Bohêmes. De Léonard de Vinci à Picasso [Le Catalogue de l’Exposition] – AMIC (LH)

AMIC, Sylvain (Dir). Bohêmes. De Léonard de Vinci à Picasso [Le Catalogue de l’Exposition]. Paris: Réunion des Musées Nationaux, 2012. Resenha de: VAZ, Cecília. Ler História, n.63, p. 204-207, 2012.

Fait couler le rocher et fleurir le désert
Devant ces voyageurs, pour lesquels est ouvert
L’empire familier des ténèbres futures.
Charles Baudelaire, Les Fleurs du Mal (1857)

1 A boémia artistica moderna corresponde a um fenómeno cultural, social e político fundamental na História da Arte ocidental. É este tema, a par da exploração das suas origens, que guia a exposição «Bohèmes. De Léonard de Vinci à Picasso», comissariada por Sylvain Amic, que pôde ser vista no Grand Palais em Paris, de 26 de setembro de 2012 a 14 de janeiro de 2013. A mesma exposição é apresentada na Fundación MAPFRE, em Madrid, de 6 de janeiro a 5 de maio de 2013, com o título «Luces de bohemia. Artistas, gitanos y la definición del mundo moderno».

2 Os diferentes títulos espelham a dificuldade linguística na tradução do jogo de linguagem francês. O plural do título reflete uma polissemia que marca o termo que, a partir do século XV, é utilizado genericamente para designar uma série de indivíduos que possuem traços comuns e são reconhecidos por uma vida errante e sem regras. «Bohémien» é sinónimo de vagabundo, nómada ou membro do povo Cigano. De facto, «égyptien» – que em inglês dará origem ao «gypsy» – é outro termo que remete para a mesma realidade, marcada pelo reconhecimento do estrangeiro e de um certo exotismo oriental. Se esta é a aceção original, a própria língua francesa vai, no século XIX, criar um novo sentido que se impõe. A partir de cerca de 1830 o termo é por extensão usado para nomear um movimento artístico que nasce em Paris. Os «bohèmiens» passam a ser também os que vivem uma vida boémia: artistas, pintores, poetas, filósofos e músicos sem formação académica, que se colocam à margem da sociedade e vivem precariamente. Com Murger e o sucesso da sua peça Scénes de la vie bohème (1849), o termo «bohème» e o movimento artístico da boémia impõe-se na linguagem até que a ópera de Puccini (1896) o consagra, tornando-o uma referência universal. A própria língua portuguesa, tal como outras línguas, integra no seu vocabulário o termo «boémio» neste último sentido.

3 As obras artísticas reunidas nesta exposição guiam-nos pelos caminhos desta dicotomia entre a representação artística de uma identidade e a identificação do artista com a identidade que representa.

4 A exposição encontra-se organizada em dois grandes núcleos: o primeiro apresenta obras plásticas – maioritariamente pintura – inspiradas nos «boé­mios» na sua aceção original e percorre um período de quatro séculos (1493 a 1910), abrangendo artistas provenientes de variados países europeus. Na transição para o segundo núcleo, feita por uma teatral escadaria do Grand Palais, encontramos um pequeno espaço consagrado à música, ao espetáculo e à ficção, que aposta em materiais mais interativos. No piso superior, o segundo núcleo foca-se na boémia artística parisiense ao longo de cerca de um século, apresentando pintura, desenho, caricaturas, fotografias e ilustrações. A contrastar com uma certa formalidade na disposição e exibição das obras do primeiro núcleo, aqui a cenografia da exposição faz-se sentir mais intensamente: entramos pela mansarda do artista, passamos ao seu atelier, precorremos diversas visões da boémia e desembocamos nos cafés e cabarets de Montmartre. A terminar, uma sala despojada e fria evoca os antípodas da tolerância pela liberdade e um modo de vida marginal.

5 A representação dos «boémios» na cultural ocidental sublinha desde o início o fascínio dos artistas por um universo que é simultaneamente próximo e totalmente diferente. As primeiras referências a «boémios» na Europa Ocidental datam do princípio do século XV e as suas representações artísticas surgem no final desse mesmo século, espelhando a construção de uma identidade baseada na sua origem misteriosa, na sua linguagem própria, no seu peculiar modo de vida e reforçado pela sua capacidade de adivinhar o futuro que os envolve ainda mais numa aura de magia.

6 O tema da mulher que lê a sina na palma da mão traduz a sedução e o perigo que este universo representa: a capacidade de adivinhação do futuro serve, não raramente, para distrair a sua vítima no presente e roubá-la. Veja-se o quadro de Geoges de La Tour, La Diseuse de bonne aventure (c. 1630) que põe em cena esta envolvência que tem por objetivo o logro. Se a fortuna pode ser lida indiferenciadamente tanto a um homem como a uma mulher, é sempre uma mulher que o faz. A representação desta mulher é marcada pela sua não convencionalidade. Associada a cenas de sedução, a divertimentos como o jogo, o submundo das tabernas, a dança e a música profana, a mulher é assim representada com uma aura de subversiva sensualidade que a distingue das demais, por vezes com intenções moralizantes.

