Religião, migração e cultura. Imagens da fé / Domínios da Imagem / 2016

Com o termo bastante genérico de “religião”, costuma-se circunscrever um âmbito particular da vida social, feito de crenças míticas, práticas rituais, comunidades de fé e, sobretudo, da experiência do sagrado. Os cientistas humanos, definindo um “fenómeno religioso” como constituído pelos epifenômenos sobreditos, colocaram as bases para uma análise comparada de crenças e práticas culturalmente heterogêneas e geograficamente distantes, identificando, deste modo, um tipo cultural universalmente presente.

Frequentemente, nas descrições dos etnógrafos, a vida religiosa tem sido envelopada pelo ordinário, sendo associada a visões cosmológicas, instituições políticas, categorias identitárias e posturas éticas estáticas ou, pelo menos, homeostáticas. A primeira vista, efetivamente, o diálogo iconográfico aqui proposto, entre religião e mobilidade humana, poderia parecer anómalo, dirigido ao estudo de uma situação extraordinária: a vivência, por exemplo, dos migrantes, dominada pela experiência desconcertante da multiculturalidade. Os protagonistas da maioria dos casos apresentados neste dossiê se encontraram na situação desconfortável de aplicar os próprios “saberes” religiosos a novos contextos; frequentemente, pouco permeados por eles. Em outros casos, o sentido desta relação se inverterá e encontraremos convertidos que tentarão aplicar novos “saberes” religiosos aos seus antigos contextos.

Entretanto – como poderemos apreciar por meio de todos esses trabalhos – é justamente nos contextos de mobilidade e mudança que se revelam com mais claridade as implicações socioculturais das práticas religiosas. Isto porque a relação dos migrantes e dos convertidos com a religião não é a de crentes com uma cosmovisão imutável, etnicamente conotada, nem com uma ordem de preceitos morais, emanação natural das categorias sociais que regem um grupo determinado. A relação destes crentes errantes, fisicamente ou culturalmente, é a de animais simbólicos penetrando situações carentes de sentido com um modo particular de “pensar”, o mitológico.

Por meio do discurso mítico, os crentes, todos, produzem relações de sentido entre os acontecimentos contingentes que vivem e um universo significante que tende sempre a transcendê-los. A história mítica não informa por si mesma, não contém uma verdade absoluta, encapsulada nela; ela adquire valor, ante os olhos dos crentes, somente se demostra-se apta a permear sua história, transformando-a. Os significados extraídos das expressões religiosas, como as imagens aqui analisadas, não são dados, mas constituem o produto de uma síntese simbólica que define, contextualmente, história humana e história mítica – duas realidades que se definem reciprocamente, fusionando-se em um único objeto simbólico, denominado “mito”. O mito faz sentido enquanto proporciona sentido a uma realidade concreta, e vice-versa.

Esta visão simbólica do mito, presente em todos os textos que compõem o dossiê, leva-nos a uma concepção dinâmica e dialética de uma vida religiosa que, analiticamente, não pode ser nunca desvinculada de sua referência prática e histórica. O crente não sofre passivamente o mito, mas interage com ele e com suas representações materiais, utilizando-o como uma articulação simbólica por meio da qual ligar, semioticamente, a sua contingência a um determinado universo significante. O fenômeno religioso, portanto, adquire relevância analítica, além de significância cosmológica, quando apreciado dentro destes processos culturais de construção social da realidade. Neste sentido, o objeto de estudo religioso se oferece tanto a uma abordagem antropológica, como à historiográfica – especialmente, a um enfoque que integre ferramentas, questões e sensibilidades de ambas estas áreas do conhecimento. Não é por acaso que história e antropologia representam as vozes dominantes deste dossiê interdisciplinar.

As diferentes imagens religiosas analisadas no presente dossiê têm algo em comum: todas elas materializam aquela espécie de istmo cognitivo que, segundo Lewis (2008, p. 56), representaria o mito, com a sua capacidade de conectar a península do pensamento humano (e das suas verdades abstratas) ao vasto continente que habita (por meio de uma experiência direta, sempre ligada ao particular). Se o mito dialoga sempre com situações particulares e vividas diretamente, incorporando-as nas próprias formas simbólicas (SAHLINS, 1990), parece redutivo considerar os contextos de mobilidade como anómalos, cenários de experiências religiosas extraordinárias. Pelo contrário, os textos deste dossiê nos mostram que a vida religiosa dos migrantes e dos convertidos pode representar também um observatório privilegiado para estudar e entender a experiência religiosa ordinária. A prática religiosa é sempre um ato parcialmente criativo, representando uma imparável atividade imaginativa, dirigida à construção de imagens sensatas de uma realidade intrinsecamente instável e mutável.

