgiam e / ou se extinguiam conforme a conjuntura política, econômica e sociocultural e os valores vigentes em diferentes espaços e temporalidades.

O texto de escrito por Cristina de Cássia Pereira Moraes, Lara Alexandra Tavares e Rildo Bento de Souza, intitulado Três tempos de caridade, assistência e filantropia em Goiás (séculos XVIII ao XX), apresenta uma discussão sobre pobreza, caridade, assistencialismo e filantropia calcada nas distintas realidades da antiga capital Vila Boa e da moderna e atual Goiânia. Para o período colonial, os autores destacam o papel assistencialista exercido pelas confrarias e irmandades, na medida em que seus membros se associavam para fazer alguma obra de piedade ou caridade e / ou assumiam o dever de oferecer algum tipo de amparo e auxílio mútuo aos seus integrantes e familiares. Já no período que se estende do Império à República, os autores se dedicam a analisar o papel caritativo exercido pela Sociedade São Vicente de Paulo. Os Vicentinos chegaram à Goiás em 29 de abril de 1885. Em contexto de romanização da Igreja Católica no Brasil, a Sociedade constituiu dezenas de conferências, que cuidavam, cada uma, de certo número de pobres, mendigos e indigentes, desde que fossem católicos. Para conseguir doações dos mais abastados, lançavam mão da economia da salvação ao afirmarem que “o pobre é nossa riqueza”, lembrando também que a prática da caridade para com os pobres era uma garantia de bom lugar no céu, visto que “quem dá aos pobres, empresta a Deus”. Para caracterizar a ação da filantropia em Goiás, em contraste com a ação caritativa exercida pelos Vicentinos, os autores trazem à luz o médico José Netto de Campos Carneiro, conhecido como o “pai dos pobres” na antiga capital goiana. Único cirurgião em exercício, na época, na cidade de Goiás, a visibilidade adquirida no exercício da medicina e da filantropia conferiu prestígio à personagem, que assumiu cargos administrativos e políticos importantes como os de inspetor de higiene e intendente municipal. A morte do benemérito em 1921 não encerra o seu protagonismo na filantropia vilaboense e revela, segundo os autores, uma preocupação com a sua memória. O médico deixa em testamento bens destinados à fundação de um orfanato para acolher meninas pobres. Os autores demonstram que o Orfanato São José, ao acolher e educar meninas pobres, órfãs e saudáveis, se tornou mais que uma instituição beneficente, mas também um fornecedor de empregadas domésticas disciplinadas para os lares das elites de Goiás.

Já no artigo Entre a caridade e a assistência: a criação e o funcionamento do hospital da caridade em Viana do Castelo (séculos XVIII-XIX), Alexandra Esteves debruça-se sobre a assistência a velhice em Portugal, campo pouco debatido no âmbito historiográfico. Ao discorrer sobre os estudos da pobreza e da velhice a autora demonstra como este recorte geracional vai gradativamente tornar-se uma problemática assistencial / caritativa para os mais bem aquinhoados que viam no auxílio a este pobre merecedor um dos possíveis caminhos para salvação de sua alma. Centrada na experiência do Hospital de Viana do Castelo e sua irmandade mantenedora, a autora demonstra como este aparato assistencial torna-se um dos locus privilegiado dos cuidados com a velhice, que ao longo do século vai se transformando e expandindo suas atribuições com o intuito de se adaptar as novas demandas socioeconômicas e políticas urgidas do período analisado. Esteves ainda destaca a importância desta instituição hospitalar na economia da salvação local, pois financiar e manter as atividades da entidade encurtava o caminho para o céu e capitalizava em prestígio social, tornando sua irmandade uma importante ferramenta de poder e alvo de disputas. Calcada em um rigoroso trabalho empírico a autora demonstra o alargamento das funções hospitalares por meio do atendimento a um conjunto multifacetado de indivíduos, deixando de preparar para a boa morte para centrar-se no prolongamento da vida.

De outro lado, o texto de Alcileide Cabral do Nascimento, intitulado Entre a caridade e o saber médico: os embates em torno da assistência às crianças abandonadas no Recife (1840-1860), traz uma acurada análise acerca da assistência à infância considerada desvalida na cidade de Recife em meados do século XIX. Entendida como um espaço urbano caótico e de difícil controle salutar, no qual os problemas sociais se avolumavam ano após ano, a cidade materializava em sua estrutura social e edificada os contrastes da modernidade, medo das epidemias, dos amontoados, dos esgotos, do ar nauseabundo e dos indivíduos considerados desviantes, que por sua vez, poderiam colocar em xeque a ordem social vigente. Dentre os personagens lôbregos presentes no imaginário burguês, a autora centra suas análises no problema das crianças abandonadas e sua relação com a roda dos expostos. Erigida para salvaguardar a vida das crianças – bem como a moral familiar – impedindo-as de se transformarem em futuros transgressores, a roda dos expostos foi paulatinamente se transformando em um problema de salubridade que exigia a intervenção médica. O embate entre caridade e ciência, representada pela medicina-higienista, se deu não sem percalços, como bem analisa a autora, culminando no Regulamento dos Estabelecimentos de Caridade de 1847 que instituía a regulação dos mesmos pela corporação médica que vigiava, ordenava e purgava sua esfera de atuação. Controlando e normatizando a vida das crianças, das mulheres, das amas de leites e das famílias pobres, que faziam usos da Roda dos Expostos, o saber médico tornou-se hegemônico, responsabilizando-se pelo porvir da população pueril. Como relata a autora, este processo, contudo, não foi automático e tampouco passivo, mas sim, permeado por disputas e resistências que movimentam as relações sociais.

Em “Por un beso de tu boca”: assistência à saúde bucal infantil na revista Salud y Sanidad da Colômbia (década de 1930) Iranilson Buriti analisa os discursos médico-higienistas de profissionais dentistas veiculados em um periódico especializado intitulado Salud y Sanidad pertencente ao Departamento Nacional de Higiene de Bogotá. Tendo como alvo principal a família e a infância estes profissionais da saúde buscaram cercar a população de discursos normatizadores que visavam criar um corpo social hígido capaz de contribuir com o desenvolvimento nacional. Criar indivíduos saudáveis, disciplinados e produtivos era indispensável para uma nação que se queria construir como moderna, por isso cada parte do corpo, desde a mais tenra idade, deveria ser escrutinada com a finalidade de impor sobre ele um saber / poder que promoveria a ordem e afastaria todas as possibilidades de fragilização da vida, do biológico. Neste contexto, de acordo com as análises do autor, a saúde bucal das crianças fazia parte de um projeto civilizador do qual a mãe e a escola eram peças fundamentais, pois presentes em diferentes momentos da infância, ambas construiriam um ambiente bucal saudável envolvendo a língua, os lábios, o hálito, a manducação e o prazer em consonância com os modelos emergentes de civilidade.

Em Infância e morte na Região Carbonífera: os discursos médicos sanitários sobre a mortalidade infantil no sul de Santa Catarina, Ismael Gonçalves Alves apresenta os discursos sobre a mortalidade infantil, produzidos pela corporação médica da Região Carbonífera Catarinense. Partindo do crescimento populacional gerado pelas atividades mineradoras e das problemáticas ocasionadas pela falta de salubridade das vilas operárias, que geravam baixas do trabalho e uma série de problemas sanitários, o autor analisa a atuação dos médicos locais no processo de higienização da região. Escolhendo como alvo principal de suas ações a criança – futuros trabalhadores – os médicos locais instituíram uma série de práticas normativas e racionais que deveriam ser aplicadas no ambiente familiar. Condenando as tradicionais práticas de cuidados infantis executadas pelas mulheres, e não a pauperização provocada pelo processo de industrialização, os médicos instituíram uma série de discursos que culpabilizavam as mães pelos altos índices de mortalidade infantil, requerendo, desta forma, uma drástica mudança de hábitos pautada nos mais modernos comezinhos da medicina. Para o autor, consideradas ignorantes e apegadas na tradição, as mães foram alvo de um indicioso processo de aculturação que visava medicalizar a maternidade, transformando as mulheres em aliadas dos médicos e únicas responsáveis pelo bem estar de sua prole.

Já o artigo dedicado a atuação associações femininas da província de Buenos Aires La organización normativa de la Comisión Central de Señoras Cooperadoras Salesianas: género y sociabilidad. Argentina, 1900-1926, de Lucía Bracamonte, analisa as relações e atividades institucionais das cooperadoras Salesianas na assistência aos necessitados na Capital Federal. Por meio de um atencioso trabalho empírico com a documentação produzida pela Pia União, Bracamonte desvela os limites de gênero impostos às práticas assistências desenvolvidas pelas mulheres. Através das relações instituídas entre sacerdotes e cooperadoras o artigo desvela as tensões, conflitos e consensos estabelecidos em torno da construção de seus regulamentos e sua efetivação no campo prático, estabelecido por um processo contínuo de negociação entre associadas e representantes eclesiásticos. Ademais, as normas e os regulamentos analisados descortinam, em partes, as práticas e sociabilidades desenvolvidas entre mulheres de classe média, que no âmbito associativo reproduziam normas e valores burgueses que deveriam reger sua atuação na esfera pública. Centrada nessas relações, a autora demonstra como a participação destas mulheres no âmbito assistencial deu-se por meio de um recorte de classe e gênero, mas que apesar das restrições e das fortes amarras que delimitavam seu espaço de atuação dentro da estrutura caritativa, utilizaram-se das normas e regulamentos para expandir sua ação social. Assim, manuseando elementos jurídicos, contábeis e políticos, atinentes a agremiação, estas mulheres extrapolaram os limites estabelecidos transformando a prática assistencial num gatilho de protagonismo social.

Segue por caminhos semelhantes o artigo proposto por Amalia Morales Villena e Soledad Vieitez Cerdeño intitulado Intervención femenina en el mundo rural franquista (España, 1939- 1975). Las cátedras ambulantes de la Sección Femenina de la Falange Española y su labor de divulgación sanitaria y social. Em seu texto, as autoras analisam a participação das mulheres no trabalho assistencial durante o período ditatorial espanhol. Para isso, elencaram como foco principal de sua investigação a Sección Feminina de la Falange (SF), agremiação política de extrema direita que buscava reunir em torno de ideais nacionalistas e conservadores o maior número mulheres possível na construção de uma nova Espanha – moldada pelo discurso franquista. Enredada por um discurso de gênero conservador a SF foi responsável por difundir a ideologia nacional-sindicalista junto às mulheres e suas famílias e, para tal utilizou-se do trabalho assistencial como instrumento de persuasão. Levando a assistência aos mais recônditos cantões da Espanha a SF tornou-se responsável por reordenar e moralizar as relações familiares, adequando-as as necessidades do novo regime vigente. Por meio de cursos populares, noções de puericultura, dietética, trabalhos manuais, entre outros, as falangistas criaram um espaço propício e legítimo de intervenção, alinhando, formando e instrumentalizando outras mulheres a cumprir a função de anjo do lar e responsável unidade moral de seu grupo familiar. No entanto, como ressaltam as autoras, apesar de ser um espaço de gênero controlado a SF possibilitou a suas afiliadas participar da esfera pública, utilizando-se do trabalho assistencial como uma ferramenta de inserção social, que por sua vez, criava um espaço autorizado de poder.

Como se pode perceber, tanto na América Latina como nos países ibéricos a assistência era ofertada por diversas entidades caritativas e / ou filantrópicas, como as confrarias e irmandades, as sociedades civis e religiosas, associações de classe ou étnicas, as fundações assistenciais e outros grupos comunitários. No Brasil, as instituições privadas, especialmente no campo da assistência à saúde, tinham uma função pública, mesmo porque recebiam subvenção do Estado para prestar assistência gratuita às camadas mais pobres da população. No Estado liberal, tanto no Império quanto na Primeira República, a ação dos poderes públicos era muito pontual – se incumbiam de prestar assistência aos indigentes em épocas de calamidades como as de epidemias, em casos de acidentes, encarregando-se também assistência psiquiátrica. A crise do capitalismo em 1929, entretanto, colocará em pauta a questão social, demandando maior intervenção do Estado, que passará a incorporar e desenvolver políticas sociais e de assistência, a fim de minimizar os danos e tensões próprios do processo de acumulação de capital.

No artigo A província do Espírito Santo versus “epidemias reinantes”: ações de Estado e mobilização popular na passagem da febre amarela e do cólera (1850-1856) escrito por Sebastião Pimentel Franco e André Nogueira busca discutir as práticas de assistência e contenção – públicas e privadas – erigidas em torno das epidemias de febre amarela e cólera que assolaram a província do Espirito Santo em meados do século XIX, mobilizando diversos segmentos sociais em ações que visavam minorar e extirpar seus impactos sobre o conjunto da população. O artigo ainda demonstra como a passagem de um evento epidêmico pode mudar as relações, práticas e sociabilidades, tornando-se, em muitos casos, uma espécie “lição” que exige reflexões e respostas múltiplas para interromper seu ciclo de dor e mortes. Baseados nestas premissas, os autores analisam as diversas iniciativas públicas – arquitetadas pelo Estado – e privadas, fruto da mobilização popular – que de diferentes formas buscaram interpor os reflexos negativos da febre amarela e do cólera sobre o cotidiano e a vida das pessoas. Franco e Nogueira buscam também desvelar as práticas sociais e os laços de solidariedade que movimentaram as populações locais no combate as epidemias, pois frente à ineficiência ou total ausência do Estado restavam-lhes construírem alternativas assistências com vistas a interromper o rastro de morte deixado pelas doenças, desvelando a importância das iniciativas populares na complementariedade ou suplantação dos empreendimentos estatais.

O artigo A quem recorrer? – o serviço de pronto socorro do hospital das clínicas de São Paulo, 1930-1950, proposto por André Mota, nos apresenta outra faceta da assistência médico-hospitalar. A partir do crescimento populacional da cidade de São Paulo – inflada pelos movimentos migratórios da década de 1930 – o autor adentra nos problemas da gerência da população em seus detalhes: ocupações desordenadas, aglomerados populacionais, falta de infraestrutura e problemas endêmicos, que exigiam por parte da administração pública um posicionamento com relação à assistência às camadas populares urbanas. É neste turbilhão de precariedades ocasionado pela inobservância dos administradores públicos das necessidades populacionais que sistema hospitalar da cidade, representando especialmente pela Santa Casa de Misericórdia, é repensado a fim de minimizar os impactos da pobreza sobre o conjunto da população. Assim, em 1944, foi instituído Serviço de Pronto Socorro do Hospital das Clínicas de São Paulo ligado à Faculdade de Medicina da USP, que ofereceria um leque considerável de serviços médico-hospitalares destinados aos paulistanos, desafogando assim a já colapsada Santa Casa. Imbuído dos mais modernos procedimentos médicos o pronto socorro buscaria unir a assistência à população ao treinamento de seus alunos que a partir daquele momento teriam um locus privilegiado para unir teoria e prática. No entanto, como demonstra o autor, o funcionamento do Hospital de Clinicas (HC) enfrentou frequentes problemas que dificultavam seu pleno funcionamento impossibilitando a execução de inúmeras demandas para as quais foi pensado. De acordo com a narrativa do autor, fosse pela complexidade de sua gestão, inoperância burocrática ou pela falta de articulação entre diversos os setores da administração pública, o Pronto Socorro do HC foi levado rapidamente à exaustão afastando-se de seus objetivos iniciais que eram os cuidados emergenciais, esta situação, por sua vez, desvelou toda a complexidade que existe na gestão hospitalar de uma grande cidade como São Paulo.

No texto intitulado Sociedade, política e saúde na Bahia (1930-1950) Christiane Maria Cruz de Souza discute o projeto de ampliação dos serviços de assistência e previdência social desenvolvido durante os governos de Eurico Gaspar Dutra e Getúlio Vargas. A autora pretende demonstrar que a política social implantada nesse período tinha por objetivo amenizar as tensões entre governo, empresários e trabalhadores em uma Bahia abalada por dissenções políticas e conflitos motivados pelo desemprego, pela carestia e pela crise habitacional. Em período em que a saúde se tornava um “bem público”, a escassez de recursos e a necessidade de construir equipamentos de saúde favoreceram arranjos entre instâncias da administração pública e entidades privadas, dentre estas os Institutos de Aposentadoria e Pensões. Para discutir o processo de conformação do sistema previdenciário no país e na Bahia e a constituição de uma rede de assistência médico-hospitalar voltada para assistência do trabalhador urbano, a autora toma como caso exemplar a construção do Hospital do IAPETC (Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Empregados em Transportes e Cargas), atual Hospital Ana Nery, em Salvador, Bahia. A trajetória desta instituição de saúde é representativa das vitórias e derrotas, das fragilidades, tensões, conflitos e negociações no âmbito de diferentes projetos políticos e de modelos de assistência à saúde no Brasil e na Bahia no período estudado.

Trabalhando com o patrimônio da assistência e lugares de memória Viviane Trindade Borges em Patrimônio carcerário: a patrimonilialização de espaços prisionais no Brasil debruça-se sobre um tema que é pouco discutido nos estudos sobre a assistência: as prisões. Ao elencar como objeto de análise o espaço prisional, a autora demonstra que devido suas múltiplas dinâmicas sociais, estes lugares tornam-se de difícil interpretação e aceitação pelo tecido social. Por se tratarem de espaços marginais e altamente estigmatizados, as prisões, enquanto patrimônio cultural, foram e são deixadas a margem das políticas públicas patrimonialização, contudo, de acordo com a autora, este cenário vem se reconfigurando nos últimos anos devido as mobilizações sociais relacionadas às políticas de memória concernentes ao regime militar, que pressionam pela preservação destas memórias marginais. Neste escopo, Borges centra sua discussão na ausência de tombamentos em nível federal e o rápido processo de destruição de edificações carcerárias que datam do século XX, fruto da forte pressão imobiliária presente nos centros urbanos. Por outro lado, a autora chama atenção para a amplitude da categoria patrimônio carcerário, que não se restringe apenas à sua dimensão edificada, mas que também engloba aspectos imateriais e materiais dos sujeitos envolvidos no cotidiano prisional. Debruçada sobre estas questões, a autora aponta para toda a complexidade que envolve este campo desvelando embates e desafios que emergem das relações de patrimonialização entre a sociedade e a administração pública.

Ao reunir diferentes temáticas e pesquisadores de diversos lugares do país, assim como da América Latina e da Península Ibérica, esse dossiê pretende contribuir para ampliar a reflexão sobre as diferentes vertentes da assistência – a caridade, a filantropia, bem como o processo formação e instituição do Estado de Bem-estar. Busca, igualmente, fomentar o debate em torno do discurso subjacente às práticas caritativas e assistenciais, relacionando-o ao contexto político, sociocultural e econômico, bem como do papel representado e interesses dos protagonistas das ações assistencialistas. Espera-se que o leitor possa usá-los como referência para identificar e comparar os modelos, conhecer e analisar a organização e o funcionamento de associações benemerentes e filantrópicas, refletir sobre a ‘questão social’, o papel e a intervenção do Estado na oferta de assistência aos desvalidos e trabalhadores.

Acompanhado este conjunto de textos temos o artigo de Thiago Tremonte de Lemos intitulado Mémoire oublieuse: possível contribuição “involuntária” de Patrick Modiano à narrativa do passado que disserta sobre as potencialidades da memória como fonte de construção do passado. No artigo Os ícones e seus signos: a aplicabilidade das imagens nas pesquisas e estudo da História do Império Bizantino de Paulo Augusto Tamanini aborda os ícones bizantinos em sua historicidade, em sua feitura estética e diálogo com a Teologia da Igreja Ortodoxa Oriental, afastando-se das interpretações exclusivamente teológicas. Na continuidade apresentase o texto Mulheres e a pintura paranaense: relação entre arte e gênero (Fim do século XIX e começo do século XX) de autoria de Claudia Priori que aborda a presença e atuação de mulheres no campo da arte paranaense, entre os séculos XIX e XX, debruçando-se sobre os espaços ocupados por elas no cenário artístico e suas trajetórias, analisando como eram vistas e representadas pela sociedade. Em O livreiro que prefaciava (e os livros roubados); os prefácios de Francisco Rolland e a circulação de livros no Império Português ao fim do século XVIII de Claudio Denipoti apresenta a trajetória do livreiro e impressor francês radicado em Lisboa, Francisco Rolland, que bem inserido nos círculos de letrados escrevia paratextos para suas edições, nos quais elabora padrões discursivos relativos às questões fundamentais do mercado de livros português do fim do século XVIII, como a utilidade, a necessidade, a instrução e o serviço ao império. De Amilcar Torrão Filho o artigo Melancolia e alteridade nos Tristes Trópicos brasileiros: Claude Lévi-Strauss leitor de Jean de Léry, aborda a influência de Léry sobre Lévi-Strauss, de quem este último herda a visão melancólica do encontro entre culturas, sendo considerado pelo antropólogo como o primeiro, senão também o último etnógrafo, que viu a um Paraíso em seus últimos momentos antes da destruição.

Boa leitura!

Notas

1. LOPES, Maria Antónia. Protecção social em Portugal na idade moderna. Coimbra, PT: Imprensa da Universidade de Coimbra / Coimbra University Press, 1 de dez de 2010, p.29-33.

2. Os hospitais, por exemplo, tanto serviam de refúgio para peregrinos e viajantes e de asilo para os incapazes e indesejados como espaço para tratar os doentes. cf. WOOLF, Stuart. Ideologias e práticas de caridade na Europa ocidental do Antigo Regime (Prefácio) In: SÁ, Isabel dos Guimarães. Quando o rico se faz pobre: Misericórdias, caridade e poder no império português (1500-1800). Lisboa: CNCDP, 1997, p. 07-13.

3. CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Tradução de Iraci D. Poleti. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

4. GEREMEK, Bronislaw. Os filhos de Caim: vagabundos e miseráveis na literatura européia: 1400-1700. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 07.

5. ABREU, Laurinda. O poder e os pobres. As dinâmicas políticas e sociais da pobreza e da assistência em Portugal (séculos XVI-XVIII). Lisboa, PT: Gradiva Publicações, 2014, p. 22.

6. LOPES, op. cit., p.36-37.

Christiane Maria Cruz de Souza

Ismael Gonçalves Alves


SOUZA, Christiane Maria Cruz de; ALVES, Ismael Gonçalves. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.65, n.1, jan. / jun., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Argentina, 40 anos (1976-2016) / História – Questões & Debates / 2016

Os saberes historiográficos produzidos sobre as ditaduras latino-americanas, e, especialmente, sobre a ditadura civil-militar argentina (1976-1983), revelam continuamente a vitalidade desse objeto de estudo para a compreensão mais abrangente do recente contexto social, político e intelectual de nossas culturas. Nas últimas duas décadas, com a gradativa abertura dos “arquivos da repressão” em alguns países, associada à mobilização de organizações da sociedade civil no marco de uma política ostensiva de direitos humanos pautada pela consigna “justiça e reparação”, foi propiciada, relativamente, a (re)descoberta de registros e evidências mais nítidos da dimensão alcançada e dos métodos empregados por sistemas repressivos historicamente constituídos e com alto grau de capilaridade e permanência no imaginário social.

Os dispositivos de controle, censura, e repressão generalizada levados a cabo pelos sistemas autoritários regionais, mas, igualmente, o papel ambíguo dos movimentos e partidos de esquerda, a pauperização de vastos segmentos das sociedades, as atitudes sociais de repulsa, resistência, consenso / consentimento, ou indiferença a esses regimes foram inscritos como temáticas centrais na agenda dos historiadores identificados com o problema. Dentro desse horizonte, o Dossiê “Argentina: 40 anos (1976-2016)” publicado pela Revista História: Questões & Debates volume 64, n. 2 (2016),[1] almeja explorar o potencial analítico da história política do cone sul de nosso continente, ao sugerir como especificidade reflexões que envolvem uma série de enfoques sobre a natureza da ditatura civil-militar argentina.

Mais que destacar uma efeméride, o Dossiê busca contribuir para o debate ético acerca de um período da história argentina possível de ser cotejado a outras situações autoritárias no tocante a parentescos fenomenológicos, distanciamentos práticos e quanto à orientação de sentidos que tal processo intercambiou com experiências contemporâneas a ele.

Embora tenha na violência política e no terrorismo de Estado seus elementos constitutivos, a ditadura imposta à margem da lei em 1976 não é um excepcionalismo na vida do país no que se refere ao desenvolvimento de formas autoritárias de organização social. Ainda na década de 1980, o sociólogo Alain Rouquié falava em “tutela militar” e “golpe de Estado permanente” como as práticas políticas assumidas pelos militares desde 1930 na construção de um projeto de poder altamente profissional, e que não alienava as elites civis do processo de governabilidade. Com mais ênfase na ditadura de Juan Carlos Onganía (1966-1970), os militares passaram a ser vistos como “parceiros legítimos” dessas elites, e a angariar um papel político central, porque sua crescente autonomia em relação aos poderes civis associava-se à relevância que atribuíam às intervenções depuradoras e realizadas em série. Assim, imaginaram-se os gendarmes da nação, os guardiães de uma determinada ordem social ao mesmo tempo excludente e seletiva, mas também alicerçada no expressivo apoio de parcelas da opinião pública.

Por sua vez, a configuração de memórias no período que marca o eclipse das ditaduras do cone sul é extremamente díspar. No caso argentino, observou-se na aurora democrática a adoção de medidas que visaram o esclarecimento dos crimes de Estado e a punição dos líderes das juntas militares. Além do papel desempenhado pelo sistema judiciário, pela CONADEP (Comisión Nacional para Desaparición de Personas), e pelos diversos organismos de direitos humanos; nesse movimento pelo cumprimento da justiça esteve presente um ator de primeira ordem: o conjunto de vítimas sobreviventes dos centros clandestinos de detenção que assentiu em participar como testemunha nos ajuizamentos aos chefes militares. Tais medidas, entretanto, não prescindiram de acirradas disputas políticas e de recuos, como bem comprovam os episódios de anistias e indultos proferidos desde os governos civis de Raúl Alfonsín e Carlos Menem, somente revistos e declarados inconstitucionais pela Suprema Corte da Nação em junho de 2005.

Ao mesmo tempo, um dos imperativos programáticos da era Kirchner ancorou-se na elaboração de uma “política de memória”, apropriando-se claramente das experiências e demandas de parte da sociedade civil argentina que, desde meados da década de 1990 sinalizava para o não apagamento do passado e por uma rediscussão sobre as responsabilidades pelos crimes. A despeito de suas limitações e interesses, mas também de sabotagens originadas em setores sociais refratários ou nostálgicos do autoritarismo, essas políticas foram concebidas como políticas de Estado, com notórios deslizamentos em forma de projetos para os campos da pedagogia, da museologia, da estética, da arquivística, e, claro está, da história. Assim, não há como dissociar a historiografia mais recente sobre a ditadura argentina, de uma “batalha pela memória histórica” que encampa vários níveis de intervenção, assim como não há dúvidas que esses embates passaram a repercutir nos modos de os historiadores refletirem e escreverem sobre a época, e ensejaram uma renovação nas indagações e nos problemas de pesquisa.

Em um inspirado ensaio crítico publicado no ano de 2015, a historiadora Marina Franco [2] havia destacado que a pesquisa profissional na Argentina não se encontrou diante da tarefa de romper um silêncio social e político pós-ditatorial. Ao contrário, ela situou-se diante de um terreno próprio para se pensar e se pesquisar sobre o tema da ditadura, tendo em vista que o processo de transição para a democracia não se apoiou em uma política de ocultamento sobre os crimes do passado, tampouco em um olhar complacente sobre o ocorrido; ou, ainda, diríamos nós, em conciliações cínicas operadas desde o vértice da sociedade política.

Foi precoce, na Argentina, a iniciativa das Ciências Sociais – impulsionadas pela profusão de testemunhos públicos e políticas oficiais – em atribuir visibilidade às facetas fundamentais do terrorismo de Estado. No entanto, a mesma autora recorda que esse aspecto não representou, necessariamente, em consolidação de linhas de pesquisa, ou em sistematização de estudos sobre as características, conteúdos e alcances da ação repressiva nos seus distintos âmbitos. Nesse sentido, o que é efetivamente pleiteado em termos de investigação histórica sobre a ditadura argentina vincula-se a perspectivas que possam circunscrever agendas empíricas e teóricas em que sejam considerados: novos atores vítimas da violência, novos atores executores da violência, ampliação dos espaços (como a ênfase nas práticas regionalizadas da repressão), novos objetos e processos, e novas periodizações.

Assim, queremos acreditar que os artigos publicados neste Dossiê tendam a subscrever algumas das exigências elencadas acima, e permitam ao leitor a ampla reflexão e um conhecimento mais acurado sobre o período, mormente agora, quando nos deparamos com a ressignificação de fantasmagorias autoritárias e com a valorização de mitos políticos do passado.

Abrimos o Dossiê com um artigo que não trata explicitamente da ditadura argentina, mas desenvolve uma instigante discussão sobre os múltiplos efeitos e sentidos das políticas de esquecimento em sociedades que vivenciaram traumas políticos. “Políticas del olvido”, texto de autoria de Daniel Lvovich, da Universidad Nacional de General Sarmiento, é uma proposta adensada de conferência do historiador pronunciada no encerramento do Fórum “Violência de Estado, Justiça e Reparação: Relatos da Comissão Estadual da Verdade”, realizado em Curitiba no mês de junho de 2015, e organizado pela Linha de Pesquisa Intersubjetividade e Pluralidade do PPGHIS (Programa de Pós-Graduação em História da UFPR). Lvovich reflete sobre a tensão entre lembrar e esquecer como modelos indeterminados de pensar a relação passado / presente, porque memória e esquecimento não resultam em elementos opostos, mas em produtos simultâneos dos mesmos processos de seleção, hierarquização e transmissão de aspectos, valores, imagens, mitos localizados no passado. Enquanto o esquecimento coletivo aparece quando um grupo humano não consegue, voluntária ou passivamente, por rechaço, indiferença ou em razão de uma catástrofe, transmitir à posteridade o que aprendeu do passado, o dever de memória é, com efeito, a obrigação de o sobrevivente dar testemunho de uma experiência traumática, de falar por aqueles que desapareceram, e de os grupos relegados fazerem presente sua voz e suas demandas na esfera pública.

Em seguida, Emilio Crenzel, professor e pesquisador da Universidad de Buenos Aires, no artigo “Entre la historia y la memoria. A 40 años del golpe de Estado en la Argentina” nos proporciona uma auspiciosa aula de história das memórias construídas sobre os quarenta anos do golpe de Estado na Argentina. Primeiro, sem descuidar da dimensão processual, enfoca alguns dos conflitos chaves que desencadearam o golpe e suas consequências mais imediatas para a sociedade, destacando-se aí, o terrorismo de Estado e os embates iniciais da sociedade civil quanto aos posicionamentos adotados sobre as graves violações aos direitos humanos como a tortura e os desaparecimentos. Num segundo momento, Crenzel sugere uma criativa tipologia de batalhas pela memória desde a década de 1990 até 2012: o “eclipse da memória” (1990-1994) tem como marcas o impacto moral e político ocasionado entre os organismos de direitos humanos em razão dos indultos de Carlos Menem, o que aprofunda a sensação de frustração e a certeza de uma era de impunidades; e uma relativa desmobilização da sociedade tendo em conta que esse presente é lido, na perspectiva de Crenzel, como a imagem espectral de um passado sem direitos. A “explosão da memória” (1995-2003) é o contexto no qual uma situação bem específica narrada pelo autor revitaliza a memória do passado de violência e a faz adquirir um estatus independente do discurso punitivo ou da busca pela verdade. As inciativas em constituir pontes para a transmissão intergeracional assumem diversas formas, mas o fundamental é que um cenário pleno de significados de rememoração é preparado e gestionado pela sociedade à parte de qualquer ação efetiva de um Estado que se fragmentava diante de crises sociais insolúveis. Por fim, Crenzel designa como “estatalização da memória” (2003-2012), o período em que o Estado argentino toma para si a responsabilidade em produzir conteúdos sobre o passado. A derrogação das leis de impunidade permite reabrir os processos, e um novo Prólogo do emblemático Informe Nunca Más transforma em discurso estatal um sentido do passado forjado desde o vigésimo aniversário do golpe, quando os organismos de direitos humanos associaram os crimes da ditadura com a imposição do modelo econômico neoliberal.

