A rejeição ao outro: espaços de não-reconhecimento nas relações de alteridade / Revista Espacialidades / 2017

Somos todos iguais. A afirmação é comum nas culturas de tradição liberal, e se repete com muita frequência em diversas circunstâncias e ambientes (desde as conversas de bar até o debate acadêmico). Entretanto, a retórica da igualdade não apresenta correspondência imediata na realidade empírica. Somos todos iguais? Talvez a postura interrogativa seja a mais adequada à narrativa histórica. Afinal, há sempre pontos de distensão nas relações de alteridade. Historicamente, os encontros humanos foram profundamente marcados por disputas em torno da ideia do que é o humano, de tal maneira que o outro (enquanto categoria sociológica) foi não raras vezes qualificado pelos grupos dominantes como inferior, tendo, no limite, a sua humanidade absolutamente negada. Essa classificação que estabelece níveis variados de dignidade entre sujeitos ou grupos diferentes (do ponto de vista físico, social ou cultural), justificou práticas diversas de dominação e violência.

Hoje, no senso comum, tendemos a pensar que as práticas de preconceito, exclusão e violência são expressões restritas ao passado. Ou do passado remoto – coisa de gregos e romanos, que viam como bárbaros todos que não partilhavam da chamada cultura clássica –, ou do passado recente – prática de nazistas que teria desaparecido sob os escombros da Segunda Grande Guerra. Mas as tensões no reconhecimento mútuo entre grupos humanos se manifestam na história do tempo presente e no mundo autodenominado liberal: na xenofobia; nas fronteiras de reprodução do grande capital (com a destruição moralmente injustificada dos grupos indígenas); na negação do reconhecimento de cidadania efetiva a mulheres, negros e homossexuais; nas violentas disputas religiosas; no terrorismo e, igualmente, na guerra ao terrorismo; na segregação dos pobres, tangidos pelas classes hegemônicas para as periferias das cidades.

Nós, da Revista Espacialidades, apresentamos, por meio do volume que agora vai a público, a nossa contribuição para a reflexão histórica sobre o problema do não-reconhecimento nas relações de alteridade. Num mundo onde a intolerância domina os espaços de maneira terrificante, o pensamento crítico é um imperativo ao qual a comunidade acadêmica não pode se furtar. Assim, entregamos aqui o resultado do trabalho e da colaboração de pesquisadores ligados a instituições acadêmicas de todo o país que decidiram submeter seus trabalhos na Revista Espacialidades, somando esforços para a formação do conjunto de artigos do nosso 11º volume. O nosso agradecimento a cada articulista.

Agradecemos imensamente aos membros do Conselho Consultivo que com muita generosidade e, acima de tudo, competência, contribuíram com pareceres sérios e consistentes que garantiram a qualidade do dossiê A rejeição ao outro: espaços de não-reconhecimento nas relações de alteridade, o qual passamos agora a apresentar.

Para abrir o dossiê temático A rejeição ao outro: espaços de não reconhecimento nas relações de alteridade apresentamos o artigo O fechamento do horizonte índico da igreja ortodoxa copta: o caso do sacerdote do povo das índias na corte do Papa Simão de Alexandria (689-701), escrito pelo doutorando Alfredo Bronzato da Costa Cruz (PPGH – UERJ). A partir de um episódio particular – a solicitação de um sacerdote “do povo das Índias” para que o Patriarca Simão de Alexandria ordenasse um bispo para a comunidade de origem daquele sacerdote – o autor do artigo discute uma série de questões envolvendo o conceito espacial historicamente produzido de Índias e as tensões nas relações entre muçulmanos e cristãos, notadamente no mundo oriental do século VIII A.D.

Em seguida, apresentamos o artigo intitulado Narrar e pensar o outro, narrar e pensar a si: a escrita da história da África entre e etnocentrismo e a epistemologia das diferenças onde as mestras em História Regional e Local Kátia Luzia Soares Oliveira e Ana Paula Moreira Magalhães(IFBA) analisam a escrita da História da África por meio de uma perspectiva marcada pelos pressupostos da longa duração de Fernand Braudel, buscando dialogar com a obra de Achile Mbembe, observando as relações de alteridade, complexidade e diversidade que compõe os dizeres e a escrita sobre a História do continente africano.

Das representações sobre a África, passamos às representações sobre a América, com o artigo Relações inter-humanas e espaços de alteridade negada no novo mundo: Os escritos de Colombo e a visão primeira sobre a terra e sobre o outro, de autoria do mestrando em História & Espaços, Erick Matheus Bezerra Mendonça Rodrigues (UFRN). O artigo discute as primeiras percepções sobre o Novo Mundo, especialmente no âmbito da visão espacial sobre as novas terras e da caracterização do seu elemento humano, tendo como base o conceito de alteridade negada. Para tanto, a fonte utilizada são os relatos de Cristóvão Colombo acerca das novas terras descobertas e dos povos que ali habitavam no final do século XV.

