Uma educação pela natureza: a vida ao ar livre, o corpo e a ordem urbana – SOARES (Topoi)

SOARES, Carmen Lúcia. Uma educação pela natureza: a vida ao ar livre, o corpo e a ordem urbana. Campinas: Autores Associados, 2016. Resenha de: PAULILO, André Luiz. A terra, o ar, o mar e a nossa educação. Topoi v.19 n.38 Rio de Janeiro May/Aug. 2018.

A terra, o ar, o mar e nós. Talvez assim fosse possível resumir, sem interferir demais nos seus sentidos, as histórias que Carmen Lúcia Soares reuniu em Uma educação pela natureza: a vida ao ar livre, o corpo e a ordem urbana (Soares, 2016). Trata-se de uma edição bem cuidada da editora Autores Associados e tecida por mais 11 estudiosos do tema da natureza. São os textos dos franceses Bernard Andrieu e Sylvain Villaret, dos argentinos Laura Marcela Méndez e Pablo Ariel Scharagrosky e dos brasileiros Alexandre Fernandez Vaz, André Dalben, Carlos Herold Junior, Denise Bernuzzi de Sant’Anna, Janes Jorge, Vinicius Demarchi Silva Terra e Joana Carolina Schossler que dão forma ao conjunto das análises das quais resultam uma mesma compreensão da natureza. Aquela que a percebe não como a-histórica ou imóvel, fixa e imutável, mas enquanto construção social, cultural e politicamente constituída. Por todo o livro, tal qual marca d’água na página, há um só tema – a vida ao ar livre e as relações do corpo com uma natureza reconfigurada pela cultura, por nossas crenças e saberes. As mesmas relações de poder e dominação que animam a sociedade e a política fomentam as representações, as sensibilidades e a compreensão que nos enlaçou ao sol e ao mar das praias, às águas e ao calor dos balneários, aos campos e parques da moda desde o último século. É das mudanças dessas representações, sensibilidades e compreensão que o conjunto reunido neste inspirado volume trata.

No capítulo inicial, Carmen Lúcia Soares explicita as questões centrais do conjunto em três notas substanciais sobre as ideias de natureza, a ordem urbana e como a escolarização reordena os hábitos de vida ao ar livre. Em seguida, Alexandre Fernandes Vaz trata do tema da natureza na obra de Walter Benjamim. Depois, Sylvain Villaret, com seu estudo da educação física, e André Dalben, escrevendo sobre parques infantis e colônias de férias, trabalham com a presença da educação na construção da natureza-jardim e do vigor do corpo. Seguem-se as reflexões de Laura Marcela Mendez com Pablo Ariel Sharagrodsky e Carlos Herold Júnior acerca do escotismo. O tema da água e das práticas sociais em torno dela foi tratado em seguida por Denise Bernuzzi de Sant’Anna em relação à distribuição, por Janes Jorge, a respeito da represa, e finalmente, por Vinicius Demarchi Silva Terra em relação à praia. O livro encerra-se com dois belos ensaios sobre o sol e suas implicações sociais. O primeiro deles, de Joana Carolina Schossler, trata da prática do veraneio no litoral gaúcho. O outro, de Bernard Andrieu, ocupou-se dos efeitos dos tratamentos que se desenvolveram com base no uso da luz natural para nossa relação com a natureza.

Ainda que composto por uma dezena de textos de autores diferentes, o argumento central do livro está justamente nesse conjunto que se formou. Por entre a ordem urbana, a crítica romântica, o naturismo, os parques-infantis e as colônias de férias, o escotismo, as águas das cidades, as praias e o seu calor tem-se contato com instituições e práticas voltadas para a vida ao ar livre. É da perspectiva aberta na historiografia francesa por Alain Corbain e Georges Vigarello para estudar as sensibilidades e as relações que os sentimentos mantêm com o corpo que as análises seguem. Entretanto, a história que se vai encontrar neste livro é a cultural e contribui para animar esse campo de pesquisa no Brasil com uma compreensão especial das interfaces existentes entre a ordem urbana, a relação humana com a natureza e a educação. Tanto do ponto de vista das instituições quanto das práticas, o esforço de cada autor reunido neste volume auxilia no entendimento de como as concepções médicas e educativas acerca da vida ao ar livre constituíram-se em um elemento da cultura contemporânea.

Assim, a cultura clubística expressiva da ordem urbana que vai se impondo a partir dos anos 1920 é estudada por meio da análise do que significaram para a cidade os clubes Germânia, de Regatas Tietê, de Regatas São Paulo, Esportivo da Penha, Atlético Indiano, o Internacional de Regatas, de Regatas Saldanha Marino e do Iate Clube Paulista. Sobretudo, em torno das águas, um conjunto de instituições de esporte ou lazer consolidou práticas associadas ao corpo e à sua saúde e sua beleza. Nesse mesmo sentido, a praia como lugar de lazer, espaço por excelência do veraneio, oferece ao corpo o contato com o mar, o banho de sol, o litoral de balneários e hotéis para o turismo de férias. À beira-mar, práticas de bronzeamento, de divertimento e mesmo de exibição estética ou atlética marcam a presença humana na paisagem por meio das distinções sociais e normas impostas pela sociedade. Os diferentes aspectos da mudança de sensibilidade em relação aos benefícios da água e dos esportes para a saúde são tratados nos capítulos “A represa de Guarapiranga e os esportes na região de São Paulo”, “A invenção da praia de Santos” e “Sol e mar: veraneios no litoral gaúcho no início do século XX”, e, especialmente, questionados do ponto de vista dos seus significados políticos e sociais.

Em outra frente de preocupações, o escotismo, a educação extraescolar em parques infantis e colônias de férias desvelam a beleza paisagística do território nacional ou afirmam a natureza-jardim como espaços de cura ou aprendizagem. Desde a serra da Mantiqueira, aqui no Brasil, até Comodoro Rivadavia e Tantil, na Argentina, símbolos pátrios ou signos da vida e da sociabilidade perdida pela urbanização desordenada de metrópoles como São Paulo e Buenos Aires foram produzidos pela exploração da ideia de um valor supremo da beleza natural. Os parques infantis se valeram ainda do jogo de distinção das elites que fazia dos parques um cenário, uma figuração da natureza na trama urbana, para legitimarem-se perante o discurso médico favorável à vida ao ar livre. Na cidade, os parques infantis propunham embelezamento e higiene por meio de uma arquitetura e de desenhos paisagísticos capazes de opor à memória do passado rural “uma natureza inventada como genuinamente nacional” (p. 103). De fato, como mostram Dalben, Méndez e Scharagrodsky e Herold Júnior, as práticas sobre ou a partir da natureza são “uma elaboração social e cultural, uma complexa operação discursiva produzida em um espaço e tempo determinados” (p. 116).

Ao ar livre, o escotismo, a brincadeira infantil, a terapêutica, a disputa esportiva, o lazer da família em férias e a identidade que se constrói pacientemente em consonância com a moda ressignificam a natureza, tornando-a apropriada, codificada, dominando-a, enfim. O significado, então, que a exposição ao sol, a aprendizagem extraescolar ou a vilegiatura adquiriram na vida urbana dependeu da mudança de sensibilidade que a medicina, a educação física e as práticas sociais estabeleceram com a natureza e seus atributos mais visíveis. Nesse livro, assim, há de tudo um pouco para a ascensão da natureza e das práticas ao ar livre no estilo de vida moderno. Instâncias de hidroterapia, a helioterapia, acampamentos, dietas e exercícios, esportes, colônias de férias, parques, balneários, veraneios vão sendo mostrados capítulo a capítulo naquilo que mais nos enlaça à natureza dos nossos ritos sociais, aos modos como nos relacionamos com o cosmos que nos circunscreve: o desejo da felicidade, por meio da saúde, da beleza e da alegria.

Se nisso Bernard Andrieu e Sylvain Villaret arriscam o principal argumento de suas reflexões, Denise Bernuzzi de Sant’Anna lembra que o acesso a bens como a água e a saúde são domínios da desigualdade, efeitos de disputas e práticas sagazes de imposição ou resistência, de força ou astúcia. As relações entre o humano e a natureza que inventamos também são da ordem do acidente e do desastre, da violência, da falta e da polêmica. Entre as notícias que Sant’Anna observa tão bem, o afogamento, o roubo, a proibição, a exploração também circunscrevem a natureza nos negócios humanos.

Não falta, assim, a história dos sujeitos. Os protagonistas da vida ao ar livre são homens, mulheres e crianças comuns, aqueles que, então, deixaram-se apanhar pelo mar e pelo sol, pelas hidro e helioterapias, que subiram as montanhas e passearam no campo, que frequentaram parques e planejaram suas vilegiaturas, que praticaram a ginástica ou o esporte. Trata-se também daqueles que sofreram com o contato com a água ou com sua privação e daqueles que tinham nas colônias de férias apenas a oportunidade de escapar por um tempo dos subúrbios fétidos das grandes cidades. O interesse pelas curas e aprendizagens por meio da natureza, do robustecimento dos corpos, do embelezamento físico envolve cada um de nós com a história daqueles que nos legaram essas práticas que, desde o bronzeamento até o turismo de todas as férias, dizem algo de como experimentamos a vida ao ar livre.

Mas há nomes que são incontornáveis nessa história e cuja menção não se pode escapar de fazer. Nesse sentido, Georges Hébert, Baden Powel, Bernhard Basedow, Peter Villaume e Guts Muths, Arnold Rikli, Sebastian Kneipp, Mario de Andrade, Francisco Pascasio Moreno e Grabiel Skinner participam dessa história como pontos de difusão das práticas que envolveram as pessoas e a natureza-jardim, o sol, o mar, o campo e a montanha. Assim, o método da ginástica natural, o escotismo, o rousseauísmo de parte deles, as estações de tratamento e os parques infantis são as iniciativas exploradas por sua importância na construção de uma nova sensibilidade a respeito da natureza e do natural. É menos do pioneirismo de que trata os textos reunidos nessa coletânea, mas, principalmente, das variadas formas de envolver o corpo a um outro ambiente que não o da metrópole e das suas principais instituições de controle e produção.

Por outro lado, como é típico de livros que arriscam seus argumentos em uma perspectiva própria de compreensão ou em um veio especifico de trabalho, a boas pistas de pesquisa também revelam os principais limites da interpretação. A aposta, então, na análise de práticas, instituições e sujeitos se faz em detrimento de um maior investimento na história dos conceitos e teorias. Atualmente, a questão da circulação dos saberes e das estratégias de apropriação das ideias e saberes mostrou-se profícua ao estudo de grupos específicos e das suas disputas internas. Para aqueles a quem interessam mais as discussões de doutrina, de trajetórias ou dos círculos que animaram autores, práticas ou iniciativas, as escolhas teórico-metodológicas desta edição podem aparecer como limites da análise. Nesse sentido, as belas narrativas com que os autores problematizam seus objetos de pesquisa e reflexão ganhariam com comparações e histórias de apropriação e invenção. Ainda que assim seja, há questões de concepção absolutamente importantes suscitadas pelo conjunto.

Nesse sentido, seria válido nos perguntarmos se tais construções das relações humanas com a natureza não foram resultado de disciplinas, controles e explorações que visavam tornar produtivas as partes do território e da nossa imaginação que ainda estavam livres dos processos capitalistas de produção de valor. Talvez. A linha segura que os textos oferecem ao leitor, entretanto, é aquela que dá entrada a uma firme tradição de pensamento sobre a natureza e as mudanças de atitude humana em relação ao mundo natural. Desde Rousseau até Alain Corbin, passando pelos importantes trabalhos de Keith Thomas e Walter Benjamin, a perspectiva de análise compreende uma reflexão apurada dos constructos humanos que determinam a historicidade daquilo que chamamos de natureza. Da filosofia e da história vem, senão os conceitos, a perspectiva de análise de autores e autoras. No conjunto, a natureza e os seus elementos beneficiam-se das posições jusnaturalistas, das críticas pós-estruturalistas ou da história das sensibilidades para emergir como problema, e não como um dado, em cada um dos diferentes capítulos. As dificuldades que a teoria impõe ao tratamento do tema não impediram a fluidez da escrita, a clareza do texto ou a beleza das histórias que todo o conjunto conta.

Outra história que os textos dão aos leitores é a da educação. Entre tudo aquilo que a própria Carmen Lúcia Soares nota acerca do que implicava o triunfo da concepção de vida ao ar livre, lembra-nos, especialmente, de que não se tratou de um processo espontâneo. Ao contrário, tal processo resultou de um esforço de autoridades públicas em que desfilam inteligências e proposições elaboradas por médicos, educadores/pedagogos, engenheiros, urbanistas. O livro contribui para uma história da educação física, da educação infantil e das instituições escolares naquilo que elas testemunham da invasão dos elementos da natureza na arquitetura escolar e na doutrina pedagógica. A ideia de regeneração que vicejou no discurso de intelectuais de diferentes matizes no Brasil da primeira metade do século passado reservou um lugar especial para a natureza e seus elementos na percepção da sua utilidade à saúde das crianças e dos jovens. O valor educativo da natureza é reiterado em diferentes capítulos, por meio de diferentes perspectivas e, principalmente, analisado desde a escola até as práticas culturais mais cotidianas.

De fato, as contribuições do conjunto de textos reunidos por Carmen Lúcia Soares em Uma educação pela natureza: a vida ao ar livre, o corpo e a ordem urbana são muitas e variadas. Especialmente, para a área da história, concorre para a compreensão de ideias, de práticas, de instituições e de sujeitos que fizeram da natureza um elemento da vida urbana, escolar ou mesmo intelectual já entre as gerações que nos precederam. É como história, mas também como patrimônio e sensibilidade contemporânea, que este trabalho sugere ser a natureza, seus elementos e suas expressões, uma das mais profícuas áreas das invenções humanas. Daí porque, além das qualidades acadêmicas que o livro apresenta, vale deter-se na sua leitura.

Referências

SOARES, Carmen Lúcia (Org.). Uma educação pela natureza: a vida ao ar livre, o corpo e a ordem urbana. Campinas: Autores Associados, 2016. [ Links ]

Como citar: SOARES, Carmen Lúcia (Org.). Uma educação pela natureza: a vida ao ar livre, o corpo e a ordem urbana. Campinas: Autores Associados, 2016. Resenha de PAULILO, André Luiz. A terra, o ar, o mar e a nossa educação. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 19, n. 38, p. 263-267, mai./ago. 2018. Disponível em: <www.revistatopoi.org>.

André Luiz Paulilo – Professor da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected].