A evolução improvável / William von Hippel

Von HIPPEL William 2 A evolução improvável

William von Hippel / Foto: UQ School Psychology /

HIPPEL W A Evolucao improvavel A evolução improvávelEm seu primeiro livro publicado, o psicólogo social William von Hippel (1963-) consegue se inserir na recente e já tão marcante coleção de obras que articulam os resultados de inumeráveis experimentos de laboratório, pesquisas em psicologia social e teoria da evolução. Com a primeira publicação no final de 2018 e tradução para o português em 2019, “A evolução improvável”[2] (“The Social Leap”, no original) busca utilizar as recentes descobertas da ciência evolutiva e pesquisas relacionadas para compreender vários aspectos da vida cotidiana e da história do ser humano, passando por questões aparentemente banais como o arremesso de pedras e chegando à grandes perguntas sobre a felicidade e as contradições da existência humana.

Professor de psicologia e pesquisador da Universidade de Queensland, Austrália, von Hippel estruturou seu livro de modo didático, partindo de questões mais abrangentes nos primeiros capítulos, e, aos poucos, a obra irá filtrando temas e situações específicas da vida humana que demandam mais atenção e cuidado na análise. Tais construções tornam-se nítidas já no prólogo, quando o autor utiliza três estudos de caso para responder, de antemão, uma pergunta que ele mesmo se coloca (imaginando, acertadamente, que os leitores em algum instante perguntariam), “como sabemos o que sabemos?”.

Essa pergunta, que pode parecer trivial, dialoga com o estado em que se encontra a Psicologia evolutiva no cenário acadêmico. Criada recentemente, nas décadas de 1980-1990 (com pesquisas no Brasil a partir de 2004), a Psicologia Evolutiva [3] vem enfrentando desde seu nascimento muitas críticas relacionadas a seus limites explicativos e especulativos [4], além das questões de rigor científico e de suas problemáticas interpretações morais [5]. Algumas dessas dúvidas, porém, são logo retiradas de cena quando von Hippel demonstra como a “contagem de mutações no código genético” de piolhos de diferentes tipos pode sugerir quando começamos a usar roupas (há 70 mil anos); ou como fontes históricas de registros de casamentos e mortes feitas por igrejas luteranas servem de evidência para analisar o papel das avós na história evolutiva dos humanos; e por fim, como a utilização de análises da presença de diferentes composições de estrôncio em dentes fossilizados sugerem que as fêmeas dos Australopithecus africanus abandonavam seu grupo de origem em certa idade para evitar a reprodução entre parentes próximos (evitando a endogamia).

A partir dessa breve elucidação metodológica, o livro se divide em dez capítulos, que estão, por sua vez, organizados em três partes. A primeira parte [“como nos tornamos quem somos”], será um esforço de releitura da trajetória evolutiva do Australopithecus até o Homo sapiens, destacando situações marcantes que influenciaram nossa formação evolutiva.

A nossa descida das árvores para as savanas, causada pela mudança gradual da vegetação a partir do movimento de placas tectônicas que elevou as regiões do Quênia, Tanzânia e Etiópia, secando boa parte do Vale do Rift, é um evento em destaque, pois mudou completamente a forma como convivíamos uns com os outros e com a natureza ao nosso redor, tornando a cooperação e o fortalecimento de grupos as nossas principais armas evolutivas.

O arremesso de pedra, por exemplo, dos Australopithecus afarensis, possibilitou nossas primeiras experiências de cooperação e trabalho coletivo. A evolução da esclerótica branca dos nossos olhos possibilitando uma “atenção partilhada” mais forte entre membros de um grupo, e a criação da divisão de trabalho pelo Homo erectus na produção das pedras acheulianas (mais pontiagudas e com dois gumes) fortaleceu os laços cooperativos e colaborativos humanos. Com o Homo erectus também vemos o alvorecer da maturidade evolutiva dos humanos, porque é partir de então que o ‘amanhã’ importará mais que o ‘hoje’ em nossas vidas, fato que ainda hoje nos caracteriza com ansiedades e preocupações quase sempre associadas às incertezas do “amanhã”, mas que em suas origens correspondiam à planejamentos e a uma consciência de estocar e carregar coisas para um uso futuro.

Assim, a hipótese do cérebro social é um dos principais conceitos da primeira parte, e de todo o livro, pois sugere que a nossa evolução cognitiva se deve a nossa crescente sociabilidade adquirida depois que passamos a viver nas savanas, dando margem para desenvolvermos a Teoria da Mente, a compreensão de que o outro pensa diferente de mim. Isso possibilitou maior capacidade de ensinar e aprender, como também aprimorou nossa habilidade de abstração e imaginação.

Salta aos olhos a quantidade de experiências que o autor cita ao longo do livro, o que representa uma estratégia argumentativa de nunca levantar hipóteses explicativas sem ter em mãos algumas evidências concretas para corroborá-las. Desse modo, na segunda parte [“usando o passado para compreender o presente”] von Hippel torna inteligível as vantagens evolutivas do autocontrole, mas também do autoengano, destaca nossa capacidade inventiva (Homo innovatio), inerentes a todos nós, mas que em geral se dão em inovações sociais (resolver problemas a partir de relações sociais) e com menos frequência em inovações técnicas (resolver problemas com criação de técnicas/tecnologias); e isso se explica pela nossa história evolutiva de hipersociabilidade, que nos ensinou a valorizar tanto as interações sociais com membros de nosso grupo (Homo socialis), mas não com outros grupos.

William von Hippel analisa como os riscos da interação entre grupos há milhões de anos pode ter evoluído à uma tendência de evitarmos a interação entre grupos, mesmo que valorizássemos a coesão interna do nosso grupo. Isso possui, segundo o autor, origens patogênicas além das rivalidades territoriais. Nosso organismo se adapta aos patógenos com os quais toma contato ao longo da vida do indivíduo e da história de sua genealogia, dessa maneira, o contato com grupos isolados pode trazer sérias consequências [6]. O autor amplia a análise e sugere até mesmo que essa seria a possível explicação de existir nos trópicos uma quantidade tão grande de religiões e línguas distintas, pois nessas localidades a grande quantidade de doenças gera uma maior resistência relacionada ao contato entre grupos; e continua: “Dessa forma, é provável que ameaças de patógenos sejam a fonte subjacente do que é conhecido como preconceito simbólico, ou a animosidade com grupos com práticas e crenças diferentes das nossas” [7].

Ainda na segunda parte, von Hippel estuda as implicações políticas da nossa evolução, apresentando o elefante e o babuíno como metáforas dos “tipos” de políticos mais democráticos e abnegados, e aquelas mais autoritários e individualistas, respectivamente. Esses “tipos” políticos ganham significados mais definidos com a ruptura político-social e psicológica que foi a Revolução Agrícola (estudada na primeira parte do livro).

A Revolução Agrícola transformou nossa psicologia, dando ensejo a uma série de armadilhas constituintes da nossa realidade como a propriedade privada, a desigualdade de gênero e a “normalização” da desigualdade econômica, porque só com a agricultura tais mudanças e acúmulos possuíam algum sentido e vantagem evolutiva. Assim, tal como o historiador Yuval N. Harari [8], von Hippel enxerga a Revolução Agrícola como um engodo ou a “grande fraude da história humana”, que nos trouxe vários benefícios, mas também inúmeros problemas [9].

Apesar disso, von Hippel utiliza os estudos de Steven Pinker para afirmar que a violência humana diminui significativamente ao longo dos séculos, e hoje apresenta seu menor índice em termos mundiais, em função da acelerada industrialização das cidades e do poder crescente de intervenção do Estado nas relações sociais dos indivíduos e seus conflitos.

Na última parte, denominada “usando o conhecimento do passado para construir um futuro melhor”, o autor coloca a “felicidade” no centro da discussão, e arrisca refletir sobre como podemos usar todos os conhecimentos que foram apresentados ao longo do livro para vivermos melhor. E por alguns instantes o autor parece escrever um capítulo de autoajuda, dando algumas ‘dicas’ e sugerindo ‘passos’ para uma vida mais feliz. Esse caminho é apenas uma escolha de estilo, pois desde o início von Hippel propõe ser bastante acessível e didático em sua construção intelectual, e nos últimos capítulos ele se esforça em reunir tudo que já foi dito para sintetizar as descobertas científicas recentes em lições que podem de fato nos ajudar no cotidiano, alertando principalmente para o que chama de indulgências fenotípicas, que “embora prazerosos, são apenas substitutos para nossas preferências evoluídas” [10] (p. ex.: filmes, drogas, masturbação etc.).

Desse modo, o autor não faz uso de clichês ou caminhos fáceis, e logo afirma que a felicidade não pode ser permanente, além de que, em nossa história evolutiva, sua razão de ser corresponde a sua finitude; e não só isso: a conquista da felicidade é relativa a cada pessoa, grupo e sociedade, mas todos possuem certas características biológico-evolutivas que podem ser úteis para nos conhecermos mais e assim vivermos de forma mais proveitosa. E essas características constituintes de nossa espécie são reunidas pelo autor em “dez passos fáceis”, abordando em forma de “lições” os principais pontos trabalhados nos dez capítulos do livro: (1) Permaneça no presente; (2) Busque momentos doces; (3) Projeta sua felicidade para permanecer saudável; (4) Acumule experiências, não coisas; (5) Dê prioridade a comida, amigos e relações sexuais; (6) Coopere; (7) Entranhe-se na comunidade; (8) Aprenda coisas novas; (9) Use suas forças (suas habilidades específicas); e (10) Busque a fonte original (não se satisfaça apenas com as indulgências fenotípicas) [11].

Por fim, percebemos que von Hippel foi bem sucedido em seu objetivo de apresentar uma história evolutiva humana que fosse capaz de fornecer conceitos explicativos sobre nossas vidas na contemporaneidade, permitindo-nos acessar um conhecimento prático-reflexivo, demonstrando assim a grande aplicabilidade dos estudos da evolução e da genética nas ciências sociais e humanas12, proporcionando uma compreensão dos comportamentos e das culturas humanas sob a perspectiva biológica, mas sem deixar de lado as influências e determinações associadas ao ambiente em que vivem os indivíduos e as sociedades florescem.

Notas

2. Infelizmente, a tradução do título para o português não resgatou o sentido do original, que, numa tradução livre, poderia ser “O salto social”, mais próximo do ponto central da obra que é demonstrar a importância seminal da sociabilidade para a evolução da nossa espécie; e com “salto” poderíamos interpretar a descida das árvores para as planícies das savanas, que nos obrigou a sermos mais cooperativos e sociais, marcando a separação definitiva entre nós e os outros primatas.

3. Que tem sua origem mais distante nas obras de Darwin a partir de 1859, mas surgiu como campo de estudo definido a partir da matriz da Sociobiologia de meados do século XX.

4. Ver: VERNAL, Javier. As explicações da psicologia evolutiva. Investigação Filosófica: vol. E1, artigo digital 4, 2011.

5. HATTORI, Wellisen Tadashi; YAMAMOTO, Maria Emília. Evolução do comportamento humano: Psicologia evolutiva. Estud. Biol., Ambiente Divers. 2012 jul./dez., 34(82), p. 101-112.

6. O que para a história do continente americano não é nenhuma novidade, vide o genocídio dos autóctones pela invasão dos europeus ser principalmente causado pela transmissão de patógenos não existentes neste continente. (HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 16-19).

7. HIPPEL, William von. A evolução improvável. – Tradução de Alexandre Martins. – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Haper Collins, 2019, p. 207.

8. HARARI, Yuval Noah. A Revolução Agrícola. In: _____. Sapiens: uma breve história da humanidade. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2018, p. 113-219.

9. “Quando comparamos os custos e benefícios, vemos que a agricultura permitiu a nossos ancestrais algumas garantias contra a fome, mas ao custo de diversas novas doenças, menos estatura e longevidade, uma halitose repulsiva e com frequência um dia de trabalho muito mais longo. O resultado final foi que os primeiros fazendeiros trabalhavam mais para ter uma vida pior que a de seus antepassados” (HIPPEL, op. cit., 73).

10. Ibidem, p. 265-268.

11. Ibidem., p. 238.

12. Um exemplo seria a recente obra de Francis Fukuyama, As origens da ordem política, que na primeira parte do livro utiliza os resultados de pesquisas em genética e teoria da evolução para explicar certos estágios e eventos fundamentais de nossas história política, usando também conceitos e raciocínios próprios da antropologia e da arqueologia socio-evolutiva. (FUKUYAMA, Francis. Antes do Estado. In:______. As origens da ordem política: dos tempos pré-históricos a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 17-115).

Agenor Manoel da Silva Filho – Graduando em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Correio eletrônico: [email protected].


HIPPEL, William von. A evolução improvável. Tradução de Alexandre Martins. 1. Ed. Rio de Janeiro: Haper Collins, 2019. 304, p. Resenha de: SILVA FILHO, Agenor Manoel. A revolução diferenciada. História.Com. Cachoeira, v.7, n.13, p.125-129, 2020. Acessar publicação original [IF].

A causa sagrada de Darwin – DESMOND; MOORE (FU)

DESMOND, A.; MOORE, J. A causa sagrada de Darwin. Rio de Janeiro: Record, 2009. Resenha de: JÚNIOR, José Costa. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.13, n.2, p.209-212, mai./ago., 2012.

Os historiadores Adrian Desmond e James Moore buscam neste volume, amparados em uma ampla pesquisa documental, mostrar que uma causa humanista muito profunda levou Charles Darwin a desenvolver a teoria científica mais extraordinária sobre a origem e a manutenção das espécies. Os autores, que escreveram uma biografia de Darwin (Desmond e Moore, 2000), apresentam aqui a tese de que “a teoria da evolução humana não foi a última peça do quebra-cabeça de Darwin, mas sim a primeira” (pag. 14). O objetivo do livro é mostrar que o horror de Darwin à escravidão foi uma motivação de fundo para que o naturalista inglês concebesse a teoria da evolução das espécies através da seleção natural. Nesse sentido, essa motivação inicial deu-se, em parte, devido à intensa preocupação de Darwin com a unidade da espécie humana e uma ampla noção de irmandade entre os homens. A brutalidade da escravidão, que transformava os negros em outra espécie, uma “besta a ser algemada”, revoltava Darwin, e tal sentimento foi a base para a desconfiança de que podemos todos ter uma única origem.

O livro é dividido em 13 capítulos, detalhados com a presença de diversos personagens históricos inseridas no contexto da construção da teoria de Darwin: o avô Erasmus, o capitão Fitzroy, a esposa Emma, os companheiros Lyell e Hooker e o preconceituoso Agassiz. No capítulo 1, O negro retinto, um amigo íntimo, é revelado que Darwin mantinha uma grande amizade com um assistente negro em Cambridge. Trata-se de um pano de fundo para explicar como a escravidão exemplificava atrocidades absolutamente deprimentes. Darwin conheceu na viagem do Beagle (1831-1836) aquilo que foi a maior migração forçada de seres humanos ao longo da história e passou a combater a ideia de que os negros eram uma espécie diferente e inferior.

Já no capítulo 2, Crânios da raça dos imbecis, procura-se mostrar como a expansão europeia do séc. XIX levou ao contato com diversos povos, cuja aparente falta de sofisticação induziu o europeu a enaltecer cada vez mais sua própria história. Nesse contexto, surge a frenologia, uma pseudociência que defendia a possibilidade de definir características morais e intelectuais dos indivíduos a partir de medições cranianas. Para Darwin, tratava-se de “hipótese fantástica e absurda”.

No terceiro capítulo, Um único sangue em todas as nações, os autores apresentam o Espírito de Cambridge, onde Darwin começou sua vida acadêmica. A ciência era vista como complemento do cristianismo, e todas as criaturas deveriam ser respeitadas como criaturas de Deus. O homem seria uma espécie “à parte”, com alma imortal e responsabilidade por sua conduta. Na década de 1830, com a chegada dos liberais ao poder, tem início uma exigência de abolição da escravidão nas colônias inglesas, através do Abolition Act de 1833, que, no entanto, garantia apenas a abolição para crianças de até 6 anos de idade. Nesse contexto, Darwin parte para a sua grande viagem, na qual veria o sofrimento dos escravos na América, a maioria deles trabalhando para empresas inglesas. É o que nos é apresentado no quarto capítulo, A vida nos países escravagistas.

Darwin não foi um fanático apologista da causa, tendo apenas aceitado sua “herança moral”. Sua família e comunidade próxima sempre foram abolicionistas. O contexto da viagem do Beagle era formado pelos privilégios comerciais da Inglaterra e por sua Marinha forte. O capitão do Beagle, Robert Fitzroy, extremamente conservador, aceitou o então jovem liberal Charles Darwin em seu barco. O contato com o pluralismo cultural levou o jovem Charles a pensar a unidade da humanidade e o significado disso para as relações entre os homens. A origem da aparente desigualdade entre os homens poderia ser simplesmente a adequação aos diferentes ambientes existentes no planeta. Darwin começou, então, a compreender o papel da relação entre o ambiente e as necessidades das espécies.

No quinto capítulo, A origem comum: do pai do homem ao pai de todos os mamíferos, lemos que a imagem que Darwin tinha de uma natureza em transformação era extremamente peculiar. As raças humanas estavam unidas pelo sangue: muitos galhos de uma árvore que confluíam em um único ancestral. Nesse sentido, a pergunta mais importante, para além da ancestralidade comum, era: como surgem as diferenças na espécie humana? Uma origem ancestral era possível, pois somos semelhantes na dor, doença, morte, sofrimento e fome. Entretanto, havia uma arrogância cósmica dos humanos que separava os humanos “divinos” de criaturas bestiais. Para Darwin, os seres humanos não eram os seres absolutos nem a finalidade da natureza: “É um absurdo dizer que um animal é superior ao outro”. As espécies dividem-se através de adaptações, porém não houve tempo para a espécie Homo sapiens sapiens dividir-se em espécies. É interessante ressaltar que os resultados científicos que temos hoje para a negação da existência de raças são bem próximos da argumentação darwinista: muitos autores defendem que não houve tempo para que a espécie humana tenha originado raças (Pena e Birchal, 2005-2006). Nesse debate, a luta antiescravagista mudara sua atenção para o sul dos Estados Unidos, com o arrefecimento da escravidão nas colônias inglesas, e os diversos conflitos na região, que motivaram uma guerra, chamaram a atenção de Darwin. Também durante essa época, Darwin começou a compreender as limitações da teoria da seleção natural para o âmbito das diferenças entre os humanos. Uma teoria complementar seria necessária para explicar adequadamente tais variações.

No capítulo 6, A hibridização dos seres humanos, os autores apresentam o contexto da crítica ao impacto da “civilização” em certas sociedades: onde quer que os europeus tenham chegado, foram arautos do extermínio das tribos nativas. As invasões europeias acabavam por forçar uma miscigenação nas tribos do interior, na visão de Darwin. Nesse ponto, Darwin tem contato com a tese de Malthus acerca das limitações na produção e sente a necessidade de ter mais cuidado ao tratar das características da humanidade.

Já no sétimo capítulo, temos um relato da viagem de Lyell aos Estados Unidos, onde encontrou “homens mais preocupados com a santidade da propriedade do que com os direitos sagrados do homem”. Intitulado Essa questão mortalmente odiosa, mostra como Lyell não abriu seus olhos para o horror, como acontecera com Darwin no Brasil. Em 1840, Darwin fecha seus Notebooks, que continham informações relevantes sobre o processo evolutivo; entretanto, seu trabalho sobre a origem comum das espécies só seria publicado “sobre seu cadáver” e alguém competente deveria editar o ensaio, e este editor seria justamente Lyell. Para Lyell, “uma lei superior que governa a criação das espécies pode ajudar a explicar as formas de distribuição da vida nas rochas, mesmo que essa lei possa continuar um mistério para sempre”. Assim, observando as diversas nuances raciais da América, Lyell entende que “se todos fossem membros da mesma espécie, haveria esperança”.

No capítulo 8, Animais domésticos e instituições domésticas, é apresentado o debate entre “unitaristas” (defensores da origem comum das raças humanas) e “pluralistas” (defensores da origem em separado das raças humanas), que se define pelo embate entre a analogia e a flexibilidade das espécies domésticas e dos híbridos. Para Darwin, somente sua teoria evolutiva poderia resolver a controversa questão do hibridismo. A exuberância do tema das raças humanas, a anatomia, a fisiologia e a fertilidade inter-racial apontavam que o negro e o branco eram membros da mesma espécie. Porém, uma resposta fatual mais ampla era necessária para a confirmação da unidade humana.

No nono capítulo, Ai, que vergonha, Agassiz!, conhecemos o homem que foi responsável por fazer Darwin manifestar-se efetivamente a respeito da humanidade: Louis Agassiz, um dos mais respeitados naturalistas da América de então, tornou-se o maior rival de Darwin. Agassiz era a síntese de um homem da ciência: independência, objetividade e espiritualidade, com um pouco de democracia, e autor “dos argumentos mais convincentes em favor da imutabilidade das espécies”. Tinha repugnância pelos negros, que, segundo ele, “ameaçavam o futuro dos EUA”. Defendia que o local de origem de uma espécie era “determinado pela vontade do Criador”, e não pela dispersão e adaptação de um tronco originário comum. A origem comum humana seria uma evolução “condenável e ateia”.

No capítulo 10, A contaminação do sangue negro, os autores apontam que enquanto Darwin colocava suas ideias no papel, um conflito começava nos EUA: o embate entre republicanos do norte antiescravagistas e democratas sulistas pró-escravidão. Uma defesa viável da unidade humana, a alternativa às criações múltiplas de Agassiz, estava começando a aproximar-se da “origem comum” evolutiva de Darwin. A crença de Darwin na transmutação era muito forte, mas, como transformar insights antigos numa teoria sólida sobre as origens raciais? Talvez a resposta estivesse na diferença entre os sexos humanos. A seleção sexual poderia explicar por que a pele humana era mais útil nos climas tropicais.

Essa possibilidade é explorada no capítulo 11, A ciência secreta separa-se de sua causa sagrada. Com a chegada de um manuscrito de Wallace em 1858, Darwin temia que “sua originalidade fosse esmagada”. Hooker e Lyell garantiram a primazia dos escritos de Darwin (1854 e 1857), com a concordância de Wallace. Enquanto forma de explicar a criação, A origem das espécies “insultaria o Gênesis” de qualquer maneira, e falar sobre raças humanas poderia comprometer ainda mais a aceitação da seleção sexual. Provar que as raças tinham uma origem comum era provar que senhor e escravo tinham uma origem comum, e tal conclusão acabaria finalmente com essa atrocidade. Assim, as diferenças raciais entre os descendentes eram em parte naturais, em parte artificiais em relação aos animais domésticos. Mas, em última instância, todos derivavam de uma única espécie muita antiga. Darwin resolveu um problema que polarizara a ciência. No entanto, sua resolução alimentava forte antagonismo social: “O mundo teria muita dificuldade para engolir a seleção natural” e suas consequências para a humanidade.

O capítulo 12, Os canibais e a confederação de Londres, apresenta a Sociedade Antropológica de Londres, fundada em 1863, durante a Guerra Civil nos EUA, onde não havia lugar para ideias de que o negro é “um irmão”. Entretanto, a Sociedade Antropológica era o único órgão de Londres que tolerava debates sobre o darwinismo. Nesse contexto, Darwin enfrentava a perspectiva desagradável de publicar ele mesmo sua teoria da seleção sexual, como explicação das variações das raças, oriundas de um tronco comum.

No último capítulo, intitulado A origem das raças, os autores mostram como, em 1866, Darwin reuniu coragem para discutir as origens raciais humanas, explicando como a competição entre os machos e as escolhas das fêmeas produziram as raças humanas a partir de uma espécie ancestral e como homens e mulheres escolhiam traços desejáveis em seus pares. O fundamento de A origem do homem sempre foi a seleção sexual, justificada pela evidência do espectro zoológico. Darwin nunca capitularia nessa questão fundamental, de tão essencial que era para a crença de uma vida inteira na “fraternidade humana”. Darwin encerra o livro propondo que, “finalmente, quando os princípios da evolução forem aceitos pela maioria, a controvérsia entre monogenistas e poligenistas vai ter uma morte silenciosa da qual ninguém vai se dar conta” (Darwin, 1974, p.216). Talvez ele não imaginasse que não era apenas essa controvérsia que morreria.

Uma observação importante em relação ao livro é como ele exemplifica a relação entre ciência e moralidade. Este debate é bastante atual e remete às disputas entre filósofos e sociobiólogos: qual é a relevância da compreensão de nossa constituição biológica para o âmbito da moral? As ciências se ocupam do que é: os fatos constituem a referência empírica das teorias científicas. Já a moral está ligada a um trabalho de reflexão sobre hábitos, costumes e ações. Assim, a última analisa as origens e os fundamentos dos costumes que regem e articulam fatos, normas e valores e não deve confundir-se com o domínio das proposições científicas, conforme Hume já nos alertou (Hume, 2001). Entretanto, apesar do conhecimento científico não fundamentar valores, é capaz de esclarecer erros e preconceitos, desempenhando um papel libertador no exercício das escolhas morais, ao contrário das teorias que buscam, a partir de fatos, fundamentar valores, como algumas linhas da sociobiologia e o darwinismo social. A ciência pode trazer elementos que contribuam para a reflexão e ampliar o campo no qual possamos exercer nossa liberdade. É o que fez Darwin, segundo os autores de A causa sagrada de Darwin, mostrando como um cientista pode afastar certas práticas morais deturpadas e mudar para sempre o lugar do homem na natureza.

Referências

DARWIN, C. 1974. A origem do homem e a seleção sexual. Tradução de Attílio Cancian e Eduardo Nunes Fonseca. São Paulo, Hemus Livraria Editora, 715 p.

DESMOND, A.; MOORE, J. 2000. Darwin: a vida de um evolucionista atormentado. Tradução de Cynthia Azevedo. São Paulo, Geração Editorial, 672 p.

HUME, David. 2001. Tratado da natureza humana. Tradução de Serafim da Silva Pontes. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 740p.

PENA, S.; BIRCHAL, T. 2005-2006. A inexistência biológica versus a existência social de raças humanas: pode a ciência instruir o etos social? Revista USP, Vol. 68: pp. 10-21.

José Costa Júnior – Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de Filosofia Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: [email protected]

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