África / Tempo / 2006

Este novo número da revista Tempo tem um significado especial, na medida em que vem consolidar a firme determinação do Departamento de História da UFF em levar adiante o projeto de incremento do ensino e da pesquisa sobre História da África. O crescimento do interesse pelos estudos africanos está, sem dúvida, associado à promulgação da lei nº 10.639, de janeiro de 2003, que dispõe sobre os conteúdos de História da África e Cultura Afro-brasileira nos currículos de ensino fundamental e médio. O debate sobre a lei e sua posterior promulgação fez surgir uma ampla demanda por publicações que atendessem às necessidades das novas diretrizes. Na UFF, já antes disto, ocorreram, por parte de professores e alunos, algumas iniciativas que serviram de lastro para que passássemos a pensar seriamente na ampliação do ensino e da pesquisa sobre Historia da África. Foi assim que, ao longo dos últimos cinco anos, reunimos um grupo de professores, pesquisadores e alunos interessados no tema.

Se o debate sobre a lei nº 10.639 / 03 suscitou a urgência do tema, também fez com que a História da África passasse a ser vista por muitos como um componente dos estudos sobre escravidão, diáspora africana e relações raciais. Estes são, sem dúvida, elos fundamentais. Entretanto, é importante ir além deles e mostrar a grandeza do continente africano em toda a sua diversidade, esteja ela, ou não, vinculada ao estabelecimento da escravidão africana nas Américas de modo geral, e no Brasil em particular. Temas como as primeiras migrações que constituíram o povoamento do continente em tempos remotos, a expansão muçulmana, o Mali e o Songhi, o colonialismo e a descolonização, a urbanização, os conflitos civis e a desagregação dos estados nacionais são imprescindíveis para uma apreciação da história daquele continente. Neste sentido, é importante deixar claro que nosso intuito vai além do estabelecido pela lei e visa não apenas a formação de professores habilitados ao ensino dos conteúdos nela previstos, mas, fundamentalmente, contribuir para o desenvolvimento da pesquisa em História da África, esteja ela associada a conteúdos didáticos imediatos ou não.

Dentro da perspectiva acima apontada, não são apenas os historiadores das Américas a se debruçarem sobre as origens da população escrava, mas também os historiadores da África, que passam a incorporar a diáspora africana como um tema de suas reflexões.Por outro lado, o olhar sobre novos temas nos leva também a uma vasta literatura sobre a África que, com atraso, temos que admitir, apenas agora começamos a conhecer. Foi com este intuito que a Tempo 20 buscou autores e temas diversificados, que sejam representativos não apenas do estado atual das questões na historiografia africana, mas que também nos colocassem em dia com a longa e farta produção já acumulada ao longo das últimas décadas e da qual o leitor brasileiro, sem acesso a línguas e publicações estrangeiras, tem sido privado. Nosso dossiê procurou abranger temas, áreas geográficas e épocas diversas, escolhendo textos variados e autores com diferentes trajetórias.

Gwyn Campbell nasceu em Madagáscar, estudou na Inglaterra e é especialista em história econômica do Oceano Índico. Atualmente, ocupa a cátedra de Oceano Índico e História Mundial na McGill University, em Montreal, Canadá. Seu artigo sobre a colonização de Madagáscar trata das controvérsias historiográficas sobre a formação dos malgaxes. O texto nos introduz num universo bastante desconhecido da história remota da ocupação da ilha e de sua diversidade, apontando para a complexidade do povoamento insular e para a construção das identidades dos vários grupos ali presentes. O texto avança também em questões atuais, destacando o papel das nações européias coloniais, como no caso da explícita intenção francesa de manter a ilha sob sua possessão fora do que foi, à época, definido como “África”. Neste sentido, o artigo atravessa os séculos, indo de informações arqueológicas à política colonial e tomando vulto em sua fina análise sobre a história da presença humana e da construção das identidades na ilha de Madagáscar.

Roquinaldo Ferreira é brasileiro, doutor em História pela University of Los Angeles-California e professor de História da África na University of Virginia / EUA. Seu artigo aborda a temática atlântica de um ponto de vista diferente, destacando a importância de Benguela no tempo do tráfico atlântico. Partindo da reconstrução das trajetórias pessoais de negociantes para analisar suas redes mercantis nos séculos XVIII e XIX, demonstra que uma certa dinâmica sociocultural amalgamada, propícia ao tráfico, fora tecida através de casamentos, laços familiares e da participação em irmandades religiosas, entre africanos e europeus.

Paul E. Lovejoy é canadense e um dos mais reconhecidos historiadores africanistas. É professor na York University, Toronto, Canadá, onde ocupa a cátedra de História da África e da Diáspora Africana e dirige o Harriet Tubman Resource Centre on the African Diaspora. É um estudioso da histórica econômica, enfocando a escravidão africana e sua diáspora, especialmente no Sudão Central. Seu artigo nos leva ao mundo muçulmano e às redes comerciais terrestres através de uma análise detalhada do modo de operar das caravanas, destacando ainda a riqueza da obra de viajantes ocidentais na descrição das sociedades africanas.

José Capela foi o pseudônimo adotado pelo então jornalista português José Soares Martins, quando, na década de 1960, ainda sob domínio colonial, trabalhou no jornal Diário de Moçambique. Após a independência foi nomeado adido cultural de Portugal em Moçambique. Atualmente, é pesquisador do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, Portugal. Seu artigo apresenta um tema que os brasileiros têm para si como familiar – os quilombos – o que confere à temática uma importante dimensão comparativa, mas, antes de tudo, apresenta um aspecto pouco conhecido das relações sociais em Moçambique e de seus mecanismos de confronto com a expansão colonial de finais do século XIX e início do XX.