Estas complexas imagens cosmológicas, sempre in fieri, são frequentemente contidas em, veiculadas por, e manipuladas através de imagens materiais. Refiro-me, em particular, às representações vivificadas das entidades e forças míticas, expressões de uma linguagem metafórica e analógica, isto é, simbólica. As transcendências dos fatos religiosos, as contingências dos fatos humanos e as imagens míticas em que primeiras e segundas encontram-se e sintetizam-se constituem os três pilares deste dossiê; o “trípode délfico” do qual os filhos do homem que não têm “onde reclinar a cabeça” (Lucas, 9,58) extraem suas próprias respostas. A indissociabilidade destes três pilares da vida religiosa atravessa todos os textos que compõem este dossiê.

No texto do historiador Paulo Augusto Tamanini, este trípode assume as formas hieráticas, preciosamente estilizadas, das Nossas Senhoras da iconografia bizantina da comunidade ucraniana de Curitiba. Nem sequer a tradição milenar e os cânones antinaturalistas que dominam esta expressividade religiosa podem encurralar os crentes no domínio da abstração sobrenatural, pois inclusive as suas formas “desmaterializadas” revelam-se sensíveis ao ambiente que as circunda. Tamanini descreve o ícone bizantino dos curitibanos como uma “obra pictórica que ainda está em andamento”. No entanto, de certo modo, esta nunca chega a cumprimento, como pode revelar uma análise historiográfica desta arte imagética, cujas formas, sendo reproduzidas, acabam integrando elementos novos, próprios do lugar, lato sensu, em que o ícone está inserido.

O processo de produção destas imagens representa, para Tamanini, o momento crucial desta maneira expressiva religiosa. As orações, os jejuns, os momentos de contemplação que precedem a feitura de um ícone levam os seus artífices a um novo encontro, localizado, com a divindade e com as suas verdades. A encarnação de Deus no ventre de Maria, representada no ícone da Virgem Orante, não se limita a celebrar o tempo mítico em que o humano e o divino se uniram, senão que convida artífices e devotos da imagem a viver novamente esta união, partindo da própria humanidade e da própria história. Neste sentido, é bastante significativo que em outro ícone aparece a imagem de Maria Odigitura, isto é, daquela que mostra o caminho. Do mesmo modo que a catedral curitubense de São Demétrio dialoga com os novos elementos do panorama urbano que a circunda, os ícones que esta contém abrem-se necessariamente às interpretações e às manipulações físicas e simbólicas de uma humanidade em movimento.

Também no artigo de Daniel Luciano Gevehr e Aline Nandi, as imagens sacras – ocultadas, no texto, pelas quatro pequenas casinhas de santos da comunidade ítalo-riograndense da Boa Esperança que as guardam – mediam as relações entre cosmologia religiosa e espaço físico. Foi graças à instalação, neles, de estátuas de santos católicos, que os sobreditos capitéis – construídos entre 1945 e 1960 pela chamada “segunda geração” – tornaram-se centros sagrados de refundação cosmológica da realidade. São centros periféricos, de tipo familiar, que, dialogando entre eles e com o centro principal da igreja matriz (dedicada à, também italiana, Nossa Senhora de Caravaggio), constituíam coordenadas geográficas importantes, através das quais mapear geograficamente e culturalmente espaços ainda novos e enigmáticos. Por meio destes oratórios, localizados nas margens das estradas da colônia, aqueles católicos italianos estabeleciam uma relação dotada de sentido com um mundo e uma vida novos.

Na imagem do santo familiar, os Boniatti, os Scalcon, os Taufer, os Cambruzzi e os outros moradores de aquelas localidades rurais encontravam um caminho para religar a região existencial das próprias situações críticas ao plano transcendente das soluções míticas. Esta ligação era ativada por meio das promessas, com os seus pedidos e os seus pagamentos. Gevehr e Nandi nos informam que na atualidade estes lugares da devoção desempenham uma função um pouco diferente, tendo sido ressignificados pelas gerações posteriores. Parece, efetivamente, que os capitéis e os seus santos moradores afastaram-se dos grandes e pequenos casos do dia a dia, para tornar-se instrumentos de uma memória coletiva que é cultivada e atualizada declinando, conjuntamente, identidade religiosa e identidade étnico-nacional. Os capitéis da Boa Esperança estão transformando-se: de lugares de oposição mitológica às doenças, às calamidades naturais e a toda adversidade, a lugar de reafirmação de uma identidade, a católicoitaliana, que se redescobre a medida em que se afasta de si mesma – passando do domínio dos atos naturais e inconscientes da cultura viva ao das tradições transmitidas e comemoradas do folclore.

As imagens católicas de um coletivo migrante estão no centro também da contribuição de Sidney Antônio da Silva, antropólogo que estuda há anos a migração boliviana em São Paulo. No texto de Silva, analogamente ao visto nos primeiros dois artigos, as imagens católicas deste coletivo nacional destacam-se pela sua capacidade de representar um centro de agregação étnico, embora transnacional, dentro de um espaço estranho. De fato, nos lugares paulistanos aonde chegaram a Virgem de Copacabana e a Virgem de Urkupiña, além de aparecerem pratos nacionais, produtos típicos daquela região andina e objetos e costumes étnicos, afirmou-se um modo particular de criar sentimentos comunitários e de tecer redes de solidariedade. Silva nos mostra como a imagem sagrada boliviana, por meio da instituição cerimonial do Presterío e do dobro principio de reciprocidade que a rege – o, vertical, que governa as relações entre devoto e divindade e o, horizontal, que sustenta a comunidade de devotos –, continua representando, em terras brasileiras, um importante centro de construção social da realidade.

A festa, em particular, representaria o “fato social total” (MAUSS, 1974) que, por meio daquele poderoso símbolo identitário que é a Virgem regional, agrega, aglutina, organiza e recompõe as humanidades desfiadas e fragmentadas pela contingência migratória. Aqui também, a Virgem não constitui um elemento étnico inerte. Pelo contrário, como simboliza bem o costume para-litúrgico dos cargamentos, ela – ao igual que o Ekeko, seu concorrente/colega “pagão”, na festa de alasitas – carrega-se periodicamente dos novos desejos dos seus devotos, socializando-os e significando-os. Silva conta-nos como foi, justamente, a aspiração da senhora Juanita Trigo de comprar uma casa o que, no final dos anos ’80 do século passado, deu início ao ciclo de festas devocionais na comunidade boliviana de São Paulo.

O antropólogo italiano Riccardo Cruzzolin, em seu artigo, partindo da ideia de iconografia religiosa como espaço cultural e político de imaginação da realidade, analisa o culto que o coletivo peruano de Perúgia (Itália) rende ao limenho Señor de los Milagros. Uma das caraterísticas principais deste espaço é, segundo Cruzzolin, remeter a um imaginário que não é nunca fechado, nem invariável, e que, sobretudo, não leva jamais a visões unânimes da realidade. Pelo contrário, a imagem religiosa desperta e veicula percursos imaginativos diferentes e, frequentemente, discordantes. Isto porque a imagem, embora aspire a evocar mitos atemporais, princípios universais e verdades transcendentes, não se libera nunca dos referentes práticos e imanentes dos que a ela se dirigem. A imaginação religiosa, a despeito da sua natureza social, é sempre parcialmente faciosa. Consequentemente, a imagem religiosa, com o seu poder imagético politicamente legitimador, representa sempre um espaço em certa medida contendido. A imagem, pintada no século XVII, deste Cristo crucificado pode ser sempre cuidada, adornada e enriquecida de objetos que a tornam mais preciosa; e, certamente, preenchida pelas instâncias particulares dos autores destes gestos devocionais.

A imagem do Señor de los Milagros, depois de ter resistido aos terríveis terremotos que sacudiram Lima, parece aguentar também as turbulências da vicissitude migratória; representando para os peruanos perugini o mesmo que representou para os seus primeiros devotos ameríndios e africanos: uma poderosa forma simbólica por meio da qual construir imagens coerentes da realidade vivida, com todas as suas contradições. A imagem é usada pelos seus cargadores emigrados para reconstruir aquela presenza demartiniana (DE MARTINO, 1958) – o Ser-aí-no-mundo heideggeriano – que, embora seja expressada sempre culturalmente, radica-se nas questões existenciais mais profundas do indivíduo; sendo, por isto, constantemente posta em risco pelas incertezas das situações contingentes vividas, como as produzidas pela experiência migratória.

O texto da antropóloga Joana Bahia põe luz a outras duas questões importantes, inerentes ao fenômeno religioso: o seu caráter intrinsecamente transnacional e a inevitável mitificação – entendida como aquisição de qualidades míticas – daqueles seres humanos, normalmente sacerdotes (lato sensu), que se aproximam muito ao mito e à sua essência sagrada, tornando-se eles mesmos efígies do universo religioso. Com respeito à primeira questão, Bahia analisa a expansão da umbanda e do candomblé em terras alemãs, austríacas e suíças. Em particular, o foco do seu estudo é representado pela relação extremamente dinâmica e fluida que, neste cenário (des)localizado das crenças afro-brasileiras, dá-se entre campo étnico e campo religioso. Em todos os terreiros analisados por Bahia na Suíça e na Alemanha, emerge a grande capacidade das religiões afro-brasileiras de dialogar, simultaneamente, com diferentes contextos étnicos e culturais, incorporando-os e deixando-se incorporar por eles.

Tais diálogos e outras relações entre estados, planos e universos diferentes são interpretados, principalmente, pelos pais e as mães de santo ativos em terras alemãs. Por meio de uma leitura mítica das respetivas trajetórias migratórias, existenciais e espirituais, eles tornaram-se formas vivas de um universo significante e, consequentemente, como nos diz Bahia, viraram “construtores de histórias e ideologias sobre o grupo”. As narrativas autobiográficas da “suíça” Mãe Habiba, e dos berlinenses Mãe Dalva e Pai Murah confundem-se continuamente com as histórias míticas dos terreiros que dirigem. Em um tipo de tradição religiosa fortemente ritualista e que funciona pelo princípio da incorporação – que vai bem além do transe mediúnico –, estes personagens desempenham um importante papel simbólico, veiculando com o próprio corpo processos de construção mítica da realidade. Eles transformam-se, de facto, em imagens religiosas vivas, capazes de evocar imaginários coletivos e de impulsar processos imagéticos.

A possibilidade do ser humano encarnar o mito é tão concreta no artigo do historiador Alexandre Karsburg, que se transforma no principal obstáculo da sua pesquisa historiográfica. Karsburg desloca-se de um lugar para outro do planalto meridional do Brasil, para seguir o rastro do venerado monge João Maria. Em particular, ele está interessado em desvendar as pessoas reais que, entre meados do século XIX e o início do século XX, foram identificadas com ele; a começar do primeiro destes estranhos personagens, o italiano João Maria de Agostini. Seguindo diferentes percursos historiográficos, alguns dos quais pouco frequentados, Karsburg reconstrói com certa precisão o itinerário deste primeiro monge andarilho. Embora a vicissitude analisada neste texto comece com um movimento “migratório”, a relação aqui descrita entre religião e mobilidade é atípica e inversa à que costumamos encontrar: o deslocamento deste “monge” não constitui uma incômoda condição a ser resolvida miticamente, mas, pelo contrário, um caminho místico regenerador, por meio do qual sair dos pântanos mortíferos da vida mundana.

Curiosamente, o “desaparecimento”, em 1852, do homem João Maria coincide com a afirmação do seu mito, interpretado por uma quantidade indefinida de andarilhos penitentes percorrendo o extenso território sulino desde 1855. O texto de Karsburg ajuda-nos a entender que quando um homem aproxima-se demais do mito, tentando permanecer dentro do seu âmbito sagrado e procurando viver conforme seu modelo, ele mesmo torna-se uma imagem vivente da realidade mítica. A trajetória brasileira (documentada) de Giovanni Maria de Agostini é relativamente curta, durando menos de um decênio. Contudo, desde o começo, pelo seu estilo de vida hierático e solitário, inspirado na figura de Santo Antão Abade, o Anacoreta, ele chamou a atenção dos que cruzavam o seu misterioso caminho, excitando a imaginação deles e transformando-se em um modelo a seguir. Na medida em que lhe eram reconhecidos atributos míticos, construía-se um lugar da imaginação mitológica, ao passo que os confins espaciais, temporais e até mesmo somáticos da sua trajetória existencial ofuscavam-se e dilatavam-se; para receber e englobar, como um rio com os seus afluentes, as peregrinações de dezenas de outros “monges” – como João Maria de Jesus e José Maria de Santo Agostinho (que participou da Guerra do Contestado) – que procuraram imitarlhe a vida penitente e de rejeição dos valores mundanos. Também estes últimos, fundindo-se com o primeiro e com o imaginário por este inaugurado, de imitadores viraram imitados, imagens vivas de um “pensamento”, o mítico, que, como sabemos, é homeopático e contaminante por definição.

Também no texto da antropóloga Maria Raquel da Cruz Duran, a questão da mobilidade na experiência religiosa não está diretamente relacionada ao fenômeno migratório, mas a um processo de evangelização, pelo qual estão passando os membros de um povo indígena do Mato Grosso do Sul. Quando, nos anos ’60 do século passado, um missionário evangélico alemão chegou a Alves de Barros, “capital” dos Kadiwéu, encontrou um povo cuja vida religiosa fundamentava-se em uma mistura de pajelança e catolicismo popular, vivido essencialmente por meio do culto às imagens. A autora analisa, por meio de um emblemático depoimento, como a entrada exitosa dos protestantes na vida deste povo mudou a percepção dos seus membros para com as imagens sacras.

Duran explica-nos como a devoção da sua interlocutora baseava-se na percepção de uma coincidência ontológica entre uma entidade divina, real e um sentimento piedoso, radicado no mais fundo do seu ser. Tal devota teria tomado consciência dessa duplicidade justamente quando experimentou a sua ruptura: “descobrindo” que aquela suposta entidade real era um pedaço de madeira esculpido por homens e que o próprio sentimento religioso era sustentado por uma ilusão. Este “descobrimento”, evidentemente, foi propiciado pelo discurso iconoclasta protestante e pela sua desmitificação das representações iconográficas como lugar de encontro com a divindade. Contudo, paradoxalmente, a rejeição das imagens católicas, no depoimento recolhido pela autora, corresponde também a uma demonização das mesmas, isto é, à sua revitalização, embora em chave demoníaca.

O último texto representa uma contribuição minha, de caráter antropológico, dirigida à compreensão da natureza do poder sedutor que as imagens religiosas exercem sobre os seus devotos. Especificamente, interesso-me em compreender qual é a força que, cada fim de semana, leva dezenas de equatorianos a deslocar-se de diferentes distritos de Nova Iorque e, inclusive, de outros estados contíguos, para a igreja de Saint Veronica, no Lower Manhattan. O fato de que lá é guardada uma imagem da Virgen del Quinche – muito venerada no norte do pais andino – poderia sugerir uma resposta que aponte para um processo de “retribalização” em terras estrangeiras. Contudo, a opção da compreensão daquela imagem como mero símbolo étnico, ao qual os equatorianos locais acorreriam para não esquecer quem são, representa um atalho que, apesar de ser extremamente cómodo e atraente, afasta-nos de um entendimento mais profundo do fenômeno observado.

Certamente, os quitenhos de Nova Iorque que se dirigem a Saint Veronica fazem-no porque vivem um sentimento de proximidade com a Nossa Senhora lá representada. Entretanto, essa proximidade não é de um tipo transcendente ou essencial – como normalmente é entendida a étnica –, mas apresenta um forte caráter contextual e experiencial. Eles consideram e veneram aquela Virgen porque por meio dela veem – no sentido cognitivo do termo – a própria história e a própria vida. Em particular, ao longo deste texto, tento demostrar como a capacidade sedutora desta imagem deriva do seu grande poder simbólico. Este poder, por sua vez, repousa sobre a síntese de duas propriedades fundamentais, que os devotos reconhecem nela: a de representar a história mítica e as categorias culturais que esta veicula; a de fazer novamente presente, nas próprias histórias, a entidade mítica e o universo de sentido ao qual ela dá acesso. Os equatorianos que, todos os domingos, atravessam Nova Iorque para alcançar Saint Veronica e o tesouro devocional que esta contém, não o fazem porque lá encontram representações culturais e estruturas sociais determinadas a priori pelo gênio étnico, mas porque lá encontram as ferramentas simbólicas para construí-las dia após dia.

Além dos textos que compõem o dossiê, este número conta com o artigo da sociológa Iael de Souza que, a partir da análise do filme “Entre les murs” (do diretor Laurent Cantet, de 2008) como recurso mimético, busca compreender os problemas educacionais enquanto manifestações da totalidade das relações sociais e de produção capitalista. Assim, para Souza, “entre os muros” de uma escola pública parisiense pode ir além dos muros, pois é reflexo estético dos problemas sociais enfrentados pela sociedade atual.

Por fim, temos o artigo do historiador Gustavo Silva de Moura que discute as relações entre a juventude e a sociedade, analisando como se dá sua composição social e cultural na “cena” Rock/Metal de Parnaíba-Piauí. Dessa forma, Moura aborda a importância das mídias (rádio, televisão, jornais, revistas), na propagação do Rock e Heavy Metal na cidade de Parnaíba-PI, nas décadas de 1980 e 1990, considerando a visão da sociedade sobre essa nova prática que estava em ascensão no Brasil e em várias localidades do Nordeste.

Referências

A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Editora Paulus, 2003.

DE MARTINO, Ernesto. Morte e pianto rituale nel mondo antico: dal lamento pagano al pianto di Maria. Torino: Boringhieri, 1958.

LEWIS, Clive Staples. Dios en banquillo. Madrid: Rialp, 2008.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. V. I e II. São Paulo: EPU-EDUSP, 1974.

SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

Francesco Romizi


ROMIZI, Francesco. Apresentação. Domínios da Imagem, Londrina-  PR, v.10, n.18, jan/jul, 2016. Acessar publicação original [DR]

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