7 Outros temas recorrentes, como os acampamentos, a eterna viagem, a ligação à natureza e a liberdade e exotismo que o modo de vida destas figuras implica, podem remeter para uma imagem de mendicidade e vadiagem. Por outro lado, evocam também o ideal rousseauniano do bom selvagem, enaltecendo um estado natural e puro antes da corrupção da civilização, apesar do seu contacto com esta.

8 Um quadro de Gustave Courbet, Le Rencontre ou Bonjour M. Courbet (1854), sugere já o núcleo que se seguirá na exposição dedicado à boémia artística. Representando a sua conceção de renovação da arte na «solução» do encontro entre o burguês mecenas e o artista livre e independente, como outrora fora entre senhores e «boémios» errantes, o pintor coloca em cena a afinidade entre dois mundos. Para além do imenso fascínio que os «boémios» exercem sobre os artistas, reconheçe-se a própria identificação do artista com este universo: figuras errantes, marginais, insaciáveis, hábeis, irredutíveis à norma, que perturbam e provocam uma sociedade acomodada, inerte e limitada. A imagem do vagabundo torna-se uma componente da modernidade artística para qualificar a natureza do artista como essencialmente livre, sem nada de seu, que não se submete a obrigações impostas por outros e responde apenas à sua própria inspiração.

9 A «vida boémia» e o seu novo estatuto para o artista, que se irá tornar uma referência dominante, é o momento de emancipação da arte. Representar a boémia é uma forma crucial de nela participar. A boémia artística é simultanea­mente uma forma de vida e uma encenação tanto dessa vida como da sociedade à qual responde. Apesar do desprendimento que marca a boémia, esta é, acima de tudo, uma prova de fogo para o artista. A vida boémia é a reivindicação da marginalidade em que o artista se encontra. O artista é representado como uma figura marcada pela indeterminação da sua posição económica e do seu papel na sociedade, como um individuo naturalmente atormentado, destinado a lutar obstinadamente contra a adversidade e cuja carreira irá necessariamente acabar em abnegação, fracasso, desespero, loucura ou suicídio. Jules Blin dá desta temática uma imagem impressionante ao representar-se no seu atelier devastado, com um revólver na mão, pisando uma tela, numa obra dramaticamente intitulada Art, misère, désespoir, folie! (1880).

10 Em contraste com a ligação com a natureza predominante no primeiro núcleo, encontramos aqui espaços fechados como o atelier do artista ou os cafés, os cabarets artísticos, os teatros, as tabernas e outros locais que espelham a vida urbana moderna. Estes são locais marcados por uma animação féerica a par de uma inquieta melancolia.

11 Montmartre é o palco principal desta vida boémia marginal, vivida numa quase obscuridade, e irá marcar determinantemente a imagem da cidade das luzes, constituindo ainda hoje uma importante atração turística.

12 Esta viagem pelas várias boémias termina abruptamente com um conjunto de obras de Otto Mueller, que recuperam a representação da figura do Cigano como aquele que encarna o «outro» no seio da sociedade ocidental. As vanguardas retomam este tema para com ele simbolizar a atração pelo diferente e a libertação das convenções sociais, particularmente as sexuais. O ano de 1937 é a data que marca a rejeição e condenação de um povo e da sua representação.

13 Percorrer esta exposição é também perceber o mote para a construção da identidade do artista moderno. Se começa por representar uma identidade recorrentemente, o artista acabará por se identificar com o universo representado, assumindo a sua condição de «outro» na sociedade.

14 No catálogo, a reprodução das obras exibidas é complementada por dez ensaios que focam temas explorados ou apenas aflorados na exposição, focando temas como os espaços de sociabilidade privilegiados pela boémia parisiense ou as representações musicais, literárias e até cinematográficas, essenciais na construção destas identidades boémias. A boémia impõe-se assim como um tema complexo, apropriado e explorado por várias áreas, uma questão rica que permite diversas e multifacetadas abordagens encetadas por várias áreas do conhecimento. A identidade do «boémio» assume diversas facetas, reflete-se em variados suportes, e ainda hoje marca o imaginário e as vivências urbanas.

Cecília Vaz – Doutoranda em História Moderna e Contemporânea no ISCTE-IUL e investigadora do CEHC-ISCTE-IUL. É bolseira da FCT. A sua área de investigação são as sociabilidades boémias contemporâneas. E-mail: [email protected]

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