O quarto artigo se intitula “Este delito tem pena de morte por direito”: André de Freitas Lessa, um sodomita na teia da Inquisição (Olinda, 1593-1595). Escrito pelo mestrando Ronaldo Manoel Silva (UFRPE), o texto trata do processo inquisitorial do sapateiro André de Freitas Lessa, sentenciado na primeira visitação do Santo Ofício à capitania de Pernambuco, no século XVI (1593-1595), por crime de sodomia perfeita, a atual prática de sexo anal homossexual, e de como a rede formada pelo sapateiro e seus clientes desafiava e rejeitava os valores morais impostos no período.

Também compõe o dossiê o artigo “Outro olhar: as práticas sociais da região do Baixo Centro (BH / MG)”, proposto pela mestranda no Programa de Pós-Graduação em Geografia – Tratamento da Informação Espacial Fernanda Mingote Colares Luz(PUC-Minas), que aborda a disposição da dinâmica de ocupação do espaço público, frisando a influência do Estado neoliberal na organização das cidades. Dando ênfase na região chamada Baixo Centro, em Belo Horizonte, Luz busca analisar como tais práticas se apresentam nessa região.

E, fechando nosso dossiê temático, temos a mestranda Daiane Santana Santos (UFCG), que apresenta seu artigo A busca por uma “cidade certa”: processos reguladores e homogeneizantes na cidade do Salvador (1940-1950), onde procura mostrar as estratégias de normatização e mobilidade dos corpos, principalmente daqueles “sujeitos infames”, na capital baiana no final da primeira metade do século XX. A autora constrói sua narrativa problematizando o discurso higienista, comportamental e disciplinador, notadamente representado pelo Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador (EPUCS) e os Códigos de Postura, confrontando-o com as fotografias do álbum Retratos da Bahia (1990), do fotógrafo franco-brasileiro Pierre Verger, buscando perceber o lugar (es) do(s) corpo(s) e de que maneira ele(s) se reinventa(m) e se move(m). O trabalho dialoga com Michel Foucault, Michel de Certeau e Georges Bataille, e traz uma importante reflexão sobre as práticas urbanas e as estratégias de (re)invenção cotidiana dos chamados “sujeitos ordinários”, além de flutuar em questões sobre o Urbanismo, e as tentativas de organização racional dos espaços da cidade.

Na Seção Livre, apresentamos O imaginário urbano e a fotografia: a modernidade e a ruína do bairro da Ribeira, artigo produzido conjuntamente pela professora Dra. Maria Inês Sucupira Stamatto (UFRN) e pela doutoranda em Educação (UFRN) Anna Gabriella de Souza Cordeiro. O texto traz uma análise comparativa do imaginário urbano do bairro da Ribeira (Natal, RN) no início dos séculos XX e XXI. As autoras selecionaram fotografias de quatro edifícios do referido bairro nos dois momentos recortados para a comparação a que se propuseram desenvolver. A partir das análises, fundamentadas em um instrumental teórico da história cultural, elas identificaram um deslocamento do imaginário urbano que vai da Ribeira como expressão da modernidade, no início do século XX, ao bairro como ruínas, no início do XXI. Para as articulistas, tal deslocamento reflete as dinâmicas processadas historicamente no meio urbano.

Fechando a nossa publicação, apresentamos a entrevista concedida pelo professor Dr. Rafael Chambouleyron (UFPA), historiador que tem se destacado pelas suas pesquisas sobre a atuação da Coroa portuguesa para a região Amazônica, enfocando a ocupação do espaço e a economia colonial. Na entrevista, o professor Chambouleyron tece considerações sobre a importância das categorias espaciais para a produção historiográfica, além de apresentar debates próprios do recorte temático sobre o qual vem atuando que se articulam diretamente com o tema desse dossiê, A rejeição ao outro: espaços de não-reconhecimento nas relações de alteridade.

Equipe editorial:

Arthur Fernandes da Costa Duarte

Cid Morais Silveira

Francisco Leandro Duarte Pinheiro

Giovanni Roberto Protásio Bentes Filho

Lucicleide da Silva Araújo

Maria Luiza Rocha Barbalho

Matheus Breno Pinto da Câmara

Thaís da Silva Tenório


DUARTE, Arthur Fernandes da Costa et al. Apresentação. Revista Espacialidades. Natal, v.11, n. 01, 2017. Acessar publicação original [DR]

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