Republicanismo no Brasil do século XIX / Varia História / 2011

É conhecida a afirmação de Frei Vicente do Salvador, feita em seu livro História do Brasil, em 1627, sobre a cena pública da América portuguesa: “Nenhum homem nessa terra é republico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do particular”. A frase famosa parece apontar para um déficit na origem da comunidade política – entre nós existiria uma permanente inconsistência e uma insuficiência de princípios, práticas e valores próprios à tópica republicana que ainda hoje permitiriam medir a fragilidade de uma República inconclusa, sempre por fazer-se, alimentada por um desejo continuamente postergado de encenar sua fundação política.

mal-estar na República que nossa imaginação histórica denuncia permite medir a fragilidade das instituições republicanas na contemporaneidade. É certo que, no caso brasileiro, o conceito “República” não traduziu a possibilidade histórica da sua afirmação na vida política do País após 1889. A ideia de um Estado que não consegue firmar-se, impor-se como instância capaz de dar expressão pública e canais de resolução próprios às manifestações e aos conflitos projetados pela vida social e política viria a marcar e a se desdobrar nos períodos subsequentes da nossa história republicana.

Contudo, o recente resgate historiográfico da recepção das ideias próprias à tradição republicana, de seus procedimentos de absorção e de seu impacto na vida pública brasileira aponta um novo terreno para o estudo do republicanismo no País. Esse resgate tem indicado que, no nosso caso, República e republicanismo trazem pelo menos dois estoques de referências: são ideias arregimentadoras, “ideias que produzem eventos”, que concedem grande valor à política e à vida ativa; ambos forjaram, entre nós, um condensado de cultura política e um vocabulário adequado à conservação de valores do mundo público – como cidadania ativa, soberania, federalismo, direitos, virtude cívica e representação política.

O propósito deste Dossiê, que se intitula Republicanismo no Brasil do século XIX, é registrar um momento importante de consolidação dos processos de recepção das ideias do republicanismo no País. Embora a história do conceito de República no Brasil aponte para o seu registro já a partir do final do século XVII, foi principalmente durante o século XIX que a tópica republicana se afirmou entre nós como um dos lugares de modelagem de ideias em conflito pelos quais girava a agenda política do País.

Os artigos de Marcello Basile, Sílvia Fonseca, Valdei Lopes e Weder da Silva compartilham de um mesmo esforço analítico: cada um a seu modo, os autores trataram de identificar e examinar a linguagem política republicana que circulava no Rio de Janeiro, em Pernambuco e em Minas Gerais. No seu conjunto, os artigos apontam para duas questões importantes. Na primeira, indicam que o republicanismo no Brasil não atuou isoladamente no tempo, mas, ao contrário, dispôs de continuidade temática e de uma perspectiva de interpretação do País. Na segunda questão, esses artigos apontam tanto para a importância de determinados conceitos – o caso exemplar do federalismo – quanto para o esforço de certos personagens – Ezequiel Correia dos Santos, Frei Caneca e Teófilo Ottoni – no processo de acolhimento e de enraizamento do republicanismo durante a primeira metade do Oitocentos brasileiro.

O período final do Primeiro Reinado indica o aparecimento de uma nova cultura política fundamentada na emergência de uma incipiente, porém ativa, vida pública, capaz de desenvolver mecanismos ainda informais de sociabilidade e de ação política. Nesse contexto, a imprensa, os movimentos de contestação de rua e as associações de natureza política e / ou culturais assumiram uma característica peculiar, constituindo espaços informais de participação na cena pública do País – e os artigos de Marcelo Basille e de Valdei Lopes e Weder da Silva enfatizam a importância dos jornais Nova Luz Brasileira e Sentinella do Serro como canais de intervenção política republicana próprios a esse contexto.

Já as últimas décadas do século XIX e o início do século XX assistiram ao surgimento de uma combinação muitíssimo eficiente para a formação pública de opiniões: música e política. O artigo de Martha Abreu e Carolina Dantas sustenta essa combinação na explosiva conexão entre liberdade, princípios igualitários e abolicionismo. Aplicado à pauta do debate do republicanismo, o tema da abolição é sempre decisivo, seja por sua disposição em estruturar a linguagem pública dos direitos, seja por seu propósito de expandir a cidadania para um grande contingente de excluídos da vida pública nacional.

Não por acaso, o artigo de Maria Tereza Mello põe em cena a associação entre as ideias de República e Democracia presente no imaginário político brasileiro, sobretudo a partir da década de 1880. Foi em torno da noção de Igualdade que se construiu essa associação – obra de um grupo de letrados, mas também de setores políticos radicais engajados na tarefa de difundir uma cultura pública de viés democrático em uma sociedade ansiosa por reformas. A compreensão do fracasso dessa associação permite compreender, ao menos em parte, o desencanto com uma República recém-criada, cujo tipo de governo não correspondia aos ideais republicanos.

A década de 1860 aponta para o encerramento de um ciclo. O artigo de José Murilo de Carvalho demonstra que a progressiva radicalização do debate político dos anos 1860, até a formação do Clube Radical, em 1868, carregou os radicais liberais para o centro da vida pública nacional. A presença política dos radicais significou principalmente a discussão de um amplo programa de reformas que incluía, entre outros temas, a extensão dos direitos políticos, dos direitos civis da liberdade de ensino e culto e a abolição.

Porém a transformação do radicalismo liberal em republicanismo, a partir do Manifesto Republicano de 1870, provocou um retrocesso conservador: o debate em torno do melhor regime não trouxe à tona a formação de instituições marcadas pelos valores do republicanismo; tampouco enfrentou a variedade e a profundidade do programa de reformas propostas durante a década de 1860. Esse é o paradoxo da nossa experiência republicana que o artigo de José Murilo de Carvalho revela: a República que emergiu da cena do debate operado após o Manifesto de 1870 não era apenas uma forma de governo conservadora e sem nenhuma sensibilidade para a questão social – ela não correspondia aos ideais republicanos.

Ao pretender trazer contribuições para a recepção, no Brasil, de ideias, conceitos, práticas e sensibilidades políticas que formam a tradição republicana em suas matrizes modernas – a norte-americana e a francesa -, este Dossiê pretende amarrar duas pontas: uma, a referência ao conjunto de valores que permite a cada um de nós agirmos em um mundo muitas vezes difícil de ser compreendido – o repertório das famosas virtudes e princípios republicanos que visam ao bem agir no mundo público. A outra, a ponta que nos permite reencontrar no nosso passado histórico a dinâmica das ideias: a maneira como essas ideias são recebidas em um contexto determinado e apropriadas de maneira seletiva, em um processo que inclui deslocamento e transferência; e inclui, igualmente, supressão, modificação e recriação. Amarrar pontas não deixa de ser também parte de um trabalho de memória – cabe, bem, ao ofício do historiador.

Belo Horizonte, junho de 2011.

Heloisa Maria Murgel Starling – Professora do Departamento de História
Coordenadora do Projeto República / UFMG. Organizadora. E-mail: [email protected]


STARLING, Heloisa Maria Murgel. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.27, n.45, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original [DR]

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