Os venezuelanos entre a migração e o exílio. Tendências e estratégias | Revista Brasileira de História & Ciências Sociais | 2021

Venezuelanos no Rio de Janeiro Venezuelanos
Venezuelanos, Rio de Janeiro, 2019 | Foto: Caritas

A maior e mais recente crise migratória global acontece, de forma quase inaudível, pese embora o barulho que gera, desde meados da década passada, na América do Sul (CERRUTTI; PARRADO, 2015). Esta migração em massa é um dos maiores deslocamentos forçados no hemisfério ocidental desde a segunda-guerra mundial (CORNELIUS, 2001; HAMMOUD GALLEGO, 2021). Maior que a “crise dos refugiados” na Europa após 2015 ou que a pressão migratória na fronteira sul dos EUA (HANSON; MCINTOSH, 2016). No entanto, trata-se de um fenômeno social sem a mesma visibilidade midiática ou social (ex. da crise de refugiados da Síria, da crise de retirada humanitária de afegãos ou da crise dos Rohingya no Sudoeste asiático) (GÓIS; FARAONE, 2019) mas com maiores implicações políticas, sociais e sociológicas (ATAIANTS ET AL., 2018; GORLICK, 2019; MAINWARING; WALTON-ROBERTS, 2018). A turbulência política, a instabilidade socioeconômica e a crise humanitária venezuelana desencadearam o maior deslocamento externo na história recente da América Latina (LEGLER et al., 2018). O volume estimado de migrantes e refugiados venezuelanos que abandonaram o seu país para se concentrarem, majoritariamente, nos países vizinhos não tem parado de crescer (embora pese a desaceleração deste fluxo migratório em tempos de pandemia) e atinge hoje um número próximo de 6 milhões de pessoas (ou cerca de 20% da população total da Venezuela)1. A demografia política dos países vizinhos está a alterar-se e as relações entre os Estados da região passam por modificações significativas sem que o eco desta mudança seja audível fora da região (COCA GAMITO; BALTOS, 2020). Leia Mais

Trabalho e Migração (I) / Tempos históricos / 2020

Este Dossiê que entregamos aos leitores é também, em nossa compreensão, um documento histórico a respeito de assuntos, de abordagens, de métodos e de questões que ajudam a problematizar o Trabalho e a Migração. Os artigos selecionados ocupam dois volumes deste número da Tempos Históricos, fato que atesta o interesse pelo tema. Em boa medida, ele caracteriza o estado da discussão nas duas primeiras décadas do século XXI. A sua qualidade, como sempre, estará sob o julgamento criterioso do público interessado. Por isso, não resenharemos cada um dos artigos, como de praxe. Ao invés disso, apresentaremos uma visão dos pontos aludidos pelos autores. Fazemos um destaque especial a duas traduções inéditas publicadas neste número, os textos de John Steinbeck e Michael Merrill, que são precedidos de introduções específicas que dispensam comentários nesta apresentação.

No período de 2010 a 2019, houve aumento de 51 milhões de imigrantes, de acordo com ONU. Em 2019, os imigrantes representaram 3,5% da população mundial. Em 2000, eles eram 2,8%. Se somarmos as migrações inter-regionais e interestaduais de países onde for possível medi-las, o resultado fortaleceria o argumento de que trabalhadores migram o tempo todo. Sobre imigrantes ilegais (sem documentos), conforme a OIT, atualmente estima-se que há 258 milhões de imigrantes, incluídos nesses números 19 milhões de refugiados. Os imigrantes trabalhadores (a partir de 15 anos de idade) constituem 234 milhões desse grupo, representando 4,2% da classe trabalhadora mundial (também a partir de 15 anos de idade). Na Europa, cerca de 1 / 4 dos trabalhadores são imigrantes. Esses dados, embora estimados, atestam a presença significativa de imigrantes na Europa.

Há mais de 100 anos, Lenin explicou essa movimentação de trabalhadores como sendo resultante de enorme pressão do desenvolvimento imperialista do capitalismo. Inicialmente, ele argumentou que o capital busca ampliar a mais-valia e obter lucros maiores, barateando o custo da força de trabalho por meio da abertura de empresas em países considerados economicamente periféricos. Assim, apoiado no capital financeiro, existiria uma tendência de o capitalismo expandir as suas fronteiras para explorar trabalho barato onde houvesse. A avaliação de Lenin apontou para mercados de países menos desenvolvidos. Ao mesmo tempo, nesse plano do desenvolvimento econômico, a indústria e a lavoura recrutariam força de trabalho de outros lugares para suprir necessidades urgentes e formar um excedente disponível. Lenin entendeu e explicou esse processo histórico na década de 1910, mostrando como é que a mobilidade dos trabalhadores estaria cada vez mais influenciada pelo capital. É uma hipótese cuja validade empírica e teórica só fez crescer desde então.

Embora importantes, as estatísticas e as estimativas sobre as migrações seriam mais elucidativas se cotejadas e enriquecidas por investigações que consigam abordar e expor a condição do imigrante nos termos de como eles lidam com as experiências de migrar, de trabalhar e de viver em um tipo de exílio voluntário. Nessa direção, muitos estudos têm avançado para questões ligadas aos motivos da imigração, à estratificação dos imigrantes em faixa etária, gênero, condição social, escolaridade, à renda e remessa de dinheiro para familiares, às formas de entrada no país, o acolhimento, a legislação responsável pela concessão de vistos e outros assuntos pautados pelo dinamismo da realidade social.

Resultado ou causa disso são os grupos organizados institucionalmente no Brasil com interesse de estudar especificamente a migração em espaços e temporalidades diversos, alguns deles com certa articulação internacional. A intervenção acadêmica, principalmente, tem induzido a produção de dissertações e teses que já não só mapeiam permanentemente a migração, mas auscultam os trabalhadores que migram. Quando isso acontece, saímos de uma superfície relativamente segura para mergulhar em águas incertas, para as quais nem sempre estamos inteiramente equipados para sobreviver. Ouvir o que os imigrantes desejam falar, sem abandonar as indagações de nossos roteiros, requer o que os historiadores e demais estudiosos denominam de método, de paciência e de alguma sensibilidade.

A respeito dessas iniciativas, queremos sublinhar dois pontos. Greve na Fábrica, de Robert Linhart, publicado em 1977 (L’Etabli), ainda é uma das melhores referências de estudo sobre trabalhadores imigrantes reunidos em uma indústria. Encontramos nessa obra chaves de análise atuais para a pesquisa histórica e sociológica que esclarecem como a pesquisa pode compreender as relações de trabalho, a constituição da identidade, a formação de redes de solidariedade e a organização política e sindical, examinando de perto os diversos modos que os trabalhadores tratam suas experiências. O que temos a ganhar com Linhart é a possibilidade de tratar o trabalho e a migração (voluntária e involuntária) também em seus termos históricos, os quais são expressão de sentimentos como o medo, a solidão e a dignidade, por exemplo. De um ponto de vista geral, isso representa um esforço para investigar quais sentimentos movem ou imobilizam os trabalhadores em situações históricas específicas e, ao mesmo tempo, conectadas estruturalmente ao capitalismo. Isso nos leva ao segundo ponto.

Sendo a migração um tipo de mobilidade forçada pelo capital, é preciso identificar e analisar o processo de expropriação vivido pelo trabalhador que decide buscar outra região ou país. A noção de expropriação assumiu nos estudos de Marx um sentido continuado. Em apertado resumo, a história é a seguinte. Os camponeses haviam perdido muitos de seus direitos à terra desde os séculos XIV e XV na Inglaterra, e seguiram lutando e resistindo contra todo tipo de investida sobre seus modos de vida e de trabalho. O desenvolvimento do capital pressionou os camponeses (e artesãos) a subordinarem seu trabalho, sua forma de produção, seus modos de vida e a desbaratar a organização econômica e social dos camponeses que possibilitava resistir dentro desse processo. É uma história bastante conhecida e detalhada em diversos aspectos, principalmente por Edward Thompson, em A Formação da Classe Operária Inglesa e Tempo, disciplina do trabalho e capitalismo industrial, por Eric Hobsbawm e George Rudé, em Capitão Swing, por Raymond Williams, em O Campo e a Cidade, e por Peter Linebaugh, em Karl Marx, the Theft of Wood.

Uma dimensão atual da dinâmica de expropriação se dá quando o imigrante não tem a roupa certa, o corte de cabelo certo, não fala a língua certa, não tem o comportamento certo. Seu corpo inteiro, seus costumes e sua cultura tendem a ser estigmatizados de modo que pesa sobre eles uma pressão para expropria-los econômica e culturalmente. E semelhante aos camponeses que Marx estudou em pleno processo de luta contra a expropriação de seus direitos consuetudinários sobre a terra, trabalhadores imigrantes na atualidade enfrentam esse problema cotidianamente. E se reconhecermos uma dinâmica de expropriação de longo tempo que chega aos nossos dias, significa que é necessário pensar o trabalho e a migração como uma relação social tensa, conflituosa, contraditória e, portanto, como elementos históricos da luta de classes.

Esta ainda é a principal chave de análise para identificar e explicar a condição dos trabalhadores imigrantes.

Antônio de Pádua Bosi

Sérgio Paulo Morais


BOSI, Antônio de Pádua; MORAIS, Sérgio Paulo. Apresentação. Tempos Históricos, Paraná, v.24, n.1, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Trabalho e Migração (II) / Tempos históricos / 2020

Apresentamos a edição do 2º semestre de 2020 da Revista Tempos Históricos, periódico científico do Programa de Pós-Graduação em História e do Curso de Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Neste número, temos o prazer de publicar mais uma importante seleção de artigos científicos no campo das Ciências Humanas, majoritariamente da área de História; tal produção é fruto, essencialmente, de docentes e pósgraduandos de universidades brasileiras que estão em constante combate contra a perda de recursos pela educação pública, a deterioração das condições de trabalho e o descrédito enfrentado pela Ciência.

Neste número apresentamos também a segunda parte do Dossiê Temático Trabalho e Migração, organizados pelo Prof. Dr. Antonio de Pádua Bosi (Unioeste) e pelo Prof. Dr. Sergio Paulo Morais (UFU). Nesta seção, Guélmer Júnior Almeida Faria no artigo Redes sociais das / nas migrações tecidas em contextos de vida e trabalho de domésticas imigrantes, aborda aspectos importantes das relações de trabalho das domésticas do norte de Minas Gerais e da constituição de suas redes de sociabilidade. No artigo Migrantes Haitianos em Sinop / MT: direitos, trabalho e redes de sociabilidade, Ivone de Jesus Alexandre e Everton Neves dos Santos discorrem sobre a precariedade do trabalho dos imigrantes haitianos na cidade e a importância da igreja como espaço de sociabilidade deste grupo social. Ivna de Oliveira Nunes, em Ser mulher e migrante: debates sobre a divisão sexual do trabalho nos fluxos migratórios, dedica-se a abordar aspectos da intersecção entre gênero e mobilidade social a partir da condição de trabalho das mulheres imigrantes na perspectiva da divisão sexual do trabalho. Em Apropriações do trabalho rural e da migração no poema Martim Cererê e na Revista São Paulo, de George Leonardo Seabra Coelho, o autor baseia-se na perspectiva teórica de Roger Chartier para analisar as representações elaboradas por Cassiano Ricardo sobre aspectos da identidade paulista, especialmente relacionados à migração. Ainda nessa seção, Trabalhadoras domésticas: memórias, resistências e criação de direitos (São Paulo, Amazônia e tantos lugares, de um tempo recente e ainda agora) de Vanessa Miranda, Maria do Rosário da Cunha Peixoto e Nelson Tomelin Jr., apresenta pesquisa sobre o processo de construção de memórias das trabalhadoras domésticas – organizadas ou não – nos anos da Ditadura Militar (1964-1985). Por fim, Wellington Teixeira Lisboa debruça-se sobre o panorama histórico das migrações para a cidade de Santos / SP em As faces da cidade: migrações históricas no município de Santos / SP. Encerrando o dossiê, Luiz Sapia de Campos e Ema Cláudia Ribeiro Pires entrevistam Alberto Matos, militante de uma organização de apoio aos imigrantes na região do Alentejo, em Portugal, na seção Entrevista.

Nos Artigos Livres, o texto O “antigo” e o “novo” no debate da historiografia brasileira acadêmica (1961-1979), de Wesley Rodrigues de Carvalho, estabelece os usos das ideias de “novo” e antigo” nas produções acadêmicas oriundas das universidades brasileiras. A seção continua com o texto de Augusto Rodrigues de Assis Resende, O Império e as celebrações de Tiradentes, por meio do qual os usos políticos da Inconfidência mineira e da figura de Tiradentes são analisados em suas manifestações ainda no período monárquico. Já Regras para o trato virtuoso das vestes na Castella dos séculos XIV e XV, de Thiago Henrique Alvarado, nos mostra como as orientações e regras para a vestimenta de clérigos e leigos, entre os séculos XIV e XV, favoreciam o entendimento do que era ser um bom cristão.

Na sequência, Georgiane Garabely Heil Vásquez em Corpos imperfeitos: as teses médicas sobre infertilidade feminina apresentadas à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX demonstra que, de maneira geral, o entendimento da saúde reprodutiva das mulheres no início do século XX estava marcado por julgamentos morais. No trabalho Povos indígenas no vale do Rio Branco / Roraima na segunda metade do século XVIII: a construção de uma representação, Maria Luiza Fernandes, nos oferece um estudo sobre a representação dos indígenas da região em contraposição ao projeto colonizador português. Joice de Souza Soares, no artigo Em meio a cidadãos e soldados: o meio termo policial na regência do Império, avalia as questões do nascente Estado brasileiro, no início do século XIX, em relação à constitucionalização, à Justiça e à instituição policial. Ainda encontramos o artigo Práticas testamentárias em Mariana: os executores das últimas vontades nos séculos XVIII e XIX, de Karina Aparecida Lourdes Ferreira, que analisa as sociabilidades envolvidas na constituição e cumprimento de testamentos e sua relação com as próprias funções do documento. A reflexão de Ricardo Marques de Mello, em Funções contemporâneas do ensino de história no Ensino Médio de Campo Mourão – PR: a perspectiva dos estudantes, nos apresenta um panorama da compreensão da função da aprendizagem da História para os estudantes do Ensino Médio. Por fim, o artigo Os percalços da propriedade cafeeira: a transformação dos direitos de propriedade na formação e na reprodução das fazendas de café em Valença (Província do Rio de Janeiro, 1850-1888), de Felipe de Melo Alvarenga analisa a transformação dos direitos de propriedade após a promulgação da Lei de Terras de 1850. Encerramos a seção com o artigo Usos do passado nos animes japoneses: a presença de imagens míticas das deusas da destruição e do mito dos irmãos, em Naruto Shippuden, de Rodolfo Alexandre Melo Bastos e Daniel Lula Costa, que realiza um estudo sobre a relação entre os personagens do anime de origem japonesa e o uso de imagens mitológicas.

A leitura de Valney Mascarenhas Lima Filho na seção Resenhas apresenta a obra Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia, de João José Reis, editada em São Paulo, pela Cia das Letras em 2019. Fechando a edição, apresentamos a importante Tradução do texto de Josep Fontana, Para que serve o ensino de História?, realizada por Sheille Soares de Freitas.

O Conselho Editorial agradece autores e pareceristas desta edição e deseja a todos(as) uma excelente leitura!

Conselho Editorial


Conselho editorial. Apresentação. Tempos Históricos, Paraná, v.24, n.2, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Trabalho e Migração- Parte 2/Tempos Históricos/2020

Apresentamos a edição do 2º semestre de 2020 da Revista Tempos Históricos, periódico científico do Programa de Pós-Graduação em História e do Curso de Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Neste número, temos o prazer de publicar mais uma importante seleção de artigos científicos no campo das Ciências Humanas, majoritariamente da área de História; tal produção é fruto, essencialmente, de docentes e pós-graduandos de universidades brasileiras que estão em constante combate contra a perda de recursos pela educação pública, a deterioração das condições de trabalho e o descrédito enfrentado pela Ciência. Leia Mais

Trabalho e Migração- Parte 1 /Tempos Históricos/2020

Este Dossiê que entregamos aos leitores é também, em nossa compreensão, um documento histórico a respeito de assuntos, de abordagens, de métodos e de questões que ajudam a problematizar o Trabalho e a Migração. Os artigos selecionados ocupam dois volumes deste número da Tempos Históricos, fato que atesta o interesse pelo tema. Em boa medida, ele caracteriza o estado da discussão nas duas primeiras décadas do século XXI. A sua qualidade, como sempre, estará sob o julgamento criterioso do público interessado. Por isso, não resenharemos cada um dos artigos, como de praxe. Ao invés disso, apresentaremos uma visão dos pontos aludidos pelos autores. Fazemos um destaque especial a duas traduções inéditas publicadas neste número, os textos de John Steinbeck e Michael Merrill, que são precedidos de introduções específicas que dispensam comentários nesta apresentação. Leia Mais

Violência, Guerra e Migração no Mundo Antigo / Anos 90 / 2018

Se fosse preciso definir com três conceitos-chave a conjuntura deste primeiro quarto de século XXI, os organizadores deste dossiê acreditam que a maioria dos questionados conviria em utilizar, pelo menos, alguma das palavras que propomos como título. A ideia, então, de organizar um volume sobre a temática da guerra, da violência e da migração no mundo antigo nasce, simplesmente, de nossa observação da realidade contemporânea. Impotentes como historiadores, professores e / ou seres humanos, assistimos à eclosão de conflitos militares de rara violência na região do Oriente Próximo que atingem o planeta inteiro. A guerra na Síria, a ofensiva do autointitulado Estado Islâmico, a invasão do Iraque pela chamada “coalizão internacional”, liderada pelos EUA, trouxeram enorme instabilidade política e, mais importante, uma tragédia humanitária sem precedentes na história recente. Não podemos esquecer a outra face das guerras, tão dramática quanto a primeira, que representa as migrações forçadas de milhares de pessoas. Tudo isso, associado à destruição, ao espólio e ao saque do patrimônio cultural da humanidade presente nesses territórios, teve um efeito provocador a nós, historiadores da antiguidade.

Nosso dever de ofício aceita como tarefa primordial, então, o fato de tentarmos entender o mundo que hoje nos cerca estabelecendo um diálogo entre passado e presente, se quisermos construir o melhor futuro possível. Eis aí, para nós, a pedra fundamental do conhecimento e do estudo da antiguidade. Mais do que nunca, faz- -se necessário propor o debate, instigar a pesquisa, incitar a reflexão construtiva como nossa contribuição para a sociedade. E assim, algumas indagações nortearam nossa proposição. É possível tirar lições do passado? Somos capazes de compreender o conflito como fato e suas diversas dimensões na antiguidade e na atualidade, para estabelecermos paralelismos válidos e evitá-los, no futuro?

A partir dessas questões, formulamos a proposta do dossiê Violência, Guerra e Migração no Mundo Antigo, com o objetivo de refletir sobre temas urgentes e atuais a partir do estudo das sociedades antigas. Sabemos que as práticas de violência legitimadas pelas guerras, tendo como consequência a migração massiva de populações, têm uma longa historicidade, pois essas diversas experiências históricas foram preservadas e deixaram inúmeros indícios nos textos, nas imagens e na cultura material. Assim, entendemos que investigar essa temática na antiguidade pode contribuir para a compreensão dos recentes acontecimentos que atingem o mundo, especialmente o Mediterrâneo, a Europa e os EUA.

O enunciado deste dossiê abraça, entretanto, diversos outros enfoques, tais como questões relacionadas à tecnologia da guerra, à retórica da violência, à situação das mulheres e crianças nos conflitos, às agressões sexuais, à migração e ao fenômeno de transculturação, entre outros. Como afirma Magnoli (2006, p. 14): “A guerra é um fenômeno total, uma expressão condensada das formas de pensar, produzir e consumir das sociedades, o espelho de um tempo e um lugar”.

Foram vários os autores que atenderam ao nosso chamado. Eles provêm de distintos horizontes de pesquisa, alguns atuando no Brasil e outros no exterior. Vários são especialistas no Mundo Clássico, enquanto outros se interessam pelo Oriente, mas todos aportam uma reflexão original e uma boa dose de erudição.

O dossiê abre com a contribuição de Pedro Paulo A. Funari, intitulada “Migration flows from a long-term perspective”, que traz um estudo de longa duração sobre o fenômeno das migrações na história da humanidade. O autor discute os fluxos migratórios desde o processo de hominização até o período pós-segunda guerra mundial, incluindo a história brasileira, e argumenta que as migrações são um grande desafio tanto para as sociedades como para os intelectuais que refletem sobre elas.

A professora Katia Maria Paim Pozzer contribui com “Guerra, violência e memória cultural nas imagens assírias”, artigo no qual faz partir sua reflexão dos baixos-relevos em pedra resgatados dos palácios assírios de Nínive, analisando alguns elementos estéticos da antiguidade que o mundo contemporâneo tem reutilizado, levando a cabo um interessante paralelismo multisecular.

Com “The power of a powerless woman: examining the impact of violence on a Biblical nation”, Elizabeth Tracy nos conduz pelos caminhos da concubina levita, ou Pilegesh, analisando os últimos capítulos do bíblico Livro dos Juízes, cruel em algumas das suas imagens de violência contra a mulher e tão atual, lamentavelmente.

Viajamos depois para a Bretanha na pena da Dra. Tais Pagoto Bélo, com “Britannia: violência, poder e contato”, que propõe uma reflexão contemporaneamente válida através da cultura material representada por epitáfios da província da Britannia.

A professora Lorena Lopes da Costa contribui com “Troianas, de Eurípides (415 a. C.): a guerra injusta e o fim da linhagem dos heróis”, no qual traça um paralelismo da história de Atenas, dos crimes e excessos da guerra, com a tragédia euripidiana.

Estefanía Bernabé-Sánchez trata o tema da violência sexual em “El mito de Inanna y Šukaletuda: violencia sexual en Sumer”, mito no qual a deusa Inanna é estuprada pelo mau jardineiro Šukaletuda. A autora estabelece um paralelismo entre o crime sexual cometido contra a deusa suméria e aqueles que estão sendo, hoje, moeda comum nos conflitos armados do Oriente Médio, especialmente na Síria.

Finalmente, encerra este dossiê o trabalho do professor Fábio Vergara Cerqueira, “‘Melodia sangrenta’ (Anth.Pal. VI.159): a trombeta e a guerra na Grécia Antiga”, em que ele analisa o instrumento de vento chamado salpinx (σάλπιγξ) na iconografia e nos textos relacionados com a guerra na Grécia antiga, particularmente em Atenas, estabelecendo paralelismos entre as funções militares e os simbolismos.

O intuito deste volume que apresentamos, então, nos convida à reflexão crítica sobre a nossa realidade, partindo do conhecimento da remota antiguidade, de seus personagens e suas histórias, assim como da ideia de que guerra e violência, entendidas em todas as suas manifestações, são nefastas e não atendem aos pressupostos em que a humanidade deve enxergar a evolução e o desenvolvimento.

Frente àqueles que esquecem o passado e, por conseguinte, descuidam do presente enquanto olham para o futuro, anotemos aqui a definição que Sêneca nos deixou em De brevitate vitae (Sobre a brevidade da vida): sábio é aquele que lembra o passado, sabe aproveitar o presente e dispõe do futuro.

Que isso seja como uma de nossas bússolas.

Referência

MAGNOLI, Demétrio (Org.). História das Guerras. São Paulo: Contexto, 2006.

Estefanía Bernabé-Sánchez – Professora da Pontificia Universidad Católica del Peru – PUCP. E-mail: [email protected] ´

Katia Maria Paim Pozzer – Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. E-mail: [email protected]

Pedro Paulo A. Funari – Professor da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. E-mail: [email protected]


BERNABÉ-SÁNCHEZ, Estefanía; FUNARI, Pedro Paulo A.; POZZER, Katia Maria Paim. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 25, n. 47, jul., 2018 .Acessar publicação original [DR]

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História, Migração e Meios de Comunicação / História & Perspectivas / 2017

É com grande satisfação que apresentamos o número 56 da Revista História & Perspectivas, com o Dossiê História, Migração e Meios de Comunicação, além de um artigo que aborda a imprensa de fábrica e outros cinco artigos com temáticas diversificadas.

Estudos sobre migrações têm-se multiplicado em várias direções, das universidades às organizações internacionais. O presente Dossiê História, Migração e Meios de Comunicação constitui-se de pesquisas que giram em torno da análise da mobilidade humana e sua articulação com os meios de comunicação, provenientes de pesquisas em Ciências Humanas, em diversos espaços e temporalidades. A migração é um fenômeno histórico e seus volumes crescem com o passar dos anos, apresentando fluxos internacionais, nacionais e regionais. O artigo de abertura do Dossiê, realizado por Marcelo Garabedian, é sobre a construção identitária e o nacionalismo espanhol na Argentina por meio do jornal El Correo Español, de Buenos Aires, no final do século XIX. O segundo artigo é de Lydia Elizalde, que apresenta um estudo do jornal El Correo Español, publicado na Cidade do México também no final do século XIX. Esse artigo enfatiza a fundação e consolidação do jornal El Correo Español durante os primeiros dez anos de sua fundação (1889-1898), destacando o trabalho de seus editores e escritores como empreendedores culturais.

Após esses estudos migratórios espanhóis na América, o foco recai para os estudos no Brasil e suas migrações. Luiz Otávio Costa e Marili Peres Junqueira fazem uma reflexão sobre diferenças e semelhanças dos processos migratórios dos italianos no Brasil e dos nipo-descendentes (Brasil-Japão) por meio da cultura e dos meios de comunicação desses grupos étnicos distintos e em diferentes momentos históricos – final do século XIX, final do século XX e início do século XXI. Tais grupos étnicos aparentemente não teriam características comuns, mas apresentam iterações e processos semelhantes como demonstrado na abordagem que parte da teoria de Bourdieu. Endrica Geraldo, por seu turno, discute como periódicos operários paulistanos, com forte presença de imigrantes italianos, evidenciam, em suas palavras, as relações tensas entre identidade nacional e identidade de classe no interior das lutas por direitos e melhores condições de trabalho. Esse estudo está centrado nas décadas de 1920 e 1930 por sua particularidade dentro das organizações operárias. Jorge Pagliarini Junior apresenta uma reflexão sobre a memória e a trajetória de migrantes retornados da Amazônia Legal para o Paraná entre os anos de 1990 e 2014, apoiando seus estudos em várias fontes, primeiramente com fontes orais, depois em sites e artigos do Jornal Nosso Tempo, publicado no Oeste do estado do Paraná. O encerramento do Dossiê traz uma problematização do conceito de migração, particularizado e exemplificado em Rondônia. Uma grata contribuição de Cátia Franciele Sanfelice de Paula e Célia Rocha Calvo.

Para além do Dossiê, a revista apresenta uma tradução relevante revisitando estudos e a própria trajetória de Stuart Hall e artigos avulsos.

O primeiro artigo traz uma investigação baseada nas revistas A Águia e a Nação Portuguesa para identificar as relações Portugal-Brasil entre os anos de 1910 e 1926, de autoria de Luciana Lilian de Miranda. Cristina Ferreira, em diálogo com os meios de comunicação, analisa como os jornais de fábrica das indústrias têxteis de Blumenau, no período 1963-1968, elaboram suas relações com os trabalhadores, as relações de poder e políticas, além de assuntos internos, de trabalho e outras temáticas. Assim, problematiza, como apontado por ela, os usos da imprensa fabril como fonte de pesquisa para análise das culturas de classe dos trabalhadores na historiografia social do trabalho no Brasil.

Na interface da memória com o mundo dos trabalhadores, Paulo Cesar Inácio explora as contradições internas do processo do golpe civil / militar de 1964 no Brasil, aponta o desafio de abrir outras memórias possíveis no mundo dos trabalhadores, para além de alguns protagonistas e intuições há muito debatidas, passando de uma memória sustentada em processos hegemônicos para memórias alternativas, e dessas para outras mais. João Guilherme de Souza Corrêa nos presenteia com uma análise a partir da influência de Paul Singer para conhecermos o socialismo e a economia solidária no sindicalismo da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Desta forma, mostra os limites da estratégia política guiada por essa noção de socialismo para a CUT à tão anunciada transformação social.

A finalização desse número cabe a dois artigos cujo foco recai sobre a Educação. Norma Lucia da Silva e Marieta de Moraes Ferreira buscam analisar o processo de profissionalização dos professores de História no antigo norte de Goiás, com o estudo de caso da cidade de Araguaína (Tocantins). Com base no estudo do perfil dos licenciandos do curso de História da Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Araguaína e documentos de professores de escolas da rede estadual de ensino, por exemplo, apresentam os dilemas, as dificuldades e a realidade formativa dos docentes na área de História dessa cidade. Astrogildo Fernandes da Silva Jr. e José Josberto Montenegro Sousa analisam o potencial das diferentes fontes e das diferentes linguagens da cultura contemporânea no processo de ensinar e aprender História, na perspectiva de contribuir para a formação cidadã de jovens estudantes do Ensino Médio, creditando que os usos de diferentes fontes e linguagens nas aulas de História do Ensino Médio podem constituir iniciativas, para promover articulação entre os saberes escolares e a vida prática dos jovens estudantes.

Por fim, com o Dossiê História, Migração e Meios de Comunicação, a tradução e esses artigos conclui-se a jornada investigativa desse número 56 da Revista História & Perspectivas. Desejo a todas e todos uma excelente leitura dos artigos na íntegra e que esses possam fomentar outras boas pesquisas no campo da migração e das demais temáticas apresentadas.

Bons Estudos!

Marili Peres Junqueira


JUNQUEIRA, Marili Peres. História, Migração e Meios de Comunicação. História & Perspectivas, Uberlândia, v.30, n.56, 2017. Acessar publicação original [DR].

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Religião, migração e cultura. Imagens da fé / Domínios da Imagem / 2016

Com o termo bastante genérico de “religião”, costuma-se circunscrever um âmbito particular da vida social, feito de crenças míticas, práticas rituais, comunidades de fé e, sobretudo, da experiência do sagrado. Os cientistas humanos, definindo um “fenómeno religioso” como constituído pelos epifenômenos sobreditos, colocaram as bases para uma análise comparada de crenças e práticas culturalmente heterogêneas e geograficamente distantes, identificando, deste modo, um tipo cultural universalmente presente.

Frequentemente, nas descrições dos etnógrafos, a vida religiosa tem sido envelopada pelo ordinário, sendo associada a visões cosmológicas, instituições políticas, categorias identitárias e posturas éticas estáticas ou, pelo menos, homeostáticas. A primeira vista, efetivamente, o diálogo iconográfico aqui proposto, entre religião e mobilidade humana, poderia parecer anómalo, dirigido ao estudo de uma situação extraordinária: a vivência, por exemplo, dos migrantes, dominada pela experiência desconcertante da multiculturalidade. Os protagonistas da maioria dos casos apresentados neste dossiê se encontraram na situação desconfortável de aplicar os próprios “saberes” religiosos a novos contextos; frequentemente, pouco permeados por eles. Em outros casos, o sentido desta relação se inverterá e encontraremos convertidos que tentarão aplicar novos “saberes” religiosos aos seus antigos contextos.

Entretanto – como poderemos apreciar por meio de todos esses trabalhos – é justamente nos contextos de mobilidade e mudança que se revelam com mais claridade as implicações socioculturais das práticas religiosas. Isto porque a relação dos migrantes e dos convertidos com a religião não é a de crentes com uma cosmovisão imutável, etnicamente conotada, nem com uma ordem de preceitos morais, emanação natural das categorias sociais que regem um grupo determinado. A relação destes crentes errantes, fisicamente ou culturalmente, é a de animais simbólicos penetrando situações carentes de sentido com um modo particular de “pensar”, o mitológico.

Por meio do discurso mítico, os crentes, todos, produzem relações de sentido entre os acontecimentos contingentes que vivem e um universo significante que tende sempre a transcendê-los. A história mítica não informa por si mesma, não contém uma verdade absoluta, encapsulada nela; ela adquire valor, ante os olhos dos crentes, somente se demostra-se apta a permear sua história, transformando-a. Os significados extraídos das expressões religiosas, como as imagens aqui analisadas, não são dados, mas constituem o produto de uma síntese simbólica que define, contextualmente, história humana e história mítica – duas realidades que se definem reciprocamente, fusionando-se em um único objeto simbólico, denominado “mito”. O mito faz sentido enquanto proporciona sentido a uma realidade concreta, e vice-versa.

Esta visão simbólica do mito, presente em todos os textos que compõem o dossiê, leva-nos a uma concepção dinâmica e dialética de uma vida religiosa que, analiticamente, não pode ser nunca desvinculada de sua referência prática e histórica. O crente não sofre passivamente o mito, mas interage com ele e com suas representações materiais, utilizando-o como uma articulação simbólica por meio da qual ligar, semioticamente, a sua contingência a um determinado universo significante. O fenômeno religioso, portanto, adquire relevância analítica, além de significância cosmológica, quando apreciado dentro destes processos culturais de construção social da realidade. Neste sentido, o objeto de estudo religioso se oferece tanto a uma abordagem antropológica, como à historiográfica – especialmente, a um enfoque que integre ferramentas, questões e sensibilidades de ambas estas áreas do conhecimento. Não é por acaso que história e antropologia representam as vozes dominantes deste dossiê interdisciplinar.

As diferentes imagens religiosas analisadas no presente dossiê têm algo em comum: todas elas materializam aquela espécie de istmo cognitivo que, segundo Lewis (2008, p. 56), representaria o mito, com a sua capacidade de conectar a península do pensamento humano (e das suas verdades abstratas) ao vasto continente que habita (por meio de uma experiência direta, sempre ligada ao particular). Se o mito dialoga sempre com situações particulares e vividas diretamente, incorporando-as nas próprias formas simbólicas (SAHLINS, 1990), parece redutivo considerar os contextos de mobilidade como anómalos, cenários de experiências religiosas extraordinárias. Pelo contrário, os textos deste dossiê nos mostram que a vida religiosa dos migrantes e dos convertidos pode representar também um observatório privilegiado para estudar e entender a experiência religiosa ordinária. A prática religiosa é sempre um ato parcialmente criativo, representando uma imparável atividade imaginativa, dirigida à construção de imagens sensatas de uma realidade intrinsecamente instável e mutável.

Estas complexas imagens cosmológicas, sempre in fieri, são frequentemente contidas em, veiculadas por, e manipuladas através de imagens materiais. Refiro-me, em particular, às representações vivificadas das entidades e forças míticas, expressões de uma linguagem metafórica e analógica, isto é, simbólica. As transcendências dos fatos religiosos, as contingências dos fatos humanos e as imagens míticas em que primeiras e segundas encontram-se e sintetizam-se constituem os três pilares deste dossiê; o “trípode délfico” do qual os filhos do homem que não têm “onde reclinar a cabeça” (Lucas, 9,58) extraem suas próprias respostas. A indissociabilidade destes três pilares da vida religiosa atravessa todos os textos que compõem este dossiê.

No texto do historiador Paulo Augusto Tamanini, este trípode assume as formas hieráticas, preciosamente estilizadas, das Nossas Senhoras da iconografia bizantina da comunidade ucraniana de Curitiba. Nem sequer a tradição milenar e os cânones antinaturalistas que dominam esta expressividade religiosa podem encurralar os crentes no domínio da abstração sobrenatural, pois inclusive as suas formas “desmaterializadas” revelam-se sensíveis ao ambiente que as circunda. Tamanini descreve o ícone bizantino dos curitibanos como uma “obra pictórica que ainda está em andamento”. No entanto, de certo modo, esta nunca chega a cumprimento, como pode revelar uma análise historiográfica desta arte imagética, cujas formas, sendo reproduzidas, acabam integrando elementos novos, próprios do lugar, lato sensu, em que o ícone está inserido.

O processo de produção destas imagens representa, para Tamanini, o momento crucial desta maneira expressiva religiosa. As orações, os jejuns, os momentos de contemplação que precedem a feitura de um ícone levam os seus artífices a um novo encontro, localizado, com a divindade e com as suas verdades. A encarnação de Deus no ventre de Maria, representada no ícone da Virgem Orante, não se limita a celebrar o tempo mítico em que o humano e o divino se uniram, senão que convida artífices e devotos da imagem a viver novamente esta união, partindo da própria humanidade e da própria história. Neste sentido, é bastante significativo que em outro ícone aparece a imagem de Maria Odigitura, isto é, daquela que mostra o caminho. Do mesmo modo que a catedral curitubense de São Demétrio dialoga com os novos elementos do panorama urbano que a circunda, os ícones que esta contém abrem-se necessariamente às interpretações e às manipulações físicas e simbólicas de uma humanidade em movimento.

Também no artigo de Daniel Luciano Gevehr e Aline Nandi, as imagens sacras – ocultadas, no texto, pelas quatro pequenas casinhas de santos da comunidade ítalo-riograndense da Boa Esperança que as guardam – mediam as relações entre cosmologia religiosa e espaço físico. Foi graças à instalação, neles, de estátuas de santos católicos, que os sobreditos capitéis – construídos entre 1945 e 1960 pela chamada “segunda geração” – tornaram-se centros sagrados de refundação cosmológica da realidade. São centros periféricos, de tipo familiar, que, dialogando entre eles e com o centro principal da igreja matriz (dedicada à, também italiana, Nossa Senhora de Caravaggio), constituíam coordenadas geográficas importantes, através das quais mapear geograficamente e culturalmente espaços ainda novos e enigmáticos. Por meio destes oratórios, localizados nas margens das estradas da colônia, aqueles católicos italianos estabeleciam uma relação dotada de sentido com um mundo e uma vida novos.

Na imagem do santo familiar, os Boniatti, os Scalcon, os Taufer, os Cambruzzi e os outros moradores de aquelas localidades rurais encontravam um caminho para religar a região existencial das próprias situações críticas ao plano transcendente das soluções míticas. Esta ligação era ativada por meio das promessas, com os seus pedidos e os seus pagamentos. Gevehr e Nandi nos informam que na atualidade estes lugares da devoção desempenham uma função um pouco diferente, tendo sido ressignificados pelas gerações posteriores. Parece, efetivamente, que os capitéis e os seus santos moradores afastaram-se dos grandes e pequenos casos do dia a dia, para tornar-se instrumentos de uma memória coletiva que é cultivada e atualizada declinando, conjuntamente, identidade religiosa e identidade étnico-nacional. Os capitéis da Boa Esperança estão transformando-se: de lugares de oposição mitológica às doenças, às calamidades naturais e a toda adversidade, a lugar de reafirmação de uma identidade, a católicoitaliana, que se redescobre a medida em que se afasta de si mesma – passando do domínio dos atos naturais e inconscientes da cultura viva ao das tradições transmitidas e comemoradas do folclore.

As imagens católicas de um coletivo migrante estão no centro também da contribuição de Sidney Antônio da Silva, antropólogo que estuda há anos a migração boliviana em São Paulo. No texto de Silva, analogamente ao visto nos primeiros dois artigos, as imagens católicas deste coletivo nacional destacam-se pela sua capacidade de representar um centro de agregação étnico, embora transnacional, dentro de um espaço estranho. De fato, nos lugares paulistanos aonde chegaram a Virgem de Copacabana e a Virgem de Urkupiña, além de aparecerem pratos nacionais, produtos típicos daquela região andina e objetos e costumes étnicos, afirmou-se um modo particular de criar sentimentos comunitários e de tecer redes de solidariedade. Silva nos mostra como a imagem sagrada boliviana, por meio da instituição cerimonial do Presterío e do dobro principio de reciprocidade que a rege – o, vertical, que governa as relações entre devoto e divindade e o, horizontal, que sustenta a comunidade de devotos –, continua representando, em terras brasileiras, um importante centro de construção social da realidade.

A festa, em particular, representaria o “fato social total” (MAUSS, 1974) que, por meio daquele poderoso símbolo identitário que é a Virgem regional, agrega, aglutina, organiza e recompõe as humanidades desfiadas e fragmentadas pela contingência migratória. Aqui também, a Virgem não constitui um elemento étnico inerte. Pelo contrário, como simboliza bem o costume para-litúrgico dos cargamentos, ela – ao igual que o Ekeko, seu concorrente/colega “pagão”, na festa de alasitas – carrega-se periodicamente dos novos desejos dos seus devotos, socializando-os e significando-os. Silva conta-nos como foi, justamente, a aspiração da senhora Juanita Trigo de comprar uma casa o que, no final dos anos ’80 do século passado, deu início ao ciclo de festas devocionais na comunidade boliviana de São Paulo.

O antropólogo italiano Riccardo Cruzzolin, em seu artigo, partindo da ideia de iconografia religiosa como espaço cultural e político de imaginação da realidade, analisa o culto que o coletivo peruano de Perúgia (Itália) rende ao limenho Señor de los Milagros. Uma das caraterísticas principais deste espaço é, segundo Cruzzolin, remeter a um imaginário que não é nunca fechado, nem invariável, e que, sobretudo, não leva jamais a visões unânimes da realidade. Pelo contrário, a imagem religiosa desperta e veicula percursos imaginativos diferentes e, frequentemente, discordantes. Isto porque a imagem, embora aspire a evocar mitos atemporais, princípios universais e verdades transcendentes, não se libera nunca dos referentes práticos e imanentes dos que a ela se dirigem. A imaginação religiosa, a despeito da sua natureza social, é sempre parcialmente faciosa. Consequentemente, a imagem religiosa, com o seu poder imagético politicamente legitimador, representa sempre um espaço em certa medida contendido. A imagem, pintada no século XVII, deste Cristo crucificado pode ser sempre cuidada, adornada e enriquecida de objetos que a tornam mais preciosa; e, certamente, preenchida pelas instâncias particulares dos autores destes gestos devocionais.

A imagem do Señor de los Milagros, depois de ter resistido aos terríveis terremotos que sacudiram Lima, parece aguentar também as turbulências da vicissitude migratória; representando para os peruanos perugini o mesmo que representou para os seus primeiros devotos ameríndios e africanos: uma poderosa forma simbólica por meio da qual construir imagens coerentes da realidade vivida, com todas as suas contradições. A imagem é usada pelos seus cargadores emigrados para reconstruir aquela presenza demartiniana (DE MARTINO, 1958) – o Ser-aí-no-mundo heideggeriano – que, embora seja expressada sempre culturalmente, radica-se nas questões existenciais mais profundas do indivíduo; sendo, por isto, constantemente posta em risco pelas incertezas das situações contingentes vividas, como as produzidas pela experiência migratória.

O texto da antropóloga Joana Bahia põe luz a outras duas questões importantes, inerentes ao fenômeno religioso: o seu caráter intrinsecamente transnacional e a inevitável mitificação – entendida como aquisição de qualidades míticas – daqueles seres humanos, normalmente sacerdotes (lato sensu), que se aproximam muito ao mito e à sua essência sagrada, tornando-se eles mesmos efígies do universo religioso. Com respeito à primeira questão, Bahia analisa a expansão da umbanda e do candomblé em terras alemãs, austríacas e suíças. Em particular, o foco do seu estudo é representado pela relação extremamente dinâmica e fluida que, neste cenário (des)localizado das crenças afro-brasileiras, dá-se entre campo étnico e campo religioso. Em todos os terreiros analisados por Bahia na Suíça e na Alemanha, emerge a grande capacidade das religiões afro-brasileiras de dialogar, simultaneamente, com diferentes contextos étnicos e culturais, incorporando-os e deixando-se incorporar por eles.

Tais diálogos e outras relações entre estados, planos e universos diferentes são interpretados, principalmente, pelos pais e as mães de santo ativos em terras alemãs. Por meio de uma leitura mítica das respetivas trajetórias migratórias, existenciais e espirituais, eles tornaram-se formas vivas de um universo significante e, consequentemente, como nos diz Bahia, viraram “construtores de histórias e ideologias sobre o grupo”. As narrativas autobiográficas da “suíça” Mãe Habiba, e dos berlinenses Mãe Dalva e Pai Murah confundem-se continuamente com as histórias míticas dos terreiros que dirigem. Em um tipo de tradição religiosa fortemente ritualista e que funciona pelo princípio da incorporação – que vai bem além do transe mediúnico –, estes personagens desempenham um importante papel simbólico, veiculando com o próprio corpo processos de construção mítica da realidade. Eles transformam-se, de facto, em imagens religiosas vivas, capazes de evocar imaginários coletivos e de impulsar processos imagéticos.

A possibilidade do ser humano encarnar o mito é tão concreta no artigo do historiador Alexandre Karsburg, que se transforma no principal obstáculo da sua pesquisa historiográfica. Karsburg desloca-se de um lugar para outro do planalto meridional do Brasil, para seguir o rastro do venerado monge João Maria. Em particular, ele está interessado em desvendar as pessoas reais que, entre meados do século XIX e o início do século XX, foram identificadas com ele; a começar do primeiro destes estranhos personagens, o italiano João Maria de Agostini. Seguindo diferentes percursos historiográficos, alguns dos quais pouco frequentados, Karsburg reconstrói com certa precisão o itinerário deste primeiro monge andarilho. Embora a vicissitude analisada neste texto comece com um movimento “migratório”, a relação aqui descrita entre religião e mobilidade é atípica e inversa à que costumamos encontrar: o deslocamento deste “monge” não constitui uma incômoda condição a ser resolvida miticamente, mas, pelo contrário, um caminho místico regenerador, por meio do qual sair dos pântanos mortíferos da vida mundana.

Curiosamente, o “desaparecimento”, em 1852, do homem João Maria coincide com a afirmação do seu mito, interpretado por uma quantidade indefinida de andarilhos penitentes percorrendo o extenso território sulino desde 1855. O texto de Karsburg ajuda-nos a entender que quando um homem aproxima-se demais do mito, tentando permanecer dentro do seu âmbito sagrado e procurando viver conforme seu modelo, ele mesmo torna-se uma imagem vivente da realidade mítica. A trajetória brasileira (documentada) de Giovanni Maria de Agostini é relativamente curta, durando menos de um decênio. Contudo, desde o começo, pelo seu estilo de vida hierático e solitário, inspirado na figura de Santo Antão Abade, o Anacoreta, ele chamou a atenção dos que cruzavam o seu misterioso caminho, excitando a imaginação deles e transformando-se em um modelo a seguir. Na medida em que lhe eram reconhecidos atributos míticos, construía-se um lugar da imaginação mitológica, ao passo que os confins espaciais, temporais e até mesmo somáticos da sua trajetória existencial ofuscavam-se e dilatavam-se; para receber e englobar, como um rio com os seus afluentes, as peregrinações de dezenas de outros “monges” – como João Maria de Jesus e José Maria de Santo Agostinho (que participou da Guerra do Contestado) – que procuraram imitarlhe a vida penitente e de rejeição dos valores mundanos. Também estes últimos, fundindo-se com o primeiro e com o imaginário por este inaugurado, de imitadores viraram imitados, imagens vivas de um “pensamento”, o mítico, que, como sabemos, é homeopático e contaminante por definição.

Também no texto da antropóloga Maria Raquel da Cruz Duran, a questão da mobilidade na experiência religiosa não está diretamente relacionada ao fenômeno migratório, mas a um processo de evangelização, pelo qual estão passando os membros de um povo indígena do Mato Grosso do Sul. Quando, nos anos ’60 do século passado, um missionário evangélico alemão chegou a Alves de Barros, “capital” dos Kadiwéu, encontrou um povo cuja vida religiosa fundamentava-se em uma mistura de pajelança e catolicismo popular, vivido essencialmente por meio do culto às imagens. A autora analisa, por meio de um emblemático depoimento, como a entrada exitosa dos protestantes na vida deste povo mudou a percepção dos seus membros para com as imagens sacras.

Duran explica-nos como a devoção da sua interlocutora baseava-se na percepção de uma coincidência ontológica entre uma entidade divina, real e um sentimento piedoso, radicado no mais fundo do seu ser. Tal devota teria tomado consciência dessa duplicidade justamente quando experimentou a sua ruptura: “descobrindo” que aquela suposta entidade real era um pedaço de madeira esculpido por homens e que o próprio sentimento religioso era sustentado por uma ilusão. Este “descobrimento”, evidentemente, foi propiciado pelo discurso iconoclasta protestante e pela sua desmitificação das representações iconográficas como lugar de encontro com a divindade. Contudo, paradoxalmente, a rejeição das imagens católicas, no depoimento recolhido pela autora, corresponde também a uma demonização das mesmas, isto é, à sua revitalização, embora em chave demoníaca.

O último texto representa uma contribuição minha, de caráter antropológico, dirigida à compreensão da natureza do poder sedutor que as imagens religiosas exercem sobre os seus devotos. Especificamente, interesso-me em compreender qual é a força que, cada fim de semana, leva dezenas de equatorianos a deslocar-se de diferentes distritos de Nova Iorque e, inclusive, de outros estados contíguos, para a igreja de Saint Veronica, no Lower Manhattan. O fato de que lá é guardada uma imagem da Virgen del Quinche – muito venerada no norte do pais andino – poderia sugerir uma resposta que aponte para um processo de “retribalização” em terras estrangeiras. Contudo, a opção da compreensão daquela imagem como mero símbolo étnico, ao qual os equatorianos locais acorreriam para não esquecer quem são, representa um atalho que, apesar de ser extremamente cómodo e atraente, afasta-nos de um entendimento mais profundo do fenômeno observado.

Certamente, os quitenhos de Nova Iorque que se dirigem a Saint Veronica fazem-no porque vivem um sentimento de proximidade com a Nossa Senhora lá representada. Entretanto, essa proximidade não é de um tipo transcendente ou essencial – como normalmente é entendida a étnica –, mas apresenta um forte caráter contextual e experiencial. Eles consideram e veneram aquela Virgen porque por meio dela veem – no sentido cognitivo do termo – a própria história e a própria vida. Em particular, ao longo deste texto, tento demostrar como a capacidade sedutora desta imagem deriva do seu grande poder simbólico. Este poder, por sua vez, repousa sobre a síntese de duas propriedades fundamentais, que os devotos reconhecem nela: a de representar a história mítica e as categorias culturais que esta veicula; a de fazer novamente presente, nas próprias histórias, a entidade mítica e o universo de sentido ao qual ela dá acesso. Os equatorianos que, todos os domingos, atravessam Nova Iorque para alcançar Saint Veronica e o tesouro devocional que esta contém, não o fazem porque lá encontram representações culturais e estruturas sociais determinadas a priori pelo gênio étnico, mas porque lá encontram as ferramentas simbólicas para construí-las dia após dia.

Além dos textos que compõem o dossiê, este número conta com o artigo da sociológa Iael de Souza que, a partir da análise do filme “Entre les murs” (do diretor Laurent Cantet, de 2008) como recurso mimético, busca compreender os problemas educacionais enquanto manifestações da totalidade das relações sociais e de produção capitalista. Assim, para Souza, “entre os muros” de uma escola pública parisiense pode ir além dos muros, pois é reflexo estético dos problemas sociais enfrentados pela sociedade atual.

Por fim, temos o artigo do historiador Gustavo Silva de Moura que discute as relações entre a juventude e a sociedade, analisando como se dá sua composição social e cultural na “cena” Rock/Metal de Parnaíba-Piauí. Dessa forma, Moura aborda a importância das mídias (rádio, televisão, jornais, revistas), na propagação do Rock e Heavy Metal na cidade de Parnaíba-PI, nas décadas de 1980 e 1990, considerando a visão da sociedade sobre essa nova prática que estava em ascensão no Brasil e em várias localidades do Nordeste.

Referências

A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Editora Paulus, 2003.

DE MARTINO, Ernesto. Morte e pianto rituale nel mondo antico: dal lamento pagano al pianto di Maria. Torino: Boringhieri, 1958.

LEWIS, Clive Staples. Dios en banquillo. Madrid: Rialp, 2008.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. V. I e II. São Paulo: EPU-EDUSP, 1974.

SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

Francesco Romizi


ROMIZI, Francesco. Apresentação. Domínios da Imagem, Londrina-  PR, v.10, n.18, jan/jul, 2016. Acessar publicação original [DR]

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