The War on Sugar: forced labor, commodity production and the origins of the Haitian peasantry, 1791-1843 | Johnhanry Gonzalez

Pesquisas sobre a Revolução Haitiana se desenvolveram em ritmo surpreendente na academia nas últimas décadas, diversificando a discussão com variadas perspectivas de análise que muito contribuíram para o amadurecimento deste campo de estudo. Interpretações políticas, econômicas e sociais da antiga colônia de Saint-Domingue se somaram à avaliação dos impactos da revolução escrava em diversos espaços do mundo atlântico. É dentro deste movimento de renovação que se insere a obra de Johnhenry Gonzalez, Maroon Nation: A History of Revolutionary Haiti, adaptação de sua tese de doutorado3.

Publicado em 2019 pela editora da Universidade de Yale, o livro se propõe, antes de tudo, como uma introdução à história inicial do Haiti no século XIX. Preocupado em compreender as persistentes crises de subdesenvolvimento e dependência que atingem este país há décadas, Gonzalez volta à era revolucionária para analisar a emergência do campesinato haitiano, cerne da organização econômica e social do Haiti contemporâneo. Recorrendo a relatos de viajantes, relatórios de países estrangeiros, documentos militares, judiciais e políticos encontrados no Haiti, nos Estados Unidos, na Inglaterra e na França, o autor concebe dois caminhos de análise relacionados e centrais para a originalidade da obra: a interpretação alargada da Revolução Haitiana e a tese da nação maroon. Leia Mais

The War on Sugar: forced labor, com­modity production and the origins of the Haitian peasantry, 1791-1843 | Johnhanry Gonzalez

Batalha de San Domingo Suchodolski 1845 the war on sugar
Battle of San Domingo, also known as the Battle for Palm Tree Hill | Pintura de January Suchodolski

Pesquisas sobre a Revolução Haitiana se desenvolveram em ritmo surpreendente na academia nas últimas décadas, di­versificando a discussão com variadas perspectivas de aná­lise que muito contribuíram para o amadurecimento deste campo de estudo. Interpretações políticas, econômicas e sociais da antiga colônia de Saint-Domingue se somaram à avaliação dos impactos da revolução escrava em diversos espaços do mundo atlântico. É den­tro deste movimento de renovação que se insere a obra de Johnhenry Gonzalez, Maroon Nation: A History of Revolutionary Haiti, adaptação de sua tese de doutorado3.

Publicado em 2019 pela editora da Universidade de Yale, o livro se propõe, antes de tudo, como uma introdução à história inicial do Hai­ti no século XIX. Preocupado em compreender as persistentes crises de subdesenvolvimento e dependência que atingem este país há dé­cadas, Gonzalez volta à era revolucionária para analisar a emergência do campesinato haitiano, cerne da organização econômica e social do Haiti contemporâneo. Recorrendo a relatos de viajantes, relatórios de países estrangeiros, documentos militares, judiciais e políticos en­contrados no Haiti, nos Estados Unidos, na Inglaterra e na França, o autor concebe dois caminhos de análise relacionados e centrais para a originalidade da obra: a interpretação alargada da Revolução Haitia­na e a tese da nação maroon. Leia Mais

Haitian Connections in the Atlantic World: Recognition after Revolution | Julia Gaffield

Em Haitian Connections in the Atlantic World: Recognition after Revolution, Julia Gaffield enfatiza a importância de inserir o processo de independência do Haiti no mundo Atlântico, levando em conta suas dimensões políticas, econômicas e diplomáticas no início do século XIX. Ao abordar as relações do Haiti independente com a comunidade internacional do período, com ênfase nas relações com o Império Britânico, Gaffield lança mão do conceito de “estratos de soberania”, emprestado de Lauren Benton (A Search for Sovereignty: Law and Geography in European Empires, 1400-1900, 2004). Mas, enquanto Benton o utiliza para analisar relações entre impérios, Gaffield estende sua aplicabilidade para o estudo do caso haitiano no cenário internacional:

Enquanto o trabalho de Benton foca nos diferentes estratos entre impérios, o caso haitiano demonstra que esses estratos também eram importantes no contexto internacional. O reconhecimento não oficial não culminou em um isolamento diplomático, ocorrendo, inclusive, reconhecimento temporário da independência haitiana pela França. Além disso, esses estratos são visíveis não apenas na diplomacia, mas também nas relações comerciais. Governos estrangeiros estavam visando estender o reconhecimento econômico ao Haiti, ao mesmo passo que retinham seu reconhecimento diplomático (p.13).

Dessa perspectiva, Gaffield enquadra a história do Haiti como a de um país que, embora parcialmente aceito na arena internacional por sua relevância comercial, sofreu profundamente com o fato de não ter sido diplomaticamente reconhecido no início do século XIX por ter fundado sua independência sobre uma revolução de escravos bem-sucedida, desafiando, portanto, as estruturas do escravismo no mundo atlântico.

No primeiro capítulo da obra, a autora nos traz a questão das tentativas do império francês de isolar o Haiti independente no cenário atlântico, reivindicando autoridade legal sobre aquele território, que supostamente atravessava uma situação temporária e que em breve retornaria à jurisdição francesa. A proclamação de independência, assinada por Jean-Jacques Dessalines em 19 de novembro de 1803, continha lacunas que permitiram que os franceses continuassem reivindicando sua autoridade legal sobre o Haiti e visassem apoio no cenário internacional para isolá-lo. A intenção da França em reassumir eventualmente o controle da colônia motivava-se, de acordo com Gaffield, pelo fato de que os franceses “se preocupavam com um espraiamento revolucionário em suas colônias remanescentes no Caribe – Martinica, Guadalupe, e Guiana; visavam também prevenir o monopólio britânico nos mercados coloniais; e almejavam revitalizar o comércio francês no Atlântico” (p. 20).

Dessa perspectiva, proibir o comércio britânico com o Haiti era central para impedir que Londres alcançasse seus desígnios de controlar os mercados atlânticos. Para tanto, os agentes fiscalizadores franceses centraram suas ações nas ilhas de Curaçao e St. Thomas, sob jurisdição batava e dinamarquesa, respectivamente, que eram pontos de partida esseciais para a atividade comercial estrangeira com o Haiti. Embora Paris arrancase das metrópoles europeias a proibição do comércio com o Haiti, a França não possuía meios de patrulhar efecientemente o Mar do Caribe, o que, na prática, permitiu a continuação do intercâmbio entre mercadores estrangeiros estabelecidos em Curaçao e St. Thomas e hatianos. A pressão dos agentes franceses sobre essas ilhas findou quando, em 1807, o império britânico assumiu o controle de ambas. As leis do comércio ultramarino britânico (Navigation Acts) confirmaram as suspeitas francesas sobre os planos geopolíticos de Londres para o Novo Mundo: enquanto elas proibiam o comércio das Antilhas britânicas com o estrangeiro, abriam uma honrosa exceção para o Haiti, evidenciando que o que estava em questão para Westminster era incorporar a ex-colônia francesa às redes de comércio de seu sistema colonial.

Os capítulos 2 e 5 tratam das relações internacionais do Haiti, principalmente com o império britânico. No segundo, Gaffield traz importantes assertivas acerca da limitação do direito de propriedade a brancos, com exceção de poucos imigrantes que arribaram na ilha no período, política esta que será seguida pela proibição de proprietários absenteístas. Abordando os desígnios britânicos em relação ao Haiti, afirma a autora que Londres tentava absorver o território em seu imperialismo. Contudo, nesse capítulo, as questões diretas que envolviam o comércio haitiano com o restante do mundo atlântico relacionam-se não com a Grã-Bretanha, mas sim com outros territórios americanos: a proibição do comércio por parte dos Estados Unidos e também das ilhas de Curaçao e St. Thomas. Por meio dessa restrição no mercado internacional, encontravam os britânicos caminho livre para a efetivação de seus objetivos. O capítulo 5, por sua vez, trata em especial dos anos de 1807 a 1810, época marcada pela guerra civil que dividiu a ilha entre o Norte, comandado por Henry Christophe, e o Oeste e o Sul, governados por Alexandre Pétion, bem como pela limitação das relações econômicas com diversos países do espaço atlântico. Gaffield trabalha com as tentativas daqueles dois governantes de assinar, com o Império Britânico, tratados econômicos de caráter similar àquele negado por Dessalines em 1804 em relação à Jamaica. A historiadora salienta também que nesse período os mecanismos do chamado “império informal” – conceito utlizado para explicar as relações de poder assimétricas entre um Estado mais forte e um mais fraco, em que o primeiro estabelece controle político sobre o segundo sem exercer domínio formal de fato – característico do mundo pós colonial, sobretudo na América Latina, começaram a se delinear nas políticas econômicas entre o Haiti e o império britânico. Gaffield discorre ainda durante o capítulo sobre os elementos que contribuíram para o sucesso da independência da antiga colônia francesa, afirmando que as relações econômicas no mundo atlântico, sobretudo com os britânicos, apesar de seu papel importante, não teriam sido as únicas responsáveis. Em conjunto com esse fator externo, a rígida militarização implantada pelos governantes da nova nação, em detrimento dos direitos individuais, foi um elemento crucial para o sucesso da emancipação.

No capítulo 3, a autora trata dos múltiplos “estratos de soberania” da independência haitiana por meio da análise de quatro julgamentos envolvendo navios mercantes pelo departamento da marinha britânica, capturados e sentenciados em dois momentos distintos (dois em 1804 e os outros em 1806). Aqui, Gaffield mostra questões relativas ao status ambíguo do Haiti no espaço atlântico, já que nos primeiros casos a ilha foi considerada uma colônia francesa e, portanto, proibida de comerciar, e nos últimos um reconhecimento temporário da soberania foi concedido, já que o comércio exercido com os haitianos não foi julgado ilegal. Tal mudança de atitude britânica, segundo a historiadora, deve-se às tentativas cada vez mais assíduas de estabelecimento de acordos econômicos entre as duas nações, mesmo que a recognição diplomática ainda não fosse uma realidade. Nesse sentido, Gaffield afirma que o reconhecimento da soberania temporária “permitiu que tanto britânicos como negociantes estrangeiros tivessem acesso aos benefícios financeiros disponíveis por causa da independência de fato da ilha em relação à França” (p. 114).

No capítulo 4, a autora aborda a relação dos Estados Unidos com o Haiti, e aqui mais uma vez as trocas comerciais entre as duas nações, bem como a tentativa de estabelecimento de acordos formais entre os governos, servem de exemplo para mostrar o lugar significativo que a ex-colônia ocupava no mundo atlântico. Mesmo com a proibição do comércio de 1806 a 1810 envolvendo os dois países, assunto igualmente tratado neste capítulo, as transações mercantis entre eles mostram-se valorosas já nos primeiros dois anos de independência haitiana, e logo retornam com a expiração do decreto de Thomas Jefferson responsável pela proibição das trocas comerciais com o Haiti. Apesar disso, assim como ocorreu no império britânico, os benefícios econômicos daqui advindos não implicaram reconhecimento diplomático do novo país americano, o qual só ocorreria em 1862, malgrado tais benefícios terem grande influência nas discussões do Congresso americano sobre a suspensão das trocas comerciais ocorridas entre 1804 e 1806.

A produção historiográfica focada no século XIX haitiano é recente, e o trabalho de Gaffield mostra-se importante não apenas pela análise lúcida das conexões estabelecidas entre a ilha e o mundo atlântico, mas também por contribuir para o próprio entendimento da situação interna do país nos primeiros anos de sua independência. Mas, como a historiografia em geral vem mostrando há décadas, o estudo da independência do Haiti no início do século XIX é essencial também para a compreensão das dinâmicas do mundo ocidental do período. Situada no ínterim marcado por transformações de caráter político, econômico e social, sua independência se ajusta cronologicamente às transformações que moldaram o mundo moderno. Obras magistrais que abordam as agitações e mudanças do período do ponto de vista de uma grande angular, como os clássicos The Age of the Democratic Revolution (1959 – 1964), de R. R. Palmer, e The Age of Revolution, 1789-1848 (1963), de Eric Hobsbawm, centraram suas análises no mundo europeu e nos Estados Unidos da América, excluindo o Haiti (bem como, poderíamos dizer, o Brasil). O livro de Gaffield, portanto, insere-se num panorama de renovação desse campo.

As fontes para a realização de um estudo como o de Gaffield são encontradas principalmente nas línguas francesa e inglesa. Apesar de se concentrar inicialmente nos arquivos francese e haitianos, a historiadora também percorreu arquivos nos Estados Unidos Inglaterra, Jamaica e Dinamarca a fim de reconstituir o conjunto das ligações atlânticas do Haiti e, assim, superar o estreito círculo da história nacional. A própria natureza desses documentos, divididos entre debates do Congresso norte-americano, correspondências diplomáticas e de comerciantes e registros de tribunais, espalhadas por vários territórios atlânticos, só reforça a ideia do não isolamento do Haiti no período analisado.

Gaffield, assim, nos traz à tona a desenvoltura do processo formativo do Haiti em sincronia com outros quadrantes do mundo atlântico. Segunda nação independente do continente americano, formada por ex-escravos, com uma população composta em sua esmagadora maioria por negros, e ainda importante economicamente apesar do relativo declínio após o início de seu processo revolucionário (1791), o Haiti fez convergirem para si os olhos das duas principais potências do período, os impérios britânico e francês, além dos EUA. Sua notabilidade internacional possuía raízes econômicas e políticas. Enquanto a ex-colônia oferecia oportunidades comerciais relevantes aos grandes atores internacionais do período, ela também inpirava temores por ter nascido de um movimento revolucionário de escravos que, se tomado como exemplo, poderia levar ao desmoronamento do escravismo colonial nas Américas. Como sugere Gaffield neste breve, porém iluminador trabalho, o Haiti, isolado pela comunidade ocidental devido aos temores que inspirava, mas fortemente integrado a ela por outras vias, parece, desde suas origens até nossos dias, ter como destino pôr a nu os paradoxos do capitalismo.

Isabela Rodrigues de Souza – Estudante de graduação em História na Universidade de São Paulo.

João Gabriel Covolan Silva – Estudante de graduação em História na Universidade de São Paulo.


GAFFIELD, Julia. Haitian Connections in the Atlantic World: Recognition after Revolution. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2015. Resenha de: SOUZA, Isabela Rodrigues de; SILVA, João Gabriel Covolan. Formação do Haiti no mundo atlântico do século XIX. Almanack, Guarulhos, n.16, p. 359-364, maio/ago., 2017. Acessar publicação original [DR]