História e ética: múltiplas e complexas dimensões de um problema historiográfico / História e Cultura / 2017

Em 2008, o historiador Paulo Knauss publicou um breve e denso artigo intitulado “Uma história para o nosso tempo: historiografia como fato moral”.[3] Neste texto é possível vislumbrarmos, em perspectiva historiográfica, o longo percurso que a dimensão ética da escrita da história guarda desde os seus inícios. Como afirma Knauss, a partir dos estudos de François Hartog, o próprio surgimento desse saber, vinculado ao nome do grego Heródoto, já demarca uma discussão de caráter ético, considerando-se que diferentes culturas, em diferentes tempos e espaços, já possuíam formas e modos diferentes de relacionamento com as representações do passado.

Assim, mesmo a partir da experiência grega, percebe-se que em qualquer escrita da história estão implicadas dimensões de experiências pautadas pela diferença. Os gregos constroem suas histórias pela comparação aos não gregos. O historiador, ao afirmar que faz história, também pretende dizer que participa de uma produção que não é memoria, tradição ou qualquer outro mecanismo ritual de estruturação do tempo e de ações daí advindas. Tal perspectiva pretende enunciar que não há hierarquias entre diferentes histórias: há escolhas.

Nesse horizonte, o lugar comum, comumente repetido, de que a reflexão acerca do conhecimento histórico e sobre o papel social do historiador assume outra conotação, bem mais política e propriamente ética. Da polis grega ao século XXI, a história enfrentou os dilemas que envolvem as relações com o poder. A modernidade apenas exacerbou esse aspecto recorrente ao fazê-la disciplina com pretensões científicas. Do historiador elevado à voz da razão e da verdade, no século XIX ocidental, ingressamos no novo milênio com profissionais perseguidos e acusados de doutrinadores ideológicos, a despeito dos avanços e da reconhecida qualidade da historiografia produzida no Brasil, por exemplo. Como dissemos, antes, e Knauss recorda muito bem, a perseguição aos historiadores não se trata de algo recente. Heródoto e Tucídides, considerados por muitos como “pais da história” foram exilados. A participação no debate público através da escrita tem um preço que exacerba a proposta apresentada no presente dossiê.

Por outro lado, se o poder sempre operou ou contou com o suporte da história, a partir do momento em que o ofício do historiador passou a disputar seu prisma profissional, novos problemas e debates emergiram. Alguns são muito conhecidos (e, apesar disso, ainda muito repetidos): o historiador é capaz de fornecer uma verdade superior ou, no mínimo, diferenciada sobre do passado? Sua produção possui potencial pedagógico necessário e útil à formação do cidadão e da cidadã? A história, como arte ou ciência, permite uma intervenção direta no presente atual? Em maior ou menor medida, tais indagações situam a história e os historiadores em um espaço de ação social e política que merece reflexões mais detidas e particulares no que tange à epistemologia da história e à história da historiografia.

Propusemos, então, converter o tema das relações entre história e ética em um problema historiográfico a ser trabalhado neste dossiê. O próprio texto escrito por Knauss é sintomático. Há, desde aproximadamente a década de 1970, um crescente interesse por tal questão. De exaltados a perseguidos, de donos da verdade que favoreceu os Estados nacionais a críticos da sociedade, os historiadores passaram à autorreflexão. Revisar seus princípios teóricos e metodológicos tornou-se também um gesto ético. Os resultados das pesquisas históricas são obtidos a partir de intensa investigação, mesmo conceito que liga o mundo antigo ao ano de 2017. Entretanto, nem tudo se resume à epistemologia. Esta, em si, possui elementos que interferem em ações práticas, tomadas de decisão tanto no presente como para o futuro.

Os artigos reunidos neste número de Historia & Cultura, não temos dúvidas, fornecem uma espécie de “estado da arte” no que se refere à tentativa de sistematização dessa discussão que, como afirmamos, possui certa inflexão na década de 1970, mas, no começo dos anos 2000, ganha reforço significativo. Seja a partir das relações entre história e filosofia, da análise da autoridade e da responsabilidade dos historiadores em perspectiva historiográfica, de propostas relativas a uma ética própria da história ou de importantes discussões que deslocam a Europa (mais precisamente os homens cristãos europeus) do centro das atenções historiográficas, ficamos muito satisfeitos em oferecer um panorama que pretende, esperamos, colaborar com a construção de uma agenda mais encadeada e pertinente de um tema fundamental ao presente e ao futuro do conhecimento histórico tal como hoje o conhecemos.

Nota

3. KNAUSS, Paulo. Uma história para o nosso tempo: historiografía como fato moral. História Unisinos. Vol. 12, n. 2, maio / agosto, 2008, p. 140-147.

Evandro Santos – Professor Adjunto de Teoria da História no Departamento de História do Centro de Ensino Superior do Seridó da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (CERES-UFRN). Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected]

Magno Francisco de Jesus Santos – Professor Adjunto de Ensino de História no Departamento de História e no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).


SANTOS, Evandro; SANTOS, Magno Francisco de Jesus. Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 6, n. 3, dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê