Escola no Rio Grande do Sul (1889-1950): ensino/culturas e práticas escolares | Jsé Edimar de Souza

A obra Escola no Rio Grande do Sul (1889-1950): ensino, culturas e práticas escolares (Caxias do Sul, editora Educs, 2020, 476 páginas, e-book), organizada pelo professor e pesquisador José Edimar de Souza evidencia o esforço do seu organizador em contribuir para o campo da história da educação no Rio Grande do Sul. O livro está estruturado em quatro eixos de abordagem, os quais serão explorados no decorrer desta resenha. Ao compor a obra desta forma, o autor nos propicia estabelecer um panorama das produções acadêmicas sobre instituições escolares no estado. Da mesma forma, entendemos que tal organização permite ao leitor perceber os diferentes rumos e segmentos que a pesquisa sobre instituições pode tomar. A obra é prefaciada pelo professor António Gomes Ferreira, da Universidade de Coimbra, cujos estudos se dedicam ao campo da História da Educação, Políticas educacionais e Educação Comparada. Leia Mais

Os Barões do Charque e suas fortunas. Um estudo sobre as elites regionais brasileiras a partir de uma análise dos charqueadores de Pelotas (Rio Grande do Sul, século XIX) | Jonas Vargas

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Jonas Vargas | Imagem: Fronteiras do Tempo

VARGAS Os baroes elites regionais“As principais famílias charqueadoras do período escravista foram capazes de criar um mundo próprio e fizeram da cidade de Pelotas o seu palco particular. Neste cenário, o acesso às artes, à educação superior e à liderança política coube a elas e a algumas outras famílias da elite local” (Vargas, 2016, p.317) O cantor e compositor Vitor Ramil, certa feita, disse ter “convicção que o Rio Grande do Sul não estava à margem do centro do Brasil, mas sim no centro de uma outra história”. Ramil, que é pelotense, certamente formulou essa opinião tendo como inspiração a sua amada cidade natal, que a retrata de modo idealista, ou realista, como Satolep. Pois essa Pelotas centro de uma outra história é a encontrada no profundo trabalho escrito pelo historiador e professor do curso de História da UFPel, Jonas Vargas.

O livro “Os Barões do Charque e suas fortunas. Um estudo sobre as elites regionais brasileiras a partir de uma análise dos charqueadores de Pelotas (Rio Grande do Sul, século XIX)”, é uma adaptação da sua tese de doutoramento em História, defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2013. Nesta obra, Vargas faz um exaustivo estudo sobre a elite pelotense, e demonstra que Ramil está correto em sua reflexão estética: Pelotas é o centro de uma outra história. Leia Mais

Power in the Village: Social Networks/ Honor and Justice among Immigrant Families from Italy to Brazil | Maíra I. Vendrame

O livro de Maíra Vendrame, agora publicado em inglês, é uma versão reduzida de sua tese de doutoramento em história defendida em 2013 na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. O estudo tem como fio condutor a trajetória do padre Antônio Sório, imigrante italiano que se instalou no núcleo colonial de Silveira Martins, Rio Grande do Sul, na década de 1880. Quase vinte anos depois, em 1900, o sacerdote faleceu em decorrência de um grave ferimento no “baixo ventre”. A “morte trágica” gerou várias versões explicativas na comunidade, as quais foram utilizadas por Vendrame como motivação para adentrar no universo camponês e investigar os costumes do grupo. Desse modo, a morte de Sório aparece como pretexto para pesquisar temas mais amplos, como a emigração da Itália, questões de honra familiar e práticas de justiça camponesas que podiam ou não se relacionar com a justiça do Estado.

As versões sobre a morte do padre são apresentadas já no primeiro capítulo, intitulado Versions of a tragedy. Na noite em que Sório ficou ferido, ele estava em uma das ruas do núcleo colonial, a cavalo, provavelmente retornando para casa. As explicações que circularam entre a população de Silveira Martins defendiam que o sacerdote teria sofrido uma queda do cavalo ou sido vítima de uma emboscada com motivações políticas ou vingativas. Aqueles que afirmavam que havia ocorrido um crime político, sustentavam como mandante a maçonaria, pois essa se encontrava presente na comunidade e travava um conflito de ideias com Sório, defensor e representante da Igreja Católica. Por outro lado, as pessoas que acreditavam em um crime de vingança, declaravam que o pároco havia desonrado uma jovem do lugar. Como não foi aberto um processo judicial para investigar o ocorrido, que talvez pudesse apontar para uma única explicação, os diferentes relatos registrados em entrevistas orais, publicações periódicas e de padres e imigrantes locais, oferecem um horizonte de possibilidades. Leia Mais

Flávio Koutzii: biografia de um militante revolucionário – SCHMIDT (AN)

SCHMIDT, Benito Bisso. Flávio Koutzii: biografia de um militante revolucionário. Porto Alegre: Libretos, 2017. Resenha de: LAPUENTE, Rafael Saraiva. Traços de uma biografia “revolucionária”: Flávio Koutzii por Benito Schmidt. Anos 90,  Porto Alegre, v. 25, n. 48, p. 411-418, dez. 2018.

Caminhos, contextos e trajetórias: Flávio Koutzii como um “revolucionário” na América Latina

Há por parte da bibliografia vinculada à Ciência Política a alegação de que o PT é a agremiação mais estudada da área (SAN­TIN, 2005; AMARAL, 2013), haja vista possuir uma quantidade numérica significativa de estudos com diferentes abordagens.1 Mas, se isso é relativamente consistente por parte da Ciência Política, é bem verdade que sua “irmã” – a História Política – ainda caminha com vagar sobre a história política e partidária do Brasil pós-democratização e, mais especificamente, sobre o PT e as demais agremiações.  Ainda que os historiadores frequentemente fracassem na tarefa de prever o futuro (HOBSBAWM, 2013), penso que esse contexto é temporário. E ponto chave para isso é buscar entender a trajetória daqueles que vieram a fundar e dar sustentação ao Partido dos Trabalhadores, por meio de sua militância anterior ao Colégio Sion, onde o PT foi oficialmente fundado.

Ainda que Benito Schmidt não se dedique à tarefa de enten­der os anos de Flávio Koutzii como membro do PT e ativo na política institucional, a biografia que o autor traça sobre uma das principais figuras da esquerda gaúcha nos ajuda a conhecer um dos membros mais ilustres da sigla no Rio Grande do Sul.2 Para isso, Benito Schmidt dividiu o trabalho em cinco capítulos, encerrando sua biografia quando o personagem estudado retorna ao Brasil em 1984. E somente entre 1943 e 1984 resultou em um extenso trabalho de 543 páginas, fruto de sete anos de pesquisas. O autor, contudo, convoca desde o início outros pesquisadores a se debru­çarem sobre o recorte posterior, chamando a atenção para o fato de que o período “em branco” do trabalho possui particularidades relevantes a serem analisadas por novos pesquisadores. Isto é, que a opção por não incluir esse período não está no fato de este ser, supostamente, menos relevante do que o estudado.

A introdução do livro chama a atenção para esse ponto, destacando que o pós-1984 “trata-se de um período riquíssimo” (SCHMIDT, 2017, p. 14), bem como dos bastidores em que chegou ao biografado e os conflitos em torno de “convencê-lo” ao recorte temporal. A introdução, sem dúvidas, é a parte do livro onde o autor provoca uma série de curiosidades e inquietudes, fazendo com que o leitor se sinta instigado a prosseguir a obra. Fugindo, assim, das introduções “burocráticas” que, por vezes, possuem os trabalhos acadêmicos.

Ter o biografado vivo, o que é pouco usual, é peça chave nisso, haja vista que a introdução vai narrando parte dos “basti­dores” dos sete anos de pesquisa, em especial sobre a relação entre pesquisador e pesquisado. Ao longo do livro, Schmidt vai deixando claro, direta ou indiretamente, que Koutzii teve papel fundamental no desenvolvimento da pesquisa não apenas como entrevistado, mas sendo partícipe em todo o processo do trabalho, indicando, cedendo fontes e intermediando entrevistas. E também divergindo de Schmidt, embora o autor assinale poucas vezes no decorrer do livro os momentos em que isso ocorreu.

Essa participação de Koutzii, mais “direta”, aliada com a explícita identificação do autor com as bandeiras defendidas pelo biografado, evidentemente que deixam o leitor, como se diz popu­larmente, com o “pé atrás” em relação ao trabalho. Mas no decorrer do texto, à medida que Schmidt vai analisando a trajetória e, em especial, os contextos políticos nos quais Koutzii estava inserido, fica claro que não se trata de um texto chapa branca ou heroificante, comumente observado pelas biografias ditas “comerciais”.3.

Chama a a Chama a atenção no livro também o vasto material consultado pelo autor. Schmidt, para “seguir os passos” de Koutzii, frequentou dez arquivos diferentes, localizados em Porto Alegre, Buenos Aires, Rio de Janeiro, São Paulo, assim como o acervo pessoal de Koutzii. Apesar disso, o que predomina durante o livro são as entrevistas orais. Schmidt realizou 48 delas, algumas na França, Argentina e Alemanha, com figuras que estiveram próximas de Koutzii ao longo da trajetória analisada, sendo obviamente a maioria delas com o próprio biografado. Essas entrevistas deixaram o livro com uma narrativa estimulante. Elas, aliadas com a boa escrita do autor, transformaram as densas 543 páginas em uma leitura fluida. É fácil constatar que a biografia foi escrita pensando em atingir um público maior do que aquele que possui interesses acadêmicos.4t

Naquilo que concerne à organização do livro, ele foi dividido em cinco capítulos, cada um abordando uma fase diferente da vida de Koutzii. No primeiro, Benito Schmidt busca conhecer Koutzii antes de Koutzii, traçando o contexto de sua infância e adolescência no bairro Bom Fim, em Porto Alegre, bem como a estrutura familiar do biografado. Nesta, dando especial atenção a Jacob Koutzii, pai de Flávio e cuja trajetória estava vinculada ao PCB, ao judaísmo e à crítica de cinema. Nesse ponto em particular, Schmidt utilizou amplamente o livro A Tela Branca, escrito por Jacob Koutzii. A trajetória de Flávio Koutzii nesse capítulo também contempla sua vida escolar no Instituto de Educação General Flores da Cunha e no Colégio de Aplicação, dando ênfase especial às consequências de sua posição enquanto judeu e comunista quando estudava no primeiro; no segundo, Schmidt busca analisar a influência daquele ambiente para a formação política do biografado.

Como durante toda a biografia, Schmidt não se ateve apenas às atividades políticas. Esteve atento às relações pessoais de Koutzii, tanto com a família como também amorosas. Nesse capítulo, em particular, abre um fio que só terá desfecho no final do livro: o encontro entre Koutzii e Sônia Pilla, que, entre tantas idas e vindas, seria marcado por um reencontro em 1984, união que se mantém, destacando que as relações afetivas e familiares se misturavam com a ação militante em todo o período estudado.

Essas relações pessoais também por vezes trouxeram, no decor­rer do livro, tanto a distensão como a angústia. No capítulo dois, o leitor pode dar boas gargalhadas quando o autor questiona, “com alguma maldade”, se “‘o Flávio jogava [futebol] bem?’. Ele respondeu o que eu pressentia: ‘não’” (SCHMIDT, 2017, p. 145). Por outro lado, quando o autor se debruça sobre a prisão na Argentina, é necessária muita frieza e abstração para não se colocar no lugar de Clara Koutzii nos dias de cárcere do filho, principalmente no momento em que ela tem que optar entre visitar Flávio ou ir ao enterro do marido Jacob. O livro também possui o mérito de ressaltar por diversas passagens que, apesar das muitas dificuldades, medos, angústias e incertezas, o biografado e seus pares também abriam brechas para brincadeiras e descontrações mesmo nos momentos mais aflitos de suas respectivas trajetórias.

Depois de Benito Schmidt buscar compreender as “raízes” de Koutzii, no capítulo seguinte estuda o início da militância do biografado em Porto Alegre no PCB. Abordando o período de retorno a Porto Alegre depois de uma malsucedida tentativa de estudar em São Paulo, Schmidt destaca o papel da UFRGS na atuação política de Koutzii: “perguntei-lhe: ‘e na Universidade, o que é que vocês faziam concretamente?’, ao que ele respondeu sem pestanejar: ‘política! [risos]. Política o tempo todo’” (SCHMIDT, 2017, p. 99-100), destacando sua atuação dentro do Movimento Estudantil da UFRGS. Um dos pontos para o qual Schmidt cha­mou a atenção foi a vitória de Koutzii como presidente do Centro Acadêmico Franklin Delano Roosevelt, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.

Característica importante desse capítulo, que estará presente nos demais, é o fato de o autor dar ênfase especial ao contexto em que está inserido o seu personagem. Isto é, por meio da busca dos passos de Koutzii, Benito Schmidt vai traçando sempre um importante paralelo contextual, transformando o livro em uma ferramenta para compreender o Brasil dos anos 1960 – e os impactos da Ditadura Militar no Movimento Estudantil – nesse capítulo, e também as ditaduras latino-americanas pelas quais Koutzii passou em função do exílio nos capítulos seguintes. A dedicação do autor aos contextos explica o porquê de a biografia ter ficado extensa, mas garante uma leitura mais rica do que só “seguir os passos” de Koutzii, ressaltando as decisões tomadas pelo biografado dentro do que é chamado de campo de possibilidades.

Finaliza o capítulo 2 com a Geração de 1968 e a decisão tomada por Flávio Koutzii e membros do Partido Operário Comunista de sair do Brasil para a França clandestinamente antes que fossem presos. Assim ele sintetiza o biografado no período abordado, dizendo que “[…] Flávio vivenciou com intensidade os acontecimentos políticos do seu tempo: o movimento estudantil, o golpe de 64, os debates que sacudiram e reconfiguraram a esquerda brasileira nos primeiros anos da ditadura, a luta armada”. Para Schmidt, “[…] a política, aliás, parece ter se tornado a partir de então o eixo central de sua existência, abarcando inclusive suas relações que normal­mente chamaríamos de privadas, como as amizades e os amores”. Por isso, compreende sua atuação política “no sentido de agir para transformar a sociedade e tomar o poder” (SCHMIDT, 2017, p. 186).  O Capítulo argentino é o título do capítulo três. Ainda que a parte mais “pesada” da biografia fosse dedicada ao capítulo seguinte e também ocorresse na Argentina, é compreensível a divisão do autor para uma parte destinada à militância de Koutzii na Argen­tina e, no quarto capítulo, destinando-se aos pedaços da morte no coração. Dessa forma, denota-se que existe um antes e depois na vida de Koutzii com a prisão e tortura durante a ditadura militar argentina, destacando ainda o fato de as organizações de esquerda também terem sido perseguidas nos governos de Peron e Isabelita. Embora, há de se ressaltar que o capítulo argentino abranja a atuação de Koutzii no Chile e na França.

É possível perceber, por meio do capítulo três, os artifícios dos militantes de esquerda para driblar as ditaduras latino-americanas, como a utilização de passaportes e identidades falsos, traçando, por exemplo, o trabalhoso processo empreendido por Flávio Koutzii para ir ao Uruguai e, de Montevidéu, ir de barca a Buenos Aires e, da capital argentina, se deslocar de ônibus a Santiago, para o Chile de Allende (SCHMIDT, 2017, p. 194-197). Ponto interessante do trabalho é poder observar a militância internacionalizada de Koutzii, identificando a atuação do personagem em múltiplos contextos, por vezes também ilustrando os choques provocados por essas diferenças.

Além disso, o livro explora a aproximação de Flávio Koutzii com a IV Internacional ainda na França e, na Argentina, sua mili­tância no Partido Revolucionário dos Trabalhadores, na Fracción Roja, uma dissidência que teve no biografado uma das principais lideranças dos rojos, e na Liga Comunista Revolucionária.

Se o capítulo três muito lembra um “filme de ação”, haja vista as estratégias lançadas pela esquerda para confrontar e burlar as ditaduras latino-americanas, em especial a argentina, no capítulo quatro, No ‘coração das trevas’, o autor prenuncia o que virá em um depoimento pessoal: “certas vezes, depois de realizar as entre­vistas, tive que caminhar pelo parque, tomar um sorvete, ver um filme alegre a fim de recuperar certa confiança na humanidade” (SCHMIDT, 2017, p. 312). Nesse capítulo a prisão de Koutzii é analisada, tanto por meio de entrevista oral como pelo jornal La Razón, que definia o biografado como “o responsável pelos grupos armados na América Latina da IV Internacional” (SCHMIDT, 2017, p. 315). Junto a isso, há a análise do contexto de desaparecimentos e sequestros de membros da esquerda naquele país, ilustrando a tensão da apreensão de Koutzii nesse cenário.

As práticas de tortura são pouco analisadas em si, mas ScAs práticas de tortura são pouco analisadas em si, mas Schmidt busca compreendê-las mais como um ato organizado, estruturado e articulado do Estado argentino visando à destruição física, mas principalmente psicológica dos presos políticos. Não é à toa que o maior capítulo é o mais tenso, embora Schmidt consiga “quebrar” essa narrativa ressaltando eventuais momentos de lazer e resistências simbólicas contra o sistema prisional argentino pelos presos políticos.

O capítulo finaliza com a extensa campanha em defesa da liberdade de Flávio Koutzii, cuja presença intensa de sua mãe possui localidade central, bem como a mobilização de figuras políticas, como o deputado federal Airton Soares, intermediando sua soltura, a campanha realizada pelo Comitê Brasileiro pela Anistia e o abai­xo-assinado internacional com importantes adesões da esquerda. Também foi muito destacado pelo autor o apelo embasado nas condições de saúde de Koutzii, com problemas cardíacos e a perda de 25 quilos no cárcere. Schmidt, para isso, usou ampla gama de materiais primários, com a cobertura que a campanha pela libertação de Flávio Koutzii possuiu, em especial na imprensa.

Para mim Paris não foi uma festa. O título do último capítulo, trecho de uma fala de Koutzii, induz o leitor a imaginar que os dramas vividos na Argentina iriam persistir na França. Mas não é o que acontece. Nesse momento, quando o biografado retorna à França, Schmidt aborda quatro fases naquele novo contexto: os pri­meiros contatos de Koutzii, sua relação com a psicanálise para lidar com os traumas que passou na Argentina, seu trabalho intelectual na École des Hautes Études en Sciences Sociales que resultou no livro Pedaços da morte no coração, analisando o sistema carcerário argentino e seu ingresso gradual no debate político brasileiro, posi­cionando-se pelo PT e participando de sua construção em Paris. Para essa fase, Schmidt foi à França entrevistar alguns integrantes da IV Internacional. Assim, buscou conhecer o período em que Koutzii esteve no país. Além dessas, Schmidt entrevistou seu psicanalista na França, que também havia saído do Brasil por motivos políticos.

A biografia termina destacando a participação, ainda que indireta, de Koutzii na fundação do PT e seu retorno em 1984. Ela é, portanto, uma biografia que estuda a atuação de Koutzii como um militante revolucionário no sentido literal da palavra. A finalização do livro conta com dois curtos textos que não são de Schmidt. O primeiro, de Guilherme Cassel, busca fazer uma breve síntese da atuação política de Koutzii como vereador e deputado estadual. Cassel, é importante destacar, foi assessor de Flávio Koutzii5, uma informação ausente do livro, mas de suma importância para aquele que não é familiarizado com a história recente da esquerda gaúcha. Uma síntese que carrega traços dessa aproximação, cujo formato é mais de um testemunho do que de uma análise, como a de Benito Schmidt.

O breve texto de Koutzii é uma síntese sobre sua vida, a experiência de participar de uma biografia em vida e um chamado. Chamado de esperança, para a reversão dos tempos sombrios decor­rentes do golpe de estado de 2016. Chamado que é carregado de simbolismo, como a biografia explicita.

Notas

1 Embora, pessoalmente, eu venha defendendo que existe uma lacuna muito grande sobre os “PTs regionais”, bem como das demais siglas que não possuem praticamente maiores estudos com recortes geográficos menores.

2 Há de se ressaltar, entretanto, que Benito Schmidt chegou a redigir um livro chamado História e memórias do PT gaúcho (1978-1988), onde aborda esse pro­cesso inicial do PT. A obra, contudo, nunca foi publicada. O autor desta resenha teve acesso ao “borrão” do livro, cedida por Schmidt, ao qual agradeço por isso.

3 Refiro-me a biografias escritas normalmente por pesquisadores “independentes” e jornalistas, cujo apelo comercial descompromissa de maior aprofundamento e de rigores teóricos e metodológicos inerentes à pesquisa acadêmica.

4 De fácil constatação foi a positiva recepção da obra por parte de diversos mili­tantes do PT e da esquerda do Rio Grande do Sul, observando-se que, no dia do lançamento do livro, boa parte dela esteve reunida. No local do lançamento, ocorrido no Santander Cultural, um número considerável do público ficou do lado de fora da sala, impedido de assistir à fala de Koutzii, pela superlotação.

5 Koutzii, inclusive, atribuiu, em entrevista, a sua atuação parlamentar destacada pela escolha de sua equipe. Perguntado sobre ela, disse: “Era o Guilherme Cassel e o Paulo Muzell, esses dois praticamente como os caras que ajudavam a pensar e a escrever essas coisas”. Entrevista de Flávio Koutzii para César Filomena. Disponível em: <https://www.dropbox.com/sh/3cfi97dfs93zfic/AADGZ5A1D pcfdN9KZVtc0E0ya?n=421284457&oref=e>. Acesso em: 16 nov. 2017.

Referências

AMARAL, Oswaldo E. do. As transformações nas organizações internas do Partido dos Trabalhadores (1995-2010). São Paulo: Alameda, 2013.

ENTREVISTA de Flávio Koutzii para César Filomena. Disponível em: <https:// www.dropbox.com/sh/3cfi97dfs93zfic/AADGZ5A1DpcfdN9KZVtc0E0ya?n =421284457&oref=e>. Acesso em: 16 nov. 2017.  HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

SANTIN, Ricardo. Construção de um partido político: a trajetória e a estabili­dade política do PP gaúcho. Porto Alegre: Editora Berthier, 2005.

SCHMIDT, Benito Bisso. Flávio Koutzii: biografia de um militante revolucio­nário. Porto Alegre: Libretos, 2017.

Rafael Saraiva Lapuente –  Doutorando em História pela PUC-RS. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

Terras da Annoni: entre a propriedade e a função social | Simone Lopes Dickel

Simone Lopes Dickel é doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (PPGH/UPF), é mestre em História, também, pelo PPGH/UPF. Sua graduação foi em História – Licenciatura Plena, pela UPF no ano de 2009 e atualmente é professora de História da Rede Pública Estadual do Rio Grande do Sul, na Escola Estadual de Ensino Médio Zumbi dos Palmares e Escola Estadual de Ensino Fundamental 29 de Outubro, ambas localizadas no município de Pontão/RS, berço da desapropriação da Fazenda Annoni. Leia Mais

Escolas italianas no Rio Grande  do Sul: pesquisas e documentos – RECH; LUCHESE (RHHE)

RECH, Gelson Leonardo; LUCHESE, Terciane Ângela. Escolas italianas no Rio Grande  do Sul: pesquisas e documentos. Caxias do Sul, EDUCS, 2018. Resenha de: FERNANDES, Cassiane Curtarelli. Escolas italianas no Rio grande do Sul: pesquisas e documentos. Revista de História e Historiografia da Educação, Curitiba, Brasil, v. 2, n. 6, p. 241-245, setembro/dezembro de 2018.

