Sítios de pesca Lacustre em Rio Grande, RS – SCHMITZ (CL)

SCHMITZ, Pedro Ignácio. Sítios de pesca Lacustre em Rio Grande, RS. [Porto Alegre:] 2011. Resenha de: RIBEIRO, Bruno Leonardo Ricardo. Cadernos do LEPAARQ – Textos de Antropologia, Arqueologia e Patrimônio, Campinas, v.11, n.22, 2014.

A obra em análise é, ainda hoje, referência primordial no que tange o estudo de grupos caçadores– coletores–pescadores cerriteiros na costa do Rio Grande do Sul e regiões adjacentes, e sua reedição é parte integrante do segundo volume da série “Clássicos da Arqueologia”, promovida pela Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB) e lançado durante a realização do XVI congresso da SAB em conjunto com o XVI congresso Mundial da UISPP, em Florianópolis/SC. Cabe também salientar que esta obra se trata de uma versão condensada da tese apresentada pelo autor em 1976 para obtenção do título de Livre-docente na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS.

Além de contar com apresentação de Rossano Lopes Bastos, então Secretário Geral do evento e prefácio de Jairo Henrique Rogge, onde ambos ressaltam a importância deste autor não só para a construção do pensamento Arqueológico Brasileiro, mas também seu papel fundamental no estabelecimento da disciplina no Brasil como tal, o livro é estruturado em nove capítulos que abarcam desde uma introdução ao objeto de pesquisa, a uma proposta de caracterização dos sítios escavados. Os três primeiros capítulos da obra são dedicados as descrições ambientais, histórico das pesquisas desenvolvidas na região e as culturas dentro do escopo do projeto; o quarto capítulo, à apresentação dos sítios estudados. Os capítulos cinco a oito, por sua vez, são dedicados a apresentação dos vestígios arqueológicos recuperados e toda sua variabilidade: cerâmicos, líticos, malacológicos e faunísticos, além dos restos alimentares.

Finalmente, no capítulo nove o autor apresenta uma proposta de caracterização para os sítios estudados em sua totalidade, por ele entendidos, em sua maioria, primariamente como assentamentos de pesca sazonal ocupados durante a primavera e o verão, uma vez que a grande maioria dos vestígios alimentares remete à predação de peixes dessas estações, mas sobretudo, assentamentos de múltipla função, diante do longo espaço de tempo durante os quais foram recorrentemente ocupados e pelas diferentes ocorrências de vestígios arqueológicos verificados ao longo destas ocupações.

De acordo com o autor, as datações obtidas por C14 garantem à área pesquisada uma antiguidade que remete a mais de 2.000 anos A.P, e se encerraria com a chegada do Europeu na região entre os séculos XVII e XVIII, então ocupada por grupos indígenas Guarani, Minuano e Charrua. A saber, o período mais antigo, pré-cerâmico, atestado pela presença de artefatos líticos lascados e polidos/picoteados nos extratos mais baixos, além de instrumentos elaborados sobre ossos e conchas, se iniciaria em meados do ultimo milênio antes da era cristã e se encerraria com o início desta, dando lugar então às primeiras ocupações ceramistas, que perdurariam até a conquista. Quatorze foram os sítios abarcados no projeto e nenhum deles teria se apresentado exclusivamente pré-cerâmico (lítico) nem apresentado elementos associáveis a culturas europeias.

Como dito anteriormente, o autor procura, nos capítulos iniciais de sua tese, contextualizar a pesquisa desenvolvida na região de Rio Grande/RS, e é quando são apresentadas densas descrições das características geomorfológicas e ecológicas da área pesquisada. Ênfase é dedicada às variações climáticas e ambientais verificadas durante a transição pleistoceno/holoceno e seu impacto sobre a fauna e a flora local, assim como entre os diferentes terraços relacionados a estes períodos. As rotas de migração e a presença sazonal de aves, peixes, frutos e outros vegetais na região também não escaparam ao escrutínio, objetivando identificar a já citada variabilidade de recursos alimentícios disponíveis aos grupos humanos que primeiro ocuparam a região ao longo do ano. Ainda, é neste momento que o autor apresenta toda uma revisão histórica da presença ibérica, iniciada no século XVII, e bibliográfica, não só das pesquisas já realizadas na região, mas também dos grupos indígenas que ali residiam quando da chegada dos povos europeus.

Ainda, são apresentados os aportes teórico-metodológicos utilizados pelo autor, fortemente marcados por uma perspectiva histórico-culturalista, embasada na elaboração de seriações de fundamento tecno-tipológicas dos vestígios arqueológicos identificados, visando à inserção destes sítios dentro de sequências culturais já estabelecidas, as ditas tradições e/ou fases culturais. Para tanto, os métodos de escavação se restringiram a realização de sondagens teste e/ou cortes estratigráficos escavados por níveis artificiais e coletas superficiais, sempre objetivando a obtenção da maior quantidade possível de vestígios e informações de valor amostral. A pesquisa realizada partiu de estudos iniciados durante o Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA) – cujo objetivo era a elaboração de um panorama geral e sistemático da história dos povos autóctones anteriores à conquista ibérica, partindo exatamente do levantamento de dados amostrais – portanto, foi fortemente influenciada pelo “métier” norte-americano.

Em relação à morfologia dos sítios, são em sua maioria de forma arredondada ou elíptica, de área entre 800 e 11.000m2, e altura atual variando entre 30 e 125cm. Quanto à caracterização e constituição destes montículos, o autor os define da seguinte forma: […] pequenos cômoros, acumulados pelo homem, constituídos de sedimentos arenosos, escuros, com grande quantidade de restos de alimento de origem animal, em menor quantidade de origem vegetal, localizados sobre os terraços holocênicos da margem ocidental da Lagoa dos Patos, na parte mais próxima à sua barra. Excepcionalmente se encontram os mesmos sítios sobre o barranco do Pleistoceno […]. Os sítios sobressaem do terreno circundante, razão por que são localmente conhecidos como cerritos […] (SCHMITZ, 2011, p.81).

Devo ressaltar que, com o avanço das pesquisas relacionadas a sítios arqueológicos sobre cerritos nas ultimas décadas, tem se questionado se tais montículos seriam resultado apenas do produto residual destas longas e constantes reocupações, como propõe o autor, ou construções idealizadas pelos grupos que deles faziam uso, compondo projetos monumentais relativos a espaços funerários; Se seriam uma resposta à variação do nível d’água na Laguna dos Patos, ao longo das estações do ano, ou marcadores territoriais e simbólicos, além de outros tantos questionamentos (mais detalhes em MAZZ, BRACCO, 20102). Todavia, tais discussões não cabem aqui. Fato é que sobre estes montículos a grande maioria dos vestígios culturais identificados foi cerâmica, com baixa representatividade de vestígios líticos e ósseos, os últimos de tão baixa frequência que o autor não se dispõe a ir além de uma simples descrição das peças resgatadas e apenas em alguns casos, inferir sobre prováveis usos ou funções para tais. Ossadas e indícios de sepultamentos humanos, quando identificados, não foram suficientes para incutir, no autor, ideias sobre possíveis usos simbólicos para os referidos sítios.

Para a análise dos vestígios cerâmicos a metodologia adotada por Schmitz teve por enfoque o exame de características morfológicas e tecnológicas, através da qual pretendia verificar a presença de culturas/sociedades diferentes ou mesmo a apropriação de técnicas culturais externas, através do contato entre sociedades distintas. Assim, além do estudo de bordas de potes e extrapolação de possíveis formas, traços como textura e elementos constituintes da argila; coloração do núcleo das paredes e tipo de queima aplicada; características das superfícies internas e externas dos potes, como coloração, tratamento superficial e aplicação ou não de motivos decorativos também foram levados em consideração.

Diante dos resultados obtidos através destas análises, aplicadas a todas as coleções, o autor estabeleceu dois grandes grupos de vestígios cerâmicos. O primeiro deles, verificado em níveis mais inferiores, é composto por vasilhames pequenos e pouco profundos, de contornos simples e pasta apresentando elementos antiplásticos minerais, em sua grande maioria sem indícios de maior dedicação aos acabamentos de superfície e poucos motivos decorados plásticos ou pintados, salvo algumas exceções. O segundo grupo, verificado em camadas mais superficiais das escavações e em apenas alguns sítios, apresenta vasilhames de tamanhos mais variados e formas e contornos mais complexos. Além dos antiplásticos minerais, nestas cerâmicas também é recorrente o acréscimo de cacos moídos de outros potes cerâmicos e a presença de motivos decorados nas paredes são mais frequentes, com padrões mais imbricados, alisamentos mais finos e maior recorrência de decorações pintadas e plásticas, como impressão de dedos, unhas, além de outros.

O primeiro grande grupo, de acordo com as designações estabelecidas pelo PRONAPA, se enquadra na dita Tradição Vieira, subtradição Vieira e pode ser dividida, ainda, em outras duas fases apenas por variações pontuais: Fase Torotama (mais escassa e verificada imediatamente acima, ou associada à camada pré-cerâmica) e Fase Vieira (mais frequente e presente em níveis mais superiores). O segundo grupo se enquadra na Tradição Tupiguarani, subtradição Corrugada, Fase Camaquã, com datações que remetem a chegada desta tradição cerâmica à região em algum momento próximo ao fim do primeiro milênio A.D. O autor não dedica muitas páginas de seu livro a esta nova população a adentrar o território, mas deixa claro que em sua opinião, este grupo – já dominante da horticultura e de organização social e padrões de assentamento bem diferenciados em relação aos grupos em foco – manteve contato direto e prolongado com os produtores da cerâmica da Fase Vieira, e exerceram influencia direta sobre eles.

Difusionista, Schmitz associa à chegada e ao contato com estes povos uma intensificação da horticultura na região e certo grau de “refinamento” na produção cerâmica da Fase Vieira, ressaltando que após o contato com os Tupiguarani surge um novo padrão decorativo dentre estas cerâmicas, que ele denomina negativo de cestaria. Especula também sobre certa imposição de restrições espaciais aos cerriteiros, partindo da premissa que com os Tupiguarani vieram novos saberes, mas também novos limites territoriais que restringiriam o uso do espaço e dos recursos locais pelos grupos associados à cerâmica Vieira, por ele entendidos, até então, como organizados em pequenos bandos de alta mobilidade territorial, agora forçados à intensificação de práticas horticultoras e certa reorganização social.

A cerâmica, na ótica adotada pelo autor, é entendida como o principal vestígio cultural de determinada sociedade. De caráter puramente tecnológico e indicador de estágios evolutivos da tradição Vieira, caracterizada como “sociedade marginal”. Sequer é aventada, nas profundas análises realizadas pelo autor, a relação entre possíveis funções ou representações associadas a estes potes cerâmicos. Para ele, a simplicidade verificada nas técnicas de produção e nas formas das cerâmicas da Fase Torotama, por exemplo, assim como a manutenção de certas características por longo período temporal, seriam reflexo de uma sociedade dotada de um sistema cultural simplista e estático.

Parece lhe escapar a possibilidade que, talvez, o nível de complexidade presente nos grupos produtores das cerâmicas da Tradição Vieira estivesse testemunhado em outras formas de cultura material, como nos próprios cerritos, e que neste contexto a cerâmica não desempenharia mais que papel secundário.

E há de se destacar, por fim, que a tese de Schmitz (defendida em 1976), passou a ser a principal referência teórica e o modelo interpretativo mais robusto sobre as ocupações dos grupos construtores de cerritos do pampa, tendo forte impacto sobre a arqueologia do Mercosul. Dessa forma, foi o principal alvo de críticas, sobretudo da Arqueologia uruguaia, quando essa se reoxigenou sob um viés processualista, ao longo dos anos 1990, o que demonstra a grandiosidade da obra, discutida e rediscutida nos últimos 40 anos.

Nota

2 MAZZ, J.M.L.; BRACCO, D. Minuanos. Apuntes y notas para la historia y la arqueología del territorio Guenoa-Minuan (Indígenas de Uruguay, Argentina y Brasil). Montevideo: Linardi y Risso, 2010.

Bruno Leonardo Ricardo Ribeiro – Graduando do curso de Bacharelado em Antropologia/Arqueologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Brasil. Pesquisador Associado ao Laboratório de Ensino e Pesquisa em Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal de Pelotas (LEPAARQ – UFPel), Brasil.

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