Em “Represión clandestina y discursos públicos: los informes oficiales sobre la ‘lucha antisubversiva’ en los años iniciales de la dictadura argentina”, a pesquisadora e professora Gabriela Águila, da Universidad Nacional de Rosário, analisa detidamente um discurso público da Junta Militar de 1977 e constrói uma teia de significados em torno à estrutura repressiva da ditadura: o informe “La subversión en Argentina” foi uma narrativa que procurou sistematizar definições e conceitos sobre a alegada luta ou guerra antisubversiva. Gabriela, atenta estudiosa e com vasta pesquisa sobre as formas de atuação do sistema repressivo em suas modalidades regionalizadas e autônomas, investiga os modos de reconhecimento elaborados pela hierarquia militar a respeito do exercício da repressão nos seus anos iniciais. Um dos principais argumentos da autora, é que tais manifestações não devem ser vistas como “contradiscursos” ou meras reações às denúncias e pressões internacionais, mas estão inscritas em um contexto amplo, que combinou respostas políticas do governo aos “ataques” provenientes do exterior, estratégias especificamente militares e mecanismos de legitimação social e política. Um deles, foi plasmar no vocabulário político a terminologia “luta contra a subversão”, por onde os militares tanto definiam o perfil do inimigo, quanto procuravam mobilizar a sociedade na direção de atitudes de denúncia e apoio contra a “subversão”. Uma das chaves para entender a extensão do exercício repressivo esteve caracterizada desde o início pela descentralização operativa e pela organização de tal processo mediante escalas territoriais com perfis e notas distintas, segundo as áreas de risco e com graus de autonomia das forças de segurança bastante amplos.

O próximo artigo traz a contribuição de uma das pesquisadoras que pode ser considerada pioneira na sistematização de estudos sobre o exílio argentino no marco da última ditadura. Silvina Jensen, professora e pesquisadora na Universidad Nacional del Sur, em Bahía Blanca, além de autora de dezenas de livros e artigos sobre o tema exilar, organizou diversas coletâneas nas quais reuniu investigadores especialistas na massiva diáspora política latinoamericana da década de 1970. Silvina apresenta em “Exilio y legalidad. Agenda para una Historia de las luchas jurídico-normativas de los exiliados argentinos durante la última dictadura militar” uma reflexão sobre um lugar pouco explorado acerca do exílio: os modos em que a ação coletiva dos desterrados argentinos questionou as dimensões jurídico-normativas do terrorismo de Estado. Sua proposta consistiu em revisitar os inúmeros arquivos onde se depositam as denúncias exilares para compreender como é representada a política repressiva do Estado não em suas modalidades mais abjetas como o desaparecimento de pessoas e o funcionamento dos centros clandestinos de detenção, mas sua indagação é como reconhecer a forma de os desterrados lidarem com as paradoxais relações entre terrorismo de Estado e legalidade. Nessa perspectiva, a discussão é desenvolvida a partir de três eixos: 1) por quais racionalidades a luta empreendida pelos exilados respondeu às facetas repressivo-legais da ditadura; 2) na denúncia da legalidade autoritária, qual o território ocupado pelas diferentes formas institucionalizadas de exílio; 3) os modos adotados pelos exilados na sua apelação ao direito (nacional e internacional), para obtenção da verdade sobre o destino dos desaparecidos, conseguir a liberdade dos detidos sem causa nem processo, e para responsabilizar penalmente os responsáveis pelas violações aos direitos humanos.

O último artigo do Dossiê é de autoria de Marcos Gonçalves (UFPR), no qual o autor dialoga com um ex-militante da Organização Política Montoneros que, depois de breve refúgio no Brasil e do exílio na Suécia entre meados das décadas de 1970 e 1980, rememora algumas experiências políticas e pessoais de sua trajetória. O texto procura referências na tensão da passagem do tempo e como ela repercute na diversidade de transmissão das informações memorizadas.

Este volume da Revista História: Questões & Debates conta ainda com três artigos de temáticas diversificadas: “Considerações Histórico-Arqueológicas como Elementos para uma Reavaliação de Max Weber”, de Andréa Bernardes de Tassis Ribeiro, onde a autora, apoiada em recentes pesquisas dialoga com a sociologia weberiana que trata dos costumes tradicionais relacionados aos rituais de segregação. Na sequência, Máira de Souza Nunes, em “As demolições de Paris: a modernidade em ‘Rocambole’ (1857-1870)”, parte da leitura do romance de folhetim Rocambole, e analisa as transformações da cidade de Paris durante o II Império de Napoleão III, investigando as representações do processo civilizador oitocentista, da experiência burguesa, e as relações entre a cidade e o enredo da obra. Por fim, no artigo “O alimento como categoria histórica: saberes e práticas alimentares na região do Vale do Rio Pardo (RS / Brasil)”, Everton Luiz Simon e Éder da Silva Silveira, desenvolvem um exercício de caracterização de alguns costumes alimentares da Região do Vale do Rio do Pardo, Rio Grande do Sul. Os autores buscam perceber a influência ou a presença de características dos modelos alimentares “romano” e “bárbaro” em hábitos de descendentes de alemães e italianos nessa região.

Desejamos uma boa leitura!

Notas

1. A Revista está realizando um ajuste necessário em seus volume e número adequando-se às normatizações vigentes. Assim, a referência ao volume 64 e ao n. 2 correspondem respectivamente à informação do ano da Revista, e à quantidade de fascículos publicados no mesmo período.

2. FRANCO, Marina. Do terrorismo de Estado à violência estatal: Problemas históricos e historiográficos no caso argentino. In: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. (Org.). Ditaduras Militares: Brasil, Argentina, Chile e Uruguai. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015, p. 61-81

Marcos Gonçalves – Organizador.


GONÇALVES, Marcos. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.64, n.2, jul./dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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História cultural do crime / História – Questões & Debates / 2016

A historiografia tem registrado, nos últimos anos, um interesse crescente pela história do crime, da criminalidade e dos criminosos. Um interesse, embora cada vez mais expressivo, relativamente recente. À exceção de alguns trabalhos hoje já praticamente clássicos, como é o caso do livro de Louis Chevalier ou, no caso brasileiro, do livro precursor de Maria Sylvia de Carvalho Franco , é a partir da década de 1970 que o assunto começa a chamar a atenção de historiadores e historiadoras, em especial nos países europeus, com pesquisas desenvolvidas, principalmente, a partir do impacto teórico da história social inglesa, com destaque para o trabalho de E. P. Thompson, e da publicação de “Vigiar e punir”, do filósofo francês Michel Foucault.

Não por acaso, foram na França e Inglaterra que floresceram, nos anos subsequentes, alguns dos principais textos e autores que procuraram expandir e aprofundar as possibilidades abertas pelas investigações seminais de Thompson e Foucault. E inclusive, em não poucos casos, articulando as referências da história social às de uma “genealogia do poder” de viés foucaultiano. Assim, buscou-se fazer uma história das prisões, mas também dos prisioneiros; da polícia, mas igualmente dos policiais e do policiamento; dos discursos e instituições penais, mas em suas múltiplas e contraditórias interações com a sociedade. Enfim, fazia-se uma história do crime, mas sem descuidar de escrever a história da criminalidade e dos criminosos.

Uma história cultural do crime, que se desenvolve especialmente a partir dos anos de 1990 não é exatamente inédita, se a tomarmos como um alargamento das possibilidades abertas nas décadas anteriores por uma historiografia do crime de corte mais social. Além disso, ao reivindicar a noção de cultura, ou seja, a de uma história das práticas e representações, os historiadores culturais do crime pretenderam, no dizer de Dominique Kalifa, usar o “cultural como instrumento, uma entrada para fazer história social”. O conceito de cultura é utilizado nas suas acepções antropológica e histórica: se as sociedades humanas são culturais, um entendimento da sua dinâmica não pode prescindir de pensá-la imersa em redes complexas de relações. Ainda que os fenômenos e construtos culturais muitas vezes pautem ou expressem escolhas e condutas individuais, eles só podem ser apreendidos e compreendidos se flagrados em seu caráter social e histórico. Trata-se, portanto, de pensar a cultura como uma teia de significados, muitas vezes conflitantes, construída pelas sociedades humanas no tempo, que significam, organizam e autorizam a vida social por meio de regras, normas, práticas e valores.

No que diz respeito mais especificamente ao objeto desse dossiê, os processos culturais criaram o vocabulário que nomeou – ou tentou nomear – os personagens que adentravam à cena e forneceram os conceitos que atribuíram sentido aos novos e contraditórios sentimentos próprios à vida moderna e urbana, notadamente o medo – ou a angústia – e a sensação permanente de insegurança. Por outro lado, foram estes sentimentos que, objetivados em práticas sociais, forjaram igualmente parte do ambiente e das condições onde se ressignificaram as próprias noções de crime e de criminoso. Neste emaranhado de novas representações, o crime e o criminoso desempenham função privilegiada. Sua singularidade reside na capacidade de a um só tempo radicalizar uma diferença irredutível frente às normas e convenções sociais e de ameaçar desde dentro as já frágeis estruturas que sustentam uma sociedade em permanente mutação.

Não inteiramente inédita, portanto, por outro lado tampouco mera continuidade da história social. A essa, a história cultural do crime acrescenta a possibilidade de pensa-lo não apenas socialmente, mas também a partir das representações que dele são produzidas a partir de diferentes suportes e linguagens. Se fenômeno cultural, o crime e sua percepção podem ser apreendidos também naqueles discursos que escapam à esfera estritamente jurídica e penal. Trata-se, portanto, de pensá-lo como uma construção cultural, apreensível por discursos os mais diversos – tais como a literatura e a imprensa –, além daqueles de caráter mais oficial. A articulação destas diferentes fontes permite acompanhar, mesmo que precariamente, as maneiras como figuras, nomes, imagens, lugares foram mapeados, identificados e organizados, contribuindo para a construção de um imaginário do crime e, principalmente na experiência da modernidade, de um crescente sentimento de insegurança.

A partir desses novos aportes teóricos, a historiografia mais recente tem se mostrado sensível à necessária e profícua articulação entre os discursos, saberes, estratégias e instituições de poder (governos, prisões, polícia, criminologia, etc…), sem descuidar de apontar as descontinuidades entre as formulações discursivas e institucionais e sua efetiva, e por vezes precária, penetração nas experiências e práticas cotidianas. Do mesmo modo, tem se pluralizado o olhar sobre o crime, a criminalidade e o criminoso, não apenas mostrando as mudanças ocorridas ao longo do tempo, mas também como, em uma mesma temporalidade, podem-se encontrar diferentes formas de percepção e representação daqueles fenômenos. Tal pluralidade só se tornou possível com a produção de novas fontes que permitem olhar o crime e suas representações em discursos e narrativas tão distintos como os fait divers, o romance policial e o cinema – parte da chamada “cultura de massa” –, mas também em relatórios e estatísticas policiais, processos criminais ou cartas e diários de prisioneiros, por exemplo.

Essa renovação na história do crime fez seus frutos na América Latina, nas últimas três décadas, especialmente. No Brasil, a partir de obras publicadas nos anos 1980 por Bóris Fausto, Sidney Chalhoub, Maria Helena Machado e outros autores, iniciou-se um encantamento com a riqueza das fontes criminais. Quase sempre buscava-se descobrir ali a vida dos trabalhadores pobres, onde o fenômeno criminal seria de importância secundária. O acontecimento criminoso só parecia mais significativo quando reafirmava a violência de gênero, contra as mulheres, tema ainda muito presente nos estudos sobre crime. Das condições de vida, as fontes criminais passaram a permitir também o acesso a visões do social, a representações, onde, junto às falas do processo parece cada vez mais ser importante analisar o noticiário produzido sobre crimes e criminosos. Alguns textos publicados aqui nos mostram que esse processo não é diferente do que aconteceu em outros países da América Latina, onde a partir de obras seminais de Lila Caimari (Argentina), Daniel Palma (Chile) ou Elisa Speckman (México), um campo importante de estudos vem se abrindo. Na Argentina, o grupo de pesquisa “Crimen y Sociedad” completa dez anos de atividades; no Chile já ganha regularidade com a publicação da revista “Historia y Justicia”. Esses quadros locais permitem, por um lado, uma interlocução cruzada, a discussão sobre processos sociais que aproximam ou afastam os diferentes países da América Latina, bem como sua comparação com outras regiões. Por outro lado, já é possível notar a consolidação do campo, agendas compartilhadas e revisões historiográficas que atravessam o território, destacam linhas e tendências.

Os artigos que compõem esse dossiê pretendem ser uma amostra da renovação historiográfica apontada nos parágrafos acima, e esperamos que ele permita também reflexões sobre a questão social do crime no Brasil e no mundo. O artigo que abre o volume, de Elisa Speckman Guerra, inicia com um crime: em 1936, Concetta di Leone assassinou seu marido, um príncipe russo, em uma das praças da Cidade do México. O homicídio tem ampla repercussão e merece, segundo a autora, um tratamento próprio de uma “novela romântica”. O advogado de Concetta procura justificar o crime alegando legítima defesa da honra e profunda perturbação mental, frutos do adultério cometido pelo marido assassinado e descoberto por ela pouco antes do crime. Para a historiadora, parte do interesse pelo crime adveio do ambiente reinante no pós-guerra, mas também das muitas mudanças vividas no México pós-revolução.

Mudanças que afetavam tanto as instituições jurídicas como os valores que norteavam a sociedade mexicana. No primeiro caso, Speckman Guerra procura mostrar o funcionamento do novo aparato penal após a revolução e a transição de uma “justiça mista” para uma “profissional”. No segundo, se interroga sobre como a revolução política pode também produzir, no começo do século XX, um conjunto de novos valores e percepções que dizem respeito, entre outras coisas, a concepção da mulher na cultura e na sociedade mexicanas. Além disso, o artigo tenta mostrar a vinculação da legislação com códigos de conduta e o peso da opinião pública em sentenças judiciais, a partir do cruzamento dos discursos proferidos pelos juízes nos tribunais e a repercussão do caso na imprensa periódica do período.

Em seguida, Osvaldo Barreneche nos apresenta alguns apontamentos sobre a história da “Sociedad de Socorros Mutuos de la Policía” da província de Buenos Aires. Uma das principais responsáveis, ao longo especialmente da primeira metade do século XX, pela construção de uma organização mutualista na polícia portenha, ela foi também fundamental na conformação de uma cultura institucional que teve papel importante nas relações entre a polícia da capital e outras agências estatais e com a sociedade civil. O desenho da Sociedade e seu funcionamento serviram também como modelo para outras associações policiais semelhantes que surgiram no período.

Se a chegada do peronismo ao poder não alterou profundamente a “Sociedad de Socorros Mutuos de la Policía” logo de início, Barreneche demonstra que logo após a consolidação do novo governo teve início o declínio da entidade. Já no final dos anos de 1940, a crescente complexidade da organização policial, acompanhada de um processo de centralização e verticalização do controle institucional, contribuiu para o seu ostracismo. A partir da metade do século XX, com o decréscimo no número de associados, entre outras coisas, a Sociedade passa a exercer um papel cada vez menos significativo como entidade representativa dos policiais. Ao final do artigo, o autor levanta algumas hipóteses para esse declínio.

No terceiro texto, a historiadora chilena Vania Cárdenaz Muñoz nos apresenta o conceito de “criminicultura” para, a partir dele, mostrar as percepções sobre a delinquência e o delinquente nos discursos da imprensa, na polícia e nas correntes do pensamento criminológico em voga nas primeiras décadas do século XX. Em seu artigo, Vania Muñoz trabalha, entre outros, com arquivos policiais da Intendência de Polícia, a imprensa periódica e artigos da “Revista de Policía” de Valparaíso com o intuito de demonstrar como, naquela cidade chilena, as funções preventivas e repressivas das polícias “representaram o refúgio último de segurança para as classes dominantes”.

Frente ao avanço do sujeito perigoso e as ameaças contra a propriedade, enquanto em outros lugares ganhava força o discurso de um corpo policial técnico e científico, em Valparaíso vigorava ainda um saber prático, que cultivava um certo receio em relação às modernas teorias sobre a criminalidade e o criminoso. Forjado nas ruas, no contato e no diálogo direto com os delinquentes, o conceito de “criminicultura” se constitui como uma espécie de contraponto à cientificização teorizante da atividade policial, ao apresentar-se como capaz de apreender e compreender a dinâmica de uma sociedade também em mutação.

Encerrando as contribuições estrangeiras, o breve e instigante artigo de Philippe Artières parte de um estudo de caso, o assassinato do jesuíta Paul Gény pelo soldado italiano Bambino Marchi, em 1925, para mostrar a reação às práticas e ao saber do perito criminal, que no começo do século XX atingiram ampla e sólida penetração nas instituições jurídicas e policiais europeias. Cruzando um conjunto bastante heterogêneo de fontes, oriundas de arquivos privados e familiares, e documentos da Companhia de Jesus e da Universidade de Roma, Artières reconstitui o crime e o processo judicial que se seguiu a ele, incluindo os diagnósticos médicos sobre Bambino Marchi produzidos durante o julgamento. Seu argumento central, no entanto, ele o constrói a partir da leitura de uma longa carta escrita pelo próprio criminoso, “uma verdadeira tomada de palavra contra a autoridade do perito”.

A primeira das contribuições brasileiras é de Ana Gomes Porto. Pesquisadora reconhecida por seu trabalho com as narrativas de crime, em seu artigo Ana Porto nos apresenta o criminoso Pedro Hespanhol – que apesar do sobrenome, era português – cuja trajetória de crimes no começo do século XIX o tornou um dos mais célebres criminosos do período. Considerado inicialmente um “sanguinário”, as representações de Pedro Hespanhol, especialmente na imprensa do Rio de Janeiro, passam por transformações significativas entre os anos de 1830, década das primeiras narrativas sobre o bandido, até a publicação, em 1884, do romance Pedro Hespanhol, de José do Patrocínio.

Em sua narrativa, Ana Porto investiga as razões que levaram a essa ressignificação de Hespanhol, que de criminoso perigoso e temido é alçado à condição de “famigerado herói”. Para a autora, uma das explicações possíveis está no contexto do Segundo Reinado, em que a “suspeição aos libertos, africanos livres e escravos esteve no centro das atenções das autoridades públicas brasileiras”. Igualmente, defende, as muitas revoltas do período forjaram representações de indivíduos na mira da justiça, notadamente os pertencentes às camadas mais pobres da população. É nos interstícios dessa conjuntura que surge a figura dos “malfeitores”, tais como Pedro Hespanhol.

O artigo de Cláudia Moraes Trindade nos introduz no universo prisional baiano do século XIX, mais especificamente na Casa de Prisão com Trabalho, primeira penitenciária do estado, inaugurada em Salvador no ano de 1861. Erigida à época por seus conterrâneos como um dos símbolos da modernidade, a Casa de Prisão com Trabalho pretendeu inserir a Bahia no contexto das reformas prisionais em voga entre final do século XVIII e nas primeiras décadas do XIX, tanto no Brasil como no exterior. E apesar do continente europeu servir como referência privilegiada quando se tratava de reivindicar padrões de civilização, no caso das reformas penitenciárias foi, principalmente, o modelo norte-americano a vingar no território brasileiro, e a Bahia não é exceção.

A riqueza do texto de Cláudia Trindade está, principalmente, na multiplicidade de temas que aborda e fontes que mobiliza. Para apresentar o panorama do aprisionamento da província baiana, a autora analisa desde a organização administrativa da penitenciária, seus funcionários e atribuições, ao trabalho nas oficinas, a situação da enfermaria, a escola de primeiras letras, a segurança e o perfil dos presos, entre outros temas. E ainda que o foco principal do artigo seja a Casa de Prisão com Trabalho, o texto visita rapidamente outras instituições prisionais da Bahia, analisando algumas de suas peculiaridades e diferenças em relação à penitenciária da capital.

Do Nordeste para o Sul do país, o texto seguinte, de autoria de Cláudia Mauch, analisa o funcionamento da polícia de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, ao longo da Primeira República. A historiadora se detém, principalmente, no sistema de recrutamento dos policiais, onde se evidencia, entre outras coisas, a aplicação de critérios clientelistas de seleção e as dificuldades de disciplinarização e estabilização dos efetivos policiais. Manejando principalmente fontes seriadas, tais como registros de pessoal, e qualitativas, como inquéritos administrativos, o artigo procura mostrar algumas das práticas e regras que visavam organizar a corporação policial porto alegrense do período.

Em linhas gerais, a autora mostra que tais práticas não se diferenciavam substancialmente das tentativas de modernização do aparato policial vigentes em outras capitais brasileiras do período. Por outro lado, ao analisar, entre outras coisas, o perfil social dos policiais da capital gaúcha, Cláudia Mauch identifica um descompasso entre a intenção modernizadora e o cotidiano policial efetivamente vivido. De acordo com ela, as fontes permitem outros olhares sobre o funcionamento da polícia local, permitindo superar as idealizações expressas nos regulamentos e analisar a inter-relação entre o que o Estado esperava da polícia e como a instituição se modelava nas suas relações internas.

Encerra o dossiê o artigo de André Rosemberg sobre a greve da Força Pública da cidade São Paulo. Nos primeiros dias de 1961, mais de mil policiais de diferentes patentes – de capitães a cabos –além de soldados, paralisaram suas atividades durante os dias 13 e 14 de janeiro. O movimento paredista iniciou com os bombeiros, rapidamente mobilizando outras unidades da Força Pública da capital paulista e algumas unidades do interior. Ao fim da greve, 513 policiais foram indiciados em inquérito conduzido por um delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).

O texto de André Rosemberg busca, de um lado, investigar as razões mais imediatas da greve, fundamentalmente a recusa da Assembleia Legislativa em conceder a paridade salarial dos milicianos com seus homólogos da Polícia Civil e o restante do funcionalismo público. Mas o autor procura outras motivações que não apenas as corporativas – além do aumento de salário, melhores condições de trabalho –, principalmente ideológicas. Em um contexto de breve experiência democrática, os anos posteriores ao Estado Novo e imediatamente anteriores ao golpe civil militar de 1964, mas também de acirramento de projetos antagônicos, de acordo com Rosemberg a greve de 61 mostra, em diferentes graus, a politização da Força Pública paulista, desafiando os estatutos da Lei de Segurança Nacional e o Regulamento Disciplinar e subvertendo as noções de hierarquia.

Fora do dossiê, outros três artigos integram esse volume da Revista História: Questões & Debates. Em seu texto, Norberto Tiago Gonçalves Ferraz analisa a irmandade de Santa Cruz, fundada no século XVI, e uma das mais importantes da cidade de Braga, em Portugal. No século XVIII, recorte temporal analisado pelo autor, a irmandade estava direcionada principalmente ao cuidado dos confrades defuntos, prestando assistência aos seus membros por ocasião da sua agonia e morte, acompanhando-os à sepultura e celebrando missas por suas almas. Na sequência, o trabalho de Eduardo Roberto Jordão Knack objetiva analisar as relações entre industrialização e urbanização em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, durante as comemorações do centenário do município, em 1957. Entre outras coisas, o texto procura discutir e elucidar as relações entre o desenvolvimento econômico e o campo do imaginário, para investigar a historicidade das visões e projetos para o futuro da cidade que marcaram seu centenário, além de buscar entender as consequências desse processo para economia não apenas de Passo Fundo, mas da região norte do estado. Encerra esse número o artigo de Washington Santos Nascimento, que procura analisar as representações dos assimilados, mulheres e homens do mato nas obras produzidas pelo escritor angolano Luandino Vieira, entre os anos de 1950 e 1970. O objetivo é entender, a partir da leitura de alguns contos e romances, escritos em sua maioria nos anos de 1960, de que forma o autor delineia uma identidade nacional para o angolano.

Boa leitura!

Marcos Luiz Bretas

Clóvis Gruner

(Organizadores)

BRETAS, Marcos Luiz; GRUNER, Clóvis. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.64, n.1, jan. / jun., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Histórias do tempo presente: ditadura, redemocratização e raça no Brasil / História – Questões & Debates / 2015

Sobre diálogos e interconexões

Já houve quem tentasse colocar tudo na “raça”. Numa mistura de ciência e uma espécie de obsessão – pela negação muitas vezes. Foi por aí que se urdiu uma reflexão candente sobre o destino da nação nas últimas décadas do século XIX até os alvissareiros anos 1930. Falava-se amiúde em “raça” para destacar a sua não importância, enquanto espectro que rondava a comunidade nacional, constituindo preocupação cardinal do pensamento social brasileiro. De Francisco Adolfo de Varnhagen, Silvio Romero, Oliveira Lima, passando por Nina Rodrigues, Euclides da Cunha, Oliveira Viana e Paulo Prado, assim caminhamos.

Nota-se um consenso na historiografia brasileira de que a “questão racial” mobilizou uma gama multifacetada de agencies: desde teóricos, políticos, gestores públicos, juristas, médicos sanitaristas, jornalistas e ensaístas da geração dos “intérpretes do Brasil” (Capistrano de Abreu, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior) até os especialistas da chamada “Escola Paulista de Sociologia” (Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni), que no pós-guerra desenvolveram o projeto UNESCO de estudos sobre as relações raciais. Ainda assim atravessamos boa parte do século XX com um Brasil republicano arrastando a memória do cativeiro para um distante “passado-esquecimento”, por assim dizer. O pós-emancipação sequer virava capítulo derradeiro dos estudos sobre Abolição. As pesquisas sobre as “relações raciais” foram de fundamental importância para se compreender as desigualdades e assimetrias entre negros e brancos na sociedade brasileira, é bom destacar, porém acabaram por encapsular o campo do pós-abolição das narrativas históricas. Vários processos– urbanização, industrialização, modernidade, mundos do trabalho, questão agrária, relações de gênero, culturas políticas, cidadania, eleições etc. – foram desidratados da dimensão mais ampla desse campo, com seus legados e principais sujeitos.

Diante de tal panorama, inscrever a “questão racial” às múltiplas experiências históricas da sociedade brasileira e não vê-la confinada aos temas da escravidão virou – em certa medida – um projeto político do tempo presente, que tem a sua maior aposta a lei 10.639.Não há porque negar o avanço democrático do processo atual, saudá-lo e reconhecer o seu próprio percurso de debates e embates, dentro e fora das universidades. Investimento importante seria identificar como foram gerados “silêncios” sobre a “questão racial” para vários temas-eventos da história do Brasil. Podemos citar, por exemplo, as atmosferas de disputassimbólicas – imagens e representações – em torno da “independência” no Brasil. Na década de 1970, Maria Odila já chamava a atenção para o fator “medo” e o “haitianismo” na arena das expectativas sobre a separação política e a participação popular nas ruas da Corte, por um lado. E autoridades despejando socos e pontapés em comícios que escondiam xenofobias, por outro. Os estudos clássicos já mostraram que muitas das “questões raciais” – travestidas de outras linguagens, nomenclaturas e significados – estavam presentes.

É fato que em determinadas paisagens historiográficas os cenários que envolveram personagens, contextos, movimentos e expectativas que cruzaram narrativas sobre “raça”, racismo, nação, identidades e culturas sequer apareceram emoldurados nas retóricas iconoclastas. Inclui-los hoje na agenda de pesquisa pode ser mais do que tão somente um “resgate” historiográfico. Sugerem novas pautas, revisões, polifonias e multivocalidades desafiadoras, nem sempre percebidas nos eventos-efemérides, nos roteiros analíticos e / ou nas políticas editoriais acadêmicas.

As temáticas da ditadura e da redemocratização vistas pela transversalidade da “raça”, especialmente no decurso dos anos 1970 e 1980, podem seguir outros caminhos– nunca desvios –, considerando os sentidos político-culturais de vários atores e segmentos sociais, com suas estratégias, clivagens, aspirações e demandas por reconhecimento, direitos e liberdade de manifestação. Neste dossiê o ponto de partida foi exatamente a tentativa de estabelecer diálogos e interconexões entre as temáticas da ditadura e da redemocratização, de um lado, e a experiência negra, de outro, a fim de superar falsas dicotomias.

A temporalidade que organiza estas aproximações ou entrecruzamentos são os anos 1970 e 1980, sobretudo. Quem começa é George Reid Andrews ao surpreender o protagonismo político negro a partir de novas balizas, diretrizes e cronologias – embora por vezes cristalizadas – que antecederam o surgimento de organizações contemporâneas de luta antirracista (1978) até o pós-centenário da Abolição (1988). Tratou-se de um protagonismo ativo e entrelaçado à história nacional (e transnacional) no período da redemocratização. Nem sempre ideias e ações político-partidárias foram orquestradas. Sons repercutiam e ganhavam ritmos que assustaram mesmo ouvidos insuspeitos. Paulina Alberto acompanha a efervescência do Black Rio e dos bailes de soul music, que contagiavam a juventude negra do subúrbio carioca e redesenhavam símbolos racializados – muitos dos quais transnacionais – em torno da identidade positivada, do estilo contestatório e da afirmação estética. Já conhecemos algo sobre tais experiências e repertórios para São Paulo, embora contextos urbanos diferenciados ainda precisem de mais investigações. Para uma parte da juventude negra dos anos 1970, o protesto político teve uma trilha sonora própria que os estudos temáticos ainda não se interessaram em ouvir. Linguagens, tramas e performances foram diversificadas e nem sempre apareceram textualizadas. A campanha contra o apartheid na África do Sul – e com ela a luta para que Nelson Mandela fosse libertado da prisão– converteu-se em ferramenta política nas mãos de ativistas negros que denunciavam a segregação racial, tanto do outro lado do Atlântico como no Brasil. Com Jerry Dávila conseguimos “ouvir” outros sons e vozes que embarcavam e desembarcavam nos litorais africanos: dos movimentos de independência em países como Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, até chegar aos apelos para a libertação de Mandela e as homenagens a Steve Biko, líderes sul-africanos.

Vale destacar que a dimensão cultural – quase sempre crítica ou apropriada pelo viés político – foi um porta-voz nos debates e impasses dos anos de chumbo. Com poucos canais de expressão diante do arbítrio da ditadura, identidades, comportamentos, alteridades e taxinomias raciais ganharam laudas, palcos e telas. Noel Carvalho rouba a cena – melhor seria o set – ao abordar a trajetória do cineasta negro Odilon Lopes, desde os primeiros anos de atividade profissional na televisão até a realização do seu filme Um é pouco, dois é bom, de 1970. Enquanto isso Dmitri Fernandes examina a emergência da emblemática artista Clementina de Jesus – e tudo que ela representou sobre a cultura negra – nas décadas de 1970 e 1980. Sua “descoberta” (da “autêntica” sambista) se transformaria em metáfora para se investigar os sentidos de uma diáspora que foi articulada pelos movimentos de afirmação da “raiz afro-negra”. Com Mário Augusto da Silva conhecemos o despontar da pulsante literatura negra na década de 1980, por meio de eventos, obras e debates que galvanizaram a atenção de intelectuais nacionais e estrangeiros.

Num artigo coletivo Sandra Martins, Togo Ioruba (Gerson Theodoro) e Flávio Gomes invadem os muros acadêmicos para encontrar uma juventude negra original que, a partir do início dos anos 1970 cria um movimento de reflexão (e reivindicação) sobre objetos / sujeitos da “raça” e do racismo na Universidade Federal Fluminense através do GTAR (Grupo de Trabalho André Rebouças), que teve a força viral de Beatriz Nascimento e o apoio luxuoso de Eduardo de Oliveira e Oliveira, intelectuais negros ícones daquela geração. Para encerrar o dossiê, Petrônio Domingues nos conduz a outras latitudes que interseccionam as relações entre redemocratização e “raça” no Brasil contemporâneo, na medida em que se vale de memórias, mitos e símbolos para reconstituir o processo de invenção de João Mulungu como herói negro. Revalorizado no imaginário das hostes antirracistas, esse líder quilombola vem fazendo a cabeça e tocando o coração de muitos negros que sonham com igualdade, ampliação de direitos e justiça.

Agradecemos aos colegas que colaboraram com o presente dossiê e possibilitaram ampliar os estudos e reflexões sobre Histórias do tempo presente: ditadura, redemocratização e raça no Brasil. Esta edição da revista ainda traz três artigos. Leyserée Xavier investiga a reforma religiosa promovida por Akhenaton, faraó egípcio da XVIII Dinastia, que, entre outras coisas, elevou Aton ao lugar de divindade suprema. Julio Bentivoglio, por sua vez, debruça-se sobre os textos publicados nos primeiros onzes anos da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), de 1839 a 1850, tendo em vista a mapear autores, temáticas, recortes temporais e geográficos, dentre outros aspectos que constituíam a escrita da história brasileira vinculada ao IHGB. Concluímos esse número com o artigo de Alessandro Batistella sobre o político paranaense Abilon de Souza Naves, principal liderança do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) na década de 1950.

Petrônio Domingues

Flávio Gomes

(Organizadores)


DOMINGUES, Petrônio; GOMES, Flávio. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.63, n.2, jul./dez., 2015. Acessar publicação original [DR]

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Estudos africanos no Brasil: um diálogo entre História e Antropologia / História – Questões & Debates / 2015

Na última década testemunhamos um aumento importante de publicações (livros, artigos, coletâneas, etc.) sobre política, economia, cultura e história das sociedades africanas, tanto no campo da literatura, linguística, como no das ciências políticas e relações internacionais, porém, o incremento mais significativo aconteceu nos campos da história e antropologia. Este fenômeno não é aleatório, responde a um esforço comum de intelectuais, ativistas, acadêmicos e acadêmicas, entre tantos outros, de implementar uma reforma político epistemológica no campo da educação no Brasil, reforma que finalmente teve seu sustento legal na lei 10693 de 2003 e que envolveu, entre outras coisas, saldar uma dívida histórica ao estabelecer a obrigatoriedade de inclusão nos planos de ensino em todos os níveis, da história e cultura africana e afro-brasileira. O porquê desta dívida histórica, mesmo sendo uma questão de suma importância, não será tema deste dossiê, acreditamos que chegará um momento, neste multifacetado processo, de confrontar-se com os porquês destas omissões e embora já existam indícios bastante eloquentes na história nacional brasileira para compreender a exclusão dos currículos escolares da história e cultura africana e afro-brasileira, este debate será possível quando o campo dos “estudos africanos no Brasil” termine o seu processo de consolidação.

Em relação a este processo de consolidação dos “estudos africanos” na atualidade, precisamos antes fazer o devido reconhecimento do trabalho sistemático da produção acadêmica sobre o mundo africano, de uma série de instituições no âmbito acadêmico brasileiro desde a década de 1960 como o Centro de Estudo Afro Asiáticos da Universidade Cândido Mendes, ou o Centro de Estudos Afro –Orientais da Universidade Federal da Bahia, ou finalmente o Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo. Feito isto, precisamos explicitar esta ideia de processo relacionada ao significativo fenômeno de ampliação destes estudos para áreas de conhecimento que antes mostravam um manifesto desinteresse pela temática como seria o caso particular da filosofia, disciplina que por considerações de ordem histórica, infelizmente continua com o dogmático exercício da repetição de um dispositivo hegemônico de transferência de conhecimento eurocentrado. Mas também pela ampliação das escolhas sobre o que pesquisar relacionado às sociedades africanas, saindo de uma vez do enquadramento que significaram os estudos sobre escravidão, os quais se por um lado contribuíram de forma substancial para desmontar os modelos racistas de compreensão da história da população afrodescendente no Brasil, por outro, voluntária ou involuntariamente, condicionaram as escolhas de outros recortes e temáticas, também importantes para a compreensão diacrônica e sincrônica desta mesma população.

É nesta interface, possibilitada em grande parte também pela obrigatoriedade estabelecida pela legislação, que a produção bibliográfica nos campos da história e da antropologia aumentará e se diversificará consideravelmente. E este evento trará uma série de outras implicações no âmbito da pesquisa como, por exemplo, o caráter interdisciplinar que começa a ter maior peso epistemológico, assim como a ampliação dos recortes espaço temporais e temáticos, desta vez majoritariamente centrados no continente africano, começarão a ser privilegiados por pesquisadores e pesquisadoras tanto no nível da pós-graduação como também já na graduação, em projetos de iniciação científica.

Todos estes desdobramentos, ou “momento expansivo” [1] da formação deste campo de estudos africanos no Brasil, têm contribuído significativamente também para desessencializar a ideia da África como uma única totalidade exótica e a-histórica, incentivando a busca por um paradigma que explique integralmente os problemas africanos, redimensionando debates candentes, como os que envolvem a ansiedade em torno das relações raciais, revisitando a temática afro- -brasileira nos discursos sobre a formação nacional e ressignificando a própria leitura e difusão de clássicos africanistas que constituem o cerne desta área de interesse.[2] Ao mesmo tempo, essa abertura pressupõe uma multiplicação de perspectivas e a busca por explicações pluricausais, considerando a diversificação dos contextos / situações de pesquisa, as possibilidades e (ou) as limitações da língua portuguesa como veículo de acesso e de expressão de conhecimentos sobre o continente africano, e os vários diálogos estabelecidos em cenários de produção de saber transnacionais. O conjunto de artigos selecionados neste dossiê pretende ser uma amostra importante do mencionado no parágrafo anterior.

No presente dossiê, o artigo de Michel Cahen aponta para uma crítica ao conceito “pós-colonial – póscolonial – pós (-)colonial” na produção historiográfica em torno dos países do PALOPS (Países de Língua Oficial Portuguesa). Para ele, na maioria das produções, talvez dos últimos 30 anos, o conceito “pós” remeteria apenas a uma definição cronológica e não situacional. Esta opção traria consigo dois problemas fundamentais. O primeiro seria a superestimação do discurso em volta das elites independentistas nas antigas colônias portuguesas em detrimento das formações sociais realmente existentes. Como consequência desta opção se produziria uma espécie de hipertrofia historiográfica que impediria pensar os processos a partir das suas contradições próprias. Para explicar esta defasagem Cahen questiona, de maneira bastante pertinente, as leituras sobre os processos que cada movimento independentista teria vivido na construção da sua realidade política pós-libertação, constatando que essa leitura historiográfica ao se guiar apenas pelo discurso doutrinário dos partidos não só não conseguiriam explicar o porquê destes movimentos terem se identificado inicialmente com os princípios do socialismo, para tempo depois assumir ferrenhamente os princípios neoliberais tornados hegemônicos nos finais dos anos 80 do século XX. A explicação simplista da derrota dos princípios socialistas seria para Cahen insuficiente, pois se fosse uma derrota, esta acarretaria a substituição da elite “socialista” por uma outra. Entendendo que discursivamente socialismo e neoliberalismo seriam duas ideologias antagônicas, este antagonismo não impediu que praticamente em todos os países africanos ainda governem os mesmos partidos que iniciaram a libertação.

Outro aspecto que o autor chama atenção é que a partir da concepção cronológica do “pós-colonial” tanto a formação do partido único assim como seu imaginário político e social e o papel do Estado na consolidação do poder destes partidos, todos estes processos caríssimos à compreensão da realidade política contemporânea das antigas colônias portuguesas, são explicados com base em concepções ideológicas atreladas ao marxismo-leninismo, desconsiderando voluntária ou involuntariamente que estas formações políticas e seus próprios imaginários teriam uma origem múltipla e não seriam apenas opções dos partidos únicos governantes na atualidade, mas também de seus opositores políticos derrotados durantes as respectivas guerras civis que assolaram os países no pós-independência. Um terceiro e último aspecto que o autor traz ao debate é uma prática problemática na historiografia chamada “lusófona”, precisamente porque para o autor as realidades da cada um dos países ocupados pelos portugueses estariam mais vinculadas à sua localização regional e muito pouco à própria presença lusitana. Este aspecto é significativo, pois ao tornarem estes países “mais africanos e menos ex-portugueses” se abriria um leque de outras possibilidades de análise para entender as realidades sociais e políticas dos países em questão. Estes questionamentos nos parecem substanciais para uma revisão dessa produção historiográfica, daí a importância de incluir este texto neste dossiê.

No caso de Osmundo Pinho, a análise aponta para as vicissitudes e contradições dos processos de construção jurídica de estatutos como efeito da extensão da malha administrativa na produção do estado colonial português em Moçambique. Usando fontes e registros oficiais específicos da década de 40 do século XX, o autor discorre sobre as dificuldades e contradições do próprio processo de produção de estatutos jurídicos, entendendo o período como marcado por um contexto de debate antropológico e político-jurídico sobre as colônias africanas de maneira geral. Neste contexto conceitos como os de “razão etnológica” e “pluralismo jurídico” definiram as formas e condições do debate entre o funcionalismo antropológico britânico “triunfante” e um evolucionismo em vias de se tornar anacrônico aos olhos das ciências humanas, as mesmas se constituindo em processo acelerado. Segundo o autor, no mesmo contexto é possível identificar alguns aspectos substanciais ao processo de colonização como seria o caso da racialização (culturalização) africana, a qual teria caminhado ao par das estratégias de dominação política e à necessidade de elaboração de um arcabouço jurídico conceitual, capaz de conferir inteligibilidade aos processos administrativos, associando a diferença cultural à diferença racial como instrumento político de dominação. Neste contexto o funcionalismo antropológico britânico teria jogado um papel significativo na produção de uma “miragem” em relação aos sistemas sociais africanos paralelos aos criados pelo sistema colonial, outorgando aos primeiros um caráter homogêneo e criando a ideia da falta de temporalidade histórica das sociedades africanas, entregando de maneira insuspeita talvez a melhor justificativa ao discurso colonial. Outro aspecto bastante significativo na análise de Pinho está relacionado a dois discursos aparentemente antagônicos e separados temporalmente. Antagônicos por serem um eclesiástico e outro “socialista”, no entanto, e como mostra Pinho, o centro de cada um destes discursos apontaria para uma visão civilizatória e iconoclasta das práticas africanas referidas a condenar e justificar a desarticulação da poligamia, o lobolo e o levirato, entre os “usos e costumes” nativos mais atacados. Esta “semelhança civilizacional” dos discursos, mesmo apontando para projetos, em teoria, divergentes e antagônicos, torna o texto de Pinho da maior relevância para uma revisão histórica desde uma perspectiva mais situacional, perspectiva que é defendida neste dossiê.

O trabalho de Jefferson Olivatto da Silva incursiona no campo da medicina como dispositivo de controle dos corpos colonizados e as respostas africanas a estas práticas. Localizando seu trabalho nas regiões da atual Zâmbia e o Malawi durante finais do século XIX e começo do XX, e usando uma perspectiva de longa duração o autor reflete sobre os efeitos que a ocupação militar e o desenvolvimento e ingerência da medicina tropical nas políticas de reassentamento e controle de doenças – todos estes entendidos como agentes da colonização efetiva dos territórios recém mencionados – terão no desenvolvimento das resistências aos processos de mobilidade forçada que atingiram as populações nativas. Formas de resistências que durante muitos anos não foram consideradas enquanto tais pela historiografia africanista. Com efeito, como demonstra o autor, a situação colonial que descreve evidencia o não reconhecimento do comportamento social evasivo e adaptativo das populações afetadas pelas políticas higienistas, sob e égide do combate às epidemias que afetavam tanto a produção quanto o uso da mão de obra nativa, já que para os administradores, coletores de impostos, militares, missionários e médicos estas práticas eram entendidas como manifestações de esquiva pertencentes a um universo desprezado sem função social significativa. Um aspecto significativo ressaltado pelo autor é atrelar estes processos de construção de formas evasivas às políticas invasivas da administração colonial, devido ao seu caráter exógeno e violento, às formas atuais de resistências às políticas de controle de doenças como o HIV / SIDA. Novamente são evidenciados aqui práticas e agentes em um constante e tensionado relacionamento por definir o poder de autodeterminação frente ao controle sobre os corpos dos colonizados. A perspectiva de longa duração como princípio metodológico para a análise dos eventos e seus efeitos na configuração das sociedades africanas durante a colonização abre-nos uma nova possibilidade de revisar a história sobre o continente africano.

Quase no mesmo viés, Sílvio Correia, se debruça sobre como ciência e literatura se valeram de saberes locais para produzir um conhecimento rotulado como científico sem, contudo, reconhecê-los enquanto um conjunto de saberes, práticas e posturas com validade social nos lugares em que foram produzidos. Para tal centrará sua obra no período da descoberta do maior primata até então conhecido: o gorila. De acordo com sua linha de análise, se antes não havia consenso sobre o parentesco entre os primatas, a descoberta do gorila fomentou polêmicas e especulações que se inscrevem na produção de saberes que viriam a servir de suporte ideológico ao empreendimento colonial à época da “Partilha da África” e também ao longo da primeira metade do século XX. Este evento também incentivará o desenvolvimento de uma série de novas áreas consideradas naquele momento como científicas como os estudos de craniometria. Outro paradigma que ganhará força será a ideia de raças degeneradas, a qual assumirá um lugar importante no campo disciplinar da antropologia física. O “descobrimento” deste primata acentuará a tendência a comparar anatomicamente as “raças humanas mais degeneradas” com os macacos. Este aspecto terá desdobramentos muito mais complexos, pois de acordo com Correia, se na Antiguidade a comparação era entre o homem e o macaco, no pensamento moderno esta se racializa e se torna cada vez mais uma comparação entre o negro e o macaco. Para a antropologia do final do século XIX, a comparação entre “hotentotes”, “pigmeus”, gorilas e chimpanzés foi uma prática comum dos estudos de anatomia comparada. Mas alguns estudos extrapolavam a comparação anatômica, estabelecendo comparações em termos de comportamento. Mesmo que não houvesse consenso na comunidade científica, os “zoos humanos” não hesitavam em exibir “bosquímanos” e “pigmeus” como elos da evolução humana.

Finalmente o trabalho de Lorenzo Macagno analisa duas narrativas sobre o apartheid da década de 1980. O primeiro destes relatos engloba múltiplos microrrelatos: trata-se do trabalho do antropólogo norte-americano Vincent Crapanzano sobre os africâneres (ou bôeres) da África do Sul. Naquele momento Crapanzano teria realizado uma etnografia “plurivocal”, “polifônica” e “dialógica”, segundo o próprio autor um exercício de questionamento da “autoridade” etnográfica, segundo Macagno, uma discussão presente no debate pós-moderno da época. Sobre este aspecto bastante significativo para a produção antropológica, Macagno questiona pertinentemente quais são os limites do relativismo antropológico e das abstenções do juízo em relação a um regime que não admitia ambiguidade? Apesar das dificuldades que esta etnografia coloca para o debate disciplinar, Crapanzano teria conseguido mostrar alguns sinais diacríticos da identidade construída pelos próprios africâneres como a língua e seu distanciamento dos ingleses se colocando como um tipo de vítima do “imperialismo” inglês, eludindo, desta forma, uma importante questão: a relação com os negros sul-africanos. A outra narrativa é do jornalista sul-africano Rian Malan, sobrenome pertencente a “dinastia” Malan que fora um dos nomes que em 1948 implementara o apartheid na África do Sul. Uma das primeiras questões que Macagno questiona é: “é possível ser um Malan e ser contra o apartheid?”. Na análise do livro o autor descreve o caráter auto-irônico de Malan ao se confrontar com um sistema que por lei o privilegiava e que por outro lado gerava desconforto a uma pequena elite branca devido à violência praticada contra a população negra. Segundo Macagno, para Rian Malan, apesar das boas intenções, o papel dos brancos na luta anti-apartheid estava condenado por uma “lei de cumplicidade genética”. O livro do jornalista apresenta uma crônica das violências cotidianas decorrentes do apartheid. Malan articula e integra a descrição da violência política com as consequências que ela mesma produz na subjetividade dos atores envolvidos. Malan, como jornalista, vai em busca do saber antropológico. Sem cair no essencialismo – tão criticado por Crapanzano – traz ao seu universo de compreensão as forças simbólicas que ainda operam na África do Sul, procurando encontrar uma coerência e um sentido naquilo que, aparentemente, resulta arbitrário e caótico. Em suma, Macagno tentará refletir a partir destas duas narrativas sobre quais seriam as estratégias estilísticas, políticas e éticas escolhidas no momento de descrever o apartheid. Quais as consequências e os dramas morais produzidos por um sistema de segregação que não admitia ambiguidades classificatórias, nem dissidências políticas ou étnicas? Desde uma perspectiva comparativa o autor analisa estas duas narrativas, indagando sobre os efeitos do apartheid na subjetividade individual e coletiva de uma sociedade dividida.

Esse número da Revista História: Questões & Debates conta também com a sessão de artigos. O primeiro deles, de autoria de Valeska Alessandra de Lima e Dóris Bittencourt Almeida, é produto da pesquisa “Escritos de alunos: memórias de culturas juvenis (1940- 1960)”, que toma como objeto de investigação os periódicos produzidos por alunos de diferentes instituições escolares de Porto Alegre / RS. O estudo vincula-se aos pressupostos teóricos da História Cultural e inscreve-se no campo da História da Educação em suas interfaces com a Imprensa Escolar e a História das Instituições Educacionais. O foco da análise foi perceber as marcas deixadas pelos jovens no periódico “Colunas”, anuário produzido pelo Instituto Porto Alegre / IPA, procurando distinguir indícios de saberes e práticas escolares que evidenciam as identidades daqueles sujeitos. O segundo texto pertence a Christiane Heloisa Kalb e Mariluci Neis Carelli, analisando a importância do patrimônio industrial, especialmente no que se refere às ferramentarias de moldes e matrizes para a cidade de Joinville / SC. O artigo tenta mostrar a ligação entre a identidade dos entrevistados, em sua maioria ferramenteiros ativos ou já aposentados, com a cidade de Joinville conhecida por sua pujança industrial, por esse motivo merecedora de estudos mais aprofundados sobre o patrimônio cultural industrial em seus aspectos materiais e imateriais, a partir das memórias desses profissionais ferramenteiros. O último trabalho nesta sessão é de Helder Henriques e Carla Vilhena, que aponta para o estudo dos comportamentos chamados antissociais na infância e juventude em Portugal entre as décadas de 70 e 90 do século XX. Pretende identificar e analisar os principais discursos relacionados com este problema social no arco temporal previsto. Para isso apresentam o quadro histórico de evolução do sistema de justiça de menores em Portugal ao longo do novecentos, para depois tentar compreender as conceições de risco, tendências e influências sociopedagógicas e as formas de prevenção e de regeneração em articulação com o discurso do Estado, da Escola e da Família.

Notas

1. Marques, Diego Ferreira e Jardim, Marta D. da Rosa. “O que é isto: ‘a África e sua História’”? In: Trajano Filho, Wilson (Org.). Travessias Antropológicas: estudos em contexto africanos. Brasília: ABA Publicações, 2012. pp.31-62.

2. Chegen, Michael “Las teorías de la ciencia política como un obstáculo para entender el problema de la violencia política y de Estado en África”. ISTOR, Año IV, Núm. 14, 2003, pp. 32-47.

Héctor Guerra Hernandez


HERNANDEZ, Héctor Guerra. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.62, n.1, jan. / jun., 2015. Acessar publicação original [DR]

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As imagens no tempo e os tempos na imagem / História – Questões & Debates / 2014

As imagens no tempo e os tempos da imagem A onipresença da imagem na sociedade contemporânea, veiculada em distintos suportes tecnológicos e com múltiplas finalidades, tem estimulado o debate entre os estudiosos de diferentes áreas do conhecimento. Até há pouco tempo a imagem encontrava-se, praticamente, restrita ao domínio da disciplina de História da Arte e dos aportes da Estética, aos seus estudos formais e estilísticos. Na atualidade, a imagem tem propiciado a constituição de novos campos de pesquisa, atrelados à Antropologia, à Comunicação e aos novos paradigmas científicos.

A História da Arte enfrenta um processo de revisão de conceitos, teorias e métodos norteadores e tem sido desafiada a repensar os processos de instauração das imagens, suas montagens e desmontagens, suas memórias e temporalidades, além de seus processos de exibição, circulação e legitimação. A História também passa por mudanças ao valorizar e depositar maior confiança nas potencialidades da imagem como fonte de estudo do passado, mas consciente de que não basta perguntar somente que história ela documenta e de que história ela é contemporânea, mas que “memória ela sedimenta”,[1] que temporalidades ela evidencia.

Os estudos de imagens cristãs medievais [2] colaboraram para o melhor entendimento histórico e antropológico. Nesses foi observada a sua eficácia espiritual e política para a formação do imaginário individual e coletivo, exercida pelos rituais, bem como outros usos e funções. Esses estudos possibilitaram ainda verificar o imago, como fundamento de uma Antropologia Cristã, que rejeitou a imitação da imagem antiga pagã para promover a transcendência. As cores e as formas se constituíram como indícios simbólicos de uma realidade invisível e da Encarnação. Ao mesmo tempo em que a imagem exercia eficácia espiritual e controle social, ela poderia simbolizar a posse de territórios, como o Vaticano, representar cidades, criar locais de peregrinação, dentre outras funções. Os historiadores puderam observar o poder da imagem e a presença de memórias e temporalidades distintas, de fantasmas, apesar da aversão cristã ao antigo mundo pagão.

Estudos recentes evidenciam que diante da imagem os tempos coexistem e revelam a sua complexidade, seus diferentes estratos se cruzam e se contradizem. Algumas imagens, como, por exemplo, as do fotojornalismo, revelam as memórias das tragédias e de acontecimentos de muçulmanos com reminiscências da iconografia cristã. O algeriano Hocine Zaourar apresenta na “Madona de Benthala” (1997) múltiplas memórias, desde as Pietás medievais, do Renascimento e, sobretudo, barrocas da religião cristã para manifestar o sofrimento da mulher no massacre de Benthala. Essas imagens, como outras, são montagens de diferentes memórias, estratos de tempos e lugares que se realizam pela via da contradição e que geram outras imagens em distintos suportes.[3] As migrações simbólicas e as sobrevivências culturais, na longa duração, e em imagens de diferentes suportes técnicos, foram verificadas, no início do século XX, nos estudos de Aby Warburg relativos ao Renascimento florentino.[4]

Cinema, fotografia, publicidade, artes revelam as sobrevivências, os anacronismos e os reencontros de temporalidades contraditórias e descontínuas que compõem as imagens nas suas montagens, ao apresentarem a tessitura de resíduos, traços e vestígios de tempos distintos, de nossa memória inconsciente. O tempo não significa necessariamente o passado, mas a memória, porque ela decanta o passado, o humaniza e configura o tempo. A memória é psíquica no seu processo e é anacrônica nos seus efeitos de montagem, pois ela conecta o inconsciente.[5]

O dossiê ora apresentado aborda as relações entre a história e a imagem a partir desse recorte que privilegia o tempo humanizado e configurado em memória, ou seja, edificado pelo processo da montagem que resulta em narrativas audiovisuais, coleções de fotografias, ações performáticas, charges, exposições e obras de arte.

Ao mesmo tempo, vale lembrar que a noção de imagem contém um duplo âmbito, ou seja, a reminiscência (mental e mnemônica) e o produto físico (gravura, pintura, fotografia).[6] Assim, toda a imagem também pode ser pensada enquanto um produto posto em circulação na sociedade, elaborado a partir de encargos e diretrizes [7] concernentes à sua época de produção, comercializado, colecionado, exibido, consumido e ressignificado por um determinado público. As imagens impregnam sentidos e valores que se constroem justamente nessa dinâmica social, em que toda a produção e o consumo estético estão profundamente imbricados às formas de relacionamento social e político que se estabelecem nos mais variados contextos culturais. Tanto os produtos visuais que tensionam os nossos esquemas de interpretação da realidade e os nossos padrões de gosto quanto os que os reforçam fazem parte do nosso modo de dar sentido ao mundo em que vivemos. Apresentam particularidades próprias e conformam campos estritos de estudo (as artes visuais, o cinema, o design, a publicidade), mas, ao mesmo tempo, se articulam sutilmente a outros âmbitos da cultura, assumindo importante participação tanto nas “permanências” quanto nas “rupturas” que se processam na sociedade ao longo do tempo.

Desse modo, ao reunir pesquisadores cujos estudos recentes se debruçam sobre a questão das imagens no tempo e dos tempos da imagem em suas mais variadas significações, pretendemos, com este dossiê, explorar a diversidade de enfoques, além de fomentar o debate acerca da relevância e da complexidade dos estudos atuais acerca do tema. Os artigos ora apresentados enfocam, por ângulos variados, algumas questões relevantes sobre memórias, temporalidade e circulação social das imagens que podem ser descritas, grosso modo, a partir de quatro eixos.

O primeiro diz respeito à abordagem dos arquivos e museus como espaço de acondicionamento de artefatos visuais (fotografias, impressos, móveis entalhados, obras de arte e seus registros documentais). Diz Raul Antelo, em seu artigo, que no museu reside “o espectro de uma destinação”, descrevendo-o como “câmara de reclusão e confinamento da imagem”. Tais espaços de reclusão são tomados como ponto de partida pelos autores dos artigos para pensar a dimensão temporal dos mesmos – desde a preservação e o “congelamento” da história, passando pelas ideias de imobilização do tempo, até a construção de memórias e a ressignificação de esquemas iconográficos que se repetem ao longo dos séculos. Este eixo perpassa os textos de Angela Brandão, Solange Lima e Vicente Sánchez-Biosca, que se debruçam sobre arquivos bem específicos, mas também o de Artur Freitas, que focaliza um caso de obra artística efêmera e de caráter notadamente anti-institucional, mas realizado dentro do espaço oficial de um museu.

O segundo eixo tangencia o suposto caráter “documental” da imagem técnica (fotografia e cinema) e sua capacidade de “capturar” o instante, um fragmento do tempo, cristalizando-o em imagens, fazendo-nos ver nelas elementos que muitas vezes nos escapam ao olho nu e construindo sentidos sociais. Ao mesmo tempo, essas imagens transformam-se, como diz Sánchez-Biosca, em “fantasmas de outros tempos que nos observam”. O artigo de Josep Català também pontua essa “função maravilhosa e surpreendente que permite congelar o presente e convertê-lo, imediatamente, em memória visual” – fato que deslumbrou uma fase da modernidade que se empenhava em “converter o mundo num acúmulo de fatos pesáveis e mensuráveis, portanto, arquiváveis”. Mas também outros sentidos menos ligados à vontade classificatória do mundo se constroem em torno dessa função de “congelamento do tempo” atribuída às fotografias. Apontando para uma prática social e cotidiana das fotografias de família, Solange Lima diz, em seu artigo, que as práticas de colecionismo de álbuns fotográficos podem ser entendidas enquanto “performances de caráter afetivo e emocional a serviço da rememoração”. Artur Freitas tem como objeto de estudo um vídeo que é o único registro de uma obra “efêmera” que, sem tal registro, já não seria visualizável. E Ana Maria Mauad aponta para o âmbito social da circulação de fotografias documentais na mídia e a construção de sentidos em torno das mesmas, avaliando a dimensão temporal da fotografia enquanto uma “experiência vivencial”.

Um terceiro eixo que perpassa os artigos deste dossiê diz respeito à montagem das imagens e suas memórias ou tempos diferentes, que se articulam à circulação de símbolos e suas sobrevivências na longa duração. No artigo de Sánchez-Biosca, isso se faz ver pela descrição dos usos das mesmas imagens filmográficas em variados contextos e narrativas. Ignácio Del Valle Dávila, por sua vez, analisa dois filmes históricos em que “passado e presente se inter-relacionam num jogo de espelhos”. E, nas reflexões desenvolvidas por Català, ele menciona os espaços “metatemporais” que agrupam as distintas temporalidades das imagens que eles mesmos contêm, ou seja, que consistem em espécies de painéis, no sentido warburgiano, permitindo visualizar um “fluxo temporal que une as imagens de diferentes épocas”. Essa dimensão, no que se refere à sobrevivência das imagens em tempos diferentes, é observável também nos textos de Ana Maria Mauad e de Angela Brandão, quando as duas autoras buscam enfatizar certos “diagramas”, schemas ou matrizes iconográficas que são desenvolvidos culturalmente e que podem ser reconhecidos em imagens de contextos temporais bem distintos. Enfim, como escreveu Raul Antelo no início de seu artigo, “a história é montagem de temporalidades diversas” que obedecem à ilusão do “já-vivido”.

E ainda um quarto eixo perceptível nos artigos é o enfoque sobre os diferentes usos históricos (temporais, portanto) das imagens, com finalidades políticas, cívicas ou didáticas. Esse eixo pode ser exemplificado tanto pela construção das imagens de personagens políticos quanto pelas missões cívicas, políticas e didáticas atribuídas ao cinema e às artes em certas políticas culturais, questões claramente apontadas nos artigos por Ignácio Del Valle Dávila, Eduardo Morettin e Rodrigo Tavares. Entretanto, outra forma de uso político da imagem – ou de ações visuais – pode ter como finalidade a provocação e a contestação em relação aos valores estéticos e políticos vigentes, como o caso tratado no artigo de Artur Freitas, que aponta para o caráter efêmero e impalpável de certas obras como forma de reação ao anseio pela “permanência”.

Tais eixos, é importante frisar, não estão presentes com exclusividade em um ou outro texto. Estão, por assim dizer, mesclados e respingados nos diversos ângulos e objetos escolhidos pelos autores para elaboração de seus artigos. Vale, portanto, situar brevemente o leitor quanto ao conteúdo dos artigos que compõem este dossiê.

No texto de abertura, Josep M. Català Domènech mobiliza o conceito de “espaço-tempo” e apresenta-o como um dispositivo hermenêutico para se pensar a realidade, especialmente quando associado ao fenômeno cinematográfico e seus desdobramentos. Afirma que o pensamento histórico ainda não se adaptou às novas formas de pensar o tempo advindas com a invenção do cinema e com as teorias físicas desenvolvidas por Einstein e Minkowski (autor do conceito de espaço-tempo). Afirma que a história se ocupa muito pouco dos problemas do tempo, ainda que o considere a sua matéria-prima. Segundo Català, atualmente é preciso considerar uma nova dimensão do tempo recentemente detectada, que corresponde à fase em que o tempo está “sendo visualizado”. Portanto, para compreender as dimensões deste fenômeno, se faz necessário buscar entender quais relações o tempo estabelece com a visualidade. Sua questão, no artigo, é refletir sobre o tipo de história que surge do “tempo visualizado”, ou seja, do que se entende por tempo na era das imagens. Desde meados do século XIX vivemos um regime das “imagens instáveis”, que aparecem na caricatura, na fotografia e até na literatura, e Català se pergunta se temos compreendido o que essa nova formação das imagens significa na história da representação visual. Para ele, o movimento aparece como a essência do tempo, já que se mostra como fator de transformação da percepção (e não como representação naturalista que supre uma carência da imagem fixa). Assim, o espaço-tempo visualizado, seja através do cinema ou das novas imagens de interface, se converte em nova ferramenta mental.

Em seguida, o artigo de Raul Antelo traz uma reflexão sobre os textos publicados pelo poeta e fotógrafo Sylvio da Cunha na coluna “Letras e Artes” do jornal carioca A Manhã ao longo de 1947 e 1948. Segundo Antelo, Sylvio Cunha teria elaborado “a primeira teoria da fotografia no Brasil”, ou, talvez mais do que isso, uma “antropologia do sensível”, por meio das ideias que se aproximam às de Walter Benjamin. Ao definir poesia, Cunha fala de “fotografias da memória” ou “imagens do pensamento”. Ao falar sobre as origens da fotografia e as resistências a ela no século XIX, o poeta fala das sombras e das superstições em torno da “imagem refletida” e dos fantasmas (imagens-eidolom) que atravessam os séculos. “Os fotógrafos de 1850 eram manipuladores de sombras”, dizia. E buscava definir uma estética para essa linguagem, identificando, entre os seus atributos, o aparecimento da quarta dimensão – o tempo – “no momento transitório e cambiante, uma face da eternidade que é possível contemplar livremente”. Ao definir o cinema, Cunha o descrevia como “uma fotografia em estado de sonho”. Observa-se, assim, uma articulação entre os dois textos – espaço- -tempo de Català / fotografia como essa linguagem que contém o “tempo” como um de seus atributos.

Na sequência, o artigo de Vicente Sánchez-Biosca pode ser encarado como um estudo pontual sobre um conjunto de imagens que traduzem essa ideia de “tempo visualizado” ou, noutras palavras, permitem que fragmentos de um tempo passado sejam vistos por nós como verdadeiros fantasmas de um pesadelo histórico: as filmagens feitas no Gueto de Varsóvia ao longo dos meses de abril e junho de 1942, pouco antes das deportações dos judeus daquele Gueto para os campos de extermínio. Trata-se de um material que traz em si as marcas das condições do tempo e do lugar em que foi gestado e que se desvia, hoje, de sua possível função propagandística original (uma vez que foi produzido por cinematografistas a serviço do governo alemão), tornando-se ambíguo e, portanto, mais rico enquanto arquivo visual. Sánchez- -Biosca se propõe a analisar usos documentais desse material de arquivo bruto ao longo do tempo: os modos como foi montado, sonorizado, trucado, explorado, pontuando que essas intervenções revelam aspectos das tendências hegemônicas de cada período histórico, tanto no âmbito estético quanto no ideológico. Aborda as estratégias de reapropriação deste material e de seus diferentes usos que fazem significar coisas distintas. Desse modo, o autor discute os processos de montagem da imagem e suas memórias ou tempos diferentes, apontando para sua sobrevivência na longa duração.

O artigo de Ana Maria Mauad também contém essa ideia de montagem e da sobrevivência da imagem em tempos diferentes, bem como discute a questão biográfica das imagens e seus significados culturais. Para tanto, toma como ponto de partida uma fotografia produzida pelo francês Marc Riboud, em 1967, que mostra uma moça com uma flor diante de soldados armados. Defende que a fotografia é “espécie de condensação de tempos que já não existem, mas permanecem estáticos na superfície fotográfica, como se previssem o futuro”. Mobiliza o conceito de foto-ícone, associando-o ao estudo da cultura pública na democracia americana moderna, para então propor outra perspectiva para se operar com esse conceito, apoiando-se na noção de que todas as imagens possuem uma biografia, e de que “não existe uma história por detrás das imagens, mas imagens que fazem história”. Para refletir sobre a fotografia de Riboud, toma como eixo a presença da flor como signo de paz, remontando à presença da flor nas representações da Anunciação na renascença italiana e projetando suas significações às imagens das movimentações de rua no Brasil de 2013. Aponta para essa trajetória de imagens no tempo para afirmar, pautada em Hans Belting, que “as imagens ganham corpo por meio de práticas sociais, em que sujeitos incorporam as imagens tanto como ideia e representação quanto como objetos, marcas corporais e gestos”.

O artigo de Angela Brandão dá sequência ao dossiê e tem como ponto de partida um objeto pertencente ao Museu Arquidiocesano de Arte Sacra de Mariana, qual seja, um trono episcopal atribuído a Antônio Francisco Lisboa (datado de aproximadamente 1790), entalhado com um esquema decorativo composto por três figuras angelicais. A partir deste objeto, a autora estabelece uma reflexão em que busca identificar as “matrizes visuais destes elementos simbólico-decorativos: os querubins e os anjos portadores de mensagens”. Ao articular a presença das figuras entalhadas no referido trono com uma narrativa que envolve a descrição de crianças, meninos seminus, anjos e Cupidos como personagens dos cortejos realizados para a chegada do primeiro bispo de Mariana, em 1748, Brandão propõe uma interpretação sobre a transposição das figuras aladas da arte Antiga – especialmente de Eros, por meio do neoplatonismo – para o Renascimento, transposição herdada pela arte barroca e rococó, num processo que “passava pelo deslocamento da linguagem e de repertório escultórico do barroco romano do século XVII para o universo das esculturas para Mafra, em Portugal do século XVIII e, daí, em direção à arte no Brasil do Setecentos”. Assim sendo, a partir do estudo das figuras de anjos presentes nos entalhes do mobiliário brasileiro do século XVIII, ressalta esquemas iconográficos que sobrevivem ao tempo e que se ressignificam em diferentes contextos histórico-culturais.

Solange Lima, inspirada num artigo de Elizabeth Edwards, discute as práticas museológicas colecionistas, tomando como ponto de partida um armário (ou repositório) de doações feitas ao Museu Paulista, o A41, cujo conteúdo é composto primordialmente de fotografias de família produzidas em diferentes períodos e para diferentes circuitos das esferas pública e privada. A autora enfatiza, no artigo, as permanências nos enquadramentos e suportes materiais observáveis na produção dessas imagens do tipo “retrato” em diferentes momentos históricos e que se mantêm para além da diversidade de suas funções (afetivas, cívicas, religiosas, históricas e celebrativas). Além disso, Lima debruça-se sobre o processo ativo de musealização desses documentos iconográficos capazes, segundo ela, “de iluminar práticas cotidianas de uma sociedade calcada no regime escópico”. Assim, ao partir de “um conjunto formado pela prática de coleta museológica”, questiona em que medida esses objetos visuais podem ser considerados de interesse para tratar da visualidade da sociedade contemporânea e, ao mesmo tempo, pondera sobre os efeitos sociais provocados pelas políticas de coleta de acervos dos museus. Com tais questões a lhe guiar, e a partir de diferentes exemplos extraídos da sua prática profissional, a autora reflete sobre o tempo das imagens na vida cotidiana e como parte de acervos museológicos.

Já Artur Freitas, partindo da relação conflituosa entre a temporalidade das artes performáticas e a espacialidade dos museus de arte, analisa o caráter ritualístico da obra Situações Mínimas, realizada pelo artista plástico Artur Barrio em 1972. A análise é feita a partir do filme homônimo que documenta o ritual. A obra de Barrio é considerada, no texto, como “uma forma de profanação das condições institucionais inerentes a um museu de arte” e vista como um caso capaz de ajudar na compreensão dos embates entre vanguarda e museu, num contexto em que um Museu de Arte contemporânea (MAC) acabara de ser criado na cidade de Curitiba. Definindo o museu enquanto “frigorífico da história”, o autor diz que o MAC, ainda que defensor de uma “museologia progressista”, tinha que lidar com a precariedade financeira e com as contradições entre as regras especificamente expositivas de uma instituição museológica e o caráter anti-institucional da proposição “sacrílega” feita por Barrio, artista mais afinado aos “gestos insubordinados das vanguardas contraculturais” e que usa “da temporalidade e do próprio corpo enquanto dispositivos poéticos”.

Como parte de um projeto mais amplo que investiga as representações cinematográficas da independência sob regimes autoritários na América Latina, o artigo de Ignácio Dell Valle Dávila privilegia a análise dos dois filmes históricos mais representativos da produção cinematográfica cubana dos anos 1960-70 (Lucia, de Humberto Solás, e La primera carga al machete, de Manuel Octavio Gómez), refletindo sobre os usos históricos do cinema enquanto parte de um projeto político de edificação da memória nacional. Por meio da análise fílmica, o autor observa como o Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica (ICAIC) associou as guerras de independência com a revolução cubana, dentro de uma política cultural que privilegiava a produção de um cinema histórico que abordava o processo de independência como uma etapa no processo de luta pela liberdade nacional. Tais realizações cinematográficas estavam afinadas ao estabelecido pela lei de fundação do ICAIC, em 1959, segundo a qual a história cubana seria um dos principais temas do cinema da Ilha. O autor busca, ao mesmo tempo, avaliar as estratégias narrativas e estéticas que os dois cineastas desenvolveram em seus filmes e que lhes permitiram satisfazer as diretrizes dessa política cultural oficial sem renunciar às suas inquietudes criativas.

O artigo de Eduardo Morettin reflete sobre a participação do cinema na Exposition Coloniale Internationale et des Pays d’Outre-Mer, que ocorreu na cidade de Vincennes, vizinha a Paris, entre maio e novembro de 1931, pensando os usos históricos do cinema como projeto cívico articulado à ideia de nação. A exposição era dedicada a celebrar o império colonial constituído pela França desde o XIX. Dentro de uma perspectiva de valorização do Império Colonial, o autor afirma que o cinema teve papel decisivo na construção e no reforço de um imaginário voltado à afirmação da França como nação condutora da civilização e busca situar historicamente tanto a exposição quanto o cinema. Segundo ele, sabia-se que o potencial do cinema era equivalente ou até maior do que uma exposição universal, pois o cinema já era percebido como um dos principais vetores de intervenção no campo político.

Por fim, Rodrigo Tavares analisa os desenhos retratando o político paulista Ademar de Barros que foram publicados nos jornais comunistas Hoje e Novos Rumos. Seu intuito é compreender como as imagens foram utilizadas na construção da figura do político de acordo com os interesses do Partido Comunista Brasileiro (PCB), no período entre 1947 e 1964. O autor discute, dessa forma, os usos históricos da charge na mídia impressa, enquanto projeto de construção e de difamação de um mesmo personagem político, em momentos distintos da sua relação com o Partido Comunista.

Agradecemos aos colegas que colaboraram com o presente dossiê e possibilitaram ampliar os estudos e reflexões teóricas sobre a imagem e o tempo e o tempo na imagem no campo da história e áreas afins.

Notas

1. DIDI-HUBERMAN, Georges. La condition des images. Entretien avec Frédéric Lambert et François Niney. In: LAMBERT, F. L’éxpérience des images. Paris: INA Éditions, p. 95.

2. BELTING, Hans. Das Bild und Publikum im Mittelater. Berlim: Gebr. Mann Verlag, 1981. L’image et son public au moyen-âge. Paris: Gerard Monfort, 1998. Bild und Kult. Munique: Verlag C. H. Beck o H.G., 2004. Semelhança e presença. A história da imagem antes da era da arte. Rio de Janeiro: ARS URBE, 2010. SCHMITT, Jean-Claude. Le corps des images. Essais sur la culture visuelle au Moyen-Âge. Paris: Gallimard, 2002. O corpo das imagens. Ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru, São Paulo, 2007.

3. DIDI-HUBERMAN, Georges. Image, événement, durée. In: CARERI, Giovanni et al. Paris: Éditions de EHESS, 2009. Nesse texto, o autor apresenta a obra do artista contemporâneo Pascal Convert (1999-2004) efetuada a partir da fotografia de Georges Merillon (1990) sobre a previsão de catástrofe em Kosovo. O autor analisa o movimento das imagens sob outros suportes e diferentes temporalidades, além de salientar que o fotojornalismo provoca reflexões no público, a respeito das tragédias, e aciona novo olhar no artista.

4. WARBURG, A. A renovação da antiguidade pagã. Contribuições científico-culturais para a história do Renascimento europeu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

5. DIDI- HUBERMAN, Georges. Devant le temps. Paris: Éditions Minuit, 2000. p. 83-95.

6. Hans Belting diferencia tais âmbitos usando os termos em inglês image e picture. Ver: BELTING, Hans. Por uma antropologia da imagem. Concinnitas, n. 8, p. 66, jul. 2005.

7. Os conceitos de encargos e diretrizes são extraídos de Michael Baxandall e referem-se a: 1) encargos: a encomenda, a motivação para a edificação de um determinado artefato visual; 2) diretrizes: as diversas condições (estéticas, sociais, tecnológicas, ideológicas) envolvidas na realização do produto e que interferem nas suas finalidades e também na sua forma final. Ver: BAXANDALL, Michael. Padrões de intenção: a explicação histórica dos quadros. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Maria Lúcia Bastos Kern

Rosane Kaminski

(Organizadoras)


KERN, Maria Lúcia Bastos; KAMINSKI, Rosane. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.61, n.2, jul./dez., 2014. Acessar publicação original [DR]

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Cultura escrita, educação e instrução no antigo regime português / História – Questões & Debates / 2014

Este número da Revista História: Questões & Debates traz o Dossiê “Cultura escrita, educação e instrução no Antigo Regime português”, organizado por integrantes do Grupo de Pesquisa Cultura e Educação na América Portuguesa, que reúne pesquisadores de vários estados brasileiros e de Portugal. O Grupo vem atuando desde 2010, com o propósito de verticalizar discussões sobre a cultura escrita entre o século XVIII e as primeiras décadas do século XIX, em diferentes vertentes que integram os interesses de pesquisa da equipe. Essas vertentes vêm se dedicando ao estudo (i) dos projetos educacionais no Império português, particularmente na América, (ii) das relações entre instrução e educação na formação dos quadros administrativos, nas atividades econômicas e na formação profissional, (iii) das relações entre Iluminismo e cultura escrita, e entre esta e práticas culturais e educativas como mediadoras de sociabilidades, e (iv) das instituições e de seus componentes num mundo supostamente Ilustrado. São temáticas fundamentais para documentar e discutir a passagem do domínio político ao império da língua, assim como para perceber a presença e a importância do elemento letrado, sua demografia, geografia, formação, formas e mecanismos de sociabilidade. Em vista deste programa de pesquisa, o Grupo entende que, para a compreensão dos fenômenos relacionados a este processo, é necessária uma visão que combine, ao mesmo tempo, a atenção às especificidades de cada uma das partes com o entendimento das dinâmicas mais gerais que estiveram em ação no momento em que o Estado português procurava soluções para os seus dilemas políticos, econômicos e culturais, e que as estruturas do Antigo Regime iam dando lugar a novas formas de organização e exercício do poder.

Estas preocupações também surgem por se considerar que a segunda metade do século XVIII foi uma época de profundas mudanças no reino de Portugal e em seus territórios ultramarinos. A área educacional foi particularmente atingida, verificando-se um desejo de transformação na mentalidade dos portugueses, principalmente dos jovens. A reforma dos Estudos Menores (1759 e 1772), a criação da Aula de Comércio (1759) e do Real Colégio dos Nobres (1761), além da reforma dos Estatutos da Universidade de Coimbra (1772), são as faces visíveis desse processo que, em certos aspectos, precedeu a diversos outros estados europeus, como a Prússia, Áustria e França, e mostrou uma sintonia entre reformas e o “espírito” daquele século.

Paralelamente às tentativas de impulsionar a educação, a vigilância sobre o que era publicado e lido ganhou novos contornos, com a criação da Real Mesa Censória, em 1768. Neste âmbito, o Tribunal da Inquisição também foi objeto da ação reformista empreendida no reinado de D. José I. Na área da cultura escrita, a própria atividade editorial foi, em muitos momentos, patrocinada pela própria Coroa, interessada em tornar seus jovens “bons cidadãos”, em consonância às ideias então propaladas em obras de intelectuais portugueses influenciados pela Ilustração. Diversos textos foram também publicados pela Imprensa Régia e, mais tarde, pela Imprensa da Universidade de Coimbra. Não menos importante, deve-se considerar que o comércio de livros produzidos fora de Portugal manteve-se muito ativo, como demonstram os inventários de diversas bibliotecas. Ainda nesta perspectiva, a relativa ampliação do ensino das primeiras letras e das gramáticas latina e portuguesa trazia outras populações para o mundo da escrita, com impactos culturais e sociais importantes, sobretudo na América. Estas atividades tiveram continuidade nos reinados de D. Maria e de D. João VI, matizando os efeitos da propalada “Viradeira”.

Assim, os textos apresentados neste Dossiê procuram discutir a importância da cultura escrita e suas relações com a educação e a instrução no Antigo Regime português. Os textos percorrem diferentes temas e investem em abordagens que recorrem a fontes e orientações teórico-metodológicas ainda pouco exploradas pela historiografia, verticalizando discussões sobre o contexto reformista que marcou o mundo luso-americano a partir da segunda metade do século XVIII até as primeiras décadas do século XIX. Esse movimento renovador também é tributário da interlocução mais frequente entre historiadores e pesquisadores de áreas limítrofes, como Estudos Literários, Sociologia e Educação. É nesta perspectiva que se vislumbra a contribuição destes estudos e sua articulação com um programa de pesquisa mais ampliado.

O primeiro texto, de autoria de Thais Nívia de Lima e Fonseca, a par de apresentar uma concisa discussão acerca dos caminhos da historiografia da educação voltada ao período colonial brasileiro, mostra os resultados do investimento em um novo veio documental, a correspondência trocada entre professores régios, governadores de capitania, bispos, funcionários da Junta da Diretoria Geral de Estudos e o Conselho Ultramarino, a partir da qual são discutidas as relações estabelecidas entre os professores régios e os responsáveis pelo controle administrativo do ensino régio na América portuguesa. A autora destaca, assim, os interesses e conflitos dos sujeitos envolvidos com a educação no contexto colonial, abordando também aspectos do funcionamento cotidiano das escolas régias instituídas, a partir de 1759, com as reformas pombalinas da educação.

A seguir, Antonio Cesar de Almeida Santos revisita o conjunto dos diplomas legais que instituíram as reformas pombalinas da educação, apontando para o tipo de estudante e, consequentemente, para o “profissional” desejado pelos propositores das tais reformas, considerando que elas estiveram orientadas pelo interesse em desenvolver uma mentalidade que se coadunasse à nova realidade que se queria construir. Assim, seu interesse maior é o de perceber os nexos entre as novas ideias que permeavam o ambiente intelectual europeu e os conhecimentos e as metodologias de ensino que foram propostos para a instrução dos jovens portugueses.

Por sua vez, Justino Pereira de Magalhães aborda a administração municipal pela ótica de sua ordenação por intermédio do uso da escrita administrativa, apontando para uma crescente formalização, profissionalização e especialização desse domínio. Enfocando a figura do escrivão, sujeito responsável pelo registro escrito dos atos municipais, mostra como ocorreram a adequação e a legitimação de uma escrita municipal, particularmente a colonial, ao longo do século XVIII, frente às instâncias decisórias do centro. Conforme o entendimento do autor, a escrita municipal é instituidora do próprio município, desvelando-se como texto, e é como tal que precisa ser interpretada.

Em um registro de longa duração, Ana Rita Bernardo Leitão aborda a instrução dos indígenas da América Portuguesa, especialmente no que concerne à introdução do idioma português entre estes sujeitos. Aqui, a atividade educacional, especialmente aquela promovida pela Companhia de Jesus, mistura-se à missionária, vislumbrando-se estratégias de incorporação das populações autóctones à fé católica e à cultura portuguesa. Apesar da relativa eficácia da ação de civilização das populações ameríndias, no que se refere especialmente ao domínio da língua portuguesa, não ficam ausentes os obstáculos enfrentados, em destaque aqueles que serão objeto de atenção do gabinete pombalino.

Ana Cristina Pereira Lage trabalha com dois conceitos essenciais para os estudos que o Grupo de Pesquisa Cultura e Educação na América Portuguesa vem desenvolvendo: letramento e cultura escrita. Em seu artigo, a autora busca compreender, a partir destes conceitos, a produção e a utilização de livros devocionais pelas mulheres que seguiam a Regra de Santa Clara na América Portuguesa. Assim, a partir de uma análise que conjuga a interpretação da Regra, das práticas de leitura, da escrita e dos livros que orientam para o caminho da perfeição religiosa, aponta para o caminho que essas mulheres pretendiam seguir: a busca de uma vida exemplar. A partir da documentação, torna-se possível identificar o estilo literário predominante nos conventos que seguiam a Regra de Santa Clara, estabelecendo padrões para o letramento religioso conventual e que circulava entre Portugal e a América portuguesa, em meados do século XVIII.

Sílvia Maria Amâncio Rachi Vartuli discute os usos sociais que mulheres de Minas Gerais fizeram da escrita, no período de 1780 a 1822, considerando que as relações com a escrita ultrapassam em muito a capacidade de redigir de “próprio punho”. Aborda, assim, os fenômenos da alfabetização e do letramento nas sociedades do período colonial brasileiro, realizando também uma breve discussão acerca da cultura escrita, privilegiando a observação das elaborações discursivas empregadas por aquelas mulheres no momento de redação de seus testamentos. Trata-se, enfim, de um trabalho que destaca a autoria de textos, mesmo que redigidos por mãos alheias, mas que mostram a utilização da escrita no referido contexto.

Completando esta incursão sobre a cultura escrita e suas relações com a educação e a instrução no mundo luso-brasileiro das décadas finais do século XVIII e das décadas iniciais do século XIX, Lucia Maria Bastos Pereira das Neves enfoca os esforços da Coroa portuguesa em criar, no Rio de Janeiro, uma sociedade mais conforme aos hábitos de uma Europa culta e ilustrada. Assim, discutem-se certas ações do governo joanino que permitiram a criação de escolas e a edição de livros por intermédio da Impressão Régia, buscando difundir uma cultura escrita e propiciando a instrução dos jovens que acompanharam suas famílias na transferência da corte. A circulação de novas ideias permitiu, como aponta Lucia Bastos, o surgimento de novas formas de sociabilidade e de um espaço público que, mais tarde, sediou o questionamento de alguns valores tradicionais, como o governo absoluto e a expressão retórica.

Completando este sexagésimo número da Revista, temos os artigos de Moisés Antiqueira, que empreende um estudo sobre a leitura que Tito Lívio fez do julgamento de Cesão Quíncio, na Roma republicana; de Patrícia Falco Genovez e Flávia Rodrigues Pereira, que abordam políticas de saúde voltadas ao combate da hanseníase e as memórias que a doença provoca em uma comunidade da região leste de Minas Gerais, na década de 1980; e de Coral Cuadrada, que trata da transmissão de saberes medicinais entre mulheres na Catalunha, em um estudo de longa duração (sécs. XV a XX). Também é apresentado artigo de Ray Laurence, sobre a exploração turística das ruínas de Pompeia, em tradução de Pérola de Paula Sanfelice e Daphne de Paula Manzutti.

Desejamos uma boa leitura!

Thais Nívia de Lima e Fonseca

Antonio Cesar de Almeida Santos


FONSECA, Thais Nívia de Lima e; SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.60, n.1, jan. / jun., 2014. Acessar publicação original [DR]

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História das sensibilidades e das emoções / História – Questões & Debates / 2013

Em 2012, o Programa de Pós-Graduação em História foi contemplado pelo Edital de Apoio aos Programas de Pós-Graduação Notas 5 e 6 da Fundação Araucária, agência de fomento à pesquisa e tecnologia do Estado do Paraná. O projeto contemplado, Sentimentos na História, resulta de uma experiência acadêmica coletiva originada com a criação, em 2008, da Linha de Pesquisa Intersubjetividade e Pluralidade: Reflexão e Sentimentos na História, na qual temas como as relações de gênero, o corpo, os gestos, as sensibilidades, as paixões, os sentimentos morais e religiosos e os sentimentos na política integram uma pauta de investimentos teóricos e metodológicos a respeito das subjetividades e da configuração das relações intersubjetivas.

O interesse dos historiadores pelos sentimentos e afetos é relativamente recente. Esta aproximação tardia do tema está relacionada às origens oitocentistas do conhecimento histórico enquanto saber científico, objetivo, neutro e imparcial. Não podemos olvidar o fato de que a história nasceu epistemologicamente como História Política, entendida naquele contexto como a narrativa do Estado e dos homens notáveis, especialmente aqueles ligados ao exercício do poder político. Ciência e política se constituíram prática e discursivamente no século XIX enquanto domínios “elevados” do conhecimento e da ação racional, imunes aos acontecimentos “baixos” do cotidiano, das paixões, dos sentimentos e das diferenças. Ciência e política eram, narrativa e politicamente, homogeneidades, verdades que se revelavam à luz da razão, do método e da disciplina encarnados em sujeitos idealmente sem marcas sociais, os estadistas e cientistas ou os historiadores e cientistas políticos.

Apesar da resistência dos historiadores, o terreno começou a ser preparado antes mesmo da Segunda Guerra Mundial, com a guinada epistemológica dos Annales e o fértil debate historiográfico com a sociologia, a antropologia, a psicologia, os estudos sobre religião e a linguística, bem como o impacto do pensamento e da crítica psicanalítica. Mesmo não tratando especificamente dos sentimentos, nota-se a construção de uma nova perspectiva sobre o sensível, o imaginário, o maravilhoso, o aparentemente insignificante em trabalhos como Os reis taumaturgos, de Marc Bloch, e O problema da descrença no século XVI: a religião de Rabelais, de Lucien Febvre.

A partir das décadas de 1950 e 1960, outras abordagens históricas vão contribuir de maneira significativa para os futuros estudos sobre os sentimentos, como a Demografia Histórica e a História da Família e suas descobertas sobre a sexualidade e as sensibilidades do passado em relação ao casamento, às crianças e à morte. A história da sexualidade e a história das mulheres, por sua vez, lançaram novas luzes sobre práticas, representações e sensibilidades envolvendo grupos sociais marginalizados e destituídos de memória. Contudo, é importante salientar que estas abordagens não problematizaram, nem do ponto de vista teórico, nem empírico, os sentimentos. Esta nova frente só começou a ser aberta por historiadores ligados à Nova História, como George Duby e seus importantes estudos sobre o amor, Elizabeth Badinter e a reflexão em torno da desnaturalização do amor materno e Anne Vincent-Buffault e seu estudo sobre as sensibilidades e emoções.[1] É notável nos estudos mencionados a escolha pelos sentimentos afetivos e pelas sensibilidades. O ódio, o medo, a ira, sentimentos de pertencimento / exclusão, continuaram a ser tratados como sintomas da erupção do irracional e da anomia, numa linha analítica herdeira do pensamento weberiano e da Escola de Frankfurt.

Poderíamos multiplicar os exemplos de pesquisas e publicações que vêm sendo estimuladas por essa corrente historiográfica e mesmo assim estaríamos cometendo injustiça para com diversos outros autores que perseguem estas mesmas orientações teórico-metodológicas. Trata- -se de um campo vasto e aberto à investigação histórica. Sentimentos e emoções, mais do que objetos particulares e restritos a formas ou tipos, são experiências e percepções que se conectam à dimensão afetiva e sensível da vida. Participam de nossa organização psíquica como indivíduos na mesma proporção que participam da vida social, definindo identidades, estabelecendo ou rompendo vínculos sociais, criando ou negando afinidades, propiciando interação e reconhecimento pelos outros ou criando barreiras intransponíveis por intermédio de suas manifestações mais violentas, como a intolerância e o ódio.

Inspirados nas possibilidades analíticas abertas pelas pesquisas sobre sentimentos, emoções e sensibilidades, apresentamos o dossiê “História das sensibilidades e das emoções”, contando com a colaboração de pesquisadoras e pesquisadores brasileiros e estrangeiros. O dossiê apresenta seis artigos. O primeiro é de autoria de Claudine Haroche, que faz uma provocativa discussão sobre os fundamentos da percepção, dos sentimentos e das maneiras de sentir, dialogando com filósofos, sociólogos e pensadores da modernidade e das paisagens sociais e culturais da pós-modernidade. O segundo artigo é de Christophe Prochasson, tratando das paixões políticas conforme se configuraram num dos temas centrais da crítica e do fazer historiográfico de François Furet. O terceiro artigo é do sociólogo Mauro Koury, discorrendo sobre a contribuição de Norbert Elias e de sua obra para a constituição de uma sociologia das emoções. Denise Sant’Anna escreve um artigo sobre tema contemporâneo de grande visibilidade ao tratar das relações entre a obesidade e a depressão, propondo uma análise em torno das emoções tristes e do processo de medicalização das emoções. O artigo de Maria Teresa Santos Cunha nos leva para o terreno das emoções cristalizadas pela escrita de si de jovens professoras, registradas em cartas e diários. O último artigo do dossiê, de Ana Paula Vosne Martins, analisa o processo de naturalização e feminilização da bondade.

Esse número da Revista História: Questões & Debates conta também com a sessão de artigos. O primeiro artigo, de Claudia Beltrão da Rosa, trata dos rituais das fundações de colônias latinas entre 334 e 218 a.C. com a finalidade de compreender os significados dos espaços na religião e na legislação romanas. O artigo de Igor Teixeira propõe uma reflexão em torno da categoria tempo, retomando a Legenda Áurea e a narrativa hagiográfica medieval. Deslocando o eixo cultural para o Oriente Árabe, José Henrique Rollo Gonçalves analisa a administração do Egito por uma dinastia turca entre 869 e 905, em pleno domínio árabe, cujos efeitos políticos se fizeram sentir até o século XIX. O artigo de Laércio José Pavanello e de Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes propõe uma discussão em torno do patrimônio cultural, da identidade e da memória a partir da noção de patrimônio comercial, tomando como referência os armazéns de secos e molhados da cidade de Joinville, Santa Catarina.

Nota

1. DUBY, George. Idade Média, idade dos homens; do amor e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado. O mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985; VINCENT-BUFFAULT, Anne. História das lágrimas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

Ana Paula Vosne Martins


MARTINS, Ana Paula Vosne. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.59, n.2, jul./dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

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Deslocamentos e alteridades / História – Questões & Debates / 2013

O tema do dossiê do volume 58 de nossa revista é “Deslocamentos e Alteridades”, com quatro artigos que discutem questões contemporâneas de deslocamentos culturais, atrelados a imigrantes e viajantes, cuja presença desperta a reflexão sobre alteridades, estranhamentos e familiaridades entre indivíduos de diferentes nações e territórios.

No artigo “Eu nasci no Brasil mas o Líbano é o meu país – jovens descendentes de libaneses em Foz do Iguaçu: identidade plural”, da antropóloga Poliana Fabiula Cardozo, observamos os jogos identitários realizados pelos jovens em questão, tanto em suas comunidades de origem como no contexto brasileiro que os cerca e, ao mesmo tempo, perpassa-os, entre interditos e permissões islâmicos e brasileiros. A autora demonstra quando é conveniente para estes jovens ser brasileiro e ser libanês no espaço de Foz do Iguaçu.

O caso analisado por Poliana Cardozo é típico do contexto globalizado, no qual o Islã se insere de forma múltipla e dinâmica. Tal inserção é analisada pela primeira contribuição internacional a este volume, trazida pela geógrafa Shadia Husseini de Araújo, no artigo “O ‘Islã’ como força política na ‘Primavera Árabe’: uma perspectiva da teoria do discurso”. A estudiosa do Islã moderno analisa em que medida a religião do profeta Maomé pode ser considerada um aspecto importante da chamada “Primavera Árabe”, caracterizada pelas revoltas que derrubaram regimes autoritários no mundo islâmico desde janeiro de 2011. Em que medida os deslocamentos culturais em curso no mundo islâmico têm influenciado seus movimentos políticos?

O tema do deslocamento cultural predomina também no artigo “Imperialismo, missão e exotismo: narrativas de viajantes de língua alemã no Brasil nas primeiras décadas do século”, da historiadora Karen Macknow Lisboa, em que se destaca a questão da alteridade nos relatos de cinco viajantes alemães, nas três primeiras décadas do século XX: um político colonial, um escritor exotista, dois expressionistas e um membro do partido nacional-socialista alemão (NSDAP). Sua discussão também almeja contribuir para os estudos sobre a literatura de viagem da primeira metade do século XX a respeito do Brasil, um assunto ainda pouco explorado, sobretudo em relação aos viajantes de cultura germânica e que não eram antropólogos.

Encerramos este dossiê com um artigo que faz o sentido inverso da alteridade explorada no texto anterior – o historiador René E. Gertz, em “De Otto von Bismarck a Angela Merkel: do ‘perigo alemão’ ao ‘neonazismo’ no Brasil”, explora os medos que a presença alemã no Brasil despertou em diferentes momentos da história contemporânea. Ainda que a maioria dos neonazistas presos e identificados recentemente no Brasil não seja de origem germânica, o neonazismo é considerado pelo senso comum – e por vezes por trabalhos acadêmicos – como uma iniciativa de descendentes de alemães. Por que, após tantas décadas de presença de descendentes de alemães em solo brasileiro, determinados preconceitos ainda persistem?

Os estudos trazidos por este dossiê procuram responder a estas perguntas a partir de uma análise dos efeitos que os deslocamentos culturais suscitam nos últimos dois séculos.

Na seção de artigos, apresentamos três textos: o primeiro é da antropóloga Lisa Cligget, da Universidade de Kentucky, que traz a segunda contribuição internacional para nosso volume, com o texto “Componentes sociais da migração: experiências da Província Sul, Zâmbia”. O artigo revela a importância das estruturas do poder local – ao nível da comunidade e da família – para entender a migração, ao contrário das suposições comuns que atribuem causas econômicas e ambientais às decisões de migração. São examinados os processos migratórios na Província Sul da Zâmbia por meio do uso de informações coletadas de dois projetos de pesquisa qualitativa. Contextos locais econômicos e ambientais eram os fatores decisórios na migração das populações; o controle sobre os recursos da zona rural e a habilidade de mobilizar as redes de apoio social nos vilarejos também demonstraram influenciar as decisões para deslocar-se. As informações apresentadas nesse trabalho são do Projeto de Pesquisa longitudinal Gwembe Tonga (GTRP) e de um estudo de dois anos sobre emprego e mercados de trabalho na Província Sul, liderados pelo Centro de Estudos sobre Desenvolvimento da University of Bath, Inglaterra.

O segundo artigo é do historiador José Geraldo Costa Grillo, “A representação da mulher na iconografia de Ájax carregando o corpo de Aquiles na pintura da cerâmica ática (570-480 a.C.)”. Segundo o autor, da perspectiva dos estudos de gênero, a representação da mulher na pintura da cerâmica ática tem sido entendida basicamente de duas maneiras: 1) os pintores revelam o mesmo preconceito discriminatório encontrado nos textos literários; 2) tanto nos textos quanto na iconografia, a posição social da mulher não é assim estanque. Partilhando dessa segunda concepção, o autor demonstra, a partir da análise iconográfica da cena de Ájax carregando o corpo de Aquiles, que se, por um lado, a mulher por vezes desempenha um papel secundário, podendo implicar sua desvalorização social, por outro, ocupa, em inúmeros e significativos casos, o lugar central como protagonista do evento, demonstrando seu prestígio e valor aos olhos de sua sociedade.

Por fim, o artigo “Arqueologia Histórica – Abordagens”, de Diego Antônio Gheno e Neli Teresinha Galarce Machado, aborda as potencialidades teóricas e metodológicas da Arqueologia Histórica, destacando como esta subdisciplina passou a ser aplicada em diferentes contextos, relacionada a modelos teóricos amplos, como o histórico-culturalismo, o processualismo e o pós-processualismo. A Arqueologia Histórica, no continente americano, é uma fecunda via de estudo da cultura material proveniente do período Moderno. O artigo problematiza a definição de Arqueologia Histórica, entendida pelos autores como o estudo dos grupos humanos, em seus mais diversos aspectos, através da sua cultura material e das formações sociais desaparecidas, tendendo a variar a partir da área de atuação do arqueólogo conforme seu objeto de pesquisa. Outro aspecto abordado no texto é a breve revisão sobre pesquisas em perspectiva da Arqueologia Histórica no Brasil, Rio Grande do Sul e na região geopoliticamente conhecida como Vale do Taquari.

Apresentamos três resenhas para encerrar este volume. Na primeira, Daniel Afonso da Silva analisa o livro de Anderson Lino, Bom Jesus da Cana Verde: conflitos e celebrações no Norte do Paraná, 1886-2008 (2011), que versa sobre o processo de constituição da romaria em culto ao Senhor Bom Jesus da Cana Verde, na pequena Siqueira Campos, no norte pioneiro do Paraná, um dos maiores e mais marcantes acontecimentos religiosos do país. O autor defende que a imagem e a festa em seu elogio, que existe desde 1934, derivam de disputas e conflitos depositários de modificações estruturais na relação entre Estado e igreja em todo o mundo ocidental ao longo dos últimos cento e cinquenta anos.

Já Bruno Torquato Silva Ferreira e Marcos Hanemann analisam o livro Tributo de sangue: exército, honra, raça e nação no Brasil (1864-1945) (2009), do brasilianista Peter M. Beattie. A obra desenvolve a maneira pela qual ocorreu a transição do recrutamento forçado para a conscrição através de sorteio como forma de preenchimento dos claros (vazios) das fileiras do Exército brasileiro entre 1864 e 1945. O corte é pouco usual para os que acompanham os estudos nativos sobre o tema e refere-se às duas mais importantes mobilizações militares que o Brasil conheceu: a Guerra contra o Paraguai e a Segunda Guerra Mundial. Coincide ainda com importantes alterações nas estruturas social, econômica e política brasileiras, que se materializaram na expansão das atividades capitalistas, no processo de urbanização, na industrialização, na expansão do sistema viário, na integração nacional, no avanço do nacionalismo e no aumento do poder do Estado.

Por fim, o livro Ancient Judaism. New Visions and Views (2011), de Michael Stone, é resenhado por Jonas Machado. Stone discorre sobre elementos considerados de suma importância para as concepções atuais sobre o judaísmo da antiguidade. Essa obra destaca as origens, a complexidade, a transmissão e a recepção das tradições contidas na literatura que constituem as fontes para o estudo do judaísmo antigo, eixo central em torno do qual gira esse trabalho, com o propósito de desafiar ortodoxias tardias que engendraram histórias teologicamente condicionadas sobre o judaísmo antigo.

Karina Kosicki Bellotti


BELLOTTI, Karina Kosicki. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.58, n.1, jan. / jun., 2013. Acessar publicação original [DR]

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Futebol, sentimento e política / História – Questões & Debates / 2012

A discussão entre historiadores e cientistas sociais e políticos sobre a temática dos sentimentos na política é, sem dúvida, um fenômeno recente. Mais inquietante ainda quando esse recorte crítico é trazido para o campo do estudo político do futebol.

O Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade, da UFPR, foi o proponente do dossiê “Futebol, Sentimento e Política” ao Conselho Editorial da revista História: Questões & Debates. A proposição surgiu das discussões desenvolvidas na Linha de Pesquisa “Intersubjetividade e pluralidade: reflexão e sentimento na história” (PGHIS / UFPR) sobre o papel das emoções na construção das atividades políticas e sociais. Como a maior parte dos membros do núcleo (professores e alunos dos cursos de Mestrado e Doutorado) encontra-se alocada na referida linha de pesquisa, a sugestão da interseção entre futebol e sentimentos na política tornou-se um envolvimento crítico do grupo à proposta. Uma relação dialógica entre linha de pesquisa e grupo de estudo, forçada pelas regras institucionais da pós-graduação, da qual procuramos extrair o melhor.

A partir dessa trajetória interna do núcleo Futebol e Sociedade, a consequência óbvia foi estender a proposta de ampliação do repertório de estudo do futebol a outros pesquisadores do tema.

Sem abrir mão da interdisciplinaridade – característica saudável dos estudos sobre futebol –, a proposta do núcleo é romper as resistências dissimuladas existentes na História em relação aos estudos do futebol. Nessa trajetória, nos últimos dez anos, várias dissertações e teses sobre futebol foram concluídas ou encontram-se em andamento. Desde 2003 compartilhamos com pesquisadores de outras instituições a coordenação do GT de esportes nos encontros nacionais da Associação Nacional de História – ANPUH, assim como nos regionais, no Paraná, além de diversas inserções em eventos nacionais e internacionais. É exemplar, nesse sentido, nossa participação no GT “História del fútbol en America del Sur”, no congresso da Asociación de Historiadores Latinoamericanistas Europeos – AHILA (Espanha, 2011). Assim como é oportuno lembrar a organização, nesta mesma revista, em 2003 (volume 39), do dossiê “Esporte e Sociedade”, quando contamos com a participação do britânico Eric Dunning, do escocês Richard Giulianotti, do argentino Julio Frydenberg, além de autores brasileiros.

Podemos considerar, portanto, que o Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade tem uma trajetória relevante na consolidação dos estudos sobre futebol do campo da História.

Logo, a formatação da proposta desse dossiê sobre futebol, sentimento e política não teria existido sem a contribuição dos colegas da Intersub, como carinhosamente nomeamos a nossa linha de pesquisa. É na pluralidade dos debates sobre religião, imigração, gênero, alimentação, processos culturais e poéticas artísticas que a temática do futebol tem se inscrito. São tantos outsiders que nos sentimos em casa.

Portanto, forjamos a proposta desse dossiê como produto de um debate mais amplo sobre os sentimentos na história que acontece na linha, onde têm se desenvolvido

estudos sobre os percursos históricos e historiográficos que fundamentam a construção teórica dos sentimentos, das identidades, das relações intersubjetivas, das sensibilidades, das relações de poder e da pluralidade social e cultural, nas suas diferentes modalidades discursivas, delimitações temporais e interfaces temáticas.[1]

A organização desse dossiê sobre futebol é, portanto, um risco assumido. A diversidade disciplinar dos autores que aceitaram o desafio dá, em grande medida, o “estado da arte” em que se encontram os estudos sobre o futebol. São sociólogos e antropólogos, um crítico literário e, claro, um historiador. Tivemos a preocupação em buscar análises de pesquisadores estrangeiros e, nesse sentido, foram ricas as contribuições de dois “nativos” sobre a Argentina e a França, além de um pesquisador brasileiro sobre o futebol alemão. Façamos sobre os artigos uma breve apresentação.

Ao propor uma discussão sobre os signos afetivos no futebol, Luiz Carlos Ribeiro recorre à expressão “paixão nacional” como referência à sua análise. O artigo se estrutura em dois momentos: como intelectualmente ao longo do século XX produziu-se esse imaginário em torno do futebol, abordando na sequência algumas estratégias de como tratar histórica e politicamente esse sentimento nacional, ao que definiu como uma proposta de construção de uma agenda de estudos que se abra às possibilidades de uma história política da nossa paixão pelo futebol.

Tomando como referência seus estudos etnográficos anteriores, Arlei Damo propõe um refinamento da noção, por ele elaborada, de pertencimento clubístico, a partir da qual busca uma relação dialógica entre política e as emoções. Para tanto, explora várias manifestações desse pertencimento, fenômeno que denomina de “trama simbólica das emoções clubísticas”. A partir da narrativa do próprio torcedor, procura compreender como os indivíduos se envolvem com um clube, constituindo a paixão clubística.

Elcio Loureiro Cornelsen nomeou a experiência das Copas do Mundo de Futebol de 1990 (Itália) e de 2006 (Alemanha) para nos falar do sentimento nacionalista da população germânica. Tomando como referência a “funesta” experiência do “Terceiro Reich” e a situação contemporânea da reunificação, o autor analisa os embaraços e ressentimentos da reconstrução identitária alemã. Afirma o papel do futebol, em especial da seleção alemã, no reavivamento do trauma identitário pós-holocausto, numa conjuntura muito especial de reunificação nacional.

Futebol e sentimentos políticos na França contemporânea é o tema abordado por Michel Raspaud. Desde a famosa indisciplina do principal astro da seleção francesa (a “cabeçada” de Zidane), na Copa de 2006, até a greve dos jogadores na Copa de 2010, desenvolveu-se entre torcedores, políticos e a imprensa especializada um forte sentimento de indignação em relação ao comportamento dos atletas franceses. Os adjetivos atribuídos pela sociedade ao comportamento dos atletas na África do Sul são emblemáticos do sentimento de desonra nacional em relação às atitudes e ao péssimo futebol apresentado. Os termos mais comuns utilizados na mídia para expressar esse sentimento foram escárnio, honra humilhada, nação ridicularizada.

A perspectiva escolhida por María Verónica Moreira para nos falar da relação entre futebol e política foi a pesquisa etnográfica das eleições em um clube de futebol na Argentina. A proposta da autora é descrever e analisar como dirigentes esportivos, torcedores, sindicalistas e políticos de outros espaços sociais estabelecem alianças e práticas de clientelismo nos momentos eleitorais dos clubes de futebol. Ou seja, como os sentimentos de afinidades futebolísticas ajudam na construção de pontes e na circulação de bens entre o sistema esportivo e a política comum.

O artigo de João Manuel Santos, Maurício Drumond e Victor Melo, ao analisar o Campeonato Sul-Americano de Futebol de 1922, revisita um tema caro na literatura esportiva e política brasileira, o da celebração da nação. A partir da análise das imprensas carioca e paulista, buscam compreender como dirigentes do futebol e o público construíram e se apropriaram da seleção de futebol como um bem simbólico da nação brasileira.

Encerrando o dossiê, Lana Pereira e Alexandre Vaz tomam o filme de Joaquim Pedro de Andrade, Garrincha, alegria do povo, de 1963, como referência para a análise de dois fenômenos da cultura política e futebolística nacional: o ídolo esportivo, representado por Garrincha, e o povo brasileiro, representado na película pela torcida nos estádios. Com uma leitura fílmica refinada, várias sequências e recursos são apresentados como expressão de um discurso romântico do ídolo indomável (dentro e fora do campo), ao mesmo tempo em que dialoga com a estética do cinema-verdade, que circula entre as dores sociais e o júbilo dos dribles do ídolo nos estádios lotados.

Por fim, à parte do dossiê, três artigos e duas resenhas completam esse volume. Simone Dupla aborda elementos circunscritos acerca do sagrado feminino mesopotâmico, relacionando-o à sobrevivência do culto às deusas mães, na figura da deusa sumério / babilônica Inanna / Ishtar, considerando que as características desse culto foram perpetuadas na cultura material e nos ritos praticados durante milênios na região do Antigo Oriente Próximo.

A partir da análise das representações da Idade Média, presentes no filme Cruzada (Kingdom of Heaven), dirigido por Ridley Scott, em 2005, Edlene Oliveira Silva questiona sobre as potencialidades do cinema como recurso didático para o ensino de História. Estabelece para isso um diálogo entre imagens da película e narrativas históricas dos manuais escolares.

Utilizando como documento principal o relato escrito pelo capuchinho Claude d’Abbeville, Amilcar Torrão Filho e Daniel Rincon Caires analisam as mudanças que ocorreram nas relações entre indivíduos e o meio ambiente na região da Ilha do Maranhão, a partir do estabelecimento da França Equinocial, no início do século XVII.

Johnni Langer resenha o livro Hibridismo cultural, de Peter Burke, em que o autor debate a globalização da cultura a partir de uma perspectiva histórica, na qual, afirma Langer, os fios norteadores são a noção de articulação e a dinâmica entre as culturas, pois não existem fronteiras, mas contiguidades culturais.

O trabalho de Frank McCann D., Soldados da Pátria – História do Exército Brasileiro (1889-1937), é resenhado por Bruno Torquato Silva Ferreira. O livro analisa um período no qual o exército se consolidou como instituição nacional, permitindo a compreensão não apenas da formação histórica da instituição, como também o debate intelectual e político do período. Ao mesmo tempo, traz leituras originais sobre o papel da força militar em convulsões políticas, como as campanhas de Canudos, na Bahia (1897), e do Contestado, em Santa Catarina / Paraná (1912-15), as rebeliões tenentistas da década de 1920, a Coluna Prestes, a Revolução de 1930 e o levante paulista de 1932.

Nota

1. Linha de Pesquisa “Intersubjetividade e pluralidade: reflexão e sentimento na história”. Programa de Pós-Graduação em História da UFPR. Disponível em: .

Coordenação do Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade. Universidade Federal do Paraná novembro de 2012

 


Coordenação do Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.57, n.2, jul./dez., 2012. Acessar publicação original [DR]

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Deslocamentos: trabalho e identidades / História – Questões & Debates / 2012

A emergência dos fenômenos ligados à dispersão populacional, sejam estes relacionados à experiência das migrações internas ou aos chamados movimentos transnacionais, também conhecidos como “novas diásporas”, tem motivado um número crescente de pesquisas em diferentes áreas das ciências humanas, frequentemente voltadas às reflexões sobre o deslocamento de pessoas entre países, regiões e continentes, bem como aos seus desdobramentos.

Desde o século XIX, quando o fenômeno das migrações internas e externas ganhou intensidade, em decorrência da expansão do capitalismo e do avanço tecnológico dos meios de transporte e das comunicações, os deslocamentos migratórios adquiriram maior visibilidade, refletindo as assimetrias presentes nas relações socioeconômicas, bem como as contradições existentes na sociedade capitalista. Todavia, somente a partir da segunda metade do século XX, e particularmente nas últimas décadas do milênio, as temáticas acerca dos trânsitos migratórios passaram a ser estudadas com maior afinco por historiadores, geógrafos, antropólogos, economistas e sociólogos, interessados em analisar o fenômeno não só a partir das questões ligadas à mundialização da economia capitalista ou aos conflitos étnicos, políticos e religiosos – fatores estes que, sem dúvida, foram responsáveis pela dispersão de grandes contingentes populacionais, sobretudo a partir do oitocentos –, mas também preocupados em ultrapassar essas abordagens, procurando refletir igualmente a respeito das experiências compartilhadas por pessoas ou grupos que, motivadas por fatores ideológicos, históricos e sociais, protagonizaram esses múltiplos movimentos.

O crescente interesse pelas rupturas, descontinuidades e desigualdades inseridas no interior de uma complexa teia de relações de poder envolvidas nos processos de deslocamento fez com que pesquisadores interessados nesta temática se aproximassem das reflexões empreendidas por autores vinculados aos estudos culturais, dentre os quais se destacam Hommi Bhabha, Edward Said, Arjun Appadurai, Stuart Hall e Nestor Canclini. Abrigados no arcabouço teórico identificado como pós-colonialista, estes autores contribuíram para a emergência de conceitos como desterritorialização, alteridade, exclusão, resistência, identidade e multiculturalismo, estreitamente vinculados às práticas migratórias e, portanto, apropriados para as análises que buscam privilegiar experiências de sujeitos deslocados.

Os artigos reunidos no dossiê temático deste volume expressam, em seu conjunto, este interesse cada vez maior pela dimensão subjetiva das migrações. Os aspectos relacionados às experiências vivenciadas nas sociedades de origem ou de destino são ressaltados pelos artigos de Montserrat Soronellas Masdeu, Suzana Serpa Silva e Joseli Mendonça. O primeiro, contemplando o estudo de sociedades agrárias da Catalunha, no século XX, mostra as consequências ambíguas dos deslocamentos populacionais para tais sociedades: de um lado, a urbanização e o êxodo rural dela decorrente favorecem o despovoamento das áreas agrícolas, impondo dificuldades para as comunidades locais; de outro, a migração internacional, ensejada pela globalização, facilita o fenômeno de repovoamento das áreas rurais, possibilitando projetos de desenvolvimento local. Esta dinâmica migratória, defende a autora, faz com que as sociedades agrárias da Catalunha se “reinventem” como sociedades rurais.

Os artigos de Susana Serpa Silva e Joseli Mendonça enfocam principalmente as experiências de precarização das condições sociais vivenciadas pelos sujeitos que se deslocam. O primeiro trata da migração clandestina de açorianos para o Brasil nos anos 1830. Na perspectiva de autoridades portuguesas e da própria opinião pública em Portugal, os açorianos que migravam eram submetidos a uma “escravidão branca” nas áreas para as quais se dirigiam. Como indica a autora, em uma época em que se procurava reprimir e extinguir o tráfico de escravos, a degradação da condição dos trabalhadores açorianos que se deslocavam era equiparada à dos escravos. Também relacionando tráfico de escravos e transferência de trabalhadores livres, o artigo de Joseli Mendonça analisa a legislação brasileira que, vigente desde os anos 1830, regulava contratos de trabalho, criando condições para que se configurasse a “escravidão branca” constituída na percepção a que se refere Suzana Serpa Silva. Proposta e aprovada em contextos nos quais as restrições ao tráfico de escravos se intensificavam, esta legislação objetivava favorecer os “importadores” de mão de obra, limitando sobremaneira a autonomia dos trabalhadores.

Na sequência, os artigos de Roseli Boschilia e Maria Izilda Santos de Matos enfocam, a partir de corpus documentais diversos, aspectos relacionados às experiências individuais vivenciadas por imigrantes portugueses. Enquanto Roseli Boschilia, ancorada em documentos de caráter mais oficial, dentre os quais se destacam os pedidos de passaporte, registros de desembarque e pedidos de naturalização, analisa o perfil dos imigrantes portugueses que se dirigiram ao Paraná durante a segunda metade do século XIX, Maria Izilda Santos de Matos privilegia cartas e correspondências privadas para investigar a presença dos imigrantes portugueses em São Paulo, procurando, a partir destes documentos, rastrear não só os vínculos estabelecidos e os circuitos de sustentação nas regiões de saída e de acolhimento, mas também tensões e frustrações, possibilidades de reencontros e reconstituição familiar.

Num terceiro bloco, fechando o dossiê, estão os artigos de Regina Weber e Marcelo Garabedian, com reflexões voltadas à imigração espanhola. Interessada em estudar as manifestações de identidade étnica dos espanhóis que, ao longo do século XX, se radicaram no Rio Grande do Sul, Regina Weber analisa as manifestações étnicas destes imigrantes e seus descendentes, observando fatores econômicos e culturais internos e externos ao grupo, no intuito de refletir acerca das formulações identitárias que decorrem das práticas de agregamento gestadas na sociedade de destino.

Já o argentino Marcelo Garabedian faz uma reflexão sobre a imprensa imigrante a partir da análise do periódico El Correo Español, principal jornal da colônia espanhola editado na Argentina durante o século XIX. Neste artigo, o autor procura destacar o protagonismo deste periódico para a consolidação institucional da imigração espanhola no seu país, assim como sua contribuição para as discussões políticas e culturais, intimamente associadas ao projeto de construção do nacionalismo espanhol no interior da sociedade argentina.

Além dos textos que compõem o dossiê, este volume traz ainda um artigo sobre o ensino de História, de autoria de André Luiz Paulilo, que tem como objeto de análise os manuais didáticos da área de História, destinados especialmente aos professores do ensino fundamental. No texto, o autor procura problematizar o papel exercido por esta modalidade de documentos sobre os pressupostos teóricos que orientam a prática de ensino de docentes que trabalham em escolas públicas.

Por fim, na seção de resenhas, são apresentados três textos. O primeiro deles, de Renata Senna Garraffoni, discute a obra de Salvatore Settis, The future of the “Classical”; o segundo, de Igor Zanoni Constant Carneiro Leão e Demian Castro, traz considerações sobre o texto Pós-modernidade, mal-estar, violência: uma leitura de Maria Laurinda Ribeiro de Souza; e o terceiro, de Daniel Augusto Arpelau Orta, trata da obra de David Levering Lewis, O Islã e a formação da Europa de 570 a 1215.

Roseli Boschilia

Joseli Mendonça

Junho de 2012


BOSCHILIA, Roseli; MENDONÇA, Joseli. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.56, n.1, jan. / jun., 2012. Acessar publicação original [DR]

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Religiões: história, política e cultura na era contemporânea / História – Questões & Debates / 2011

Neste presente volume da revista História: Questões & Debates apresentamos o dossiê “Religiões: História, Política e Cultura na Era Contemporânea”, reunindo nove artigos de historiadores brasileiros e estrangeiros que examinam diversas expressões do cristianismo em seus conflitos e redes de solidariedade. Além disso, o dossiê traz considerações sobre como a História das Religiões vem se constituindo como campo de estudos no mundo ocidental em decorrência de transformações no próprio status da religião no período contemporâneo.

O artigo de Karina Kosicki Bellotti (Universidade Federal do Paraná), “História das Religiões: conceitos e debates na era contemporânea”, explora a historicidade do conceito de religião, que se dessacralizou aos olhos da ciência para se tornar objeto de pesquisa desde meados do século XIX na Europa. Esse trabalho aponta para novos campos de estudos e novos objetos que a História Cultural das Religiões vem constituindo nos últimos anos, tomando por abordagem cultural tanto produções artísticas como de cultura de massa e de modos de viver na contemporaneidade. Por sua vez, o artigo de Elton Nunes (PUC-SP), “Teoria e metodologia em História das Religiões no Brasil: o estado da arte”, discute as produções mais recentes na área de História das Religiões no Brasil nas últimas décadas, explicando as razões pelas quais o tema das religiões em suas diferentes interfaces atrai cada vez mais historiadores, em contraste com um período extenso de nossa história acadêmica em que pouca atenção lhe foi dispensada.

Em seguida, há quatro artigos que abordam diferentes embates políticos e culturais enfrentados pelo catolicismo nos séculos XIX e XX: primeiramente, o artigo de Antonio Moliner Prada (Universidad Autónoma de Barcelona), “Clericalismo y anticlericalismo en la España Contemporánea”, que discute as configurações do anticlericalismo e da irreligiosidade na Espanha dos séculos XIX e XX, apontando para o jogo de forças e embates políticos e religiosos em torno de projetos de modernidade cultural e política. O escasso desenvolvimento do catolicismo liberal e a divisão interna dos católicos motivaram o auge do clericalismo e o aparecimento do anticlericalismo violento em diferentes momentos entre o início do século XIX até a Guerra Civil Espanhola (1936-1939).

Seu artigo aponta para os problemas dos conflitos religiosos, mostrando a importância do desenvolvimento de um diálogo inter-religioso em um mundo multicultural. O artigo de Euclides Marchi (Universidade Federal do Paraná), “Igreja e povo: católicos? Os olhares do padre Júlio Maria e de Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra sobre a catolicidade do brasileiro na passagem do século XIX para o XX”, analisa os textos publicados pelo Padre Júlio Maria de Morais Carneiro e por Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra em 1898 e 1916, respectivamente, os quais expressavam sua visão de Igreja e dos católicos no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Ao fazer o diagnóstico dos males que afetavam a sociedade e a Igreja, ambos apontavam remédios e soluções para adequar a catolicidade aos parâmetros exigidos pela implantação das reformas romanizadoras adotadas desde a segunda metade do século XIX e pela contundência dos problemas que afetavam a sociedade mundial e brasileira.

O texto de Marcos Gonçalves (Universidade Estadual do Paraná – Unespar), “Nostalgia e exílio: o intelectual católico Galvão de Sousa e a ideia de ‘hispanidade’”, discute a noção de uma identidade hispânica desenvolvida em parte da reflexão do intelectual católico José Pedro Galvão de Sousa (1912-1992). Requisitado nos círculos católicos tradicionalistas, monárquicos e integristas de ambientação ibérica, Galvão de Sousa é um dos difusores desse pensamento no Brasil. Nostálgico dos regimes monárquicos e teórico do corporativismo, o intelectual em questão busca lugar para uma concepção de mundo que se defronta perante um amplo cenário de mudanças ideológicas e doutrinárias estabelecidas nas décadas de 1960-70: o avanço da teologia da libertação, o Concílio Vaticano II e, num contexto histórico mais imediato, a ditadura militar brasileira.

Em “A Liga Eleitoral Católica e a participação da Igreja Católica nas eleições de 1954 para a Prefeitura de Curitiba”, Renato Augusto Carneiro Junior (Unicuritiba-Museu Paranaense) analisa as relações entre o Estado brasileiro e a Igreja Católica, enfocando as atividades da Liga Eleitoral Católica (LEC) nos primeiros anos da década de 1950, em Curitiba, analisando como a Igreja Católica, por meio da LEC, buscava influenciar o resultado das eleições para a Prefeitura de Curitiba, em 1954, participando do jogo político ao indicar de forma clara os candidatos que poderiam ser apoiados pelos católicos.

O artigo de Eduardo Gusmão Quadros (Universidade Estadual de Goiás e PUC-GO), “O vírus protestante e a ação profilática de um bispo de Goiás”, enfoca o conflito entre católicos e protestantes no início do século XX a partir de um estudo de caso. No ano de 1918, o bispo de Goiás, D. Prudêncio Gomes da Silva, publicou a carta pastoral “Sobre o protestantismo”, contra a presença protestante que se iniciava naquele Estado. O historiador analisa o conjunto de representações, valores e estratégias evocados naquela carta para o combate ao protestantismo, mostrando os pontos em comum entre o catolicismo romanizado e a pregação protestante.

Em tais artigos, observamos a multiplicidade de expressões do catolicismo, envolvido em embates internos e externos. Os agentes dessa história são tanto lideranças quanto leigos, em um período em que a hegemonia católica no Brasil e na Espanha se vê enfraquecida diante do processo de modernização e competição religiosa – e irreligiosa – em curso desde o século XIX na sociedade ocidental como um todo. Nesse caso, história, política e cultura se entrecruzam para mostrar os diferentes papéis que a religião passa a assumir no período contemporâneo.

Por fim, dois artigos internacionais trabalham com fenômenos de transnacionalização – os caminhos da Teologia da Prosperidade no Brasil e na América Latina são o tema do artigo de Virginia Garrard-Burnett (University of Texas at Austin), “A vida abundante: a teologia da prosperidade na América Latina”, que demonstra os sentidos adquiridos por essa crença e prática religiosa desde a sua gênese norte-americana no século XIX até a evangelização empreendida pela Igreja Universal do Reino de Deus nos Estados Unidos, África e Europa, além da atuação de outras igrejas da Ásia e África, que miram ao bem-estar de seus fiéis neste mundo. Fechamos com o esmerado estudo de R. Andrew Chesnut (Virginia Commonwealth University) sobre a popularização do culto de Santa Muerte no México e nos Estados Unidos desde o início dos anos 2000, entre diferentes estratos da população hispânica nos dois lados da fronteira. Reunindo entrevistas, depoimentos e estudos sobre santos populares não reconhecidos pela Igreja Católica, Chesnut explora as intersecções entre religião, mercado, devoção e circulação cultural para mostrar as diferentes faces da Santa Morte, que responde a diversas demandas de seus fiéis em um período de crescente recessão econômica e violência urbana endêmica.

Além do dossiê, o volume conta com o artigo “Cinema, esporte e Apartheid: considerações balizadas pelo filme ‘No futebol, nasce uma esperança’”, de André Mendes Capraro, Riqueldi Straub Lise e Natasha Santos, que analisa o filme No futebol, nasce uma esperança (originalmente More than just a game), cujo foco está na prática do futebol por prisioneiros políticos sul-africanos, durante o regime Apartheid. Tendo em pauta esta temática, questiona-se: seria o futebol realmente um meio propício para manifestações políticas contrárias ao sistema vigente na África do Sul – o regime Apartheid? Qual o significado da modalidade, naquele contexto específico, e como foi representado artisticamente na obra? Para responder a essas questões, adotou-se o procedimento metodológico denominado por Carlo Ginzburg (1996) de “paradigma indiciário”, a fim de identificar pistas e indícios que levassem a compreender a concepção histórica manifesta no filme.

Na sessão de resenhas, contamos com três textos: a resenha de Antônio César de Almeida Santos (Universidade Federal do Paraná) sobre a obra de Quentin Skinner, Visões da política: sobre os métodos históricos; as considerações de Naira de Almeida Nascimento (Universidade Tecnológica Federal do Paraná) sobre o livro Joana d’Arc, de Colette Beaune; e o texto de Diogo da Silva Roiz (doutorando da Universidade Federal do Paraná) sobre A Europa diante do espelho, de Josep Fontana.

Karina Kosicki Bellotti

Curitiba, dezembro de 2011


BELLOTTI, Karina Kosicki. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.55, n.2, jul./dez., 2011. Acessar publicação original [DR]

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Além da cozinha e da mesa: história e cultura da alimentação / História – Questões & Debates / 2011

A discussão em torno da temática alimentar tem crescido concomitantemente à revelação de contrastes culturais despertados pelo movimento de globalização. De caráter interdisciplinar, o tema desperta interesse em múltiplas perspectivas (sociais, culturais, biológicas), todas postas à prova do tempo nos estudos de História e Cultura da Alimentação. Desta forma, o presente dossiê, que é o segundo da revista dedicado ao tema (o primeiro foi na edição de número 42), apresenta artigos de pesquisas realizadas ou em processo de elaboração por pesquisadores brasileiros e europeus instigados pelo cotidiano e aparentemente simples ato de comer.

A abertura ficou por conta da historiadora francesa Julia Csergo, que, em seu artigo intitulado “O patrimônio gustativo na França: como pensar um monumento, do artefato ao mentefato?”, introduz uma reflexão sobre os conceitos de patrimônio e gastronomia que têm servido de alicerces para o conceito de patrimônio gustativo na França. O texto faz referência a uma pesquisa em andamento que busca a superação do conceito de patrimônio e sua relação com bens edificados num debate que dialoga com os conceitos de patrimônio material e imaterial. Os elementos culturais do país, nesse contexto, se integram aos recentes debates acerca do processo de monumentalização de bens marcantes no delineamento da identidade francesa.

Jesús Contreras apresenta uma face das transformações alimentares no período contemporâneo no texto “A modernidade alimentar: entre a superabundância e a insegurança”. O tema eleito pelo autor é a relação entre a artificialização da alimentação intensificada com o crescimento e com a expansão das indústrias alimentares em todo mundo e as preocupações com a saúde consequente do processo. Contreras explora o desconforto gerado pela dificuldade de se medir as consequências da modernidade alimentar, que resulta na abundância e na homogeneização do repertório alimentar mundial.

Outra perspectiva da modernidade no campo da alimentação é apresentada por JeanPierre Williot em seu artigo “A guinada da inovação alimentar contemporânea na França durante os anos 1960”. As inovações apresentadas na alimentação francesa ao longo da década de 1960, e que são tidas pelo autor como a origem dos comportamentos alimentares atuais, se confrontaram com as tradições que vinham sendo mantidas. Williot faz uma leitura histórica desse momento conflituoso, destacando a dinâmica da alimentação entre a diversidade alimentar e a redução generalizada do tempo de preparo das refeições.

Isabel Drummond Braga utiliza diferentes fontes para estudar os utensílios de mesa e de cozinha ao longo dos séculos XV e XIX em Portugal, fazendo algumas pontes com o Brasil. Em artigo intitulado: “Dos tachos e panelas aos açucareiros e bules: recipientes para confeccionar e servir alimentos em Portugal na época moderna”, a historiadora portuguesa analisa livros de receita e inventários de bens, identificando elementos que aludem ao nível de vida, aos hábitos, aos padrões de consumo e às variadas maneiras de cozinhar ao longo do tempo.

Abrindo os artigos referentes à produção historiográfica brasileira do tema, Carlos Roberto Antunes dos Santos, em seu texto “Comida como lugar de história: as dimensões do gosto”, ressalta a complexidade do universo gastronômico brasileiro. Propondo uma superação dos pratos tidos como tipicamente brasileiros, o autor elabora um percurso pela memória gustativa fazendo referência à diversidade dos hábitos alimentares nacionais. A mestiça culinária brasileira é tida, desta forma, como um caldeirão que reúne características únicas entre o que é local e o que é resultado de influências externas. Elementos culinários que marcam identidades locais e regionais, nesse contexto, se destacam como bens culturais e até mesmo como patrimônios imateriais.

O artigo “Saberes e sabores: tradições populares do interior de Minas e Goiás”, elaborado por Mônica Abdalla, analisa em conjunto duas distintas pesquisas realizadas nas regiões do Triângulo e Alto Paranaíba, em Minas Gerais, e no sudeste de Goiás. Dialogando com os conceitos de patrimônio, memória e saberes e práticas alimentares, a autora lança luzes em favor da tradicionalidade diante da modernidade alimentar. Os saberes e as práticas cotidianas, nesses contextos, são reapropriados e ressignificados por aqueles que lhes dão vida, sejam eles produtores ou consumidores. Abdalla expõe que o apoio de organizações e pesquisadores se revela significativo na preservação de bens culturais gastronômicos dessas regiões.

Maria Henriqueta Gimenes apresenta o artigo “Barreado: sabor, história e cultura no litoral paranaense”, que tem por base sua tese de doutorado defendida em 2008 no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná. Para o texto presente nessa revista, a autora fez um recorte de sua tese com foco na eleição do barreado como iguaria e símbolo da região litorânea do Paraná e o consequente crescimento da oferta comercial do prato nos municípios de Antonina, Morretes e Paranaguá.

Giana Coró apresenta um texto referente ao seu trabalho final do Mestrado em História e Cultura da Alimentação do Instituto Europeu de História e Cultura da Alimentação. O artigo, de título “A sobremesa francesa dos anos 1950 aos anos 2000: evolução, consumo e patrimônio”, focaliza a sobremesa francesa associando história ao valor simbólico e emocional que esta apresenta para os consumidores.

Correlacionando comida, identidade e patrimônio, o artigo de Luciana Patrícia de Moraes, “Comida, identidade e patrimônio: articulações possíveis”, objetiva analisar a constituição de discursos identitários a partir da divulgação de pratos típicos regionais, centralizando a discussão nos casos de Minas Gerais e Paraná. Para a autora, a inserção da alimentação nas relações sociais e a sistematização da culinária na organização social podem servir como base inicial para a elaboração de reflexões no sentido de monumentalização de culinárias regionais, as quais, por sua vez, suscitam e sustentam o discurso de reconhecimento de pratos específicos como patrimônios culturais.

Ainda dentro do presente volume, à parte do dossiê, a doutoranda Renata Sopelsa apresenta o artigo “De colonos desejados a moradores indesejados: um estudo sobre a identidade e sociabilidade entre imigrantes (Ponta Grossa-PR, final do século XIX)”, onde analisa, com base em processos criminais, as formas de inserção dos imigrantes europeus em meio à sociedade ponta-grossense, ressaltando a necessidade por eles vivenciada de reconstruir suas identidades culturais perante os inevitáveis conflitos com as famílias mais antigas da cidade.

A seção de resenhas deste número contém inicialmente o texto elaborado pela doutoranda Cilene da Silva Gomes Ribeiro sobre a obra Comida como cultura, de autoria de Massimo Montanari. Este autor é um dos principais nomes da historiografia centrada na cultura alimentar, sendo membro de uma lista seleta de autores preocupados em manter o debate em torno da importância histórico-antropológico-social da agricultura e da alimentação. Esta sua última publicação, que envolve o comer e a fabricação de alimentos em meio às relações dos universos culturais, naturais, temporais e espaciais, constitui uma importante referência nos estudos dessa temática.

Na sequência, Ana Paula Nadalini apresenta a resenha do livro A razão gulosa, do filósofo francês Michel Onfray. O livro apresenta uma variedade temática em torno da história gastronômica francesa. Correlacionando filosofia e alimentação, através da memória gustativa, o livro se apresenta como significativa contribuição para a inserção dos alimentos no universo cultural.

Voltando-se para a relação da alimentação com o corpo, tema ainda pouco explorado no cenário acadêmico brasileiro, a mestranda Heloise Peratello apresenta texto sobre a publicação de Lígia Amparo da Silva Santos intitulada O corpo, o comer e a comida: um estudo sobre as práticas corporais e alimentares no mundo contemporâneo. O livro, lançado em 2008, tem como foco as dietas alimentares, apontando para as múltiplas redes de discursos e mentalidades que operam sobre as formas corporais e culminam em efetivas práticas rotineiras que afetam até mesmo o cotidiano tradicional alimentar.

E, encerrando a presente obra, temos a resenha sobre o livro de Alessandro Visacro intitulado Guerra irregular: terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da História, feita por Cláudio Umpierre Carlan, Professor da Universidade Federal de Alfenas-MG.

Carlos Roberto Antunes dos Santos

Mariana Corção

Abril de 2011


SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos; CORÇÃO, Mariana. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.54, n.1, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original [DR]

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História intelectual: “ideias e conhecimentos: produção, circulação, transmissão” / História – Questões & Debates / 2010

Partindo da própria fundamentação da história intelectual, este dossiê, intitulado “Ideias e conhecimentos: produção, circulação, transmissão”, pretendeu enfatizar os procedimentos de construção, de transposição e de apropriação do saber.

Praticada nestas últimas três décadas, notadamente na Europa, a história intelectual se afirmou como uma área de pesquisa das ciências humanas, tendo por ambição principal elucidar a formação, a produção, a circulação e a recepção das ideias e dos conhecimentos. Apreender tanto as ferramentas de análise como os mecanismos de transposições intelectuais constitui, por consequência, seu objeto de estudo.

Ora, este vasto campo de pesquisa interdisciplinar requer, inevitavelmente, uma abordagem que ultrapassa as fronteiras disciplinares, passível de melhor apreender os elementos componentes, a saber: a produção das obras, a posição dos autores e as respectivas inscrições nos contextos emergentes (culturais, intelectuais, históricos).

Objeto de controvérsias e de debates, esta área se situaria, para uns, na continuidade da história das ideias, e, para outros, ela se demarcaria radicalmente desta última.

Ora, a fim de evitar análises redutoras e simplistas, seus pesquisadores, nos dias atuais, recusam-se a se restringir unicamente às leituras internalistas e / ou externalistas dos textos, privilegiando a interconexão entre contextualismos e análises das obras. Rica em pesquisas, tanto na França (François Dosse) como fora dela, a partir da versão anglo-saxã (Skinner, Pocock) e da versão germânica (Koselleck), a história intelectual se afirmou como um ramo indispensável da história e das demais ciências sociais.

História dos conceitos, semântica histórica, sócio-história das ideias, ela vem se enriquecendo graças aos aportes de outras áreas do conhecimento e de diferentes métodos de análise, como a hermenêutica e as chamadas “transferências culturais”.

Abordando contextos históricos e intelectuais do final do século XIX ao início do século XXI e espaços culturais distintos (Europa e América), este presente dossiê teve por preocupação combinar diferentes objetos e temáticas: obras, autores, disciplinas, métodos de trabalho, correntes de pensamento, debates intelectuais, engajamentos políticos, circulações de ideias e de pessoas, procurando interligar a função de produtor do conhecimento ao efeito das ideias produzidas.

A emergência de uma disciplina, ou seja, a institucionalização de um conhecimento, neste caso a filosofia grega – os pré-socráticos –, no final do século XIX, inicia este dossiê. Neste texto, André Laks, filósofo da antiguidade, questiona o significado desta “escola de pensamento”, procurando mostrar como a criação desta corrente pré-socrática decorre tanto dos procedimentos intelectuais, ligados à instituição acadêmica moderna, como do legado de uma historiografia aristotélica.

Analisando o debate de ideias ocorrido na França, no final do século XIX, opondo dois cientistas sociais – Gabriel Tarde e Émile Durkheim –, adversários uma vez que concorrentes, Márcia Consolim explica a razão de suas divergências disciplinares e científicas. Como bem mostra seu artigo, esta polêmica é reveladora do estado do campo intelectual francês do momento, marcado pela disputa em torno do reconhecimento e do conhecimento entre dois pesquisadores e duas disciplinas emergentes: a sociologia e a psicologia social.

Sobre o processo de relações culturais entre a Alemanha e o Chile, na virada do século XX, o texto de Carlos Sanhueza propõe questionar as implicações destas transições de ideias e de modelos (militares e educacionais), via os intelectuais de ambos os países. Seu objetivo consiste em mostrar que, embora a Alemanha represente “o lugar” da ciência e do conhecimento, sua “presença” no Chile não deixa de projetar uma imagem negativa. Isto em razão das controvérsias e dos debates, por parte dos intelectuais chilenos, sobre o dito “embrujamiento alemán”. Em outras palavras, ele questiona se a “influência” cultural alemã não ameaçaria as culturas de raízes latinas.

Aliando análises antropológicas e estudos de linguagem, Maria de Lourdes Patrini Charlon investiga os “cadernos de campo” de Roger Bastide, redigidos ao longo de seu itinerário de pesquisador pelo Brasil, pela África e pela Europa. Professor visitante na Universidade de São Paulo durante vários anos, Bastide formou uma nova geração de professores brasileiros e desenvolveu inúmeros estudos sobre a cultura afro-brasileira. Instrumentos de trabalho etnológico, os “cadernos de campo” não só revelam o olhar deste antropólogo sobre o “outro”, mas permitem entrever as etapas e as modalidades de uma abordagem de pesquisa.

Buscando apreender o procedimento da circulação mundial das ideias, nos contextos intelectuais chileno e latino-americano, Eduardo Devés-Valdés elabora uma pesquisa sobre o cristianismo social na década de 1960. Especialista no pensamento latino-americano desta época, ele privilegia os enfoques, por um lado, sobre a importação de ideias através da “rede econômica e do humanismo” e, por outro, sobre a exportação de valores, através da rede dos chamados “cristãos para o socialismo”.

Autor de uma biografia intelectual de Gilles Deleuze, François Dosse demonstra como a obra deste filósofo, elaborador de conceitos, é perpassada pela questão política. “Pensador rebelde”, Deleuze participa de maio de 68 e se investe, na década de 1970, em movimentos sociais concretos (como o GIP) e em debates políticos e intelectuais que marcaram este momento. Engajada contra toda forma de institucionalização, de repressão e de poder, sua obra testemunha sua vontade de liberar o “fluxo de desejo” a partir da necessidade, que ela própria proclama, de procurar as “linhas de fuga”.

Por sua vez, o texto de Laurent Jeanpierre sobre as invenções e as reinvenções transatlânticas da “Critical Theory” remete a questões da migração de conceitos e da assimetria na circulação internacional do conhecimento. Forjada por Horkheimer, em 1937, durante o exílio do Institut für Sozialforschung nos Estados Unidos, esta expressão é abandonada nos anos 1960, mas reapropriada, em seguida, pelas universidades americanas sem que, no entanto, esta etiqueta “teoria crítica” tenha a mesma equivalência na Europa continental.

Fechando o dossiê, o texto sobre as “transferências culturais” pretende indagar a operacionalidade desta teoria e desta metodologia para o estudo da história intelectual. Buscando questionar as modalidades e as condições de possibilidade de sua utilização, Helenice Rodrigues apresenta seus pressupostos de análise, a saber: as interações, as imbricações, as apropriações e as transformações como resultado do processo de deslocamento das ideias no tempo e no espaço. Aliando o método comparativo ao cruzado, os utilizadores desta área se esforçam em mostrar a necessidade de se ultrapassar as áreas culturais nacionais pelos espaços transnacionais, a fim de melhor entender os fenômenos de circulação e de transferência do conhecimento.

Por fim, um artigo e uma resenha encerram os textos deste volume. O artigo, de autoria de Fernando Nicolazzi, tem como proposta a análise de alguns trabalhos recentes do historiador francês François Hartog, com o intuito de expor suas incursões sobre a cultura histórica contemporânea. Partindo de noções-chave como regimes de historicidade e presentismo, a análise empreendida pelo autor se insere no âmbito geral de uma história da historiografia.

A resenha, escrita por Nataniél Dal Moro, faz uma análise da obra Arte na rua: o imperativo da natureza, de autoria da historiadora Suzana Cristina Souza Guimarães. A obra procura refletir sobre o impacto provocado pela migração populacional ocorrida nas décadas de 1960-70 no cotidiano urbano da cidade de Cuiabá, com o objetivo de analisar a relação entre a arte, a natureza e a identidade do povo cuiabano a partir de fontes produzidas no campo das artes plásticas.

Helenice Rodrigues – Professora Associada da Universidade Federal do Paraná (UFPR)


RODRIGUES, Helenice. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.53, n.2, jul./dez., 2010. Acessar publicação original [DR]

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África, tráfico de escravos e escravidão nas Américas / História – Questões & Debates / 2010

Os textos que compõem o dossiê “África, tráfico de escravos e escravidão nas Américas” foram reunidos pelo fato de tratarem, a partir de abordagens e motivações próprias de cada autor, de uma série de elementos que receberam mais atenção de historiadores durante as últimas décadas no que toca à relação entre as sociedades africanas, o tráfico de escravos e a escravidão nas Américas. Esses relacionamentos pareceram durante muito tempo ter obedecido a padrões singelos. Mas, vasculhados por investigadores recentes, receberam novas interpretações ou foram submetidos a métodos de trabalho renovados, descortinando aspectos novos ou que foram redimensionados. Exemplifico com características mais detalhadas do tipo de demanda exercida por diversos produtos e regiões produtoras; com as relações entre as sociedades africanas entre si, do mesmo modo que com autoridades e traficantes europeus ou americanos; com os trânsitos de escravos e senhores entre colônias e países diversos, já nas Américas; com o aspecto internacional, ou intercolonial, ou ainda interimperial do tráfico africano e com o relacionamento entre movimentos internos e atlânticos dos cativos.

O texto de David Eltis condensa achados de magnitude inigualável obtidos a partir da elaboração de sua muito extensa base de dados a respeito do tráfico de escravos africanos. Tratou, no artigo aqui traduzido, dos africanos livres, indicando o que sua trajetória esclarece a respeito de uma miríade de processos relacionados ao comércio de almas. O autor dá muita atenção, inclusive, àquilo que o estudo dos africanos libertados de navios negreiros ensina a respeito de suas regiões de origem. Isso se deve à grande quantidade de informações passível de ser obtida a seu respeito, em comparação com o que se passava com os africanos que permaneceram em cativeiro. As informações sobre eles esclarecem muito, claro, sobre a dinâmica da repressão ao tráfico de escravos, mas também abrem perspectivas de estudo muito intensivo acerca das regiões onde foram alocados.

O trabalho de José Flávio Motta levanta questões intrigantes, tanto pelos resultados já expostos em seu artigo quanto pelos métodos de trabalho que sugere. Um mercado de escravos velhos é por si só uma surpresa. É verdade que, durante o período estudado, o cativeiro já se encontrava em crise no Brasil e isso se manifestava nessa escolha feita pelos compradores, preponderantemente cafeicultores. Possivelmente, não se esperava que a escravidão durasse muito tempo, de modo que talvez fizesse menos sentido do que antes os senhores calcularem a duração futura da produtividade desses escravos. Paralelamente, a demanda por escravos velhos dá informações preciosas sobre o tamanho da urgência por trabalhadores sentida nos lugares que os compravam, dando muita cor à relação que o café, inclusive o do Oeste paulista, ainda mantinha com a escravidão. Por outro lado, os escravos velhos informam muito sobre o passado desse período durante o qual eram negociados. As transações que os envolviam contêm, portanto, informações preciosas sobre o tráfico de escravos africanos que trouxe muitos deles para a província, já que esse tráfico se encontrara em seu auge durante a primeira metade do século. A questão muito debatida de famílias escravas terem ou não sobrevivido às transações de compra e venda também ganha uma luz especial com esse tipo de encaminhamento.

O artigo de Márcio de Sousa Soares contém informação preciosa sobre Campos dos Goitacazes. Isso é fundamental, pois no longo prazo a relação entre tráfico e escravidão no açúcar foi o ponto mais decisivo de todos na relação entre comércio de almas e escravidão – e a cana no Sudeste brasileiro ainda merece mais estudos. O autor utiliza inventários e registros de batismo para esclarecer o enorme peso numérico, em Campos, dos escravos nascidos no Velho Mundo, além de utilizar informações sobre relações familiares para qualificar aspectos muito importantes das relações entre africanos e nascidos no Brasil.

Leonardo Marques trata em seu artigo da participação norte-americana no tráfico de escravos, ressaltando a peculiaridade de ter-se tratado de tráfico muito voltado para o aprovisionamento de outras colônias ou países. Talvez só tenha havido paralelos a essa ênfase no caso do tráfico holandês e no de um momento particular do português, talvez já luso-brasileiro – o do final do século XVI e primeiros anos do seguinte, de acordo com o trabalho de Rozendo Sampaio Garcia1. O artigo é importante por, além de avaliar as dimensões do fenômeno, historiá-lo, tendo em vista a história das instituições norte-americanas e da legislação a respeito, assim como a demanda das regiões importadoras – especialmente Cuba. Contribui para a análise das conexões entre regiões diversas, e de tradições diferentes, nas Américas escravistas.

A contribuição de Alex Borucki também põe no centro da cena as conexões entre regiões e países diferentes, por referir-se à participação brasileira e de luso-afro-brasileiros de Angola e Moçambique nos arranjos destinados a burlar a pressão inglesa e a legislação nacional de cada país, em favor da preservação do tráfico de escravos. Reúne informações a esse respeito a propósito do até agora mal conhecido caso das crianças africanas conduzidas a Montevidéu na qualidade de “colonos”.

O texto de Marion Brepohl de Magalhães, ao tratar do imperialismo alemão na África (os dois focos são os Camarões e o sudoeste africano), sugere caminhos de investigação tanto no tocante à história europeia, quanto em relação à África. Quanto a esta, é de se lembrar a possível existência de fundos documentais ainda pouco explorados a respeito das partes controladas por alemães no continente africano.

Além do dossiê “África, tráfico de escravos e escravidão nas Américas”, são publicados neste número outros trabalhos: João Miguel Teixeira de Godoy realiza uma excelente retrospectiva sobre os estudos voltados ao mundo da fábrica, sempre revisitados nas pesquisas destinadas a este objeto; Leandro Antônio de Almeida apresenta, a partir do escritor João de Minas, mais um exemplo sobre as múltiplas possibilidades do diálogo entre a História e a Literatura; ainda, como mais um representante da nova geração de pesquisadores brasileiros dedicados ao mundo antigo, o estudo de Claudio Umpierre Carlan versa sobre o poder da imagem à época do Imperador Constantino. Finaliza-se o periódico com duas resenhas, de Fabiano Luis Bueno Lopes e João Fábio Bertonha.

Nota

1. GARCIA, Rozendo Sampaio. Contribuição ao estudo do aprovisionamento de escravos negros na América Espanhola. Separata dos Anais do Museu Paulista. São Paulo, 1962.

Carlos A. M. Lima – Universidade Federal do Paraná


LIMA, Carlos A. M. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.52, n.1, jan. / jun., 2010. Acessar publicação original [DR]

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Historiografia / História – Questões & Debates / 2009

Eu me lembro quando, ao findar o ano de 1979, nosso colega Carlos Roberto Antunes dos Santos tomou a iniciativa de convidar historiadores, professores e estudantes de História a fim de propor a criação da Associação Paranaense de História. Na ocasião, ficou decidido que, entre outros objetivos, a ONG faria esforços no sentido de criar uma revista. No ano seguinte, reunimos uma comissão editorial com uma marca interdisciplinar1 e convidamos o arquiteto e historiador Key Imaguire Júnior para editar a Revista. Em nome deles escrevi o texto da apresentação do seu primeiro número, datado de novembro de 1980. Como registro documental e historiográfico, penso que vale a pena registrar aqui o seu conteúdo:

A ASSOCIAÇÃO PARANAENSE DE HISTÓRIA – APAH – nasceu com amplos e ambiciosos objetivos, entre os quais a publicação de uma Revista para divulgar e discutir as suas propostas expressas no Artigo 2º de seus Estatutos, bem como outros temas concernentes à História. Depois de quase um ano de realização, atingimos este passo decisivo na consecução de seus fins e a continuidade da revista será, a nosso ver, um teste para o próprio desenvolvimento da Associação. Seu título aflorou, simplesmente, em decorrência destes objetivos – História: questões e debates. Questões e debates relacionados à problemática da produção e da transmissão do Conhecimento em História e suas relações com as vizinhas ciências humanas. Daí o caráter desta Comissão Editorial: sua heterogeneidade do ponto de vista da formação científica de seus membros, sua heterogeneidade no que se relaciona à idéia de submeter ao debate artigos não só produzidos pelos profissionais da História, mas também trabalhos realizados por outros cientistas do social que possibilitem fazer progredir, esclarecer ou avivar o relacionamento da História com as disciplinas irmãs. A História é, e sempre foi, um instrumento de Educação e, neste sentido, ela deve ter a sua função crítica. Como diz André Burguière, a história que incomoda é aquela que faz compreender, é aquela que produz o inteligível, não aquela que comemora, pois a memória nada é se não permite um trabalho crítico. Desta forma, o professor de Ensino Médio não é um mero transmissor de conhecimentos, a não ser que ele se conforme em substituir problemas e indagações pela repetição do lugar-comum, pela transmissão irrefletida de conceitos mal elaborados, de cunho muitas vezes dogmático. Por estas e outras razões, e pela contribuição no plano científico que possam trazer, estamos propondo nestas questões e debates a inclusão de trabalhos produzidos por nossos colegas professores do Ensino de Segundo Grau, de alguma forma vinculados à História. Portanto, nosso objetivo é o de multiplicar e diversificar, em níveis diversos e complementares, as abordagens sobre a História, sobre o seu ensino e, finalmente, sobre o valor que a sociedade lhe atribui, convidando os interessados no assunto a discutir conosco, por meio da revista. Evidencia-se assim um outro objetivo, muito caro à APAH: estimular o diálogo entre a Universidade e a comunidade. Na trama em que se pretende tecer as questões e debates desta revista, propomos ainda inserir um outro elemento entre os articulistas convidados: os estudantes de História, na Universidade. Este tríplice diálogo – incluindo nele, enfatize-se, especialistas nas diversas ciências sociais interessados nos nossos problemas comuns – permitiria, de um lado, resolver algumas das contradições próprias de nossa estrutura de ensino e pesquisa, melhorar o ensino em todos os seus graus, melhor vivenciar os problemas comuns às ciências humanas, além de desenvolver novas propostas. De outro lado, seria possível, desta maneira, atingir mais plenamente os objetivos propostos pela APAH, como dispõem os seus estatutos.

A revista começou de forma muito artesanal e para cada número tínhamos que buscar recursos, seja “passando o chapéu”, seja conseguindo alguns em troca de propaganda, até que o CNPq começou a nos financiar, pelo menos parcialmente. Exigências de qualidade acadêmica gradativamente nos levaram a deixar de lado certas pretensões idealistas, sintetizadas na apresentação acima, até que, a partir do número 28 (referente a janeiro / julho de 1998), o Programa de Pós-Graduação em História assumiu o co- patrocínio da Revista. Desde então, a História: Questões & Debates foi incluída no rol das publicações da Editora da UFPR, constando também do Programa de Apoio à Publicação de Periódicos, vinculado à Pró- Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação.

Chegamos agora ao seu número 50 e, como às vezes sói acontecer, números redondos coincidem. De fato, alguém já disse que 2009 é um ano “mágico”, tanto há a comemorar: os 180 anos da República, os 20 da queda do Muro de Berlim, e por aí afora. Embora a comemoração efetiva tivesse se realizado no ano que passou, aproveitamos para marcar neste fascículo, de alguma forma, os 70 anos do Curso de História (no início unido à Geografia), instituído na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras2. Porém, em especial, os 50 anos do Departamento de História da UFPR. Destaco, da Ata anexa3, o seguinte relato:

Havendo a Professôra Cecília Maria Westphalen, em princípios de maio de 1959, regressado da Europa, onde, durante um ano, realizara estudos especializados e observações sôbre a vida universitária, principalmente na Alemanha e na França, propôs ela uma reunião dos Professôres de tôdas as disciplinas históricas da Faculdade de Filosofia da Universidade do Paraná, com o objetivo de constituir um Seminário de História, nos moldes dos seminários encontrados nas universidades alemãs, afim de dinamizar e organizar os trabalhos docentes e discentes do curso de História desta Faculdade, bem como desenvolver um programa de pesquisas históricas dentro das atuais perspectivas metodológicas de História. Reunidos os Professôres convocados a 14 de maio de 1959 aprovaram êles o regulamento que a 18 de junho do mesmo ano, foi encaminhado à apreciação dos órgãos diretores da Faculdade […]

O Conselho Técnico-Administrativo da Faculdade, porém, uma vez que na estrutura da Universidade não estava prevista a instituição de Seminário, propôs em janeiro de 1960 a adaptação do Regulamento encaminhado no sentido da criação de um Departamento de História, congregando professores de História e instituído com linhas voltadas ao ensino, pesquisa e teoria da História (além de outros temas de eventual interesse dos membros do Departamento). Assim, ainda no mesmo ano, foi organizado um seminário visando à revisão da historiografia paranaense, com a primeira sessão marcada para o dia 23 de setembro de 1959,

objetivando a análise da obra dos historiadores do Paraná, com a crítica das suas fontes, métodos e técnicas de trabalho e com a finalidade de realizar o levantamento da situação real da Historiografia Regional do Paraná, e dos problemas que nela restam por serem equacionados e resolvidos.

De forma que a Historiografia também sinalizou o tema escolhido pelo Comitê Editorial da Revista História: Questões & Debates para este número. Com esse objetivo, conseguimos a colaboração de vários colegas historiadores que nos submeteram um significativo e variado leque de artigos e, entre eles, o texto do nosso homenageado, Stuart Schwartz: por proposta do Departamento de História, doutor honoris causa pela Universidade Federal do Paraná.

O dossiê que estamos propondo aos nossos leitores constitui-se de sete artigos. O primeiro deles, pela ordem e assinado por Virgínia Camilotti e Márcia Regina C. Naxara, não só articula História e Literatura, mas principalmente debruça-se nas questões historiográficas relacionadas às fontes literárias para a nossa disciplina. Em seguida, Elizabeth Cancelli nos propõe o exame dos novos paradigmas que revestem a historiografia dos anos de 1960 e 1970, em especial no que concerne à história política. O terceiro artigo, de Marisa Varanda Teixeira Carpintéro e Josianne Francia Cerasoli, nos leva, agora, ao tema das cidades, recortando o tema da historiografia construída principalmente a partir das relações entre a história e a arquitetura. O trabalho de número 4, de Ricardo Cicerchia, pretende responder duas questões, relacionadas à historicidade da “família” e às distinções entre a família europeia e as do resto do mundo. Izabel Marson, em seguida, analisa o longo itinerário historiográfico dos significados atribuídos ao Brasil monárquico nos séculos XIX e XX. Stuart Schwartz, no penúltimo artigo e no que diz respeito à história da América portuguesa, passa em revista um período historiográfico menor, diferenciado pela proeminência da História Cultural nos últimos vinte anos. Finalmente Ronaldo Vainfas, aproveitando texto de conferência realizada por ocasião dos 25 anos da Associação Paranaense de História (novembro de 2005), problematiza da mesma forma o tema da História Cultural na historiografia brasileira recente, com ênfase nas suas relações com a história das mentalidades e a micro-história.

Este número da Revista também contém artigo de Carlos Alberto Medeiros Lima, apresentando um estudo sobre o impacto do Romantismo espanhol, sobretudo pensado por eclesiásticos, na escravidão (e no tráfico de escravos) e nas relações entre a Igreja e o Estado. O rol se completa pela resenha de Marion Magalhães a respeito de um livro de Claudine Haroche.

Dada a tríplice comemoração que a edição deste número enseja, acreditei que haveria interesse em publicar a extensa ata que registra a fundação do Departamento de História, bem como o rol dos docentes que nele labutaram e labutam neste período de anos.

Notas

1 Ana Maria Bonin, Cláudio Fajardo, Judite Maria Barbosa Trindade, Rabah Banakouche, Roseli Maria Rocha dos Santos, Sergio O. Nadalin.

2 Instituída formalmente em 26 de fevereiro de 1938, seu Regimento autorizava o funcionamento dos Cursos de Filosofia, Ciências Químicas, Ciências Sociais e Políticas, e Geografia e História (cuja aula inaugural foi proferida em 3 de maio do mesmo ano).

3 Ata da Reunião do Departamento de História da Faculdade de Filosofia (Ciências e Letras) da Universidade do Paraná, realizada em 2 de dezembro de 1964, registrando sua constituição em princípios de maio de 1959.

Sergio Odilon Nadalin

Junho de 2009


NADALIN, Sergio Odilon. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.50, n.1, jan. / jun., 2009. Acessar publicação original [DR]

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Família / História – Questões & Debates / 2009

Por largo tempo, os estudos de família foram domínio dos genealogistas, a quem cabia avalizar, ou não, o bom sangue e o bom nome de determinadas estirpes. Eles detinham legitimidade para definir, com exatidão, o posto de cada um dos integrantes de uma linhagem e, por consequência, para estabelecer os lugares dessas pessoas em certo momento da história familiar. Esses lugares, por sua vez, associavam-se aos campos das prerrogativas e das interdições sociais, definiam precedências, benesses e privilégios no interior de sociedades calcadas em valores como prestígio, a exemplo do Antigo Regime Europeu.

Ali, a difusão do ideário liberal, em suas versões econômica, política e social, favoreceu as transformações que encaminharam a consolidação da sociedade burguesa no Oitocentos. Uma das marcas dessa configuração social foi promover mobilidade social calcada em méritos individuais, em amplo desfavor à procedência familiar. Dessa feita, as vias do trabalho e da escolaridade permitiam que os jovens construíssem suas vidas ao largo de suas famílias, desobrigando-os de cumprir a solidariedade geracional. Foi esse contexto de desgaste das funções tradicionais da família que encaminhou a opção das sociedades ocidentais pela estrutura domiciliar nuclear, que passa a concentrar-se em torno dos princípios da afetividade entre seus membros e da formação patrimonial para o benefício das sucessivas gerações.

Essas e tantas outras mudanças alçaram a família à condição de objeto de estudo. Não por acaso os juristas tiveram pioneirismo nessa área. Preocupados em estabelecer os direitos de sucessão, acabaram se deparando com o emaranhado de sistemas familiares que historicamente acompanharam as sociedades, o que os motivou a apresentar explicações fundadas nas teorias de evolução social, tão em voga no período. J. J. Bachofen (1815- 1887) e J. F. McLenann (1827-1881), por exemplo, encarregaram-se de enraizar a ideia da evolução das formas de conjugalidade e de parentesco: elas teriam partido do estágio da promiscuidade primitiva com base na linhagem feminina para culminar na monogamia, parentesco por ambos os sexos e autoridade patriarcal, estágio considerado ideal no século XIX. Os historiadores, ocupados com instituições e cabeças coroadas, apenas se voltaram para a temática da família nos idos dos anos 1930 e 1940, quando ela já estava consolidada nos interesses de antropólogos e sociólogos, quando se torna mais evidente a percepção de que diferentes formas de arranjos familiares coexistiam no tempo e no espaço, levando paulatinamente a um maior questionamento do modelo evolutivo para a organização familiar. A defasagem que se verifica na produção europeia é mais aguda quando se canaliza a observação para a produção dos historiadores brasileiros: aqui, como nos mostra o balanço de Ana Silvia Scott Volpi, a investigação que problematiza a família tem início apenas na década de 1970.

Assim como a noção de evolução social não mais dava conta da explicação das diferentes formas familiares e suas transformações, tampouco uma noção evolutiva para o desenvolvimento das investigações próprias das ciências humanas poderia ser aplicada para explicar o rumo desses estudos. Os diferentes caminhos trilhados pelos estudiosos no estabelecimento de conceitos e outras ferramentas de análise não ocorre de modo linear e progressivo. Nesse sentido, o artigo de David Robichaux traz importante crítica à antropologia norte-americana, notadamente aos efeitos do conceito de cultura latino-americana sobre os estudos de família. Essa categoria explicativa, muito associada ao pressuposto de efeitos devastadores da Conquista sobre as culturas locais, favoreceu desviar a atenção dos pesquisadores para a variedade de sistemas familiares praticados ao largo do continente. O autor efetua severa advertência quanto à operacionalidade da noção de cultura (latino-americana, nacional) que, por deter associação com discursos hegemônicos, desvia a atenção dos pesquisadores das efetivas práticas familiares das inúmeras formações sociais que se supõe estarem em seu interior.

Associando as temáticas da etnicidade e das migrações transnacionais, o artigo de Berta Mendiguren de algum modo reforça o questionamento de Robichaux ao trazer a complexidade das relações um grupo específico de migrantes, os Soniké, e seus vínculos com o sistema familiar do local de origem a moldar comportamentos pós-migração. Essa percepção induz o leitor a refletir de um modo mais geral sobre as especificidades de cada caso e, em qualquer que seja o contexto analisado, sobre as rupturas e as permanências sociais e culturais.

Outra forma de demonstrar a complexidade dos arranjos familiares em grupos migrados é vista no artigo do historiador Manolo Florentino. O autor toma o caso limite de migração forçada, o tráfico de escravos, a partir dos dados disponíveis sobre esse tráfico para tecer seu estudo. As fontes por ele utilizadas, consagradas para o estudo das massas humanas que foram compulsoriamente trazidas para a América, fogem às que tradicionalmente servem de base para as investigações sobre a família. Os resultados obtidos por esse pesquisador são reveladores das tensões sociais e políticas existentes entre os escravos e entre eles e o restante da sociedade – que tinha na escravidão um dos pilares de sua estrutura. Fica demonstrado em seu trabalho, que tais fontes também possuem rico potencial para o estudo da história da família, muito dele ainda por ser explorado.

Noutra abordagem, o estudo das investigadoras cubanas Maria de los Ángeles Meriño Fuentes e Aisnara Perez Díaz se utiliza de listas nominativas de habitantes, fontes consagradas no estudo de populações do passado, para destacar aspectos pouco observados pela historiografia da família, notadamente a preocupação dos arrolados com a forma pela qual seriam qualificados nessa documentação. Traz, assim, importante contribuição à crítica das fontes utilizadas pelos historiadores, atribuindo agência aos qualificativos presentes nessa sorte de documentação não somente aos responsáveis por tais arrolamentos, mas também aos que neles figuravam.

Aos leitores desse dossiê dedicado ao estudo da família, desejamos satisfação semelhante à que tivemos ao nos debruçarmos sobre os artigos que aqui se apresentam. Passamos, pois, a palavra aos nossos convidados.

Maria Luiza Andreazza

Martha Daisson Hameister

Dezembro de 2009


ANDREAZZA, Maria Luiza; HAMEISTER, Martha Daisson. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.51, n.2, jan. / jun., 2009. Acessar publicação original [DR]

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Identidades e conflitos no mundo antigo e mundo antigo e cultura moderna / História – Questões & Debates / 2008

É a própria alma que há que construir naquilo que se escreve;

todavia, tal como um homem traz no rosto a semelhança

natural com seus antepassados, assim é bom que se possa

aperceber naquilo que escreve a filiação dos pensamentos que ficam gravados na sua alma.

Foucault, “A escrita de si”, in: O que é um autor?,

Passagens, Lisboa, 1992, p. 144.

As últimas décadas do século XX foram marcadas por uma profunda revisão epistemológica nas Ciências Humanas, levando os estudiosos a reavaliarem seus valores e suas certezas. Considerando que a moderna ciência nasceu em meio à formação dos Estados nacionais e do colonialismo europeu, esses estudiosos chamaram a atenção para um aspecto pouco considerado até então: o modus operandi da construção de modelos interpretativos. Os estudos que se desenvolveram destacaram como os modelos interpretativos das Ciências Humanas estavam carregados de uma visão de mundo eurocêntrica, fundamentados na busca incessante pela verdade e pela legitimação de políticas de domínios territoriais.

As críticas que surgiram em meados da década de 1970, especialmente após os desconcertos causados pelas reflexões de Foucault [1], foram imprescindíveis para abrir caminhos para uma reflexão mais aprofundada ao fazer dos pesquisadores, bem como à formação de uma perspectiva analítica na qual a História passou a ser entendida como discursos específicos, embebidos das percepções de seu produtor. Ao retirar a História do campo da neutralidade e da objetividade, a base epistemológica dessa disciplina passou a ser repensada, proporcionando uma explosão de reflexões acerca da teoria para a produção de modelos interpretativos menos normativos acerca das relações humanas no passado.

A partir das discussões acirradas nesse novo contexto teóricometodológico, interpretações foram revistas e novas perspectivas de pesquisa foram criadas e, sem dúvida, provocaram profundas alterações sobre os estudos acerca do mundo antigo. As críticas de Said [2], já nos anos de 1970, por exemplo, fizeram com que repensássemos como o Oriente tem sido analisado pelo Ocidente. Martin Bernal [3], por sua vez, ao escrever Black Athena questionou a noção de que mundo antigo ficava congelado em um passado distante e imóvel, mas desenvolveu a idéia de que o passado Grecoromano ajudou a alicerçar pontes fundamentais para a construção das identidades dos Estados Nacionais modernos. Já Martin Millett [4], estudioso britânico, foi um dos primeiros a propor mudanças na maneira de entender o Império Romano e suas relações de domínio aos povos nativos, ao desconstruir o conceito de Romanização pela primeira vez.

Esses estudiosos, entre vários outros, fizeram com que as percepções acerca do passado antigo se tornassem mais dinâmicas e menos elitistas, abrindo espaço para novas maneiras de perceber os povos que viveram em períodos mais afastados historicamente, bem como despertaram o interesse para o fato de que, muitas vezes, nosso cotidiano está eivado de valores desses povos, reinterpretados a partir de nossas experiências modernas.

Foi pensando nesses dois vieses que organizei esse número duplo da Revista História: Questões & Debates e dividi os textos em dois grandes grupos. O número 48 traz contribuições para pensarmos temas que se desenvolveram a partir das revisões epistemológicas e da interdisciplinaridade que mencionei, indicando como Identidade e Conflitos são temas instigantes para pensarmos o passado Greco-romano. Por outro lado, o número 49 nos insere nas relações e constantes resignificações dos Antigos pelos Modernos, ou seja, como o mundo moderno se apropria do passado em múltiplos aspectos, transformando e recriando visões de mundo.

O leitor irá perceber que os textos selecionados mesclam especialistas e iniciantes, pesquisadores brasileiros e estrangeiros, indicando os frutos de experiências de orientação e diálogo que estudiosos brasileiros têm desenvolvido nos últimos anos. Para contemplar essas especificidades, procurei ordenar as reflexões de maneira que a multiplicidade de olhares sobre o mundo antigo possa ser explorada, estimulando uma reflexão sobre a importância de se pensar o mundo antigo oriental e ocidental nas suas diversas facetas.

Nesse sentido, o dossiê Identidades e Conflitos no Mundo Antigo conta com a participação de estudiosos do mundo grego e romano. Ana Teresa Marques Gonçalves e Marcelo Miguel de Souza interpretam Homero a partir de um diálogo entre Literatura, História e Música para analisar a relação entre os gregos e a musicalidade; José Geraldo Grillo recorre ao diálogo entre Arqueologia e História, enfocando a Ilíada e os vasos áticos, para estudar as múltiplas imagens de Aquiles e a relação dos gregos com a guerra; e Maria Aparecida de Oliveira Silva reinterpreta passagens de Plutarco para discorrer sobre a percepção de identidade helênica que esse escritor antigo constrói em seus textos. No que diz respeito ao mundo romano, Norma Musco Mendes e Airan dos Santos Borges nos apresentam uma instigante análise sobre o período republicano discutindo os calendários romanos, as percepções de tempo e etnicidade neles implícitos, enquanto Pedro Paulo Funari e Renata Senna Garraffoni avançam para o período imperial analisando as relações de gênero e os conflitos inerentes à sociedade romana a partir de um episódio do Satyricon de Petrônio, conhecido como “Dama de Éfeso” e Lourdes Conde Feitosa recorre aos grafites de parede da cidade de Pompéia para estudar as percepções de sexualidade e afeto daqueles que viveram no início do Principado. No que tange a chamada Antiguidade Tardia, o exército romano é estudado a partir de diferentes prismas: Cláudio Carlan apresenta uma análise sobre as relações entre romanos e bárbaros a partir de moedas, enquanto Margarida Maria de Carvalho e suas orientandas Ana Carolina de Carvalho Viotti e Bruna Campos Gonçalves retomam Amiano Marcelino para discutir as múltiplas identidades presentes no exército romano. Por fim, Júlio César Magalhães nos leva ao Norte da África para discutir os conflitos religiosos, políticos e sociais na pequena cidade de Calama.

No que diz respeito ao Dossiê Mundo Antigo e Cultura Moderna, Adilton Luis Martins inaugura as reflexões com um texto sobre a importância de textos Greco-romanos para se delinear a epistemologia da História durante o século XVIII. Em seguida, busquei reunir os textos que discutiam as relações entre Oriente e Ocidente: Andréa Doré nos apresenta uma reflexão sobre como os povos antigos e, em especial os do oriente, aparecem n’A Divina Comédia de Dante; Nathalia Monseff Junqueira analisa a presença do Egito na obra Voyage en Égypte de Gustave Flaubert; Margaret Bakos e suas orientandas Ana Paula A. L. de Jesus e Karine Lima da Costa nos introduzem a uma reflexão sobre as apropriações de traços da cultura do Egito antigo, localizadas no mobiliário urbano, de países de fala espanhola e portuguesa na América do Sul e nas antigas metrópoles, compreendendo achados que englobam desde monumentos até textos de humor. Por fim, temos os trabalhos que apresentam a relação entre o mundo Greco-romano e o século XX: Rafael Faraco Benthien analisa essa relação a partir das obras de Marcel Proust; e Airton Pollini retoma o Satyricon de Petrônio a partir do filme realizado por Fellini no final dos anos 1960, analisando a relação que o diretor estabelece com as descobertas arqueológicas do período.

Para finalizar, o número duplo da Revista História: Questões & Debates conta com a seção Artigos, na qual temas diversificados sobre História do Brasil, ensino de História e Arqueologia são discutidos. Assim, Giselda Brito da Silva apresenta uma reflexão metodológica para o estudo da repressão política, analisando a documentação referente ao Integralismo em Pernambuco; Tiago de Melo Gomes propõe uma análise sobre a relação entre historiografia e prática de ensino no Brasil; Ariel Feldman trata da elaboração do discurso político no Brasil do oitocentos, analisando os escritos de Miguel do Sacramento Lopes Gama, publicados no jornal pernambucano O Carapuceiro, entre 1832 e 1833; e Mirian Liza Alves Forancelli Pacheco fecha a seção com uma discussão teórica sobre estilo em função na Arqueologia, concretizando a perspectiva dialógica e interdisciplinar inerente a esse número da Revista. Encerrando o trabalho, três resenhas são apresentadas comentando livros recentes sobre o mundo antigo, proporcionando uma breve discussão acerca da importância do constante diálogo com o passado clássico. Boa leitura a todos!

Notas

1. Cf., em especial, FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996; FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

2. SAID, E. O orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

3. BERNAL, M. Black Athena. The afroasiatic roots of Classical Civilization. New Brusnwick: Rutgers, 1987.

4. MILLETT, M. The Romanisation of Britain. An essay in archaeological interpretation, Cambridge, 1990.

Renata Senna Garraffoni – Organizadora.


GARRAFFONI, Renata Senna. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.48-49, n.1-2, 2008. Acessar publicação original [DR]

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Parto e maternidade / História – Questões & Debates / 2007

Desde a publicação dos livros de Simone de Beauvoir (O segundo sexo, 1949) e de Betty Friedan (Mística feminina, 1963), as relações entre os estudos feministas e a maternidade têm sido marcadas pela contradição e pela polêmica. Se o feminismo da primeira onda (finais do século XIX e primeiras décadas do século XX) foi majoritariamente maternalista – apesar de algumas vozes dissonantes –, o feminismo da segunda onda (1960-1970) dividiu-se em relação à maternidade. Ora explicada como uma experiência ética e valorizada, ora denunciada como uma peça fundamental da opressão feminina, sobre a maternidade não se pode dizer que pairou o silêncio ou a negligência intelectual, muito pelo contrário.

Entre as décadas de 1970 e 1980, multiplicaram-se os estudos sobre esse tema que abrangiam diferentes domínios das ciências humanas, o que resultou em artigos, livros e coletâneas nos quais a problematização da maternidade tinha entre seus objetivos criticar as interpretações históricas e deterministas, inserindo experiências como a sexualidade, a gravidez, o parto, a amamentação e a maternagem no terreno da cultura e da história. Esses estudos contribuíram para a desconstrução de verdades estabelecidas sobre o corpo feminino, bem como sobre temas espinhosos para o feminismo, como identidade e cultura femininas. As experiências do corpo, da reprodução, do nascimento e dos cuidados deixaram o terreno da biologia e dos instintos e adentraram no terreno das relações sociais, dos sistemas simbólicos e da dimensão temporal que possibilita pensar historicamente tais experiências.

As historiadoras têm contribuído para esse debate. A história da maternidade é um domínio relativamente recente, mas tem produzido vários trabalhos individuais e coletivos nos dois lados do Atlântico. As abordagens são bastante diversificadas, como a história social, a história cultural, a história política, mas também o recorte cronológico, com estudos que se inserem na longa duração e outros de recorte mais contemporâneo e conjuntural. O dossiê Parto e Maternidade, que apresentamos na revista História: Questões & Debates, visa contribuir com os estudos sobre essa temática numa perspectiva interdisciplinar e de maior amplitude temporal. Instituição que presta serviços de atendimento a famílias em dificuldades, localizada na ilha d’Yeu (França). Fernanda analisa especificamente o que significam a gravidez e o parto para as mulheres que vivem nessa instituição.

Parto e maternidade são analisados neste dossiê como experiências que, para além da dimensão subjetiva – corporal e psicológica –, constituem pontos críticos de interseção do indivíduo e da sociedade, da racionalidade e dos sentimentos, das práticas sociais e das ideologias. Convidamos os leitores a compartilhar destas reflexões.

Neste número também contamos com três artigos que abordam questões referentes ao espaço urbano e à memória, além de práticas políticas e conhecimento. O artigo de Fernando Gaudereto Lamas aborda o contrato das entradas para as Minas Gerais no século XVIII, tanto sob a ótica administrativa quanto sob a econômica. O autor defende que um estudo sobre a ação dos contratadores esclarecerá as peculiaridades do sistema colonial português, bem como as particularidades da economia das Minas Gerais. Também sobre o século XVIII, o artigo de Clarete da Silva Paranhos analisa as Viagens filosóficas do naturalista João da Silva Feijó, correspondente da Academia Real das Ciências de Lisboa. A autora se debruça sobre o levantamento dos recursos naturais realizado pelo naturalista em viagem à Capitania do Ceará em 1799. Já o artigo de Edmilson Santos apresenta uma reflexão sobre os campos de várzea, como espaços urbanos de lazer popular.

Iniciamos com a tradução do artigo da historiadora italiana Claudia Pancino sobre a produção iconográfica dos fetos e nascituros desde a época dos anatomistas renascentistas até a contemporaneidade da transparência dos corpos pela tecnologia das imagens médicas. A autora nos mostra como se constrói a relação entre conhecimento e imaginário, levantando questões bastante instigantes sobre as relações entre o corpo materno e os fetos no processo de produção das imagens anatômicas.

Das imagens da vida e da morte, passamos para o artigo de Georgiane Garabely Heil Vázquez a respeito do aborto. A autora aborda essa questão a partir do conhecimento médico, da interpretação e das reações dos médicos a respeito das mulheres que por motivos diferentes tiveram que recorrer a essa prática para interromper uma gravidez indesejada, senão impossível, para aquele momento de suas vidas.

O artigo escrito pelas pesquisadoras do Instituto de Saúde de São Paulo e da PUCSP aborda a temática do parto e da maternidade através da profissão exercida pelas parteiras diplomadas que atuaram em São Paulo entre 1878 e 1920. Esse artigo é também uma contribuição para a historiografia da imigração, por divulgar fontes pouco conhecidas sobre as parteiras estrangeiras que exerceram seu ofício no país.

As relações entre médicos e mães são o tema do artigo de Ana Laura Godinho Lima, que analisa os manuais de puericultura escritos pelos médicos brasileiros na primeira metade do século XX com o intuito de ensinar as mães a bem cuidar dos filhos sob a égide do saber médico-higienista da puericultura. Terreno de conflitos, pois de um lado está o saber médico amparado nos conhecimentos das ciências biológicas; de outro lado, as práticas e os saberes femininos colocados em suspeição e mesmo condenados pelos pediatras. Desses conflitos, Ana Laura nos apresenta o esforço de aculturação empreendido pelos médicos e seus manuais de bem cuidar das crianças.

A educação também é o tema do artigo de Maria Simone Vione Schwengber. Fundamentada nas contribuições teóricas do pós-estruturalismo, a autora analisa o processo de educação dos corpos grávidos. Utilizando como fonte principal a revista Pais & Filhos no período de 1968 a 2004, Maria Simone estuda os processos de subjetivação através do que se tem denominado de politização da maternidade.

Fechando este dossiê, temos o artigo de Fernanda Bittencourt Ribeiro, no qual são analisados os dados de uma pesquisa etnográfica realizada numa

Ana Paula Vosne Martins – Organizadora do dossiê.


MARTINS, Ana Paula Vosne. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.47, n.2, jul./dez., 2007. Acessar publicação original [DR]

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Hannah Arendt na história: da felicidade, da amizade e do amor / História – Questões & Debates / 2007

Hannah Arendt foi uma pensadora, cujas reflexões no campo da política e da filosofia a transformaram em uma importante figura no cenário da teoria política contemporânea.

Intelectual independente e solitária, por ter se mantido afastada de escolas acadêmicas, partidos políticos e linhas ideologias, a autora pertence ao pequeno grupo de pensadores que não se curvam diante dos poderosos e do pensamento único, que se mantém fiel a si mesmos e cuja obra expressa essa lealdade numa escala e abrangência maior. A atualidade e pertinência de suas análises acerca do efeito devastador da modernidade sobre a esfera do político e da liberdade nos regimes totalitários do século XX, transformaram suas obras em leitura obrigatória em diferentes áreas do conhecimento.

No campo da História, embora Hannah Arendt tenha conferido à disciplina um lugar privilegiado, dando visibilidade às coisas humanas, ao colocar o homem no centro de suas reflexões, seu pensamento ainda não foi devidamente explorado pelos pesquisadores dessa área. Nesse sentido, a aproximação entre as idéias de Hannah Arendt e a História, se constitui numa tarefa, ao mesmo tempo, instigante e desafiadora.

Os textos apresentados nesse dossiê da Revista História: Questões & Debates resultam das reflexões realizadas durante o Colóquio alusivo à comemoração do centenário de nascimento da autora, realizado em Curitiba, em maio de 2007, sob o patrocínio do Goethe Institut de Curitiba, da Associação Paranaense de História e do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná.

Dentre as diversas perspectivas a partir das quais pode-se ler a obra de Hannah Arendt, o evento, privilegiou os conceitos de amizade, a felicidade e o amor, procurando associar as percepções da autora sobre estes sentimentos a algumas experiências históricas.

Ao tratar de temas ligados à subjetividade, vistos, muitas vezes, com enorme reserva pelos cientistas sociais, quando manifestos no espaço público, a proposta do referido colóquio mostrou-se ousada e inovadora. Rompendo com a idéia de que os sentimentos, as sensibilidades e as paixões – quase sempre entendidos como sintoma de anomia social – são considerados como uma intromissão perigosa na ação coletiva, os palestrantes procuraram discorrer sobre momentos históricos em que os sentimentos promoveram relações de solidariedade e de pactos consensuados.

Coerentes com o pensamento de Hannah Arendt, para quem o pensar e o sentir são momentos éticos indivisíveis, os autores realizaram suas reflexões, procurando entender o passado, não como experiência morta, mas como experiências, exemplos singulares, plurais e coletivos, capazes de iluminar o presente num instante de perigo, como Arendt, inspirada em Walter Benjamin, entendia ser o ofício do historiador.

Renata Senna Garrafoni, no artigo Felicitas romanica, procura desconstruir a leitura moderna que se faz da felicidade quando se trata da Roma Antiga, destacando como, entre as camadas populares daquele período, à diferença de Sêneca e de outros clássicos, a felicidade era cultivada e valorizada na vida privada, manifestando-se enquanto amor erótico.

No texto O amor na política, Renato Augusto Carneiro Júnior orienta-se por uma historiografia dedicada aos sentimentos religiosos, ao refletir sobre a obra O conceito de amor em Santo Agostinho. A partir dessa obra, Carneiro Júnior identifica a oportunidade de analisar a existência humana e a importância do amor na relação do homem com o Criador e com a sociedade, de onde deriva a forma de pensar a política, segundo Hannah Arendt.

Inspirada no percurso do livro Rahel, Ana Paula Vosne Martins, cujo artigo intitula-se Da amizade entre homens e mulheres: cultura e sociabilidades nos salões iluministas, procura reconstruir a tradição dos salões como espaços culturais no qual as distâncias sociais e de gênero foram reduzidas em favor de uma sociabilidade marcada pela civilidade, diálogo, deferência e, sobretudo, amizade. Constituiu-se ali esferas públicas ímpares, heterossociais que, à diferença do que se supõe, muito antes do movimento feminista, aproximaram homens e mulheres em torno da arte, da política e do debate livre de idéias.

Incitada pelas sugestões teóricas propiciadas pelos estudos da “Vida Privada”, Marion Brepohl, em O enamoramento e a separação dos amantes, seleciona passagens do Denktagbuch, escrito por Arendt e organizado por Ursula Lutz, visando à compreensão do amor dos amantes segundo Hannah Arendt. Recusando o método de análise do gênero diário, Brepohl afirma que no caso específico deste livro, a autora não se propõe ao ato confessional de sua intimidade, mas uma reflexão sobre a própria intimidade, em tudo distante dos negócios públicos. Brepohl afirma ser aquela interpretação um legado de seu tempo: na metade do século XX, o amor dos amantes resultaria de uma relação entre iguais, o que fortalece, segundo o que também enfatiza Martins, a aparição no espaço público. E, em diálogo com Carneiro Júnior, observa ainda que, à diferença do amor Ágape e do amor Philia, o amor erótico é tão mais efêmero quanto for sua intensidade.

Finalmente, Wolfgang Heuer, com o artigo Amizade Política pelo cuidado com o mundo, perpassando diversas obras da autora, com ênfase para Human Condition e O que é política?, analisa o conceito arendtiano de amizade pública, percorrendo as três chamadas gerações perdidas do século XX na Europa e concluindo que a amizade política é a alternativa necessária para a ação. Como Garrafoni, recua à sociedade greco-romana, momento em que Aristóteles propôs a amizade como concórdia em favor da comunidade. Momentos raros, sem dúvida, mas que, em virtude de sua excepcionalidade mesma, assumem um caráter exemplar.

Além dos textos que compõem o dossiê, essa edição traz ainda um conjunto de quatro artigos, cujas inquietações apontam para a reflexão acerca de conceitos ligados à intolerância, à memória, às representações e à interdisciplinaridade.

O primeiro deles, de autoria de Nádia Reis, aborda o neointegralismo, baseado no reavivamento de antigas concepções de mundo e de organização da sociedade do movimento integralista dos anos 30 no Brasil.

Na seqüência, o texto de Nádia Maria Weber Santos, tem como objetivo legitimar o uso da literatura como fonte histórica e traçar algumas das inter-relações possíveis entre Literatura e História.

Já a reflexão realizada por Leandro Duarte Rust, destacando a representação de tempo como objeto de estudo das dimensões e alcances históricos, busca problematizar o processo de institucionalização do papado medieval entre os séculos XI e XIII.

O artigo de André Fabiano Voigt revisita um clássico nos estudos sobre migrações, aculturação e assimilação, realizando novas propostas de interpretação dos temas concernentes a este campo historiográfico, ao analisar a obra de Emílio Willems.

Encerra o volume, a resenha escrita por Ximena Alvarez sobre a obra de Hannah Arendt Responsabilidade e julgamento. Trazendo indagações sobre a ética moral, a responsabilidade civil, coletivas e as culpas entorno ao silêncio, a obra constitui uma das coletâneas organizadas com os últimos textos escritos da filósofa antes da sua morte, em dezembro de 1975.

Por fim, gostaríamos de destacar que esse dossiê, além de buscar uma aproximação entre as idéias de Hannah Arendt e a História, cumpre importante papel no sentido de lembrar que “mesmo em tempos mais sombrios, temos o direito a esperar por alguma iluminação”.

Claudia Roemmelt – Diretora do Goethe Institut de Curitiba.

Roseli Boschilia – Presidente da Associação Paranaense de História.


ROEMMELT, Claudia; BOSCHILIA, Roseli. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.46, n.1, jan. / jun., 2007. Acessar publicação original [DR]

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Religião e sociedade: o espaço do sagrado no século XXI / História – Questões & Debates / 2005

Desde 2003, um grupo de pesquisadores, cujo tema central era a religião, as religiosidades e as instituições religiosas em suas mais diversas modalidades, começou a se reunir aos sábados para trocar informações, discutir teorias, abordar metodologias e explorar fontes e análises sobre o tema. No começo andávamos pela UFPR, pela PUC e por outros espaços sem nos incomodarmos com o conforto do lugar. Alguns se agregavam, outros abandonavam o grupo, até que no dia 20 de maio de 2004, num sábado pela manhã, resolvemos fundar o NÚCLEO PARANAENSE DE PESQUISA EM RELIGIÃO – NUPPER.

Com o objetivo de congregar pesquisadores para estudos e pesquisas multidisciplinares e multitemáticas em religião e suas derivações, o Nupper estabelecia uma programação composta de leituras, apresentação de trabalhos, realização de seminários, publicação de textos, entre outras atividades. Sua característica central é a pesquisa e a discussão de temáticas ligadas às instituições religiosas, religião e manifestações de religiosidades.

Ainda em 2004 realizamos o I Seminário Nacional sobre “Religião e Sociedade: o espaço do sagrado no século XXI”, com sessões de estudo e relatos de pesquisa que se estenderam por quatro meses, alternando terças-feiras no período da noite. Na continuidade, em 2005, organizamos o II seminário com o mesmo tema, concentrando suas atividades numa sexta-feira à noite e num sábado em período integral. Sentindo a demanda dos participantes e o anseio por um espaço para apresentação de pesquisas, neste ano de 2006 o III Seminário prevê a possibilidade de que um público maior apresente suas pesquisas.

Parte do resultado dessas pesquisas e das discussões está sendo agora apresentado neste dossiê. Como se pode observar, preserva-se o caráter abrangente dos temas, os quais, além das abordagens teóricas, revelam também as opções metodológicas de seus autores.

Doze pesquisadores em nove artigos nos instigam a pensar e a refletir sobre a historicidade das questões da religião e da religiosidade e suas permanências na contemporaneidade. Perpassa por estas temáticas um conceito central: O SAGRADO. Moojan Momen, no seu texto, parte da tese de que os seres humanos criam a realidade socialmente e de forma comunal, e que a estrutura social organizada hierarquicamente tem sido o padrão para os seres humanos, em especial os que vivem nas cidades. Examina as tentativas da comunidade bahá’í para mudar esta realidade e como os seus ensinamentos criticam este padrão, considerando-o responsável pela competição e agressão que atualmente afligem o mundo com doenças como guerras (devido à competição entre nações), degradação do meio ambiente (devido à competição empresarial), o domínio das elites sociais e as agressões em relação às mulheres, classes sociais inferiores e minorias étnicas. Euclides Marchi resgata algumas concepções de sagrado e procura verificar como elas se articulam com a prática da religiosidade. Ressalta que, apesar dos avanços e das conquistas da ciência, o sagrado e a religiosidade continuam presentes e se afirmam como formas de vivenciar a religião para significativa parcela da população humana. Uipirangi e Edilson mostram as diferentes abordagens sobre o protestantismo no Brasil, em especial quanto às peculiaridades de sua relação com o sagrado. Para isso, trabalham com o diálogo entre a História e as Ciências da Religião, privilegiando a abordagem de uma sociologia compreensiva, fundamentando suas idéias nas teorias de Maurice Halbwachs e Paulo Barreira. Vera Irene aborda algumas questões do universo das práticas religiosas tidas como populares e suas representações simbólicas do sagrado, dando destaque para o trânsito contínuo e intenso entre o institucional e o desclericalizado. Usa como exemplo as Folias de Reis, a Festa do Divino Espírito Santo e o Círio de Nazaré, as quais, além de revelarem um rico campo de investigação, também permitem perceber nela uma forma de expressão da fé. Roseli Boschilia elucida a aposta feita pela Igreja Católica na juventude como a camada social capaz de viabilizar o projeto reformista e como a educação constitui um mecanismo eficiente para frear os avanços da modernidade. Reflete sobre a política implementada pela Igreja Católica ultramontana na construção de um discurso em que o jovem aparece como o depositário das esperanças de sedimentação de valores e costumes, elegendo-o como um dos elementos capazes de evitar as mudanças e manter a tradição. Sylvio Gil e Sérgio Junqueira discutem, a partir de uma perspectiva histórica, a crise epistemológica do ensino religioso no contexto educacional do Brasil. Explorando o debate recente e o redimensionamento do objeto da disciplina “Ensino Religioso”, apresentam a discussão do pensamento e a análise do discurso religioso mostrando que a escola é um espaço privilegiado para a compreensão do sagrado em nossa sociedade. Agemir Carvalho e Valdinei Ferreira trazem sua contribuição por meio de um estudo que tem como objetivo identificar as raízes da cooperação entre as igrejas evangélicas de Curitiba, as quais remontam às missões norte-americanas e ao movimento unionista. Usam como exemplos desta cooperação a Sociedade Evangélica Beneficente e a Campanha Pró-Hospital Evangélico, cuja construção e sucesso no trabalho voltado para a sociedade são considerados como aspectos da identidade evangélica e como a face filantrópica e moderna dos evangélicos paranaenses. Victor Augustus nos apresenta a análise dos efeitos de sentido do discurso “Admoestações”, de Francisco de Assis, ressaltando o contexto sócio-religioso por ele vivido, o esforço para transformá-lo e o novo mundo que almejava construir na sociedade urbana medieval de sua época. Busca compreender a atualidade de Francisco, homem do século XIII, considerando-o como fundador de um discurso e como exemplo de perfeição cristã a partir de um modo de vida de pobreza voluntária e de serviço aos excluídos sociais. Névio Campos analisa a trajetória, os debates e os projetos dos intelectuais católicos leigos em torno da temática educativa à luz do contexto histórico paranaense entre os anos de 1920 e 1930. Mostra o processo de constituição do grupo, as suas interlocuções com as vertentes teóricas e filosóficas, as suas idéias e intervenções culturais, suas relações com o Estado e com os grupos políticos no cenário paranaense. Apoiando-se nos periódicos escritos e dirigidos pelo grupo, ressalta as contribuições do laicato ao projeto romanizador da Igreja Católica.

Cabe um agradecimento especial aos demais companheiros do Nupper, que colaboram para que o núcleo continue crescendo e se consolide como um espaço de pesquisa, discussão e troca de experiências. Àqueles que, embora participando ativamente de todas as atividades, não estão relacionados neste dossiê, gostaríamos de ressaltar que sua ausência é mera circunstância do acaso. Não faltarão oportunidades para que apresentem seus trabalhos.

Euclides Marchi – Membro do NUPPER


MARCHI, Euclides. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.43, n.2, jul./dez., 2005. Acessar publicação original [DR]

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2000 anos de Cristianismo / História – Questões & Debates / 2000

No ano 2000 comemora-se um dos acontecimentos mais importantes para a História do mundo ocidental: o nascimento de Jesus Cristo, pedra angular da religião cristã. Sua vida, confirmada por diversas fontes clássicas greco-romanas e hebraicas, transcorreu paralelamente a um dos momentos mais relevantes da História Antiga, sendo contemporâneo de Augusto nos primórdios do Império Romano. Diversas fontes tardo-antigas e medievais realçaram essa coincidência, recordando que com Cristo e Augusto inaugurava-se a “Sexta idade” da humanidade, pautando-se fundamentalmente nos escritos do Antigo e Novo Testamentos para estabelecerem uma cronologia que associava Cristo ao Império Romano e a uma época de paz e prosperidade.

A consolidação do Cristianismo até ser considerado como religião oficial do Império Romano não foi, entretanto, tão meteórica como muitos pensam. Foram 392 anos de dificuldades dogmáticas internas, disputas filosóficas, construção paulatina de uma hierarquia funcional e algumas perseguições pontuais e localizadas, culminadas com o famoso édito de Teodósio de 392 que pôs fim, ao menos nominalmente, ao paganismo panteísta greco-romano como religião imperial, sendo substituído pelo Cristianismo. Sua vinculação ao poder político e aos grupos socioculturais que o detinham demonstra a versatilidade da “nova” religião, que se manteve por toda a Antigüidade Tardia e Idade Média como principal eixo ideológico a sustentar monarquias e construções imperiais.

E que mantém-se, até os dias de hoje, com renovadas forças, a impregnar o imaginário social. Com o intuito de analisar alguns elementos configuradores do Cristianismo, a revista História: Questões & Debates reuniu em um dossiê, intitulado “2000 anos de Cristianismo”, artigos de especialistas que dedicam sua atividade de pesquisa a este tema tão rico e apaixonante.

O primeiro artigo do dossiê foi preparado por Antonio Pinero, catedrático de Filologia Greco-Latina da Universidad Complutense de Madrid, apresentando uma discussão sobre a recente descoberta do Papiro Magdalen de Oxford, que sugere uma nova cronologia para os Evangelhos e, conseqüentemente, para a vida de Cristo. O segundo artigo é da autoria de Arminda Lozano, catedrática de História Antiga da Universidad Complutense de Madrid e professora visitante do programa de Pós-Graduação em História da UFPR. O estudo oferece uma análise sobre a religiosidade grega na época helenística, que influenciou diretamente na construção filosófico-religiosa e ideológica do Cristianismo. O terceiro artigo do dossiê, redigido por Pablo de la Cruz Diaz Martinez, da Universidad de Salamanca – também professor visitante do Programa de Pós-Graduação em História da UPPR -, analisa de uma forma interessante a figura do peregrino cristão e dos lugares de peregrinação por meio do estudo das fontes hispanas tardo-antigas. O quarto artigo, de Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenadora do Programa de Estudos Medievais em sua universidade, realiza uma abordagem sobre as manifestações religiosas na Península Ibérica, com especial acento sobre o reino de Castela, no século XIII. O quinto artigo foi redigido por Euclides Marchi, professor-sênior do Programa de Pós-Graduação em História da UFPR, que faz uma análise interessante sobre a idéia de evangelização contida na carta de Pero Vaz de Caminha. E o sexto artigo, que encerra o dossiê, é de autoria de Etiane Caloy B.de Souza, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da UFPR, que desenvolve um tema vinculado ao Cristianismo contemporâneo, notoriamente, a idéia da demonização do cotidiano pela Igreja Universal do Reino de Deus.

Além dos artigos que integram o dossiê “2000 anos de Cristianismo”, contamos ainda, neste número, com um estudo de grande interesse, de Pierre Ansart, professor emérito da cátedra de Sociologia da Université de Paris VII, uma conferência apresentada em junho de 2000 aos discentes e docentes do Programa de Pós-Graduação em História da UFPR sob o título “Em defesa de uma ciência social das paixões políticas”.

Pode-se constatar que, neste número, para além do tema proposto, agregam-se estudos de especialistas nacionais e estrangeiros de grande relevância para o debate acadêmico-científico em nosso país. Uma prática constatada também nos números anteriores de História: Questões & debates, o que reflete a sua importante contribuição historiográfica.

Renan Frighetto – Coordenador do Programa de Pós-Graduação em História – UFPR.


FRIGHETTO, Renan. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.33, n.2, jul./dez., 2000. Acessar publicação original [DR]

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Brasil: a conquista do olhar / História – Questões & Debates / 2000

As inúmeras festividades em tomo do V Centenário do descobrimento do Brasil são um ato de memória. Nas raízes do termo comemorar (lembrar juntos) denota-se essa intenção.

O ato de lembrar é, ele mesmo, um ato fundador. Lembrar do descobrimento do Brasil é (re)criá-lo, (re)descobri-lo. E, independentemente das motivações desse ato de memória, bem como de seus autores, nesses momentos, vozes de uma identidade sempre multifacetada são redimensionadas, conflitos são expostos, disputas por significações esvaziam ou fortalecem as representações políticas.

História: Questões e Debates integra-se, neste número, a este ato de memória; mas, ao invés de celebrar os 500 anos deste país cujo passado insiste em não passar, propõe-se aqui a publicação de um conjunto de textos que visam refletir sobre a identidade brasileira, identidade que, como todas, foi produzida por testemunhos de discursos, imagens e experiências que se cristalizaram no tempo.

Dietrich Briesemeister apresenta, a partir da iconografia do século XVI, “imagens européias sobre a natureza e o indígena, clivadas de estereótipos e de mitos constelados em sua própria cultura”, que foi redefinida pela conquista do “outro” americano.

E é enquanto conquista que Ronald Raminelli dedica-se a discutir as viagens pelo Brasil empreendidas por europeus no século XVIII. Identificando nelas um denominador comum – a secularização e, conseqüentemente, o espírito científico -, Raminelli concebe-as como empreendimento colonial, donde a escolha (extremamente apropriada) do termo inventários.

Nesta linha de preocupação, na resenha do livro Natureza e civilização na viagem pelo Brasil, feita por Claudia Rõmmelt Jahnel, viagem, relato e conquista são analisados em sua unicidade, porquanto tais registros teceram, ao longo dos anos, histórias do Brasil.

Márcia Naxara visita esse mesmo tema no século XIX. Neste século da “construção das nações”, as elites brasileiras debruçam-se sobre as “origens” do país. Para tanto, o mito da raça mestiça inspira aquelas descrições, quase sempre ressentidas, de um país cujos autores assumem-se como estrangeiros em sua própria terra. Eles, civilizados, “o outro”, por formar-se.

E, no século XX, novamente, o tema do descobrimento é esquadrinhado; a produção apresentada por Eduardo Morettin é a do olhar cinematográfico. O filme de Humberto Mauro, Descobrimento do Brasil, representa uma peça importante na história de nossa política cultural, de vez que se propôs, coerentemente ao discurso nacionalista, a ensinar a “nação” aos seus cidadãos / espectadores.

Completando este dossiê, apresentam-se reflexões teóricas sobre a memória e a história, tema central de quaisquer comemorações. De forma bastante pertinente, Jacy Seixas convida-nos a pensar que o ato de memória mantém estreitas relações com o esquecimento, aquela, fugidia, este, a antecipação de uma perda.

História: Questões e Debates apresenta ainda neste número um ensaio sobre a recepção da obra de Capistrano de Abreu, de Fernando José Amed, e um artigo que reflete um novo campo de interesse historiográfico: a música popular brasileira. Não deixa de ser curioso, mesmo que fortuito, que o autor deste trabalho, David Treece, seja um europeu a construir uma determinada imagem do Brasil… E, na sessão de resenhas, Eichmann em Jerusalém, livro que, apesar de sua importância, somente agora foi reeditado no Brasil.

Ao encerrar esta apresentação, não poderíamos deixar de agradecer, em nome da Associação Paranaense de História e dos Cursos de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Paraná, ao Professor Luiz Carlos Ribeiro, que ora encerra sua gestão como editor. Pelo seu empenho e dedicação, responsáveis pelo aperfeiçoamento da qualidade deste periódico, nossos sinceros reconhecimentos.

Marion Brepohl de Magalhães – Editora


MAGALHÃES, Marion Brepohl de. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.32, n.1, jan. / jun., 2000. Acessar publicação original [DR]

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MPB / História – Questões & Debates / 1999

A revista História: Questões & Debates chega ao número 31 com a tarefa de manter e aprimorar o padrão editorial e acadêmico que a colocou entre as cinco principais publicações brasileiras na área de História. Neste número, aceitamos o desafio de organizar um dossiê sobre um tema de vanguarda da pesquisa histórica: a Música Popular Brasileira.

Os estudos históricos em torno da música brasileira, assim como de outras áreas das Ciências Humanas, vêm conhecendo notável crescimento a partir da segunda metade da década de 80, apesar de os principais trabalhos acadêmicos (teses e dissertações) permanecerem inéditos para o grande público leitor. Numa área tradicionalmente dominada por um tipo de história factual, por crônicas e biografias, começam a se firmar certas linhas de investigação propriamente acadêmicas, marcadas por uma busca de conceitos explicativos, análise de fontes primárias e procedimentos teórico-metodológicos mais rigorosos. Reconhecemos que este dossiê ainda está longe de representar toda a riqueza dos estudos sobre a música brasileira, que vem ganhando espaço nos principais programas de pós-graduação do País, mas nos propusemos a organizá-lo justamente para incrementar o debate e a troca de idéias sobre o tema, tarefa fundamental para consolidarmos essa nova área de estudos.

Nos quatro artigos do dossiê, seguido pelo importante instrumento de pesquisa bibliográfica elaborado pelo pesquisador Tiago de Melo Gomes, podemos ter uma amostra de algumas linhas de pensamento acadêmico sobre a MPB: no artigo de Marcos Napolitano, discute-se o conceito strictu sensu de MPB nos anos 60, buscando entender o lugar histórico e social que esse gênero ocupou na agitada cena histórica brasileira do período. Maria Izilda Matos analisa a trajetória e a produção musical de Adoniran Barbosa, resgatando sua visão peculiar sobre o processo de urbanização de São Paulo, entre os anos 40 e 60. Alberto Moby revisita o tema do seu livro Sinal fechado para analisar as estratégias e idiossincrasias do personagem-compositor Julinho da Adelaide (pseudônimo usado por Chico Buarque nos anos 70) para burlar a censura do regime militar brasileiro e manter viva a palavra cantada numa época de repressão. Tânia Costa Garcia nos apresenta um painel crítico da questão do nacional (e do popular) na trajetória de Carmem Miranda, um dos símbolos da música popular no Brasil, a partir de documentos escritos e do seu consagrado repertório.

Este dossiê conseguiu reunir pesquisadores e professores de alguns dos mais importantes programas de pós-graduação em História do país, um dos aspectos fundamentais para elevar a qualidade de uma publicação acadêmica. Esperamos que ele seja apenas o início de uma troca ainda mais ampla e urgente sobre o tema.

A seção Artigos teve a feliz coincidência de reunir dois estudos no campo da história intelectual. Anita Schelesner analisa a forma editorial, acadêmica e política como foi recebida a obra de Antonio Gramsci no Brasil, e como essa foi fundamentalmente uma leitura marcada pela hegemonia leninista do comunismo internacional.

Circunscrito ao cenário intelectual francês dos anos 70, o texto de Helenice Rodrigues da Silva nos apresenta um itinerário intelectual e político de Claude Lefort. A partir de discussões políticas como a democracia, a burocracia e o totalitarismo, a autora debate questões fundamentais para a compreensão da efervescência intelectual e política do período.

Encerrra o volume a resenha sobre a recente publicação de Walter Garcia, um dos mais aprofundados estudos sobre o violinista e cantor João Gilberto, um dos ícones da moderna cultura brasileira.

Marcos Napolitano – DEHIS / UFPR


NAPOLITANO, Marcos. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.31, n.2, jul./dez., 1999. Acessar publicação original [DR]

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Espaço e sociabilidades / História – Questões & Debates / 1999

Os textos aqui apresentados sob o tema Espaço e sociabilidades refletem interesses e problemas de investigação de pesquisadores preocupados com as formas de convívio entre grupos humanos, bem como com os palcos privilegiados dessas mesmas formas de interação social. São textos que apontam para pesquisas recentes, as quais privilegiam as formas de sociabilidades entre imigrantes europeus, entre mulheres escravas ou forras, entre mulheres abastadas ou pobres do mundo urbano, entre indivíduos de comunidades tradicionais, entre cativos e negros livres urdidos pelas identidades étnica, profissional ou religiosa, entre boêmios da cidade contemporânea, entre gêneros envoltos em conflitos amorosos. Essas dimensões das sociabilidades são discutidas aqui, ao mesmo tempo, do ponto de vista dos espaços, dos palcos urbanos nos quais elas se desenrolavam; as cidades e as aldeias são, assim, configurações recorrentes, sejam estas situadas na sociedade chilena tradicional, no medievo português, no contexto da América portuguesa ou na contemporaneidade burguesa carioca ou da Curitiba do século que ora se encerra. Trata-se, em conjunto, de um esforço coletivo de pesquisadores mais ou menos articulados entre si no sentido de constituir uma reflexão comum em torno não apenas dos espaços construídos pelas interações sociais, pelas configurações marcadas pelas interdependências entre os indivíduos, mas também pelas formas de sociabilidade muitas vezes baseadas em princípios identitários que esses espaços ensejam. Não se deve crer que estes textos reflitam, por fim, um produto pronto e acabado relativamente ao tema mais amplo, dado pela expressão espaço e sociabilidades; antes, propicia-se aqui um ponto de partida teórico, uma página aberta às indagações de leitores aptos a identificar os componentes do que venha a ser uma linha de pesquisa de grande alcance temático e espacial.

Luiz Geraldo Silva – Comissão Editorial.


SILVA, Luiz Geraldo. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.30, n.1, jan. / jun., 1999. Acessar publicação original [DR]

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Reinvenções da sociedade do trabalho / História – Questões & Debates / 1998

O dossiê deste número da História: Questões & Debates está profundamente comprometido com a história presente. Ao eleger o tema “reinvenções da sociedade do trabalho” — assim mesmo, no plural! —, a revista realiza uma complexa referência à historiografia recente: resgata o tema do trabalho no campo da história — particularmente rico no Brasil dos anos 80 com as contribuições teóricas da nova esquerda inglesa — e, com ele, o tema da “invenção da sociedade do trabalho”, tão cara aos estudos sobre o século XVIII e XIX.

Mas, ao fazê-lo pelo forte viés de uma história presente, obrigatoriamente “reinventa” de maneira aberta e inacabada esta sociedade. Por isso a reinvenção apresenta-se no plural. Ao mesmo tempo, ao se abrir para a possibilidade de reinvenções, de uma certa forma questiona — mas sem fazê-lo explicitamente — a unicidade dada à invenção original.

E vai ao seu limite, pergunta o que é a categoria trabalho na sociedade neoliberal do desemprego estrutural. Constata como esta situação compromete categorias até então consolidadas na sociedade do trabalho, tais como estado, democracia, sindicato, mercado de trabalho, entre outras.

É esse o itinerário das inquietações presentes na discussão sobre o regime de oito horas entre os Socialistas Fabianos, sobre o novo sindicalismo brasileiro dos anos 60 / 70, e principalmente sobre as novas relações no mundo do trabalho dos anos noventa.

Talvez por conta do abandono do tema no campo da história, é forte a presença, nesses artigos, de uma sociologia do trabalho. Ou, ainda, talvez reflita a tendência da história de buscar nas ciências vizinhas os seus modelos teóricos, como esse da nova sociedade do trabalho.

Fora do eixo temático, o texto de C. Haroche toma como referência a problemática do assédio sexual para discutir a diferença entre a política do respeito às diferenças e a democracia cotidiana na sociedade contemporânea, particularmente na norte-americana.

O artigo de V. Costa discute a capacidade dos objetos tecnológicos exercerem — no Brasil do iníco do século — um imaginário de fascínio e poder.

Com esses assuntos pouco usuais, História: Questões & Debates no seu décimo quinto ano de existência reafirma sua postura ensaísta e polêmica, tão salutar nas ciências humanas.

Luiz Carlos Ribeiro – Editor.


RIBEIRO, Luiz Carlos. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.29, n.2, jul./dez., 1998. Acessar publicação original [DR]

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Dimensões do sagrado / História – Questões & Debates / 1998

Entre os dias 23 de novembro e 4 de dezembro de 1998, a Associação Paranaense de História (APAH) promoveu o curso de extensão “Religião e poder”, que contou com a participação de professores e alunos dos cursos de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná. O interesse pelo tema, bem como a colaboração de professores do Departamento de Antropologia de nossa Universidade na execução do curso de extensão, culminou com a elaboração do dossiê “Dimensões do sagrado”, tema central da revista História: Questões & Debates em seu número 28.

Os artigos aqui apresentados prezam por sua unidade temática, ao mesmo tempo que referem-se a especificidades espaço-temporais e metodológicas. O estudo de Selma Baptista é exemplo de uma abordagem metodológica distinta, que parte de uma análise antropológica para analisar a constituição do discurso dos pentecostais. Já os artigos apresentados por Euclides Marchi e Sandra Jacqueline Stoll referem-se a questões afetas aos problemas da religiosidade no Brasil no final do século XIX e durante o século XX.

Os outros dois trabalhos que encerram o dossiê “Dimensões do sagrado” tratam de temas vinculados à Europa quinhentista e seiscentista. Wilson Maske apresenta a trajetória histórica dos menonitas, desde os seus primórdios como grupo associado ao movimento reformador do século XVI e suas posteriores ramificações, seu estabelecimento na Prússia, Rússia e, a partir do século XIX, sua imigração para o Canadá e para o Brasil. Já Leandro Henrique Magalhães desenvolve sua análise sobre o messianismo português na obra de um dos mais ilustres pensadores lusitanos do século XVII, o padre Antônio Vieira, em um momento de grande importância para o reino de Portugal, o da Restauração Portuguesa, iniciada pelo monarca D. João IV, pertencente à dinastia de Bragança.

Além dos artigos que integram o dossiê “Dimensões do sagrado”, contamos neste número com a colaboração de dois estudos para a seção “Historiografia e documentos”. Marcos Napolitano nos oferece uma interessante visão sobre a música popular brasileira durante a década de 60, período importantíssimo para a história contemporânea brasileira. O segundo trabalho é de autoria de Johnni Langer e apresenta um levantamento sobre algumas das 20 mil obras raras existentes nas bibliotecas setoriais da Universidade Federal do Paraná e que devem ser objeto de análise por parte dos historiadores.

O presente número da revista História: Questões & Debates apresenta ainda resenhas de Fátima Regina Fernandes e Johnni Langer.

Podemos observar que existe uma grande contribuição de professores e alunos do Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná na elaboração de artigos e resenhas para o número 28 de nossa revista. O que significa que contamos, cada vez mais, com a colaboração de profissionais que possuem uma sólida formação e que certamente contribuirão para a manutenção da qualidade da revista História: Questões & Debates.

Renan Frighetto – Departamento de História da Universidade Federal do Paraná.


FRIGHETTO, Renan. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.28, n.1, jan / jul, 1998. Acessar publicação original [DR]

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Intelectuais e poder / História – Questões & Debates / 1996

O dossiê “Intelectuais e poder” definido para este n. 25 da revista História: Questões & Debates, foi resultado de um curso de extensão promovido pela APAH – Associação Paranaense de História, e pelo PGHIS – Cursos de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal do Paraná. O seminário contou com a presença de Jorge Colli (Unicamp), apresentando “A pintura, a política e o poder”, de Paulo Eduardo Arantes (USP), com a palestra “Partido Intelectual Brasileiro”, de Maria Helena Capelato (USP), que nos falou sobre “A atuação dos intelectuais no Varguismo e Peronismo”, de Plínio Smith (UFPR), com o tema “Continuar e conservar. Montaigne e o poder” e ainda de Owaldo Monteul Filho (UFRJ) que abordou a “Ilustração Portuguesa e o poder”.

Para publicação nessa edição, felizmente pudemos contar com o artigo de Capelato, que apresenta uma análise comparativa da atuação e do perfil dos intelectuais — a relação entre autoritarismo político e liberdade intelectual — nos governos Vargas (Brasil) e Peron (Argentina), nos idos de 30 / 40. Também recebemos o artigo do Plínio Smith, que nos apresentou uma leitura sobre a participação de Michel de Montaigne junto ao poder, na França da segunda metade do século XVI, sobre o seu pensamento político e o sentido de seu suposto conservadorismo. Adicionamos aos dois artigos o da professora Clara Alicia Jalif de Bertranou, da Universidade de Mendoza, Argentina. Discorrendo sobre a produção intelectual latinoamericana nos anos 90, Bertranou discute, à luz da crise dos modelos tradicionais da modernidade, as perspectivas do desenvolvimento regional.

Enfim, perpassando o campo da história intelectual, o que está em discussão é tanto a produção intelectual quanto a forma como o pensamento serve para refletir ou legitimar determinada estrutura de poder. Foi com base na temática “Intelectuais e poder” que pensamos ilustrar a capa. A diversidade temporal dos artigos nos impedia de termos uma única imagem. Optamos por uma imagem que, na história da relação entre o intelectual e o poder, transformouse em um símbolo: o manifesto político e intelectual de Émile Zola, J’Accuse (1898), elaborado no conturbado caso Dreyfus. Com esse manifesto nascia o “intelectual”, conceituado como “um ser combativo que acredita em causas”. Sem dúvida, a ausência de um artigo sobre o romancista e a polêmica que seu manifesto provocou no regime francês representa um hiato em nosso dossiê. Mas ficaram faltando tantos outros: Voltaire, Victor Hugo, Sartre… Resolvemos homenagear a todos com o paradigmático J’Accuse, de Zola.

Fora do dossiê, sem que existisse a intenção, os artigos do bloco seguinte acabou constituindo também uma unidade temática: “imagens e imaginário na história”. Foi muito bem-vindo. A abordagem reflete em parte as discussões que professores e alunos das linhas de pesquisa da Pós-Graduação em História da UFPR vêm realizando. Ana Paula, com as imagens do corpo feminino na medicina; Anibal Costa, com o imaginário de missionários e feiticeiros nas missões jesuíticas paraguaias; Johnni Langer, com o imaginário do mito arqueológico da Esfinge Atlante; Marcos Araújo, com a obra do jesuíta João Daniel na experiência amazônica do século XVIII. À parte desse conjunto, Maria Luiza debate, pelo viés demográfico e etnográfico, como foram recriadas as sociabilidades de um grupo imigrante. Sua ênfase é história da família imigrante no Paraná. O artigo de Rafael Rosa poderia estar no dossiê sobre os intelectuais. Mais do que uma análise sobre o congresso estudantil de Ibiúna (1968), o que problematiza é o pensamento de esquerda no Brasil, sua visão sobre o papel dos estudantes e da universidade no processo de desenvolvimento do país.

No seu conjunto, os artigos e resenhas apresentados demonstram não só a produtividade científica dos Cursos de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, na sua interface com outras instituições, como também a maturidade que a revista História: Questões & Debates adquiriu no cenário da produção historiográfica nacional. Os temas e os recortes teóricos apresentados revelam a atualidade da revista.

Luiz Carlos Ribeiro – Doutor (DEHIS / UFPR)


RIBEIRO, Luiz Carlos. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.25, n.2, jul./dez., 1996. Acessar publicação original [DR]

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História Questões & Debates | UFPR/ANPUH-PR | 1980

Historia Questoes e Debates3 Paraíso Tropical

História – Questões & Debates (Curitiba, 1980-) é uma publicação do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná (PPGHIS-UFPR) e da Associação Paranaense de História (APAH).

[Periodicidade semestral].

[Acesso livre].

ISSN 0100-6932 (Impresso)

ISSN 2447-8261 (Online)

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