Escolas italianas no Rio Grande do Sul: pesquisas e documentos, é o título da obra composta pelos pesquisadores Gelson Leonardo Rech e Terciane Ângela Luchese, publicada em 2018, pela editora EDUCS. O escrito é fruto da continuidade das pesquisas empreendidas pelos autores em torno dos processos educativos entre imigrantes italianos e seus descendentes no Rio Grande do Sul, assim como dos diálogos mantidos no Grupo de Pesquisa História da Educação,  Imigração e Memória (GRUPHEIM) da Universidade de Caxias do Sul/RS.

De uma forma acessível, Gelson e Terciane partilham seus empreendimentos de pesquisa com o público interessado na temática da imigração italiana no estado gaúcho. As páginas, escritas a quatro mãos, reúnem três movimentos: narram uma história das escolas italiano no estado, apresentam uma reflexão metodológica e transcrevem documentos primários, alguns até então inéditos para a área da História da Educação.

O livro, organizado em três capítulos, inicia com prefácio elaborado pelo Prof. Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara, que aborda brevemente o processo imigratório italiano no Rio Grande do Sul. Em seguida, há uma apresentação da obra pelos autores, desejando que “a leitura das páginas que seguem possa inspirar outros investigadores e interessados pela temática a pensarem os processos educativos étnicos como uma importante singularidade no contexto brasileiro” (RECH; LUCHESE, 2018, p. 12).

No primeiro capítulo intitulado O processo escolar entre imigrantes italianos e descendentes no Rio Grande do Sul (1875-1938), os pesquisadores apresentam os resultados das investigações realizadas nos últimos anos acerca do processo escolar entre imigrantes e descendentes de italianos no estado, nos anos finais do século XIX, mais especificamente nas colônias da Serra gaúcha e na capital Porto Alegre.

O texto inicia com um panorama histórico acerca do processo imigratório italiano no estado, apontando brevemente as causas da imigração, o interesse do governo brasileiro no fenômeno migratório, assim como a formação das diversas colônias estabelecidas a partir de 1870. Em seguida, apresenta o contexto educacional do Rio Grande do Sul entre o século XIX e o XX. Depois, direciona o olhar para o processo escolar entre imigrantes italianos e os seus descendentes, apontando que “diversas foram as iniciativas dos imigrantes na organização de escolas” (RECH; LUCHESE, 2018, p. 25). Entre estas iniciativas, os pesquisadores destacam as escolas étnico-comunitárias rurais, as escolas étnico-comunitárias mantidas por Associações de Mútuo Socorro e as escolas ligadas a congregações religiosas. Ainda, ressaltam que às escolas públicas – isoladas, grupos escolares e colégios elementares, foram também requisitadas pelos imigrantes. No entanto, ressaltam que:

Essa escola frequentada pelos imigrantes, seus filhos e netos, mesmo sendo pública, era marcada por elementos étnicos. O próprio prédio escolar e a terra onde estava localizada, muitas vezes, foram doados pela comunidade, assim como os móveis. As comunidades frequentemente interferiam na nomeação e/ou indicação do professor, como averiguou Luchese (2007). As práticas pedagógicas e o sotaque dialetal, bem como outros elementos culturais étnicos, marcavam presença nas salas de aula. (RECH; LUCHESE, 2018, p. 37).

Após, os autores apresentam algumas iniciativas de escolarização tendo como pano de fundo à capital Porto Alegre. Assim, evidenciam a organização do Instituto Médio Ítalo-Brasileiro que funcionou como um colégio-internato, entre os anos de 1917 a 1930, fundado pelo Professor Augusto Menegatti e sua esposa Linda Menegatti, como também a reorganização das escolas étnicas na capital.

Concluem este primeiro capítulo elencando algumas dificuldades encontradas para se manter as iniciativas das escolas étnico-comunitárias, bem como as influências do governo fascista de Mussolini a partir de 1922, sobre as escolas étnicas italianas e a preferência dos imigrantes e descendentes pela escola pública.

Análise documental histórica: considerações metodológicas sobre a história da escola entre imigrantes italianos e seus descendentes é o título do segundo capítulo organizado pelos autores, tendo como objetivo compartilhar considerações sobre os caminhos teóricos e metodológicos de suas investigações (RECH; LUCHESE, 2018). Sendo assim, destacam a utilização do aporte teórico-metodológico da História Cultural, a importância de tomar os documentos como monumentos nas pesquisas e o trabalho com a análise documental – organização e interpretação dos dados.

Nesta segunda parte do livro, os autores partilham com os demais pesquisadores da área, seis preocupações necessárias trabalho com a análise de documentos textuais, a saber: 1) as condições de produção do documento; 2) os procedimentos internos; 3) as condições de circulação do documento; 4) a materialidade do documento; 5) a apropriação; 6) a preservação. Da mesma forma, demarcam a importância do cruzamento das fontes selecionadas nas pesquisas, a diversificação das mesmas – textuais, orais e iconográficas, o diálogo com a teoria e o cuidado com as referências de localização dos vestígios com compõe o corpus documental da investigação. Desse processo, emerge “a tessitura da escrita”, nas palavras de Rech e Luchese (2018, p. 74). Para ambos:

Nesse jogo de vida e morte, de passado e presente, de documentos e monumentos, não podemos esquecer que as narrativas históricas da educação, derivadas das pesquisas que produzimos, são resultados de trabalho com questões de pesquisa possíveis no tempo em que vivemos e que, para respondê-las, construímos um corpus empírico. Destarte, indícios, rastros, sinais que são ordenados, montados, questionados na análise, na inter-relação e contextualização que procedemos para escrever história, escrever um possível sobre o passado educacional, reconhecendo a precariedade e a necessidade de revisitar documentos, munidos por novos questionamentos. É o movimento constante da pesquisa. (RECH; LUCHESE, 2018, p. 77).

No terceiro e último capítulo denominado Repertórios documentais, Gelson e Terciane, de forma generosa, compartilham quatro documentos que auxiliam na compreensão da história da escola entre imigrantes italianos e descendentes no estado do Rio Grande do Sul.

O primeiro documento apresentado pelos autores é um relatório elaborado pelo italiano Ranieri Venerosi Pesciolini, que em visita aos estados do Rio Grande do Sul, do Paraná e de Santa Catarina, escreve no ano de 1912, sobre a vida nas colônias italianas, incluindo um tópico sobre a as escolas e a instrução. A segunda fonte também é um relatório e foi produzida em 1923, pelo professor italiano Vittore Alemanni que escreve sobre as escolas italianas no Brasil. O terceiro do-cumento é um recorte do texto apresentado no livro Cinquantenario della colonizzazione italiana nel Rio Grande del Sud (1875-1925) por Benvenuto Crocetta em 1925, onde o mesmo compõe um pequeno escrito sobre as escolas. O último vestígio é uma carta de Celeste Gobbato, intendente de Caxias do Sul, endereçada a Benito Mussolini, no ano de 1927, “pedindo a intervenção do Duce para que os padres salesianos implantassem um ginásio em Caxias do Sul” (RECH; LU-CHESE, 2018, p. 150). Os documentos disponibilizados são apresentados na sua versão original em língua italiana e acompanham as res-pectivas traduções realizadas pelos autores do livro.

A obra escrita por Rech e Luchese (2018) é uma importante contribuição para os estudos historiográficos em torno dos processos educativos nas colônias de imigrantes e descendentes de italianos. A partir das investigações dos autores é possível perceber que a escola foi alvo de desejo e de interesse por parte das famílias italianas desde os anos iniciais de formação dos núcleos coloniais.

Sendo assim, além de compartilhar os conhecimentos construídos sobre a temática do livro, os autores dividem com os jovens pesquisadores da área da História da Educação os seus modos de trabalhar com a análise documental e narrar uma história. Refletem acerca do problema de pesquisa e do uso de documentos, apontam autores dentro do referencial teórico-metodológico da História Cultural e sugerem caminhos para a metodologia da análise documental. Ao final, ainda nos brindam com a reprodução de quatro documentos que tratam sobre a escolarização. Escolas italianas no Rio Grande do Sul: pesquisas e documentos é uma publicação inspiradora e que merece nossa atenção.

Cassiane Curtarelli Fernandes – Doutoranda em Educação pela Universidade de Caxias do Sul, UCS (Brasil). Contato: [email protected].

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Memórias e combates: uma história oral do anticomunismo católico no Rio Grande do Sul – RODEGHERO (HO)

RODEGHERO, Carla Simone. Memórias e combates: uma história oral do anticomunismo católico no Rio Grande do Sul. São Paulo: Letra e Voz, 2017. 264 p. Resenha de: MONTYSUMA, Marcos Fábio Freire. Uma história do medo: o anticomunismo católico no Rio Grande do Sul. História Oral, v. 21, n. 2, p. 177-180, jul./dez. 2018.

Antes de me dedicar ao conteúdo principal da obra Memórias e combates: uma história oral do anticomunismo católico no Rio Grande do Sul, chamo a atenção para a peculiaridade de sua capa. Criada e diagramada pelo Estúdio Xlack, apresenta uma foto (de 1941) que retrata o dormitório do Seminário de Gravataí, com aproximadamente treze jovens em posição de sentido entre as camas. A capa é composta em preto e branco, sob película plástica transparente, vazada pelo símbolo do comunismo – foice e martelo cruzados. Os jovens que essa imagem dá a ver estão entre aqueles que seriam preparados para retransmitir a mensagem de combate ao comunismo.

Carla Rodeghero inicialmente apresenta as circunstâncias sob as quais a obra foi concebida e executada, e expõe o conteúdo que ocupa lugar central na sua investigação: o anticomunismo praticado pela igreja católica. Ele consiste em “uma postura católica que teve abrangência espaço-temporal bem mais ampla do que tal decorre – se manifesta em situações concretas e em temas relacionados ao período em questão” (p. 21). A seguir, demonstra como se processou a “construção de um imaginário [que] […] demarcava o campo dos ‘inimigos’ do catolicismo e da civilização ocidental, inimigos representados por […] comunistas ou [o que era] encarado como comunismo” (p. 21).

A obra abrange o período que se estende de 1945 a 1964, e está dividida em cinco capítulos. O primeiro trata das fontes orais – as perspectivas teóri­cas e metodológicas em que se apoia a construção de fontes –, e discute como ocorre a recepção e reprodução dos discursos anticomunistas, percorrendo a literatura relativa ao tema. O segundo capítulo discute aspectos relacionados à Espanha e México, em cujos territórios ocorreram embates envolvendo a igreja e suas posturas concernentes ao comunismo – as lembranças externam conteúdos relacionados às recepções da campanha anticomunista. O ter­ceiro capítulo, Esse tal comunismo, aborda como a mensagem sobre “comu­nismo” ou “anticomunismo” é discutida num grupo de leigos católicos no Rio Grande do Sul – suas lembranças e seus interlocutores. O quarto capí­tulo aponta os conteúdos interpretados pelos líderes católicos como ameaças comunistas e a sua transmissão aos fiéis e aos católicos em formação clerical. O quinto capítulo deslinda os combates entre católicos e comunistas, mais precisamente entre a Liga Eleitoral Católica (LEC) e o Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Carla Rodeghero se preocupa em historicizar brevemente os partidos comunistas PCB e PCdoB, atuantes no Brasil, para que seus leitores possam compreender a temática do comunismo naquele contexto.

A historiadora inicia a revisão literária com Rodrigo Patto de Sá Motta, que pesquisa o anticomunismo na história brasileira. Motta indica que ocor­reram ondas anticomunistas no Brasil, e registra dois momentos de abran­gência, de 1935 a 1937 e de 1961 a 1964. O anticomunismo esteve presente de modo mais contundente nos meios empresariais, católicos e militares, e também vicejou na grande imprensa.

Rodeghero também recorre ao estudo de Dulce Pandolfi, para quem o PCB, no governo Goulart, desempenhava destacado papel político. A res­peito das preocupações do empresariado em combater o comunismo, dialoga com a brasilianista Bárbara Weinstein. Essa pesquisadora pontua a criação do chamado Sistema S, Serviço Social da Indústria (Sesi) e Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), na qual é possível distinguir preocupações que podem ser entendidas como de prevenção ao comunismo. Dos trabalhos de René Dreifuss, a autora destaca certo modus operandi de organismos como o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), que promoviam campanhas de desestabilização do governo Goulart, com o fim de criar caos econômico e político. Aponta que Carlos Fico encontrou vasto material produzido pelos órgãos de segu­rança do regime civil-militar de 1964 a 1985, escritos que expressavam pre­conceito ao se reportarem aos autores de teatro, jornalistas, cinema, TV, clas­sificando o ambiente cultural e de notícias como dominados por comunistas. Rodeghero salienta ainda o trabalho de Carla Luciana Silva, que examina políticas anticomunistas em outros períodos.

Carla Rodeghero sinaliza que as ondas de combate ao comunismo são muito mais dinâmicas e extensas que o apontado inicialmente, donde se pode interpretar que o chamado anticomunismo seria uma condição permanente na vida política brasileira. O estudo é muito bem-fundamentado teórica e metodologicamente. Através da história cultural, deslinda o modo como seus entrevistados agiam, movimentando-se “entre as maneiras de representar o que é comunismo e formas de combatê-lo” (p. 35). Rodeghero ancora-se em Roger Chartier para discutir o conceito de representação, um marco que dá sentido à análise das narrativas dos sujeitos que entrevistou, e alinhava, assim, um diálogo que facilita ao leitor compreender as diversas perspectivas conti­das nos discursos e práticas sociais.

O conceito de imaginário social, de Cornelius Castoriadis, é também útil para interpretar o discurso anticomunista. Essa prática discursiva con­siste em evocar imagens que, expressas pelos mecanismos de linguagem, constroem sentido para um certo objeto. O discurso anticomunista obser­vado pelo prisma do imaginário social toma forma concreta no quotidiano da sociedade interiorana sob análise, conforme se demonstra claramente através dos relatos apresentados.

Bronislaw Braczo é acionado para proporcionar a compreensão da ocor­rência dessa imaginação que enuncia e significa o discurso anticomunista, que aponta como determinados conteúdos são associados ao comunismo. O fenômeno social (combate ao comunismo) ocorre no tempo presente, mas se relaciona ao mesmo tempo a uma projeção do “[…] futuro e à construção/ reconstrução do passado” (p. 37). A pessoa que enuncia combina aspectos e acontecimentos que não necessariamente tinham aquele sentido histórico, mas com aquele sentido são trazidos para o presente e assinalados como peri­gosos para o futuro – como se aquele sentido tivessem, porque nas imagens descritas no discurso anticomunista passam a ter aquela explicação.

O texto de Carla Rodeghero é claro quanto ao perfil constitutivo do dis­curso anticomunista, que ocorre carregado de sentidos, emoldurando grupos, sujeitos e situações como comunistas. Esses aspectos são facilmente demons­trados em fontes variadas, mas aparecem sobremaneira nos relatos orais. A autora estuda o fenômeno da recepção dos discursos anticomunistas ampa­rada em Michel de Certeau: “[…] o ensaio de Certeau sobre leitura permite questionar o papel da escrita e da leitura no âmbito da Igreja […]” (p. 39). Recorre consistentemente à história oral também para explorar esse aspecto, e aproveita o ensejo para fundamentar esmeradamente o uso da metodolo­gia. O texto indica compreensiva bibliografia de referência, com autores de renome nacional e internacional que, ao descrever suas efetivas práticas de pesquisa, aportam ao campo relevantes contribuições.

Estamos diante de um rico e bem-acabado trabalho de história oral. Ainda que o estudo seja de um aparente caráter local (concentrado no Rio Grande do Sul), ele se projeta nacional e internacionalmente. O comunismo e o anticomunismo construídos através dos discursos do medo carregam um apelo que transpõe fronteiras. Posto que esses discursos e a consequente pre­gação de ódio se mostram bem vivos na onda conservadora que assola o Brasil (e o planeta), arrisco dizer que a autora tem tema permanente para a conti­nuidade de suas pesquisas.

Marcos Fábio Freire Montysuma – Professor das disciplinas de História Oral e História do Brasil Contemporâneo no Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: [email protected].

 

Um reino e suas repúblicas no Atlântico: comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII – FRAGOSO; MONTEIRO (RG)

FRAGOSO, João Fragoso; MONTEIRO, Nuno Gonçalo Monteiro (Eds.). Um reino e suas repúblicas no Atlântico: comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira 2017, 475 p. Resenha de: CABRAL, Machado; CÉSAR, Gustavo. Forging an Empire in Writing. Rechtsgeschichte – Legal History, v. 26 p.434-436, 2018.

The Portuguese crown held considerable territory in the early modern period and sought measures to preserve its political power, as in any other extended empire. A strategy based on official communications, particularly letters, was a very important instrument to govern not only the overseas territories, but also those in Europe located far from Lisbon. Understanding the role of these communications, as well as their practical application, is the focus of Um reino e suas repúblicas do Atlântico: comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII (»A kingdom and its republics in the Atlantic: Political Communication between Portugal, Brazil and Angola during the 17th and 18th Centuries«). Applying a transatlantic perspective, João Fragoso and Nuno Gonçalo Monteiro, the editors, generally study the political institutions of the Portuguese Empire, which were founded on a common architecture that included every single village in all territories of the kingdom as well as in America, Africa, and Asia. This particular analysis, however, is restricted to the states of Brazil and Maranhão in America and Angola on the Atlantic coast of Africa. In this context, the official communications played an important role in connecting the central authority to local powers, both by hearing and by commanding when necessary. This is exactly what the book intends to demonstrate.

We can clearly notice a common background, which the sources confirm throughout the book, in all the published texts. First, all of them refer to the cities and villages in the Portuguese Empire as communities with a considerable level of autonomy from the crown, constituting the »republics« mentioned in the title, in an unequivocal reference to the political thought of Aquinas and the scholastics, especially authors like Francisco Suárez. Local communities shaped social life most of the time, but this did not mean that the crown was powerless or irrelevant. As the editors write explicitly, the municipal councils were the heads of political communities endowed with jurisdiction.

On the other hand, all articles prove that intense contact between Lisbon and the »republics« of the kingdom was the key to this model’s success. With its foundation after the Portuguese Restoration in 1640 and at least until the ascension of King Joseph I and the Marquis of Pombal in 1750, the Conselho Ultramarino became the center of political communication with the overseas possessions. Within the relevant Projeto Resgate Barão do Rio Branco, hundreds of thousands of documents of the Arquivo Histórico Ultramarino (where these docu | ments were archived in Portugal) are now available electronically. Many monographs about the colonial institutions, particularly theses and dissertations, published in the last two decades have been based on these documents. Despite the use of the same database, this volume has a different aim, which is not only to understand the nature and features of the documents written in America or Angola and sent to the kingdom, but also to see them as part of imperial governance, which depended on formal instruments, such as consultations answered by the council.

The book is divided into three parts, and the first one, Arquitetura da Monarquia e circulação da comunicação, is divided into three chapters, opening with a study by João Fragoso about »mercies« (i.e. grants of offices and gifts by the crown to vassals and their families) and their relevance for the relations between the center and the periphery in Portugal. According to the author, successful petitions for an office as compensation for vassal services to the commonwealth were clear manifestations of a »sentiment of belonging« to the Portuguese monarchy. People felt they were part of the empire, which is why Fragoso believes that the mercês were a crucial element in maintaining a »pluricontinental« and corporatist monarchy based on a negotiated coexistence of powers. The predominance of the mercês as a subject of correspondence corroborates this view in most of the captaincies analyzed. The two following chapters deal with the institutions involved in communication. Maria Fernanda Bicalho, José Damião Rodrigues, and Pedro Cardim look into the role of cortes (assemblies of states), juntas (boards of municipal councils and the governor of a captaincy) and of the procurators in political communication, noting their objective to pay attention to the local powers. The presence of representatives (procurators) of some overseas municipal councils in the Portuguese cortes after the Restoration and the organization of juntas as local assemblies in America can be seen as a means of managing the interests of cities and villages that reinforced the position of local institutions in guaranteeing royal authority. After that, Maria Fernanda Bicalho and André Costa discuss the Conselho Ultramarino as the institution responsible for overseas affairs, tracking the number of consultations documented in the database over time. This diachronic survey reveals the decrease in importance this Council suffered when the Secretariat of State was created, which centralized most decisions about public affairs in the kingdom in the mid-18th century.

Part two, Temas da comunicação, starts with an impressive article by Pedro Cardim and Miguel Baltazar on the diffusion of Portuguese royal legislation. The authors discuss the complex typology of royal norms and use the database Ius Lusitaniae, which holds 6 574 laws enacted by the Portuguese kings between 1621 and 1808, to analyze the most repetitive themes, the process of publication, and how these norms circulated, were compiled and became mandatory in local juridical spaces, especially in the overseas territories. Carla Almeida, Antonio Carlo Jucá de Sampaio, and André Costa have prepared a chapter about the fiscal issues and how they can be understood from the perspective of political communication. Bearing in mind that the municipal councils also had the power to institute taxes, the authors realized, using the database, that some aspects of fiscal practice, such as the public sale of the right to levy and collect taxes, were usually based on urgent necessities and in agreement with local powers. War and military affairs are discussed by Roberto Guedes Ferreira and Mafalda Soares da Cunha in a chapter that highlights their relevance even during peacetime, when providing military offices according to local requirements was a common theme. Here we can also observe the logic of the mercês. Ending this part, Antonio Carlos Jucá de Sampaio debates issues of economic history, namely currency and commerce, in order to understand the practices of social life in an economy with scarce currency and dependence on exchanges. Such dependence explains why sugar became an important element of credit and sometimes an unofficial (though recognized by the crown) medium of exchange in many areas of Brazil until the development of mining during the 18th century.

Focusing on agents and institutional spaces of communication, part three begins with a chapter by Francisco Cosentino, Mafalda Soares da Cunha, Antônio Castro Nunes, and Ronald Raminelli about the governors and their duty of communicating with the crown. Almost one-fifth of the documents in the database were issued by governors, a general category that included viceroys, governors-general, governors of captaincies and capitães-mores. Therefore, most of them deal with questions of government. Mafalda Soares da Cunha, Maria Fernanda Bicalho, Antônio Castro Nunes, and Isabele Mello look into the administration | of justice in their chapter about the corregedores and ouvidores as agents in political communication. Their description leaves no doubt about how these documents were used juridically: they were not sources to reconstruct the content of lawsuits or procedural details (e.g. producing evidence and decision-making), but a consistent means to grasp some practical questions and the relations between the crown-appointed judge (ouvidores) and the central power. The chapter by Ronald Raminelli concerns the political power of the municipal councils, which their correspondence with Lisbon reveals. The growing amount of documents sent by the cities, according Raminelli, corresponds to their ability to negotiate with the crown, although this changed from 1750 on, when the Secretariat of State started dealing directly and more frequently with the governors. A specific analysis of the Angolan experience, mixing the databases of the Arquivo Histórico Ultramarino and the Biblioteca Municipal de Luanda, appears in the chapter by Roberto Guedes Ferreira about political communication in the municipal councils of Luanda and Benguela and the Governor of Angola, predominantly in the second half of the 18th century. Finally, the chapter by Nuno Gonçalo Monteiro and Francisco Cosentino tackles the petitions from corporative groups in some cities of the kingdom (Évora, Faro, Viana, and Vila Viçosa) and in the most important captaincies of America. These petitions, which were collective requirements from groups of interest (many of them popular economic activities such as tailors, carpenters, and blacksmiths), indicate intense correspondence with the center independent of individual requirements.

All contributions to this volume pay special attention to an important question that has recently been discussed in legal theory1 and in a few works by António Manuel Hespanha.2 This book brings legal history into the very fruitful debate on the role of political communication, particularly the dynamics of power in the relations between the center and the peripheries of the empire, since localities asked for solutions and seemed to behave according to the answers they received. Furthermore, these studies enable a detailed look at the social (and juridical) life in many areas of the empire, even the farthest, and they are all integrated into a logic of belonging to the same political institutions. The crown and its possessions established much more complex relations than the simple reductions traditional historiography describe.

Even without stating it expressly, law is a central concern of this book, and this is why it is extremely relevant for legal historians studying the early modern period. There are some aspects, however, in which the legal-historical approach could go further, such as in conceptualizing law or describing what can be understood as contemporary law and sources of law, which is one of the central, but commonly neglected, issues in analyzing law in Portuguese America.3 Legal historiography mostly identifies law and legal norms with those enacted by the king – a very restrictive concept that is not sufficient to describe other normativities that coexisted in the same juridical space4 and cannot explain coherently, for example, the nature of the answers to consultations of the Conselho Ultramarino. A few problems of legal theory must be solved in order to understand the nature of these sources, but works like this book are a helpful starting point for this research agenda.

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Cavando direitos: as leis trabalhistas e os conflitos entre os mineiros de carvão e seus patrões no Rio Grande do Sul (1940-1954) – SPERANZA (RBH)

SPERANZA, Clarice Gontarski. Cavando direitos: as leis trabalhistas e os conflitos entre os mineiros de carvão e seus patrões no Rio Grande do Sul (1940-1954). Porto Alegre: Anpuh, Oikos, 2014. 295p. Resenha de: LONER, Beatriz Ana. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.35, n.70, jul./dez. 2015.

Recentemente veio a público, como obra da Coleção Anpuh-RS, o livro de Clarice Gontarski Speranza sobre as lutas dos mineiros de carvão de Arroio dos Ratos e Butiá, no Rio Grande do Sul, em meados do século XX. O significativo, nesse livro, é que faz uma bem-sucedida aproximação entre o movimento operário dos trabalhadores do carvão e as demandas desses mesmos trabalhadores à Justiça do Trabalho, permitindo, nesse intercâmbio entre as duas dimensões, visualizar a forma como as leis trabalhistas eram percebidas e qual seu papel na luta coletiva e individual da categoria.

O livro é representativo de uma nova série de pesquisas acadêmicas, que, inspiradas no historiador inglês E. P. Thompson, procuram estudar as relações dos trabalhadores com as leis do trabalho promulgadas no período varguista e as formas como esses sujeitos tentaram se utilizar dos instrumentos legais em suas reivindicações.

Trata-se de um tema inovador, em termos do conhecimento histórico, inicialmente pelo tipo de trabalhador, pois o estudo dos mineiros no Rio Grande do Sul tem comparecido mais em pesquisas de cunho antropológico. Acrescenta-se que a união da análise do movimento reivindicatório tradicional de uma categoria, incluindo suas campanhas salariais, greves e mobilizações, com suas demandas frente à Justiça do Trabalho é tema ainda mais incomum, não só pela relativa novidade do uso desta última fonte, mas também porque os pesquisadores costumam estudar apenas um nível dessas reivindicações, ou as demandas trabalhistas ou aquelas baseadas na força autônoma dos trabalhadores.

Ao proceder diferentemente, Clarice descortina um amplo conjunto de relações entre os dois lados da luta dos mineiros, como o fato de que muitos acontecimentos e incidentes ocorridos durante as mobilizações eram, posteriormente, alvos de demandas à justiça pelos trabalhadores, os quais vinham buscar o que julgavam seus direitos não respeitados pelas empresas. Ou seja, ganhando ou perdendo no confronto, o próprio embate poderia gerar situações que implicavam descumprimento de outros direitos estabelecidos.

A autora faz o levantamento completo dos processos trabalhistas e das demandas na Justiça do Trabalho dessa categoria durante períodos extremamente importantes, como o Estado Novo e os anos de 1945 a 1964. Além de um levantamento quantitativo, há também o uso qualitativo de alguns processos, num demonstrativo abrangente das formas de utilização dessas fontes no trabalho de pesquisa.

Com respeito aos processos no interior da própria justiça, a autora avalia a importância, para a vitória ou derrota da ação trabalhista, do cumprimento do ritual processual, ou seja, da necessidade de cumprir todas as etapas do processo, por parte de reclamados e reclamantes. Segundo Clarice, a própria empresa perdeu ações, em alguns momentos, porque descuidou-se do encaminhamento do processo. Isso trouxe um aprendizado mútuo dos querelantes, com respeito a como apresentar as ações e como utilizar a Justiça do Trabalho, com ganhos de causa significativos em alguns momentos (para ambos os lados), graças ao manejo adequado das reivindicações e exposições dos motivos das queixas, justificativas ou recursos.

Ainda com respeito às relações entre uma forma e outra de luta, a autora se interroga sobre a diferenciação de sentenças de acordo com as peculiaridades de cada juiz, vislumbrando a existência de certo ethos comportamental, ou melhor, de um comportamento desejado, por parte de alguns juízes, em relação às greves e outras manifestações operárias.

Bem escrito e com estilo, o livro se constitui numa leitura agradável e um bom exemplo de uma nova safra de pesquisadores que tentam, a partir da visão sobre a relação entre justiça e trabalhadores apresentada por Thompson, estudar as relações desse setor do aparato legal do Estado com os atores sociais envolvidos, especialmente nos inícios da instituição da justiça trabalhista, ou seja, quando o próprio papel da justiça e seu impacto sobre os conflitos empregado-patrão ainda estavam sendo estabelecidos.

Clarice destaca que o Direito, para Thompson, seria “uma arena, onde se digladiam, permanentemente forças contraditórias; a possibilidade de vitória pontual das classes dominadas, a legitimação e o fortalecimento da dominação pela lei e a limitação do arbítrio dos dominantes” (p.38). Para a autora, “o direito evidencia-se assim, como um campo complexo onde se travam batalhas com repercussões importantíssimas em outros âmbitos sociais e não deve ser entendido numa perspectiva reducionista, que não ilumine as diversas possibilidades dadas pelas variadas esferas da lei, em especial sua constituição formal e sua aplicação prática” (p.38).

Justamente esse aspecto ambíguo de sua regulação e domínio pelo Estado, com influência do empresariado, embora seja também instrumento passível de utilização pelos trabalhadores na sua busca por direitos, é um dos aspectos mais fascinantes do uso desses acervos trabalhistas. Vencendo a complexa e aborrecida forma ritual desses instrumentos legais e adicionando a eles boa dose de conhecimento extraprocessual do contexto, Clarice consegue ler nas entrelinhas e captar dados que servem também para buscar indícios da solidariedade (ou não) entre os operários, de suas relações com os patrões e, principalmente, capatazes, e do que esperavam da justiça. Elucida, também, as estratégias e táticas utilizadas pelos patrões, as quais, frequentemente, lhes permitiam vantagens, mesmo nas reivindicações em que o direito do empregado era certo, como a prática de fazer acordos informais. Com a desistência do processo, o empregado recebia rapidamente, mas valor monetário menor do que lhe caberia por direito.

A pesquisa de Clarice Speranza consegue também visualizar outros temas, como a importância das mulheres dos mineiros no contexto das lutas dessa categoria, ao descrever sua participação nas iniciativas dos maridos ou companheiros. Afinal, seu emprego era a garantia de sustentação do próprio projeto de família operária e de sua permanência na cidade, a qual poucas oportunidades oferecia fora da empresa. A garantia do emprego e o nível de remuneração salarial eram, aí, um problema mais familiar e comunitário do que em outras regiões.

Não deixa a autora de assinalar o poder de pressão da empresa sobre seus trabalhadores e a própria justiça, especialmente durante o período de maior controle representado pela entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, sob a ideia de que o trabalhador mineiro não podia faltar ao serviço, pois era considerado como um “soldado” na “batalha da produção”.

Com respeito à autonomia e ao significado da justiça e das sentenças, pode-se entrever que, se houve juízes que conseguiram manter certa coerência em seus julgamentos e sentenças, por outro lado houve aqueles que buscaram intervir no ambiente de trabalho e condicionar os trabalhadores ao uso de formas apenas moderadas de reivindicações, especialmente durante a análise dos processos que foram impetrados para julgar comportamentos ocorridos durante a greve. Ou seja, havia um ethos jurídico social ao qual juízes e advogados queriam condicionar os trabalhadores. Estes, por sua vez, não queriam abrir mão de seus instrumentos tradicionais – os quais a própria autora demonstra serem mais eficazes que a justiça – em suas lutas.

Dessa forma, se o aprendizado é inerente ao contexto, é constante também a dialeticidade das relações entre os vários agentes que vivem do – e ao redor do – trabalho nas minas. Apesar das novas possibilidades abertas com o apelo à Justiça do Trabalho, transparece o fato de que as maiores vitórias da categoria ocorreram fora, por meio de greve e de ações ativas a favor de suas reivindicações, deixando para a justiça determinar os dados secundários dessas ações, ou seja, as sequelas que aparecem em função da realização da greve e da forma como esta mexe com os ânimos tanto de empregados, quanto de seus superiores, em termos de direitos e deveres respeitados ou não.

Se as formas de comportamento das partes envolvidas frente ao aparato legal da justiça trabalhista foram tão detalhadas nesse livro, o sentido foi o de trazer a público formas normalmente insuspeitadas, mas possíveis, de tratar com esses materiais jurídicos e que podem, portanto, servir de estímulo para futuras pesquisas. Mas o livro não se limita a esses acervos, pois também utiliza entrevistas com os trabalhadores e consultas à documentação da empresa, o que permite apresentar um panorama razoável do que seria a vida nas comunidades mineiras gaúchas e sua dependência intrínseca das empresas e do trabalho minerador.

Enfim, o livro de Clarice deve ser lido por todo pesquisador do trabalho que procure se basear nos métodos thompsonianos de análise, como prova de um trabalho cuidadoso, perspicaz e valioso, na perspectiva tanto de demonstração da utilidade da pesquisa nessas fontes, quanto da compreensão das lutas desse setor da classe operária brasileira, os mineiros de carvão.

Beatriz Ana Loner – Universidade Federal de Pelotas (UFP). Pelotas, RS, Brasil. E-mail: [email protected].

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O Ensaio de promessa de Quicumbi entre quilombolas do Rio Grande do Sul – LUCAS; LOBO (T-RAA)

LUCAS, Maria Elizabeth; LOBO, Janaina. O Ensaio de promessa de Quicumbi entre quilombolas do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Iphan/GEM-PPGMUS-UFRGS, 2013. 128 p.  Resenha de: KUSMA, Vinícius Silveira. O quilombo, os cânticos e o tambor: as multivocalidades do Ensaio de promessa de Quicumbi. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 219-225, jul./dez. 2014.

O livro intitulado “O Ensaio de promessa de Quicumbi entre quilombolas do Rio Grande do Sul”, organizado pelas pesquisadoras Maria Elizabeth Lucas e Janaina Lobo, é fruto do projeto “Saberes e práticas músico-rituais do Ensaio de Promessa de Quicumbi entre quilombolas do Rio Grande do Sul”, o qual foi financiado pelo Programa Nacional de Patrimônio Imaterial/Iphan-MinC em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O trabalho de dezoito meses proporcionou um acúmulo de muitos registros textuais, sonoros e imagéticos de um ritual singular praticado pelas comunidades quilombolas de Caporocas e Olhos D’Água, e suas respectivas Associações, Vovô Virgilino e Vó Marinha, no litoral norte do estado do Rio Grande do Sul. Neste contexto, o trabalho decorre de uma experiência coletiva acumulada, trazendo como aporte teórico e metodológico a Etnomusicologia e a Antropologia da Música. Além disso, fica evidente o teor participativo e colaborativo que a inserção em campo e a permanente interlocução com os agentes demandantes dessas ações culturais contemplam. Ao entender que o ritual “O Ensaio de promessa de Quicumbi” em louvor à Nossa Senhora do Rosário, necessitava de um registro sistemático de todo o seu conteúdo narrativo e performático, a edição do livro se consolidou como uma forma de garantir aos guardiões e guardiãs da memória ritual, a permanência e a continuidade de um legado ancestral.

O livro basicamente divide-se em duas partes “As múltiplas vozes do Ensaio de Promessae Os múltiplos registros do Ensaio de Promessa, e cada uma delas é composta por quatro seções. Além disso, o livro é acompanhado por dois CDs, que trazem, como registro sonoro, as cantigas do Ensaio de Promessa de Quicumbi.

Em “As múltiplas vozes do Ensaio de Promessa”, primeira seção da Parte I, é possível, através de mapas, saber a localização de um território em aliança com o sagrado os territórios ancestrais Capororocas e Olhos D’Água, localizados em Tavares/RS, no extremo sul brasileiro, situada na estreita faixa de terra que compreende o Parque Nacional da Lagoa do Peixe, entre o Oceano Atlântico e a Lagoa dos Patos, local também conhecido como santuário das aves migratórias. Além de indicar a localização, o texto versa sobre o surgimento das duas Associações fundadas por essas comunidades e sobre suas lutas pela regularização de seus territórios e obtenção de políticas públicas, previstas em lei. Segundo Lobo e Lucas, a criação das Associações foi uma forma de dar visibilidade para essas lutas, no desejo pelo reconhecimento e pela certificação legal dessas comunidades enquanto remanescentes de quilombos. Porém, é possível perceber, ao longo da leitura, que, mesmo com a criação de duas entidades políticas, as duas comunidades confundem-se, ou se inter-relacionam, não apenas pela proximidade dentro do mesmo contexto rural, mas por seus laços parentais e afetivos. Sendo assim, a constituição de seus territórios partilha de várias memórias, as quais, ao longo do tempo, vão compondo e recompondo as narrativas que tecem e tramam os pontos de ligação entre as vidas de cada um.

Os títulos das Associações, Vó Marinha e Vovô Virgilino, homenageiam os responsáveis pela formação e o estabelecimento das comunidades negras em Tavares, os quais, segundo Dona Idene Lopes da Silva, 81 anos, considerada pelas autoras, uma das guardiãs da memória da comunidade, foram trazidos como cativos, ainda no século XIX, para o trabalho nas antigas charqueadas, próximas às terras de Capororocas e Olhos D’Água.

Ainda nessa seção, as autoras trazem um breve panorama da situação das duas comunidades, situando-as num contexto rural, afastadas do centro da cidade, com difícil acesso à educação básica e a um transporte escolar eficiente, além da insuficiência de escolas e da ausência de ensino de nível técnico, tolhendo, assim a capacitação das crianças e dos jovens das comunidades. Um contexto que acaba colaborando com as eloquentes taxas de analfabetismo, e que nos remete a um cenário bem mais amplo que se repete em muitas outras regiões do país, as quais também sofrem com as desigualdades socioeconômicas, a falta de investimentos em saúde, educação e aplicação de políticas públicas adequadas.

Na segunda seção, Como tudo começou: fala o rei de Congo, seu Orlando Duarte da Costa, chefe da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Mostardas e Rei de Congo, falecido em 2013 aos 77 anos, narra como surgiu o Ensaio de Promessa Quicumbi, e ensina que sua prática foi um dos primeiros passos para a liberdade no interior da ordem escravocrata. Foi na percepção da eficácia de cura que o Ensaio possuía, que os Senhores o libertaram da clandestinidade. É possível perceber na fala de seu Orlando, percurso de uma resistência cultural que mantém vivo o Ensaio em um território negro, no qual ainda é latente a memória da escravidão.

Ainda na Parte I, a terceira seção – As muitas vozes do Ensaio de Promessa de Quicumbi– apresenta o contexto deste ritual, que carrega semelhanças com os rituais afro-angola. Com uma descrição etnográfica atenta aos detalhes, a narrativa das autoras nos dá a ideia da dimensão do evento e de tudo que o envolve e o compõe, como as coreografias e dramatizações, o canto antifonal, o conjunto instrumental, a fabricação do tambor pelo mestre-construtor, a hierarquia e todos os elementos que organizam e dão sentido ao ritual. Tudo isso carrega uma densa dinâmica de trocas culturais entre os participantes do Ensaio, que, por não ser estático, admite variações ao longo do tempo e das diferentes regiões em que é praticado. Além disso, o texto aponta a origem africana dos quicumbis e de sua linguagem, destacando as características particulares trazidas por esses ancestrais escravos, que legaram a especificidade do canto com suas articulações fonéticas e semânticas.

A quarta seção – A ciência do Ensaio: os saberes músico-rituais dos mestres”, fecha a Parte I do livro, com uma homenagem ao mestre centenário, Tio Silva, e mostra uma parte da sua história de 40 anos dentro da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Tavares, um caminho desde sua iniciação como dançante geral até assumir as baquetas e tornar-se o mais respeitado tamboreiro da Irmandade e da região. O texto traz trechos da fala de Tio Silva, num diálogo com Paulo Gaúcho, outro membro da irmandade, por onde é possível perceber a troca dos saberes sobre a matéria-prima adequada na confecção dos tambores e todos os pormenores para entoar as cantigas e tocar bem o instrumento durante o Ensaio. Torna-se fácil perceber o quanto o processo de construção desses tambores está envolto numa atmosfera de romance, construída de tradições e experiências pessoais.

Na segunda parte do livro – Os múltiplos registros do ensaio de promessa” – encontra-se os suportes de memória que formam o aporte documental do complexo narrativo do Ensaio: as preces cantadas, seus versos completos, suas localizações nas diferentes fases do ritual, as entoações das cantigas e suas estruturas recorrentes, transcritas em partitura, os esquemas coreográficos e cênicos executados pelos dançantes durante o evento ritual. Porém, pode-se perceber a preocupação dos pesquisadores em não reproduzir de forma literal tudo o que ocorreu durante as doze horas de acompanhamento do Ensaio de Promessa, o qual foi realizado em 2010. O trabalho mostra uma sistematização colaborativa, que expõe na forma escrita, os percurso, as lógicas e saberes dos mestres e participantes em diálogo com os pesquisadores.

O livro segue com um quadro de imagens, que mostra um resumo das principais etapas do ritual, com a intenção de facilitar o entendimento da distribuição das 28 cantigas. Esse quadro é composto por onze fotografias que dão um esboço da dimensão visual e temporal de cada momento específico do Ensaio, como a convocação da irmandade, o cortejo de entrada, a entoação das cantigas, assim, até a imagem que contempla o fim do ritual. Obviamente que esse quadro de imagens não concebe a totalidade da riqueza imagética do ritual, não apenas pelo número, mas também pelo tamanho dessas onze imagens dispostas na página. Porém, as autoras deixam claro que a intenção é ajudar o leitor a compreender como essas 28 cantigas distribuem-se ao longo do Ensaio.

O livro é permeado por fotografias, começando pela capa, com imagens que emolduram o seu título e dão uma riqueza visual ao seu formato quadrado, que foge do convencional. Além da característica estética, a capa já nos dá a ideia da dimensão visual que compreende o Ensaio. O livro traz em seu interior 26 fotografias. Embora essas imagens, num primeiro momento, pareçam apenas ilustrar o texto, elas tornam-se passíveis de observação e abstração, pois emprestam ao livro uma dimensão poética, que não é apenas ilustrativa, mas é carregada de uma subjetividade visual e sonora. São fotografias sem legendas, imagens que não necessariamente, muitas vezes, dialogam com o texto diretamente, mas trazem as cantigas para além do aparente silêncio das páginas. É possível imaginar-se no colorido ambiente do Ensaio, ao olharmos, por exemplo, para a fotografia que mostra o cortejo e o tambor, o principal instrumento do Ensaio, ou ouvir o som do pandeiro na imagem dos músicos na fase noturna do ritual, uma imagem com um tom avermelhado, acentuado pelo fogo da vela que brinda o canto esquerdo da imagem, dando um ar de devoção. A mesma imagem mostra as mãos desfocadas de quem toca o pandeiro, sugerindo seu movimento, e trazendo para a imaginação do leitor, o som que permeia a ambiência retratada.

Além das fotografias, o livro conta com mapas que dão a localização do município e suas comunidades, um croqui que esquematiza seis evoluções coreográficas do ritual e um esboço da distribuição espacial dos microfones utilizados para a captação do áudio do Ensaio.

Em A força poética das cantigas”, temos os comentários e as transcrições dos versos das 28 cantigas, entoadas na sequência ritual original, cujas gravações encontram-se nos dois CDs que acompanham o encarte. Todo o trabalho de transcrição e fixação dos versos contou com a ajuda e os esclarecimentos do mestre cerimonial, em interação com os colaboradores rituais. Ao ouvir as cantigas, é possível imaginar a dimensão do Ensaio, sua força espiritual, poética e, por vezes, dramática; as vozes e os timbres instrumentais, que buscam atingir a comunicação com Nossa Senhora do Rosário.

Nos Ensaios de tradução gráfica das cantigas”, são abordados os critérios das transcrições dos fragmentos selecionados, que identificam as estruturas rítmico-melódicas recorrentes no conjunto poético entoado. Também é explicitada a lógica de intercalação dos dois gêneros musicais que, em concordância com as diversas etapas a serem superadas pelo grupo performático, inspiram a narrativa ritual. As autoras atentam para a extensão temporal e a complexidade do Ensaio de Promessa de Quicumbi e, com isso, para a necessidade de cuidados e ponderações nos diversos sentidos de critérios seletivos. Fica clara a preocupação, sob o olhar da etnomusicologia, de que a utilização de um sistema de notação musical deve sempre considerar as particularidades das marcas estéticas e as formas expressivas dos saberes nativos. Aqui, a intenção é promover a interconexão entre Guias (solo) e Dançantes (coro), acompanhados do tambor, pandeiro e caninhas, instrumentos de percussão que não apenas sustentam a base melódica e rítmica, mas também se fundem com as vocalidades das rezas, os timbres, as gingas dos corpos e todo o universo performático que move e comove a cena ritual.

É possível perceber a dimensão do Ensaio de Promessa de Quicumbi ao chegar-se ao final do livro, através da interação entre textos, imagens visuais e sonoras, que vibram, despertando a imaginação do leitor, privado da experiência de ter estado lá. Em meio a danças, gingas e performances, em consonância com cânticos, vozes e sonoridades, delineia-se uma organização cênica que dura doze horas, guiada pelos guardiões e guardiãs dos saberes rituais do Ensaio de Promessa de Quicumbi. Considero importante salientar o entrelaçamento de saberes acadêmicos e comunitários que o trabalho de pesquisa evidencia aqui, ao propor uma multivocalidade de ações e afetos mobilizados em cada ação do Ensaio. Creio que, ao fornecer esse suporte de memória, história, territorialidade, é possível contribuir para a instrumentalização dessas comunidades quilombolas na luta política para continuarem a existir, pois a reinvenção de sua identidade política portadora de direitos é informada, justamente, por essa memória ancestral a qual tentam manter viva.

Referência

LUCAS, Maria Elizabeth; LOBO, Janaina. O Ensaio de promessa de Quicumbi entre quilombolas do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Iphan/GEM-PPGMUS-UFRGS, 2013. 128 p.

Vinícius Silveira Kusma – Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social e Cultural da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Bacharel em História pela UFPel. Membro colaborador do GT História, Imagem e Cultura Visual ANPUH-RS. E-mail: [email protected].

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Sítios de pesca Lacustre em Rio Grande, RS – SCHMITZ (CL)

SCHMITZ, Pedro Ignácio. Sítios de pesca Lacustre em Rio Grande, RS. [Porto Alegre:] 2011. Resenha de: RIBEIRO, Bruno Leonardo Ricardo. Cadernos do LEPAARQ – Textos de Antropologia, Arqueologia e Patrimônio, Campinas, v.11, n.22, 2014.

A obra em análise é, ainda hoje, referência primordial no que tange o estudo de grupos caçadores– coletores–pescadores cerriteiros na costa do Rio Grande do Sul e regiões adjacentes, e sua reedição é parte integrante do segundo volume da série “Clássicos da Arqueologia”, promovida pela Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB) e lançado durante a realização do XVI congresso da SAB em conjunto com o XVI congresso Mundial da UISPP, em Florianópolis/SC. Cabe também salientar que esta obra se trata de uma versão condensada da tese apresentada pelo autor em 1976 para obtenção do título de Livre-docente na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS.

Além de contar com apresentação de Rossano Lopes Bastos, então Secretário Geral do evento e prefácio de Jairo Henrique Rogge, onde ambos ressaltam a importância deste autor não só para a construção do pensamento Arqueológico Brasileiro, mas também seu papel fundamental no estabelecimento da disciplina no Brasil como tal, o livro é estruturado em nove capítulos que abarcam desde uma introdução ao objeto de pesquisa, a uma proposta de caracterização dos sítios escavados. Os três primeiros capítulos da obra são dedicados as descrições ambientais, histórico das pesquisas desenvolvidas na região e as culturas dentro do escopo do projeto; o quarto capítulo, à apresentação dos sítios estudados. Os capítulos cinco a oito, por sua vez, são dedicados a apresentação dos vestígios arqueológicos recuperados e toda sua variabilidade: cerâmicos, líticos, malacológicos e faunísticos, além dos restos alimentares.

Finalmente, no capítulo nove o autor apresenta uma proposta de caracterização para os sítios estudados em sua totalidade, por ele entendidos, em sua maioria, primariamente como assentamentos de pesca sazonal ocupados durante a primavera e o verão, uma vez que a grande maioria dos vestígios alimentares remete à predação de peixes dessas estações, mas sobretudo, assentamentos de múltipla função, diante do longo espaço de tempo durante os quais foram recorrentemente ocupados e pelas diferentes ocorrências de vestígios arqueológicos verificados ao longo destas ocupações.

De acordo com o autor, as datações obtidas por C14 garantem à área pesquisada uma antiguidade que remete a mais de 2.000 anos A.P, e se encerraria com a chegada do Europeu na região entre os séculos XVII e XVIII, então ocupada por grupos indígenas Guarani, Minuano e Charrua. A saber, o período mais antigo, pré-cerâmico, atestado pela presença de artefatos líticos lascados e polidos/picoteados nos extratos mais baixos, além de instrumentos elaborados sobre ossos e conchas, se iniciaria em meados do ultimo milênio antes da era cristã e se encerraria com o início desta, dando lugar então às primeiras ocupações ceramistas, que perdurariam até a conquista. Quatorze foram os sítios abarcados no projeto e nenhum deles teria se apresentado exclusivamente pré-cerâmico (lítico) nem apresentado elementos associáveis a culturas europeias.

Como dito anteriormente, o autor procura, nos capítulos iniciais de sua tese, contextualizar a pesquisa desenvolvida na região de Rio Grande/RS, e é quando são apresentadas densas descrições das características geomorfológicas e ecológicas da área pesquisada. Ênfase é dedicada às variações climáticas e ambientais verificadas durante a transição pleistoceno/holoceno e seu impacto sobre a fauna e a flora local, assim como entre os diferentes terraços relacionados a estes períodos. As rotas de migração e a presença sazonal de aves, peixes, frutos e outros vegetais na região também não escaparam ao escrutínio, objetivando identificar a já citada variabilidade de recursos alimentícios disponíveis aos grupos humanos que primeiro ocuparam a região ao longo do ano. Ainda, é neste momento que o autor apresenta toda uma revisão histórica da presença ibérica, iniciada no século XVII, e bibliográfica, não só das pesquisas já realizadas na região, mas também dos grupos indígenas que ali residiam quando da chegada dos povos europeus.

Ainda, são apresentados os aportes teórico-metodológicos utilizados pelo autor, fortemente marcados por uma perspectiva histórico-culturalista, embasada na elaboração de seriações de fundamento tecno-tipológicas dos vestígios arqueológicos identificados, visando à inserção destes sítios dentro de sequências culturais já estabelecidas, as ditas tradições e/ou fases culturais. Para tanto, os métodos de escavação se restringiram a realização de sondagens teste e/ou cortes estratigráficos escavados por níveis artificiais e coletas superficiais, sempre objetivando a obtenção da maior quantidade possível de vestígios e informações de valor amostral. A pesquisa realizada partiu de estudos iniciados durante o Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA) – cujo objetivo era a elaboração de um panorama geral e sistemático da história dos povos autóctones anteriores à conquista ibérica, partindo exatamente do levantamento de dados amostrais – portanto, foi fortemente influenciada pelo “métier” norte-americano.

Em relação à morfologia dos sítios, são em sua maioria de forma arredondada ou elíptica, de área entre 800 e 11.000m2, e altura atual variando entre 30 e 125cm. Quanto à caracterização e constituição destes montículos, o autor os define da seguinte forma: […] pequenos cômoros, acumulados pelo homem, constituídos de sedimentos arenosos, escuros, com grande quantidade de restos de alimento de origem animal, em menor quantidade de origem vegetal, localizados sobre os terraços holocênicos da margem ocidental da Lagoa dos Patos, na parte mais próxima à sua barra. Excepcionalmente se encontram os mesmos sítios sobre o barranco do Pleistoceno […]. Os sítios sobressaem do terreno circundante, razão por que são localmente conhecidos como cerritos […] (SCHMITZ, 2011, p.81).

Devo ressaltar que, com o avanço das pesquisas relacionadas a sítios arqueológicos sobre cerritos nas ultimas décadas, tem se questionado se tais montículos seriam resultado apenas do produto residual destas longas e constantes reocupações, como propõe o autor, ou construções idealizadas pelos grupos que deles faziam uso, compondo projetos monumentais relativos a espaços funerários; Se seriam uma resposta à variação do nível d’água na Laguna dos Patos, ao longo das estações do ano, ou marcadores territoriais e simbólicos, além de outros tantos questionamentos (mais detalhes em MAZZ, BRACCO, 20102). Todavia, tais discussões não cabem aqui. Fato é que sobre estes montículos a grande maioria dos vestígios culturais identificados foi cerâmica, com baixa representatividade de vestígios líticos e ósseos, os últimos de tão baixa frequência que o autor não se dispõe a ir além de uma simples descrição das peças resgatadas e apenas em alguns casos, inferir sobre prováveis usos ou funções para tais. Ossadas e indícios de sepultamentos humanos, quando identificados, não foram suficientes para incutir, no autor, ideias sobre possíveis usos simbólicos para os referidos sítios.

Para a análise dos vestígios cerâmicos a metodologia adotada por Schmitz teve por enfoque o exame de características morfológicas e tecnológicas, através da qual pretendia verificar a presença de culturas/sociedades diferentes ou mesmo a apropriação de técnicas culturais externas, através do contato entre sociedades distintas. Assim, além do estudo de bordas de potes e extrapolação de possíveis formas, traços como textura e elementos constituintes da argila; coloração do núcleo das paredes e tipo de queima aplicada; características das superfícies internas e externas dos potes, como coloração, tratamento superficial e aplicação ou não de motivos decorativos também foram levados em consideração.

Diante dos resultados obtidos através destas análises, aplicadas a todas as coleções, o autor estabeleceu dois grandes grupos de vestígios cerâmicos. O primeiro deles, verificado em níveis mais inferiores, é composto por vasilhames pequenos e pouco profundos, de contornos simples e pasta apresentando elementos antiplásticos minerais, em sua grande maioria sem indícios de maior dedicação aos acabamentos de superfície e poucos motivos decorados plásticos ou pintados, salvo algumas exceções. O segundo grupo, verificado em camadas mais superficiais das escavações e em apenas alguns sítios, apresenta vasilhames de tamanhos mais variados e formas e contornos mais complexos. Além dos antiplásticos minerais, nestas cerâmicas também é recorrente o acréscimo de cacos moídos de outros potes cerâmicos e a presença de motivos decorados nas paredes são mais frequentes, com padrões mais imbricados, alisamentos mais finos e maior recorrência de decorações pintadas e plásticas, como impressão de dedos, unhas, além de outros.

O primeiro grande grupo, de acordo com as designações estabelecidas pelo PRONAPA, se enquadra na dita Tradição Vieira, subtradição Vieira e pode ser dividida, ainda, em outras duas fases apenas por variações pontuais: Fase Torotama (mais escassa e verificada imediatamente acima, ou associada à camada pré-cerâmica) e Fase Vieira (mais frequente e presente em níveis mais superiores). O segundo grupo se enquadra na Tradição Tupiguarani, subtradição Corrugada, Fase Camaquã, com datações que remetem a chegada desta tradição cerâmica à região em algum momento próximo ao fim do primeiro milênio A.D. O autor não dedica muitas páginas de seu livro a esta nova população a adentrar o território, mas deixa claro que em sua opinião, este grupo – já dominante da horticultura e de organização social e padrões de assentamento bem diferenciados em relação aos grupos em foco – manteve contato direto e prolongado com os produtores da cerâmica da Fase Vieira, e exerceram influencia direta sobre eles.

Difusionista, Schmitz associa à chegada e ao contato com estes povos uma intensificação da horticultura na região e certo grau de “refinamento” na produção cerâmica da Fase Vieira, ressaltando que após o contato com os Tupiguarani surge um novo padrão decorativo dentre estas cerâmicas, que ele denomina negativo de cestaria. Especula também sobre certa imposição de restrições espaciais aos cerriteiros, partindo da premissa que com os Tupiguarani vieram novos saberes, mas também novos limites territoriais que restringiriam o uso do espaço e dos recursos locais pelos grupos associados à cerâmica Vieira, por ele entendidos, até então, como organizados em pequenos bandos de alta mobilidade territorial, agora forçados à intensificação de práticas horticultoras e certa reorganização social.

A cerâmica, na ótica adotada pelo autor, é entendida como o principal vestígio cultural de determinada sociedade. De caráter puramente tecnológico e indicador de estágios evolutivos da tradição Vieira, caracterizada como “sociedade marginal”. Sequer é aventada, nas profundas análises realizadas pelo autor, a relação entre possíveis funções ou representações associadas a estes potes cerâmicos. Para ele, a simplicidade verificada nas técnicas de produção e nas formas das cerâmicas da Fase Torotama, por exemplo, assim como a manutenção de certas características por longo período temporal, seriam reflexo de uma sociedade dotada de um sistema cultural simplista e estático.

Parece lhe escapar a possibilidade que, talvez, o nível de complexidade presente nos grupos produtores das cerâmicas da Tradição Vieira estivesse testemunhado em outras formas de cultura material, como nos próprios cerritos, e que neste contexto a cerâmica não desempenharia mais que papel secundário.

E há de se destacar, por fim, que a tese de Schmitz (defendida em 1976), passou a ser a principal referência teórica e o modelo interpretativo mais robusto sobre as ocupações dos grupos construtores de cerritos do pampa, tendo forte impacto sobre a arqueologia do Mercosul. Dessa forma, foi o principal alvo de críticas, sobretudo da Arqueologia uruguaia, quando essa se reoxigenou sob um viés processualista, ao longo dos anos 1990, o que demonstra a grandiosidade da obra, discutida e rediscutida nos últimos 40 anos.

Nota

2 MAZZ, J.M.L.; BRACCO, D. Minuanos. Apuntes y notas para la historia y la arqueología del territorio Guenoa-Minuan (Indígenas de Uruguay, Argentina y Brasil). Montevideo: Linardi y Risso, 2010.

Bruno Leonardo Ricardo Ribeiro – Graduando do curso de Bacharelado em Antropologia/Arqueologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Brasil. Pesquisador Associado ao Laboratório de Ensino e Pesquisa em Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal de Pelotas (LEPAARQ – UFPel), Brasil.

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[MLPDB]

 

As artes de curar: medicina, religião, magia e positivismo na República Rio-Grandense, 1889-1928 – WEBER (RBH)

WEBER, Beatriz Teixeira. As artes de curar: medicina, religião, magia e positivismo na República Rio-Grandense, 1889-1928. Santa Maria: Editora da UFMS; Bauru: EDUSC, 1999. 249p. Resenha de: SILVEIRA, Anny Jackeline Torres. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.43, 2002.

O final do século XX reservou descobertas surpreendentes no campo do conhecimento médico, tanto na área da identificação como no tratamento dos males que atingem o corpo de homens e mulheres. O anúncio do mapeamento da seqüência dos genes que compõem o DNA humano, realizado durante a última década pelos pesquisadores do consórcio público internacional Projeto Genoma Humano (PGH), tem sido tratado como a maior conquista da área médica, inaugurando mesmo uma nova era do conhecimento sobre a humanidade. Alguns afirmam que a medicina aproxima-se agora das ciências exatas, pela precisão com a qual esta descoberta poderá municiar o saber médico na identificação e solução das doenças1.

Estamos cada vez mais próximos de uma visão de doença pautada exclusivamente por uma explicação científica, em que os exames realizados por equipamentos ultra-modernos e o recurso à bioquímica responderiam a todas as necessidades e enfermidades do corpo humano? Não há como negar que tal descoberta representa uma grande vitória da medicina laboratorial, pautada no desenvolvimento da técnica e da tecnologia que envolve as descobertas do que se convencionou chamar a “era bacteriológica”. Porém, notícias como estas tendem a reforçar no imaginário social uma visão homogeneizadora e evolucionista do saber médico e de suas práticas. É sobre um mundo bastante contraposto a tal visão que nos fala o livro de Beatriz Weber, As artes de curar.

Elegendo como espaço de pesquisa a sociedade do Rio Grande do Sul na passagem do século XIX para o XX, a autora examina aspectos variados e interligados que caracterizariam a história do saber médico nesta região. Dentre eles, podemos citar as diferentes práticas de cura a que recorria sua população, a luta pela constituição de um campo profissional pelos médicos diplomados, as interferências que a ideologia positivista exerceu no reconhecimento da profissão, o papel da religião, da caridade e da magia na percepção da doença pelos leigos e sua interferência na posição que era assumida pelos médicos diante das mesmas. Sua análise aponta para uma realidade na qual práticas, saberes e crenças, diversos em seus fundamentos e procedimentos, partilhavam de forma às vezes conflituosa, às vezes em sobreposição ou harmonia, um mesmo espaço de ação.

Segundo Beatriz Weber, o poder da medicina é fruto de um processo que foi sendo construído durante todo o século XIX, e vai se consolidar no Rio Grande do Sul apenas por volta da década de quarenta. A teoria positivista e a forma como a medicina era por ela encarada tiveram papel importante neste processo. Conforme a autora, o positivismo era uma marca na formação das elites políticas do Rio Grande Sul e interferiu nas reações do poder público às tentativas de parte do corpo médico em criar restrições ao exercício de sua prática profissional, à adoção de medidas de intervenção para evitar a propagação das doenças e àquelas relativas à organização do espaço e da higiene urbana.

Bastante interessante é a descrição que a autora efetua sobre o modo como o saber médico é percebido por Comte e pelos partidários do positivismo, especialmente a idéia de que a medicina está subordinada à moral e à imagem que aproxima o médico do sacerdote: “aquele que diz o que é preciso fazer e o que se pode esperar, que traz a resignação em nome de uma ordem superior quando a ação não pode modificá-la” (p. 36). Havia, no Rio Grande do Sul, vários médicos partidários do positivismo. No entanto, nem todos partilhavam completamente das proposições dos seus teóricos a respeito do saber e da prática médica, mostrando, assim, como são variadas as possibilidades de apropriação das teorias que circulavam naquele momento, com leituras específicas dentro de contextos determinados.

Sobre este aspecto, chamam a atenção as justificativas elaboradas pelos membros do Apostolado Positivista do Brasil a respeito da defesa da liberdade no exercício da arte de curar. O profissional desta arte devia exercer uma influência espiritual sobre seus pacientes, era preciso que o médico se esforçasse para conquistar sua confiança. Era através dela, somada à sua conduta e ao seu devotamento, que o médico imporia a autoridade de sua palavra, e não por uma reserva de mercado estabelecida pela lei ou pela força. Antes de criticar os empíricos, dos quais teria nascido, a medicina (dita científica) devia apropriar-se dos seus resultados que foram confirmados pela experiência. Além disto, a confiança angariada pelos práticos e empíricos junto à população era fruto de uma identidade de crenças por eles partilhada, de concepções de mundo muito mais próximas do que, por exemplo, as que seriam professadas e propostas pelos médicos diplomados. Miguel Lemos, do Apostolado Positivista, contrapunha a figura do médico moderno aos seus “primitivos confrades, que sabem sinceramente fazer partilhar aos seus doentes a confiança que eles têm nos meios que empregam” (p.43). Este fator talvez também explicasse o sucesso de muitos “charlatães indignos”. À ciência, dizia então, era necessário penetrar no espírito da população para ser aceita.

A autora aborda também as relações entre as crenças positivistas e as questões da higiene e da intervenção pública nos espaços urbanos, e a influência que as teorias científicas sobre o contágio/transmissão (miasmas, bacteriologia) exerceram sobre a administração gaúcha, marcada pela ação de políticos positivistas. Ela frisa que, muitas vezes, concepções teóricas diferenciadas eram agregadas pelas instituições públicas, assim como pelos próprios médicos. Isto põe em cheque a perspectiva evolucionista e triunfalista do conhecimento científico, pautado por conquistas cada vez mais amplas e por uma aproximação sempre maior com a verdade. E não eram só filiações a abordagens distintas sobre a doença e a cura ¾ muitas das quais na época eram consideradas “científicas”, como o espiritismo e a homeopatia, entre outros ¾ que caracterizavam os médicos do período. Havia as crenças de caráter “subjetivo”, como a própria religião, que também marcava a prática de muitos desses profissionais.

Beatriz Weber aborda ainda o processo de constituição de “uma solidariedade corporativa e de um consenso profissional” entre os médicos diplomados. Isto se faz através de instituições como hospitais, associações ou entidades profissionais e da própria Faculdade de Medicina. Porém, como mostra a autora, este não é um processo linear ou simples, mas um caminho conflituoso marcado por desavenças políticas e filosóficas. Ao mostrar que estes médicos não eram os únicos portadores de um saber sobre as doenças e a cura; que seu conhecimento era marcado por incertezas teóricas, além das dificuldades práticas (como o instrumental precário, por exemplo); que participavam de outras crenças, como a religião, que influíam na forma como viam o processo de cura e seu próprio papel como profissionais, a autora desmistifica mais uma vez a velha imagem gloriosa e triunfante da medicina e a noção de que a constituição do poder que este saber exerce sobre a sociedade tenha sido fruto de um projeto homogêneo e sempre vitorioso.

Faz parte, ainda, da sua análise, o papel desempenhado pela Santa Casa de Misericórdia no processo de formação de um campo de saber específico, a transformação de suas funções assistênciais em terapêuticas e de produção de conhecimento, e as tensões que eram criadas pela convivência de práticas e saberes distintos. Por fim, Beatriz Weber mostra a permanência, durante todo este processo de afirmação do saber médico “científico”, das outras diversas práticas de cura às quais recorriam os diferentes grupos sociais. Nesta parte, a autora enfatiza uma perspectiva de análise que toma os grupos populares como sujeitos atuantes na organização do mundo no qual viviam, superando as interpretações que vão apresentar estes grupos como meros objetos ou pacientes de um projeto de normatização (neste caso, de “medicalização” da sociedade), ou que encaram suas ações apenas como uma reação à imposição destas normas disciplinadoras e dominadoras. Conforme afirma Beatriz Weber, estes setores sociais “interagiram socialmente com criatividade e participaram ativamente das definições do mundo em que viveram”(p.18).

Em sua conclusão, a autora nos diz que

(…) as diversas formas de organização para a cura … não se impuseram inclementes umas sobre as outras, garantindo o predomínio de uma visão. Intercambiaram-se elementos entre as concepções, compondo universos explicativos próprios, muitas vezes ambíguos e contraditórios … Muitas desenvolveram formas de atuação que as mantiveram em atividade até hoje. (p.228).

Isto nos leva a pensar sobre as afirmações emitidas pela imprensa sobre a conquista representada pela descoberta do código genético humano, apresentadas no início deste texto. Será mesmo tão absoluto o triunfo identificado nesta conquista? Como têm reagido as pessoas comuns a este avanço anunciado? O que muda na sua perspectiva sobre a doença e o processo da cura? Será que esta descoberta vai fazer esvaziar a peregrinação de pacientes que procuram o “Lar São Luiz”, o Centro do médium Chico Xavier2 e outras diversas “casas de cura”, terreiros de umbanda ou benzedeiras que se espalham através do País? Vamos deixar de lado os velhos chás para o resfriado, a enxaqueca ou outro mal-estar qualquer?

A feição que tem tomado o noticiário a respeito destas descobertas se inscreve na tradição, apontada por Maria Clementina P Cunha na apresentação da obra em exame, que

(…) atribui ao saber [especialmente ao saber dito científico], com sua intrínseca pretensão de deter a verdade, um potencial quase ilimitado de controlar e moldar a sociedade segundo seus próprios desígnios (p.15).

Se a genética promete à sociedade grandes conquistas, ela também apresenta fracassos e erros ¾ que, porém, não encontram publicidade tão marcante nos meios de comunicação. Além disto, ela propõe questões de caráter ético que afetam toda a sociedade e que, portanto, não deverão ser decididas num âmbito cultural, social e político restrito, como até então tem sido feito. É preciso, como nos mostra o livro em exame, ultrapassar a imagem asséptica da medicina [e da ciência como um todo] que lança fora toda crença, toda subjetividade, toda diversidade que fundamentou este saber e suas práticas sobre a cura. A ciência não é tão poderosa e hegemônica como muitas vezes deixa transparecer, nem homens e mulheres vivem ou elaboram o seu cotidiano a partir de uma perspectiva exclusivamente científica, de uma visão de mundo informada apenas pelos saberes que compõem esta esfera da produção cultural da sociedade. A leitura de Beatriz Weber contribui de forma significativa para ultrapassarmos essa visão linear e progressista que ainda hoje marca a imagem do conhecimento científico.

 

Notas

1 “[O] Projeto Genoma Humano, promete a era da bio-medicina de precisão”; “A transcrição … do código genético inaugura a era da medicina como ciência quase exata”. Folha de S. Paulo, “Genoma” (Caderno Especial). São Paulo, 27 de junho de 2000.

2 O “Lar São Luiz” e o centro de Chico Xavier são conhecidas “casas de cura” que realizam consultas e operações espirituais. A primeira está localizada no Rio de Janeiro, e a segunda, em Minas Gerais.

Anny Jackeline Torres Silveira – Coltec – UFMG, Doutoranda UFF.

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