Robin Law ocupa a cátedra de História da África na University of Stirling, Escócia, é considerado o maior conhecedor dos povos da Baía do Benim, região que, ao lado de Angola, enviou o maior número de escravos para as Américas, mas cuja história é pouco conhecida no Brasil. Através de seu artigo, trazemos à tona um outro importante aspecto da historiografia africanista, a saber, o debate por ela estabelecido com a historiografia da escravidão e do tráfico atlântico. Ao analisar a identidade “mina”, Law mostra não apenas as diferenças entre os chamados minas, na Baía do Benim e nas Américas, mas alerta também para as mudanças nesta identidade ao longo do tempo, dando-nos uma boa medida da importância do nosso aprofundamento na historiografia africana para uma melhor compreensão da escravidão nas Américas.

Este número não poderia estar completo sem que contássemos com a colaboração de um historiador africano e formado na África. As opções de autores e temas a serem selecionados nos deixavam sempre a sensação de que cada um deles poderia dizer mais do que estaria contido em seus textos. Foi assim que optamos não por mais um artigo e sim por uma entrevista que desse conta não apenas dos resultados da produção africana, mas da trajetória tão particular destes profissionais, assim como do modo como hoje muitos deles se inserem no universo acadêmico internacional. Foi com esta preocupação que decidimos entrevistar Toyin Falola, historiador nigeriano, que se doutorou pela Universidade de Ifé. Já como doutor, transferiu-se para o Canadá e atualmente ocupa a cátedra de História da África na University of Texas / Austin nos Estados Unidos, possuindo uma vasta obra que enfoca a história colonial e pós-colonial da Nigéria. A entrevista contextualiza sua trajetória pessoal e se amplia numa polêmica interpretação da história da África e nos meios acadêmicos ocidentais.

Ao longo do trabalho de edição dos textos aqui reunidos, deparamo-nos com vários problemas, para os quais nem sempre encontramos a melhor solução. Se a escolha dos autores e dos temas se constituiu como primeiro obstáculo, a tradução dos textos foi um desafio adicional. Foi feito um cuidadoso trabalho que envolveu freqüentes consultas aos autores, mas, certamente, ainda assim restaram problemas que envolvem a própria dificuldade de conversão não apenas de palavras, mas de universos sociais distintos, mediados, quase sempre, por uma teia de línguas e nacionalidades que envolvem o objeto estudado, o historiador que os toma, o tradutor e o editor, o qual tem em mente seu público específico. Neste sentido, a tradução de nomes de locais, reinos, grupos étnicos, etc. nem sempre pode seguir uma regra rígida, acompanhando algumas vezes o senso comum. Alguns deles já têm traduções consagradas, outros foram, provavelmente, escritos em língua portuguesa pela primeira vez. Isto sem considerar o fato de que a grafia inglesa ou francesa da qual partimos já é, ela mesma, uma adaptação da maioria dos termos.

Ao lado disto, existem ainda diferenças ortográficas entre as línguas ocidentais. Um sério problema enfrentado foi a padronização ortográfica dos nomes de lugares e grupos. O inglês escreve o nome das nacionalidades com letra maiúscula, enquanto o português usa minúscula. Outro ponto de divergência está no fato de que os autores de língua inglesa escrevem o nome de grupos no singular – “the Mina” – em lugar de “os minas”, como recomenda a gramática portuguesa. Diante disto – na medida do possível e tentando não ferir as opções de cada autor – optamos por seguir as normas gramaticais da língua portuguesa. Que nos perdoem os leitores sobre a falta de um acordo sobre o assunto e que concorramos todos para o estabelecimento de alguns critérios básicos que possam nortear nosso trabalho no futuro.

A maioria dos textos apresentados é inédita ou foi adaptada para esta edição. O texto de Robin Law é tradução de um artigo recentemente publicado. Agradecemos a David Henige, editor da revista History in Africa, que autorizou sua publicação. O texto de Paul E. Lovejoy é uma reelaboração, a partir de um texto escrito em colaboração com Mark B. Dufill, em 1985. A tradução dos textos foi resultado de um esforço conjunto dos editores, de Mariana Candido e Roquinaldo Ferreira, a quem agradecemos a dedicação. A revisão final dos artigos, feita por Nancy Barros de Castro Faria, foi imprescindível e sem dúvida elevou a qualidade do resultado obtido. Cristiane Maria Marcelo secretariou a edição com o cuidado de sempre, mas com especial incentivo nos momentos mais difíceis.

O amadurecimento da linha de trabalho que hoje transparece na edição da Tempo 20 é, em grande medida, fruto da convivência com um conjunto diversificado de historiadores no Brasil e no exterior. Dentre eles gostaríamos de destacar o Professor Paul E. Lovejoy / Tubman Centre. Por fim gostaríamos de agradecer a um historiador que conquistou a todos no Departamento de História da UFF, por sua competência e dedicação ao ministrar o primeiro curso de História da África em nosso departamento.

Este número é dedicado a Elisée Soumonni, professor da Université du Bénin / Abomey Calavi e network professor do Tubman Centre que permaneceu como professor visitante no Departamento de História por dois semestres letivos, em 2002. Seus cursos, oferecidos a alunos de graduação, deram início à formação da primeira geração de estudantes que, como resultado deste esforço institucional, estão se dedicando à pesquisa da História da África na UFF.

Mariza de Carvalho Soares – Professora do Departamento de História da UFF.

Marcelo Bittencourt – Professor do Departamento de História da UFF


SOARES, Mariza de Carvalho; BITTENCOURT, Marcelo. Apresentação. Tempo. Niterói, v.10, n.20, jan., 2006. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê