Entre a razão e a experiência: ensaios sobre tecnologia e modernidade – FEENBERG (FU)

FEENBERG, Andrew. Entre a razão e a experiência: ensaios sobre tecnologia e modernidade. Tradução, ensaios e notas adicionais de Eduardo Beira com Cristiano Cruz e Ricardo Neder. Vila Nova de Gaia, Portugal: Inovatec, 2019. Resenha de: SZCZEPANIK, Gilmar Evandro. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.21, n.1, p.124-126, jan./abr., 2020.

Trata-se de uma importante obra filosófica escrita em forma de ensaios sobre tecnologia e modernidade. A obra, publicada originalmente em 2010 pela MIT Press, ganhou uma versão em português de Portugal em 2019 cuja tradução foi realizada por Eduardo Beira, Cristiano Cruz e Ricardo Neder, que acrescentaram três ensaios introdutórios e esclarecedores àqueles ainda não familiarizados com os pressupostos filosóficos do autor. Os tradutores e ensaístas fornecem algumas chaves de leitura que são imprescindíveis para uma adequada compreensão dos pontos apresentados. Chama a atenção, por exemplo, que Feenberg desenvolve uma análise filosófica sob uma perspectiva crítica que, por sua vez, se distancia de uma abordagem pessimista, determinista e catastrófica da tecnologia. Embora sua concepção de tecnologia não seja tecnofóbica, o autor também não pode ser considerado um otimista ingênuo que tende a ficar encantado com as fartas maravilhas fornecidas pelo desenvolvimento tecnológico. Em vez de ficarmos inertes e/ou apartados do desenvolvimento dos novos projetos tecnológicos, somos incitados a participarmos das mais diferentes formas, pois, para Feenberg, a tecnologia não pode ficar restrita apenas aos tecnocratas; ela precisa ser democratizada e novos atores devem ser incluídos no processo de gestação, criação e desenvolvimento de novas tecnologias. Além disso, são apresentados a teoria da dupla instrumentalização e os elementos constitutivos da racionalidade sociotécnica. Trata-se de uma abordagem bastante ajustada e inspiradora que tranquilamente pode ser utilizada para pensarmos e compreendermos as relações entre ciência, tecnologia e sociedade no Brasil e na própria América Latina. A obra encontra-se dividida em três partes, sendo que cada uma delas contém três ensaios. Tais partes são precedidas por um prólogo de Brian Wynne e, ao final delas, há um posfácio de Michel Callon. Passo agora a apresentar as partes que compõem a obra de modo mais sistemático.

A primeira parte da obra é chamada de “Para além da distopia” e é composta de três capítulos, cujos títulos são: i) racionalização democrática: tecnologia, poder e liberdade; ii) paradigmas incomensuráveis: valores e ambiente; e iii) daqui a cem anos, revendo o futuro: a imagem variável da tecnologia. No primeiro capítulo, Feenberg (2019, p.27) “apresenta os temas centrais deste volume: distopia e democracia, a dupla dimensão – técnica e social – da democracia, a reforma ambiental dos sistemas técnicos e a contribuição do construtivismo social para a filosofia da tecnologia”. Além disso, combate tanto o determinismo tecnológico quanto o determinismo econômico, mostrando que o projeto da sociedade é politicamente contingente. Utilizando-se de exemplos históricos (p. ex., trabalho infantil, a regulamentação das caldeiras, etc..), o autor demonstra a ambivalência dos projetos técnicos e defende que a democratização da tecnologia não se resume à democratização do acesso aos bens de consumo, mas envolve necessariamente uma efetiva participação nas decisões tecnológicas. No segundo capítulo, Feenberg recusa a versão do ambientalismo pautado em trocas compensatórias, pois não acredita que seja possível e/ou adequado lidarmos com questões ambientais tendo como pano de fundo a relação entre custo e benefício. Como é característico de sua postura reformista e/ou reprojetista, Feenberg julga necessário incorporar valores sociais e ambientais em futuros códigos técnicos, sendo preciso até mesmo, em muitos casos, uma regulamentação, pois est a pode fornecer um cenário favorável à economia sem necessitar ainda de uma estratégia compensatória. “Não é o ambientalismo que irá empobrecer a nossa sociedade”, diz Feenberg (2019, p.80). O terceiro capítulo, por sua vez, estabelece uma análise crítica comparativa entre as utopias e as distopias tecnológicas dos séculos XIX e XX que tinham como propósito traçar o destino da humanidade mediado pelas tecnologias. Entretanto, utópicos e distópicos dos séculos passados não conseguiram prever em suas profecias os desdobramentos da moderna tecnologia e, por esse motivo, muitos de seus diagnósticos carecem de verossimilhança.

A segunda parte da obra é intitulada “construtivismo social” e contempla três capítulos (iv, v e vi), chamados, respectivamente: “teoria crítica da tecnologia: uma visão geral”; “da informação à comunicação: a experiência francesa com videotexto” e “tecnologia num mundo global”. No capítulo quatro, o autor parte dos estudos construtivistas da tecnologia para desenvolver sua teoria crítica e procura romper com a imagem de que a tecnologia é uma atividade independente do contexto social no qual ela é gestada e produzida, pois argumenta que os códigos técnicos sistematizam tanto a especificação técnica disponível quanto as exigências sociais. Em outras palavras, os códigos técnicos são estabelecidos pelos valores dos atores dominantes. Assim, compete à teoria crítica explicitar quais os atores e os valores que são predominantes nos projetos tecnológicos, pois as decisões tomadas nesse processo possuem enormes implicações políticas. Para Feenberg, as decisões tecnológicas não podem ser tomadas exclusivamente pelos tecnocratas, pois elas são ações de poder que acabam influenciando, direta e indiretamente, o restante da sociedade. Por esse motivo, faz-se necessário democratizar a tecnologia, e esse processo de democratização somente será possível através da inclusão de novos atores e de novos valores que sejam capazes de pensar para além das capacidades técnicas, abarcando, por exemplo, possíveis consequências sociais, culturais e ambientais.

O capítulo cinco destina-se a descrever de forma pormenorizada a relação entre a máquina e seus usuários a partir da experiência dos franceses com o minitel, uma primitiva rede de computadores que teve seu propósito inicial alterado: de um sistema de busca de dados para um sistema doméstico de bate-papo entre usuários anônimos que identificaram no artefato técnico um canal de paquera e de encontros sexuais. Em linhas gerais, pode-se dizer que o minitel é um dos casos favoritos (juntamente com a proibição do trabalho infantil e a regulamentação das caldeiras) utilizados por Feenberg para demonstrar o aspecto não determinista e construtivista dos projetos tecnológicos.

O sexto capítulo relata o processo de modernização tecnológica ocorrido no Japão, sendo est e um dos primeiros países não ocidentais a se modernizar. Para entender as transformações ocorridas no país do sol nascente, Feenberg recorre a Kitaro Nishida, tido como fundador da moderna filosofia japonesa, que esclarece, de forma pormenorizada, o processo de globalização e as transformações dos hábitos e da cultura japonesa, apontando também para as resistências e para as adaptações pelas quais a ciência e a tecnologia ocidental tiveram de passar para atender as necessidades dos japoneses. Em síntese, pode-se dizer que os valores que orientam as escolhas técnicas ocidentais eram quase imperceptíveis para os pertencentes a est a cultura, mas tornaram-se gritantes e, em muitos casos, incompatíveis quando a tecnologia ocidental chegou ao Japão.

A terceira parte do livro denomina-se “modernidade e racionalidade” e inclui os capítulos vii, viii e ix, cujos títulos são, respectivamente: “teoria da modernidade e estudos tecnológicos: reflexões sobre como os aproximar”; “da teoria da racionalidade à crítica racional da racionalidade” e, por fim, “entre razão e experiência”, capítulo est e que dá nome ao livro. No sétimo capítulo, Feenberg observa que as teorias da modernidade e as teorias da tecnologia realizaram grandes avanços nas últimas décadas, embora ainda permaneçam isoladas, mesmo tratando basicamente dos mesmos objetivos. O grande desafio apresentado pelo autor consiste em encontrar meios e desenvolver estratégias para que esses dois ramos possam se aproximar. O viés cultivado pelo autor para fazer essa ponte consiste na retomada das abordagens hermenêuticas comuns, nas quais “tecnologia” e “sociedade” não pertenceriam a esferas separadas, pois os seres humanos fazem, criam, desenvolvem tecnologias que, por sua vez, ajudam a moldar e a configurar os próprios seres humanos. Trata-se de um processo de “co-construção” tanto dos seres humanos quanto da própria sociedade.

No oitavo capítulo, Feenberg investiga os tipos de racionalidades existentes nas sociedades modernas, estabelecendo uma análise comparativa entre os modelos de racionalidades das sociedades pré-modernas. Ademais, introduz o conceito “racionalidade social” que se encontra fundamentada nos princípios de troca de equivalentes; classificação e aplicação de regras; e, por fim, na otimização do esforço e cálculo dos resultados. Além disso, chama a atenção para a teoria geral da instrumentalização e para os códigos de projeto que se referem à est andardização de sistemas racionais que são duráveis, mas passíveis de revisões devido àsalterações nas leis, nas condições econômicas, nos desejos públicos e no próprio gosto dos usuários e consumidores.

O nono capítulo trata da temática central da obra, a saber, da tecnologia como a aplicação da racionalidade técnica e científica tendo como pano de fundo o mundo da experiência cotidiana. Feenberg destaca que nas sociedades pré-modernas, por exemplo, o domínio do conhecimento e o domínio da experiência eram próximos, enquanto nas sociedades modernas tais domínios se encontram isolados. No intuito de promover uma adequada compreensão da técnica, Feenberg retoma as abordagens da essência da técnica de Heidegger e da transformação da técnica através da est ética de Marcuse para, a partir delas, tecer sua abordagem crítica e democrática em torno da tecnologia.

Em síntese, a presente obra de Feenberg mantém os pressupostos filosóficos de sua abordagem crítica presente em seus textos anteriores e enaltece os aspectos políticos e democráticos envoltos nas tomadas de decisões tecnológicas. Como muito bem observa Callon (p. 321) noposfácio de Entre a razão e a experiência, “não há democracia boa sem democracia técnica! Inversamente, não há boa técnica sem democracia”. Enfim, encontramos em Feenberg uma genuína e fértil reflexão filosófica sobre a tecnologia. Genuína, pois apresenta uma forma original de ver e compreender o processo tecnológico. Fértil, porque lança luzes sobre problemas e questões que ainda permanecem em aberto, desafiando a comunidade filosófica a encontrar respostas adequadas aos desafios suscitados pela tecnologia.

Gilmar Evandro Szczepanik – Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Unicentro/ PR – Universidade Estadual do Centro-Oeste. Guarapuava, PR, Brasil. E-mail: [email protected]

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How language began: the history of humanity’s greatest invention – EVERETT (FU)

EVERETT, Daniel L. How language began: the history of humanity’s greatest invention. New York: Liveright Publishing Corporation, 2017. Resenha de: BRAGA, Viviane Zarembski.  Nenhuma linguagem é uma ilha: a história da maior invenção humana. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.20, n.3, p.293-297, set./dez., 2019.

No language is an island: the history of humanity’s greatest invention

Erectus societies had culture. From the very first, humans, with their larger brains and new experiences, built up values, knowledge and social roles that allowed them to wander the earth. And from these cultures built more than 60,000 generations ago we emerged. Our debt to Homo erectus is inestimable. They were not cavemen. They were men, women and children, the first humans to speak and to live in culturally linked communities (Everett, 2017, p.290).

Daniel Everett é um linguista estadunidense, e seu último livro, How language began, apresenta resultados de anos de estudos junto à comunidade indígena Pirahã, na Amazônia. O principal objetivo do livro é o de apresentar a linguagem como uma das mais importantes ferramentas utilizadas pelos seres humanos, desenvolvida e aperfeiçoada por mais de um milhão de anos pela espécie humana. Com est a hipótese, Everett quer refutar a teoria chomskyana acerca do surgimento da linguagem, o que o faz est ar em permanente confronto com Chomsky e seus seguidores. Everett iniciou seu trabalho na Amazônia em 1977, como missionário. Seu objetivo inicial era o de catequizar os índios e traduzir a Bíblia para o idioma Pirahã. Para ter acesso à aldeia, contudo, Everett precisou se filiar a uma instituição brasileira e começou um mestrado na Unicamp. Após algum tempo convivendo com os índios – ele mudou-se para a Amazônia com a esposa e três filhos pequenos –, Everett passou a dedicar mais tempo ao estudo da cultura e língua Pirahã e menos tempo à catequização e tradução da Bíblia. Ele abandonou tanto a tarefa missionária quanto a vida religiosa. Hoje, Everett ainda passa boa parte do ano na Amazônia, realizando estudos de campo.

Everett acredita que o idioma Pirahã nos apresenta indícios para refutar a teoria chomskyana e aceitar o fato de que a linguagem, como outras características do Homo sapiens, desenvolveu-se ao longo dos anos, culminando na linguagem complexa que nossas sociedades hoje desenvolveram. Segundo ele, Chomsky ignora a teoria darwiniana e apresenta um argumento circular, não dizendo nada sobre a evolução dos símbolos, gestos e ícones e apresentando uma alteração genética súbita para a capacidade da recursividade. Outro ponto a destacar é que a teoria chomskyana não coloca a comunicação como aspecto principal da linguagem. Os animais se comunicam de diferentes maneiras, mas somente os humanos desenvolveram estruturas dependentes de regras para realizar est a comunicação.

Pesquisas dão evidências da existência da linguagem no Homo neanderthalensis, mas Everett acredita que os neandertais herdaram a linguagem de seus ancestrais. Para ele, a linguagem já é usada há mais de 60 mil gerações, tendo seu início no nosso ancestral Homo erectus, há mais de um milhão de anos. O Homo erectus foi o pioneiro em diversos aspectos humanos além da linguagem, como a cultura e a migração humana. Segundo Everett, o domínio do fogo, as migrações, as ferramentas e os indícios culturais apontados por pesquisas fazem com que se remeta a origem da linguagem ao Homo erectus. A linguagem foi o que possibilitou a troca de informações, planejamento e transmissão de conhecimento para futuras gerações, o diferencial e a vantagem da espécie humana sobre todas as outras espécies da terra.

Aparato vocal: a fala como uma função do corpo inteiro

Um dos aspectos apontados por Everett para sustentar sua hipótese diz respeito ao aparato vocal dos humanos. Não nascemos com um modelo mental para a gramática. As semelhanças entre as diferentes linguagens ocorrem por um processo histórico individual, e não por um gene específico para a linguagem. Além disso, não há “um” órgão humano dedicado à linguagem. Temos diversos órgãos que estão envolvidos no processo de fala, cuja função principal é outra:

There are three basic parts to human speech capabilities that evolution needed to provide us with to enable us to talk and sing as humans do today. These are the lower respiratory tract, which includes the lungs, heart, diaphragm and intercostal muscles, the upper respiratory tract, which includes the larynx, the pharynx, the nasopharynx, the oropharynx, the tongue, the roof of the mouth, the palate, the lips, the teeth and, most importantly by far, the brain (Everett, 2017, p.175).

Como em outros processos evolutivos, a evolução “aproveitou” um órgão já existente e o adaptou para uma nova demanda. Nem mesmo o cérebro possui um local cuja função única seja a linguagem. A única exceção a est a regra pode ser encontrada na forma e posição da língua. Isto parece ser uma evidência de que a linguagem é, antes, uma criação humana, proporcionada pela cultura, do que uma função biológica. A biologia possibilitou que os humanos desenvolvessem est a habilidade, mas não pode ser vista como uma “oferta” biológica aos humanos, já que a linguagem é uma função do corpo todo, incluindo gestos, entonação, aspectos culturais e mesmo aspectos relacionados ao meio ambiente:

[…] each unit of sound is built up from smaller units via natural processes that make it easier to hear and produce sounds of a given language. Our sound structures are also constrained by two other sets of factors. The first is the environment. Sound structures can be significantly constrained by the environmental conditions in which the language arose – average temperatures, humidity, atmospheric pressure and so on. Linguists missed these connections for most of the history of language, though more recent research has now established them clearly. Thus, to understand the evolution of a specific language, one must know something about both its original culture and its ecological circumstances. No language is an island (Everett, 2017, p.211).

Everett acredita que os humanos inventaram a linguagem, motivados por sua forma de vida e interação social. O desenvolvimento do cérebro, obviamente, foi decisivo para tornar possível est a invenção.

Cérebros humanos estão conectados

O grande e denso cérebro dos humanos possibilitou a invenção da linguagem. A combinação entre um cérebro grande e a cultura é o que explica por que só os humanos possuem a capacidade da fala. Everett afirma que os humanos conseguiram desenvolver o cérebro não apenas com uma alteração biológica, mas também com uma alteração cultural, visto que os humanos passaram a cozinhar os alimentos, fazendo com que necessitassem de menos tempo para a digestão, podendo dedicar est e tempo e energia a outras tarefas. Além disso, o tamanho da comunidade à qual um indivíduo pertence afeta o tamanho do cérebro deste indivíduo. Everett (2017, p.131) cita Robin Dunbar e afirma que quanto mais o grupo cresce, mais o córtex humano se desenvolve. Isto ocorre porque os cérebros estão conectados, fazendo com que a cultura “aumente” nosso cérebro. Os cérebros estão não somente conectados com nossos corpos evolutiva e fisiologicamente, mas também conectados com outros cérebros por meio da cultura. Conforme Everett, est e é mais um indício de que a linguagem não pode ser uma característica inata dos indivíduos, mas uma ferramenta desenvolvida e aprendida culturalmente:

Because culture can change the form of the brain, and since there is no knowledge of any cognitive function that is innate to a specific location in all brains, the difficulty of using arguments from cerebral organisation or anatomy for the idea that language is innate is clear. And it is equally implausible to claim that specific regions of the brain are genetically specialised for specific tasks. The brain uses and reuses its various areas in order to accomplish all of the challenges that modern humans confront. Evolution has prepared humans to think more freely than any other creature by giving them a brain capable of learning culturally rather than one that relies on cognitive instincts. From one vantage point, localisation in the brain is trivial. Everything we know is somewhere in our brain. Therefore, finding that this or that kind of knowledge is located in a specific part of the brain is not evidence for innate knowledge (Everett, 2017, p.141).

Esta capacidade de aprendizado presente no cérebro humano nos possibilitou pensar de maneira flexível, preparando-nos para qualquer situação, em contraste com as reações instintivas dos outros animais. Isto tornou os humanos mais aptos à sobrevivência que qualquer outro animal. Esta explicação para o aparecimento da linguagem parece ser, para Everett, mais plausível de ser favorecida pela seleção natural. Os animais que possuíam est a habilidade passaram por um genuíno efeito Baldwin, pois tinham maior capacidade de planejamento e pensamento complexo, facilitando a sobrevivência da espécie e possibilitando o desenvolvimento, no decorrer de anos, de uma linguagem complexa. Uma alteração genética, como um gene para a linguagem, poderia ser tratada pela seleção natural simplesmente como uma mutação neutra, podendo ser alterada ou eliminada por meio do efeito Baldwin, de uma deriva genética ou de um gargalo populacional. Em vez de ser eliminada, a linguagem foi se tornando mais complexa ao longo dos anos, mas sua forma e complexidade podem variar, de acordo com o período ou local em que dada comunidade vive.

Linguagem: holística e multimodal

Para Chomsky, a linguagem necessita de recursividade gramatical. Em seus estudos com a comunidade Pirahã, contudo, Everett observou que a língua Pirahã não utiliza o recurso da recursividade nem uma estrutura gramatical complexa, apesar de suprir todas as necessidades daquela tribo. Por causa disso, ele afirma que a linguagem é uma combinação de vários fatores e a gramática dá forma e estrutura um conjunto de informações, auxiliando para que uma mensagem seja passada, mas não é, por si só, linguagem. Também não é possível estabelecer em qual etapa da evolução linguística a gramática aparece, mas é certo que, antes dela, devem vir os símbolos. Isto porque, para a linguagem humana, o significado deve vir em primeiro lugar e depois a forma. Segundo ele,

[…] all languages come about gradually. Language did not begin with gestures, nor with singing, nor with imitations of animal sounds. Languages began via culturally invented symbols. Humans ordered these initial symbols and formed larger symbols from them. At the same time symbols were accompanied by gestures and pitch modulation of the voice: intonation. Gestures and intonation function together and separately to draw attention to, to render more salient perceptually, some of the symbols in an utterance – the most news-worthy for the hearer. This system of symbols, ordering, gestures and intonation emerged synergistically, each component adding something that led to something more intricate, more effective (Everett, 2017, p.XVII).

Símbolos são, portanto, o ponto central para a compreensão da evolução da linguagem humana. Eles moveram os humanos até as linguagens complexas que utilizamos hoje. A passagem de um ícone a um símbolo, entretanto, é uma passagem “não natural” para Everett:

This step requires human invention. Evolution did not create symbols or grammars. Human creativity and intelligence did. And that is why the story of how language began must also be about invention rather than about evolution alone. Evolution made our brains. And humans took over from there (Everett, 2017, p.18).

Everett destaca que a linguagem é uma convergência de diferentes aspectos: invenção humana, história, evolução física e cognitiva. Por isso deve ser compreendida levando em consideração não somente os aspectos biológicos e fisiológicos, mas também os aspectos culturais e ambientais envolvidos. Ele também afirma que a linguagem é holística e multimodal. Isto significa que

Whatever a language’s grammar is like, language engages the whole person – intellect, emotions, hands, mouth, tongue, brain. And language likewise requires access to cultural information and unspoken knowledge, as we produce sounds, gestures, pitch patterns, facial expression, body movements and postures all together as different aspects of language (Everett, 2017, p.230).

Uma comunicação humana real deve est ar sempre composta por gestos e fala, já que eles formam um sistema integrado. Os gestos facilitam a compreensão da mensagem a ser passada, visto que a fala, por si só, nunca consegue expressar completamente todos os aspectos necessários em um enunciado. O falante sempre precisa se valer de gestos, entonação, expressão facial e de uma série de conhecimentos prévios, bem como pressupor conhecimentos prévios do seu interlocutor. “But something is always left out. The language never expresses everything. The culture fills in the details” (Everett, 2017, p.201).

Língua: serva da cultura

A comunicação é comum a todos os animais. O diferencial da comunicação humana se dá pela qualidade com que ela ocorre, ou seja, por meio da linguagem. É ela que distancia tanto os humanos e os outros animais. E ela só é possível devido à cultura. Para Everett, “Language is the handmaiden of culture” (Everett, 2017, p.XVII).

A cultura também contribuiu para nos libertar da nossa condição puramente biológica. Sociedades que se reconhecem por meio de regras e acordos culturais têm mais chances de perseverar e transmitir seus genes, visto que os indivíduos pertencentes a ela são amparados pelo grupo e não se veem mais pressionados pelas ameaças físicas evolutivas. Um indivíduo mais fraco, que sozinho não teria muitas chances de sobreviver, em uma comunidade que supre suas necessidades biológicas pode prosperar e procriar, transmitindo seus genes a descendentes viáveis. Everett afirma que a seleção natural foi favorável aos humanos, ampliando suas opções cognitivas. Esta liberdade cognitiva nos auxilia no desenvolvimento de habilidades cognitivas e no uso da linguagem. Em diversos momentos do livro, Everett retoma a ideia de que conceitos nunca são inatos, sempre aprendidos. E só podem ser aprendidos porque conceitos fazem parte da cultura, que é uma construção humana. Habilidades perceptivas, por outro lado, são inatas. Ver, ouvir, sentir e algumas emoções são exemplos de habilidades perceptivas inatas que nos auxiliam a apreender conceitos e a interagir com os demais indivíduos. Segundo ele, “Human bodies and brains are enhanced by culture just as culture itself is enhanced by our thinking and language” (Everett, 2017, p.125), o que leva a cultura a afetar não somente nossos comportamentos e inteligência, como também nossa aparência e fenótipo. Por isso,

[…] the most important question about our brains is not ‘What in the brain makes language possible?’ The right question is, ‘How brains, cultures and their interactions work together to produce language?’ The answer is that, over time, each has helped the other to improve. One cannot understand the evolution of language, therefore, without understanding the evolution of culture (Everett, 2017, p.126).

O uso de símbolos, gestos e gramática impulsionou a comunicação humana, mas também sua capacidade cognitiva, possibilitando pensar em conjunto, desenvolver habilidades coletivas e conhecimento sobre o mundo, bem como orientar-se para o futuro.

Todo o comportamento humano est á orientado culturalmente. Os diferentes papéis sociais ocupados pelos indivíduos e reconhecidos por outros são perpassados pela cultura, mesmo aqueles que se consideram universais. Nada do que é compreendido em uma conversação é completamente falado. Nem mesmo os artefatos podem ser compreendidos fora de determinada cultura. Todo o processo do desenvolvimento humano deve ser compreendido levando em consideração o papel da cultura neste processo. No momento da fala, os indivíduos utilizam gestos, entonação, expressão facial e vários outros mecanismos para passar uma informação, contando não somente com toda a sua experiência de vida e conhecimento prévio, mas também contando com que o seu interlocutor se utilize delas para compreender a mensagem. E a mensagem, via de regra, é compreendida prontamente. Isto porque todos dispomos de um conhecimento tácito, chamado por Everett de dark matter.

Dark matter é uma combinação entre cultura e psicologia individual, na qual o indivíduo se utiliza das informações culturais fornecidas para ele, para formar primeiro uma imagem ou percepção de si próprio e, a partir disso, interagir com o mundo. Everett retoma a ideia de dark matter no livro How language began, já que est e conceito é fundamental para compreender a forma como a cultura perpassa a linguagem e constituição dos sujeitos, mas uma definição mais adequada do termo pode ser encontrada no seu livro anterior, Dark matter of the mind:

Dark matter of the mind is any knowledge – how or any knowledge – that that is unspoken in normal circumstances, usually unarticulated even to ourselves. It may be, but is not necessarily, ineffable. It emerges from acting, “languaging,” and “culturing” as we learn conventions and knowledge organization, and adopt value properties and orderings. It is shared and it is personal. It comes via emicization, apperceptions, and memory, and thereby produces our sense of “self” (Everett, 2016, p.26, grifos do autor).

Toda a compreensão humana sobre o mundo é produto da sobreposição de ideias e valores, dark matter. Nossa percepção de nós mesmos, lembranças, posição sexual e nossas ações dentro da comunidade, mas também as leis, arquitetura e todos os objetos feitos e utilizados pelos seres humanos. Apesar de parecer algo estritamente humano, Everett afirma que outros animais, além dos humanos, também possuem o que ele chamou de dark matter. Fez uma comparação com a maneira como os cachorros se comunicam conosco, aprendendo truques, expondo emoções e se comunicando, mesmo sem poder verbalizar est as intenções. Para ele, est a é mais uma prova de que os erectus provavelmente também aprendiam a sua linguagem por meio da interação com outros membros do grupo, principalmente com as mães. Segundo ele,

The relevance of all the above to language evolution is that even Homo erectus, Homo neanderthalensis, Denisovans and Homo sapiens would have – in the gradual construction of relationships, roles and shared knowledge bases – interpreted what people said, from the very first syllable uttered or gesture made, based on their view of the person and their understanding of their context. They would have ‘filled in the blanks’ of speech just as sapiens do. This is all a part of language that many linguists call pragmatics – the cultural constraints on how language is used. And these constraints guide our interpretations of others. They help us, as they helped other Homo species, to resolve the underdeterminacy of speech (Everett, 2017, p.256, grifos do autor).

A linguagem sempre funcionou se valendo da interação com os demais membros do grupo e da sua compreensão mútua acerca dos conceitos. A linguagem só pode ser entendida em conjunto com a cultura e a psicologia, e sua evolução só pode ser explicada levando em consideração est es fatores. Para ele, apesar de muitos cientistas relacionarem o aparecimento da linguagem com a complexidade cerebral e social que o sapiens desenvolveu, é preciso pensar que a linguagem apresenta diferentes níveis de complexidade, que se desenvolve com a complexidade social, mas que continua sendo linguagem mesmo que seja considerada mais “rudimentar”, já que se vale dos mesmos artifícios utilizados por linguagens mais complexas.

Everett nos apresenta uma nova interpretação da evolução da linguagem humana, com alguns indícios que remetem o seu início a um distante ancestral humano. Sua teoria est á em consonância com os estudos atuais e com a compreensão evolutiva que temos acerca dos seres vivos. Por mais que sua explicação pareça mais adequada a uma visão evolutiva do ser humano, ainda faltam provas para validar suas afirmações. O salto de 60 mil gerações apresentado por Everett precisa ser comprovado, já que os indícios apresentados no livro são insuficientes para que possamos conceder também ao Homo erectus a capacidade ou, como sugere Everett, a invenção da linguagem.

Referências

EVERETT, Daniel L. 2016. Dark matter of the mind: the culturally articulated unconscious. Chicago, The University of Chicago Press.

Viviane Zarembski Braga – Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Unisinos – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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[DR]

 

DOMINGUES, Ivan. Filosofia no Brasil: legados e perspectivas – ensaios metafilosóficos – DOMINGUES (FU)

DOMINGUES, Ivan. Filosofia no Brasil: legados e perspectivas – ensaios metafilosóficos. São Paulo, Editora Unesp, 2017. Resenha de: CANDIOTTO, Cesar; OLIVEIRA, Jelson. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.20, n.3, p.290-292, set./dez., 2019.DOMINGUES, Ivan.

O livro de Ivan Domingues é uma contribuição ímpar para a discussão em torno da formação da “filosofia brasileira”, aquilo que, grosso modo, envolve a existência de autores, de obras e leitores de temas brasileiros ou ligados ao Brasil. Seu horizonte de leitura não é a “narrativa” daquilo que tem acontecido desde o Brasil Colônia até os últimos 50 anos. Antes, ele é apresentado como uma “metafilosofia”, na extensão da natureza reflexiva da filosofia, autorizando-a a tomar a si mesma como objeto e fazer uma reflexão filosófica sobre a filosofia, uma filosofia da filosofia. O background da obra, como já destacou o professor Oswaldo Giacoia Jr., em resenha recente da obra3, é a atuação acadêmica de Ivan na área de Filosofia, algo que não lhe dá apenas legitimidade para escrever o que escreve do jeito como escreve, mas, sobretudo, conhecimento e vigor argumentativo para recontar a história não na perspectiva do passado, mas com os interesses próprios de nosso tempo. Porque conhece de dentro, Ivan pode relatar o pensamento de forma viva e fecunda. Para contar a história, ele suja as mãos, por assim dizer: contamina-se da história, situa-se nela, sai do texto contagiado por ele, tanto quanto nós, seus leitores, empurrados para o pensamento a respeito das perspectivas e para as perguntas sobre o futuro disso que é a tarefa da filosofia em nosso país. Trata-se de uma empreitada que aproxima o epistemólogo do genealogista que se deixa azeitar pela riqueza argumentativa de sua própria trajetória filosófica, cuja pergunta inicial, como é praxe nesses casos, diz respeito à possibilidade e oportunidade de seu objeto: existiria, afinal, uma filosofia no Brasil? E, em caso positivo, qual a sua identidade?

Tal questão ganha renovada importância quando temos em conta a história de outras disciplinas das ciências humanas, como educação, antropologia, ciências sociais e políticas, cuja contribuição para a elaboração de um pensamento no Brasil (que é também, quase sempre, sobre o Brasil) conta com nomes como Paulo Freire, Florestan Fernandes e Sérgio Buarque de Holanda, entre tantos outros. Formular a interrogação, como faz Ivan, sobre a filosofia no Brasil, por isso, é colocar-se diante da história como quem olha para as raízes de uma árvore florescida, adivinhando seus frutos, para depois, como Ferreira Gullar, ver que “cresce no fruto/ A árvore nova”.

O objeto principal da obra é a filosofia brasileira, ou, especialmente, o problema filosófico da existência ou não de uma filosofia no Brasil que justifique a adjetivação brasileira. Trata-se de uma tentativa exitosa de imprimir às reflexões empreendidas a forma do ensaio filosófico. Fazer filosofia como ensaio e não como narrativa envolve fazer uso da argumentação cuidadosa, da provisoriedade dos resultados, do pensamento não objetual e do risco da tentativa, que inclui erros e acertos. Nesse sentido, o livro segue os rastros metodológicos de Montaigne reafirmados na época contemporânea por Michel Foucault, para o qual a filosofia consiste no exercício do pensamento sobre si mesmo, sendo o ensaio a expressão literária maior desse exercício. Fiel à balança do tempo no qual ele mesmo se pesa, Ivan expressa seu pensamento na forma ensaística como quem recusa a conclusividade fácil, embora também recuse o caminho do meio. O resultado é que seu pensamento age por metástase, contagiando o leitor com o espírito da curiosidade e do interesse que Ivan aciona e pratica na sua melhor forma.

Se a filosofia é um exercício do pensamento, então se trata de sair dela mesma, para tratar sua tentativa de totalização do real. Nesse sentido, Ivan descarta a hegemonia de uma única filosofia sem abrir mão de anunciar linhas e tendências argumentativas, cujos fios servem para costurar a história do pensamento em solo nacional. Essa postura, contudo, implica abrir-se a outras maneiras de pensar, a outros domínios, tais como os da história e da sociologia. Todavia, as considerações históricas, assim também como as sociológicas, fazem parte da argumentação não como objeto de pesquisa, mas como meio e fonte. São fundamentais para a argumentação as considerações sobre a natureza da sociedade brasileira, entre seu passado colonial e o Brasil moderno, entre a sociedade agrário-oligárquica e a urbano-industrial. Tais perspectivas e considerações, contudo, cimentam a estratégia e comparecem no contexto geral da obra como para dar corpo ao desenvolvimento de uma problemática de ordem metafilosófica, que reconhece as condicionalidades nacionais como parte integrante de um pensamento enraizado nas experiências geográficas e históricas da racionalidade filosófica que apareceu na pena de pensadores como Paulo Eduardo Arantes, Henrique Cláudio de Lima Vaz, Silvio Romero, Tobias Barreto e tantos outros.

Para cumprir sua tarefa, Ivan Domingues apoia-se na linguística estrutural a partir de dois procedimentos: os métodos in praesentia e in absentia, sendo que o primeiro perscruta “os elementos empíricos e reais (sociológicos, históricos, políticos e culturais) denominados como positividades; e o segundo, os elementos abstratos – especulativos, ideais e virtuais –, voltados para a ordem das ideias ou do pensamento”. Em poucas palavras, trata-se de estabelecer o contraste entre o método histórico da praesentia e o método lógico ou dialético descolado do real empírico, porém considerado mais operativo para desenvolver o argumento. Outro método associado provém da lógica modal, cuja premissa são os chamados “tipos ideais” de Max Weber, a saber, “constructos mentais ou modelos teóricos” que se revelaram essenciais para vencer a opacidade do real empírico e trabalhar os diferentes tipos ou figuras de intelectuais a que o exercício da filosofia se viu ligado em diferentes épocas de sua formação histórica.

Assim, o livro se desenvolve a partir desse eixo metafilosófico e, complementarmente, de uma tentativa de recontar a história intelectual brasileira a partir dos tipos ideais que o autor busca em Max Weber, para caracterizar os cinco intelectuais brasileiros no campo da filosofia, os quais servem muito bem para a compreensão das etapas históricas que orientaram a filosofia brasileira até nossos dias. Tal intuição, revestida de capacidade sintética e, ao mesmo tempo, quase metafórica, oxigena a obra com fecundo e instigante ineditismo interpretativo.

Dessa maneira, a estrutura do livro é delineada a partir de seis passos: [1] o argumento metafilosófico, que acabamos de sumarizar; [2] o passado colonial e seus legados: temos aí o tipo ideal do intelectual orgânico na igreja; [3] Independência, império e república velha: o intelectual estrangeirado; [4] os anos 1930-1960: a instauração do aparato institucional da filosofia: os fundadores (departamento de ultramar), a transplantação do scholar e o humanismo intelectual público; [5] os últimos 50 anos: o sistema de obras filosóficas, os scholars brasileiros e os filósofos intelectuais públicos ligados aos partidos e às questões nacionais; [6] conquistas e perspectivas: os novos mandarins e o intelectual cosmopolita globalizado.

A partir dessa estrutura, o autor situa a atividade filosófica na tensão entre dois aspectos que se complementam entre si: de um lado, essa atividade é uma techné, para não dizer um métier, composto pelo desenvolvimento de certas habilidades e competências, a frequentação e o trabalho dos textos. Pensada desta maneira, a atividade filosófica seria semelhante à do scholar, enfocado na exegese e na história da filosofia, e, nesse sentido, ela não seria diferente de outras áreas, como a da filologia e a da história. De outro lado, a atividade filosófica é um ethos, a saber, uma atividade reflexiva e questionadora da realidade, quando deixa de manter com o real e o empírico a mesma atitude reverencial da ciência. O ethos é o gosto pela discussão, pelo cultivo do espírito crítico, experimental e intuitivo, e, nesse sentido, podemos dizer que a alma desse livro, além de outros elementos importantes, é pensar a questão do ethos do filósofo ou do intelectual brasileiro.

Como se trata de uma tentativa de pensar os legados e perspectivas da filosofia brasileira, o ensaio aposta na estratégia do “paradigma de formação” para identificar o legado e da “pós-formação” para vaticinar as perspectivas. Nesse sentido, Filosofia no Brasil segue os passos dos chamados “pensadores do Brasil” (atente-se que não se trata dos “filósofos do Brasil”), como Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Antonio Cândido, Celso Furtado, Raymundo Faoro, Paulo Arantes (e est a lista poderia continuar), que evocam em seus títulos e subtítulos esse paradigma da formação.

Para quem conhece outros trabalhos de Ivan Domingues, est e livro é a continuidade de O continente e a Ilha, no qual ele elabora um contraste entre a filosofia continental europeia e a filosofia anglo-saxã, uma mais voltada para a história da filosofia, outra mais próxima da filosofia analítica. Essa dupla face europeia tem tido repercussões na filosofia no Brasil, entre, de um lado, os chamados analíticos e, de outro, aqueles mais dedicados à filosofia e sua história. Filosofia no Brasil indica a fragilidade dessas grandes distinções, mostrando que, mesmo na tradição franco-alemã, há dois caminhos: o de Hegel, que privilegia uma perspectiva histórico-sistemática (“fazer história da filosofia”, como já encontramos em Cassirer), e outra de Foucault, para o qual fazer filosofia é apostar no ensaio, no fragmento e em um canteiro de obras.

A tensão proposta e desenvolvida por Domingues, assim, dá bons frutos, porque na medida em que lê o livro, o leitor situa-se no campo das interdisciplinaridades sem tirar um pé das características filosóficas propriamente ditas, compreendendo a intelligentsia brasileira como um produto controverso e tensional, para o qual pouca gente se dirigiu com a coragem de Ivan, dados os desconfortos que mais intimidaram do que promoveram um debate tão necessário como o que, agora, esse livro evoca – destaque-se o “agora” que dá ao livro uma vocação inédita, mas, sobretudo, o situa no tempo que é o nosso, no qual a filosofia no Brasil se encontra com novos dilemas, ameaçada por antigas mordaças ressuscitadas por certa perseguição aos intelectuais e pelo culto à vulgaridade do pensar, corroído pela assimilação tendenciosa dos modernos meios de comunicação, pelas predisposições fanáticas, pela desinformação e pelas desverdades.

Um livro, assim, sobre a filosofia no Brasil não poderia chegar em hora mais apropriada, quando somos todos convidados a prestar nova atenção à realidade que nos cerca, seus recuos históricos, suas discursividades forjadas pela indústria da desinformação, sua hipérbole de emotivismo que forja e brame narrativas em busca de impacto (leia-se, “likes” e coisas do gênero), sua preguiça diante do pensamento crítico em benefício de um nefasto desejo de ordem, educação moral e cívica. Com seu livro, Ivan Domingues torna o problema novamente atual: de onde viemos e para onde vamos, como filósofos no Brasil? Uma pergunta que, assim, bem formulada, torna-se também deliberadamente perigosa, porque retoma o papel da filosofia como uma espécie de protesto contra a indiferença do pensar. É essa provocação visceral que o leitor dessa obra precisa aceitar, as novas gerações em especial.

Notas

1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Rua Imaculada Conceição, 1155, 80215-901. Curitiba, PR, Brasil. Email: [email protected].

2 Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Rua Imaculada Conceição, 1155, 80215-901. Curitiba, PR, Brasil. Email: jelson.oliveira2012@ gmail.com

3 Kriterion, Belo Horizonte, n.140, ago. 2018, p.631-636.

Cesar Candiotto – Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Curitiba, PR, Brasil. E-mail: [email protected]

Jelson Oliveira – Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia. Universidade Católica do Paraná. Curitiba, PR, Brasil. E-mail: [email protected]

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Phenomenology of Illness – CAREL (FU)

CAREL, Havi. Phenomenology of Illness. Oxford: Oxford University Press, 2016. Resenha de: LOPES, Marcelo Vieira.  Fenomenologia da enfermidade. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.20, n.1, p.111-112, jan./abr., 2019.

A enfermidade certamente desempenha um papel substancial na existência humana. É-nos difícil imaginar uma vida totalmente desprovida de enfermidade e de suas consequências. De forma surpreendente, a filosofia contemporânea desconsiderou a importância de uma análise rigorosa destas experiências. Existiria algo assim como um método capaz de auxiliar na compreensão do significado da enfermidade? Esta é a tarefa proposta por Havi Carel neste excelente Phenomenology of Illness, de 2016.

Havi Carel é professora na Universidade de Bristol e no seu currículo constam títulos como Illness (2008, 2013) e Life and Death in Freud and Heidegger (2006). Para além da experiência profissional na área, Carel sofre de uma doença pulmonar rara que, veremos, não é uma informação irrelevante no contexto e método adotado nesta obra. Estão presentes aí os elementos metodológicos para desenvolver uma fenomenologia da enfermidade, divididos em nove capítulos.

O capítulo 1 fornece a justificativa do método fenomenológico como ferramenta de análise da enfermidade. A enfermidade (illness) será entendida como a experiência em primeira pessoa do processo de adoecimento e traz consigo uma transformação da experiência corporificada (p. 15). Tal fenômeno se apresenta através das rupturas nos hábitos, expectativas e capacidades de uma pessoa desestabilizada em sua corporificação normal.

O capítulo 2 fornece a análise de cinco temas inter-relacionados a partir das características fenomenológicas do corpo. O primeiro investiga uma série de perdas que estruturam a experiência da enfermidade (p. 41). A distinção fenomenológica entre Körper e Leib fornece o aspecto corporal correlato à distinção entre doença e enfermidade. O terceiro passo analisa os níveis objetivo, subjetivo e intersubjetivo da experiência corporal, a partir da obra de Sartre. O quarto passo envolve a análise da ruptura da transparência do corpo em função da dor e desconforto na enfermidade. Por último, Carel analisa a enfermidade a partir da analogia com o utensílio avariado, desde a perspectiva heideggeriana. Essa analogia mostra-se falha, uma vez que, diferentemente do utensílio quebrado, o corpo enfermo não pode ser substituído.

O capítulo 3 identifica as perdas implicadas no declínio corporal decorrente da enfermidade. São apontadas as limitações, dificuldades e a mudança de perspectiva do enfermo. A noção heideggeriana de “poder-ser” (Seinkönnen) desempenha um papel importante. Se a experiência da enfermidade fornece situações de dependência, insuficiência e incapacitação, segue-se a necessidade de uma reconsideração de um “poder-ser” indiscriminado (p. 76). Carel sugere uma ampliação dessa noção de modo a incluir capacidades radicalmente diferentes, bem como a consideração de um não-poder-ser, isto é, o reconhecimento de uma incapacidade intrínseca à existência humana.

O capítulo 4 examina uma experiência nuclear da enfermidade, a chamada dúvida corporal, que indica o rompimento da certeza tácita do funcionamento normal do corpo (p. 86). A dúvida corporal implica uma modificação radical da experiência, ao pôr em questão capacidades básicas inerentes ao funcionamento do próprio corpo. Internamente a est a ruptura surgem modificações e perdas de continuidade, transparência e confiança no próprio corpo.

O capítulo 5 é, certamente, o mais impressionante de todo o livro. Mesmo se tratando de uma obra técnica, é difícil não se comover com a descrição pessoal da falta de ar (breathlessness). Carel sofre de lymphangioleiomyomatosis, uma limitação pulmonar rara, que lhe permite extrair os elementos para uma análise estrita em primeira pessoa. As descrições do sentimento de sufocamento, incapacidade de respirar e o medo de um colapso dimensionam o significado desta experiência. Ao mesmo tempo, são elencadas as consequências experienciais da enfermidade: a retração de mundo acompanhada da perda de liberdade e capacidade de escolha e controle. É possível encontrar uma mudança estrutural na experiência de um “eu posso” para um “eu não posso mais” (p. 111). As implicações dessa mudança modal na estrutura da existência implicam uma série de reações psicológicas como desespero, ansiedade e desesperança. A falta de ar, diferentemente de um mero sintoma, fornece assim o horizonte constante que molda por completo a experiência do paciente com problemas respiratórios (p. 128).

O capítulo 6 investiga a possibilidade do bem-estar na condição enferma. Existem, afinal, aspectos positivos desta condição? Não obstante o mal-estar corporal, a enfermidade fornece experiências que podem, porventura, promover edificação e crescimento pessoal. Uma das condições para o bem-estar consiste em uma capacidade de resiliência vinculada ao momento presente (p. 140). Por outro lado, a condição enferma implica uma preocupação constante com o futuro daquele que padece, constituindo um fator estressor, na medida em que produz angústia sobre o tratamento, a progressão da doença e, em última instância, a morte.

A morte é o tema do capítulo 7. Se a enfermidade é entendida como um tipo de incapacidade, a morte, então, é o fechamento das possibilidades do enfermo. Carel aborda o conceito de morte em Heidegger com vistas a uma abordagem relacional. É necessário entendê-la não mais como uma experiência solitária, mas que pode vir a ser compartilhada, visando uma melhoria na compreensão da experiência da enfermidade e da própria mortalidade constitutiva da experiência humana.

O capítulo 8 trata de uma questão relativa à avaliação dos relatos de enfermidade em primeira pessoa. Relatos sobre a própria experiência tendem a ser mal compreendidos, ignorados ou rejeitados em contextos de tratamento. Esse fenômeno constitui o que Miranda Fricker chamou de “injustiça epistêmica” e é referente à desconsideração do falante em sua capacidade de conhecimento sobre seu próprio est ado experiencial. Como resposta ao problema, Carel apresenta a chamada caixa de ferramentas fenomenológica, que consiste em: 1. Suspender a crença na realidade objetiva da doença, desvelando como a enfermidade aparece para a pessoa enferma; 2. Tematizar a enfermidade tornando explícitos alguns de seus aspectos particulares; 3. Examinar como est es aspectos modificam o ser no mundo da pessoa enferma (p. 197). O objetivo é promover a melhoria na capacidade de expressão de experiências pessoais únicas, em vez de uma adaptação forçada a expectativas médicas e culturais.

No capítulo final a atenção volta-se para o outro polo da relação entre filosofia e enfermidade. Como a enfermidade pode vir a iluminar a prática filosófica? Na medida em que promove uma reflexão sobre o significado de uma vida digna, o componente filosófico da enfermidade est aria, ao menos em princípio, assegurado. Seu apelo filosófico, porém, é direto e não-teórico. Em outras palavras, a enfermidade pode ser integral à prática filosófica, seja influenciando seus métodos, seja modificando a própria concepção de filosofia e/ou aumentando a urgência de determinados tópicos. Neste último e excepcional capítulo, a enfermidade surge como uma espécie de método filosófico compulsório. Método est e que é capaz de iluminar a normalidade através de sua contrapartida patológica (p. 226). O argumento final provém da comparação da filosofia atual com as práticas antigas do filosofar, dotadas de um apelo transformativo relativo ao sofrimento intrínseco à vida humana. É necessário, segundo Carel, que retomemos em parte essa tradição para uma melhor compreensão do caráter transformador intrínseco à enfermidade.

Trata-se de uma obra extremamente frutífera em termos de análise e que preenche uma lacuna considerável nos estudos sobre enfermidade, seja em seu aspecto teórico ou prático. A obra é altamente recomendável para aqueles que buscam uma compreensão da enfermidade em seus aspectos experienciais. Da mesma forma, aqueles interessados no aspecto transformativo e existencial que a filosofia pode ainda oferecer certamente encontrarão neste Phenomenology of Illness uma grande obra.

Marcelo Vieira Lopes – Universidade Federal de Santa Maria. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Santa Maria, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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Human Nature in an Age of Biotechnology: The Case for Mediated Posthumanism – SHARON (FU)

SHARON, T. Human Nature in an Age of Biotechnology: The Case for Mediated Posthumanism. Dordrecht/Heidelberg/New York/London: Springer, 2014. Resenha de: GARGIULO, María Teresa. La naturaleza humana en la era de la biotecnología. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.18, n.3, p.260-262, set./dez., 2017.

Ante los avances de la biotecnología en materias de reproducción, genética y neurotecnología, la cuestión acerca de qué es la naturaleza humana se torna particularmente relevante. La autora de la presente publicación procura mostrar la necesidad de repensar una categoría tan esencial a las ciencias médicas cómo es el de naturaleza humana. Argumenta que dichos progresos parecen cuestionar o, al menos, reconfigurar aquel limite claro y significativo entre naturaleza y tecnología que actuó hasta entonces como un marco fiable para la práct ica médica. En est e sentido, el objetivo de su obra es doble. Se propone trazar un camino de ida y vuelta: una des-naturalización y una re-naturalización de dicho concepto.

Tal como lo dicta el título, Tamar Sharon contextualiza la discusión en un contexto poshumanista. La búsqueda de un modelo explicativo no humanista de la relación entre el hombre y la naturaleza es el eje que informa metodológicamente todo el libro. Por poshumanismo o transhumanismo entiende aquella tradición que rechaza los paradigmas modernos que est ablecen una distinción entre naturaleza y tecnología en la medida que tales dualismos son incapaces de explicar la profunda intimidad existente entre los seres humanos y la tecnología. El hombre no es sino una nueva unidad analítica abierta a infinitas formas de evolución creativa a través del uso de las nuevas tecnologías.

El libro est á dividido en ocho capítulos. A la introducción le sigue el capítulo 2, donde expone diversas definiciones de poshumanismo y, naturalmente, también de humanismo como su opuest o. Posteriormente la autora ofrece un mapa acerca de los distintos discursos poshumanistas. Puede discutirse si son acertados o no los criterios de distinción y análisis empleados para definir, clasificar y describir tales discursos. No obstante, es justo dest acar que todo lector interesado en adentrase en el estudio de la relación naturaleza-biotecnología sacaría un buen provecho de la lectura de est e capítulo en la medida que ést e presenta un est ado de la cuestión exhaustivo y actualizado.

En el capítulo 3 la autora aborda el debate acerca del mejoramiento humano y expone los diferentes argumentos esgrimidos por el poshumanismo liberal y el paradigma distópico resp ecto a algunos casos particulares que presenta la biotecnología: la optimización cognitiva, los bebés de diseño, la ingeniería genética y la psicofarmacología cosmética. Al final de est e capítulo Sharon objeta a ambos paradigmas en cuanto que est ablecen una estricta separación –típica de la modernidad– entre lo humano y lo tecnológico. Señala que sus argumentos obscurecen la cuestión acerca de qué es la naturaleza humana en cuanto que se limitan a discutir los problemas de la biotecnología en razón de los riesgos y de la discriminación social que ella supone.

En el capítulo 4 analiza los argumentos que esgrime el poshumanismo metodológico y radical. Los presenta como los principales candidatos capaces de explicar desde una perspectiva no humanista la relación de lo humano y lo tecnológico. Se interesa particularmente por erigir la noción de “mediación tecnológica” y la de “prótesis originarias” como nociones medulares que permiten trascender los enfoques esencialistas de la tecnología propios del discurso liberal y del distópico.

En el capítulo 5 la autora procura complementar desde lo biológico su visión antropológica expuest a en el capítulo 4. Ilustra su antropología con un caso de la biociencia molecular que consiste en generar “un cuerpo análogo” hecho de elementos flexibles y móviles con información genética que puede ser transferida entre cuerpos y esp ecies. La filogenia molecular ofrece una visión de las esp ecies y los organismos como el resultado de las fusiones endosimbióticas y el flujo genético entre los dominios de la vida. Estas dos teorías le permitirían a Tamar Sharon sostener una formulación molar del organismo, a saber, entenderlo como un ensamblaje fragmentario hecho de partes transferibles o trasladables que dependen activamente de la interacción con su entorno.

En el capítulo 6 explora la noción de subjetividad trascendiendo ya las coordenadas propias del poshumanismo. A través de una discusión con Heidegger, Latour, Deleuze y Haraway, Sharon procura formular una narrativa sobre la tecnología que sea funcional para sus consumidores. Define la subjetividad como una propiedad emergente que surge de la interacción entre lo natural y lo tecnológico. Ella no es sino una propiedad que est á constantemente dando forma y siendo a su vez transformada por su compromiso con la biotecnología. Señala, además, las herramientas conceptuales que brinda Foucault en su última obra, “El cuidado de sí” (1997-2005), como una vía fructífera para entender la subjetividad humana. En ella Foucault presenta la ética como la habilidad para reflejar el proceso a través de cual el hombre se constituye interminablemente como sujeto y exige que desarrollemos una relación act iva con la mediación que da forma a nuestro yo.

Las reflexiones propias del poshumanismo, la noción de “mediación tecnológica” y la de “tecnología del yo” constituyen las herramientas intelectuales con las cuales la autora formula su comprensión acerca de la relación de lo humano y lo tecnológico. Presenta la tecnología como una fuerza transformadora del ser humano sin ser por ello determinística, es decir, el hombre sigue conservando ante ella una relación consciente y ética.

Es justo señalar que la obra adolece, en cierto modo, de una auténtica reflexión filosófica. Pues la autora, lejos de remontar el dialogo a una dimensión metafísica, es decir, de discutir los supuest os ontológicos que animan los resp ectivos paradigmas, se concentra en señalar las implicancias sociales, políticas, práct icas y morales de sus horizontes ontológicos. Este proceder, lejos de instaurar verdaderos puentes de comprensión, no hace más que profundizar una relación de mutua inconmensurabilidad entre las diversas tradiciones.

Tamar Sharon no da cuenta, en definitiva, por qué un paradigma explicaría mejor que otro ciertos fenómenos de la biotecnología o a la misma naturaleza humana. No se invalidan los supuest os de los demás paradigmas por su inadecuada referencia ontológica sino simplemente por la diferencia que guardan con la tradición elegida, en est e caso, un poshumanismo mediatizado. Ahora bien, sin est a discusión de tipo ontológica ¿en función de que criterios puede categorizar como mejor su nueva posición? ¿Por qué su tradición hermenéutica ofrecería una mejor comprensión de la naturaleza humana?

El lector interesado en bucear en el libro algún tipo de respuest a resp ecto a que es en sí misma la naturaleza humana puede verse defraudado al percatar que el libro no ofrece ningún tipo de afirmación en est e sentido. La misma autora promete ofrecer una instancia de reflexión acerca de qué es en sí misma la naturaleza humana y cuáles son sus implicancias resp ecto a los avances de la biotecnología. No obstante, el lector descubre que el planteo de Sharon invierte la pregunta. En lugar de responder ¿qué es lo que significa ser humano? plantea ¿qué implicancias tienen las biotecnologías en la significación del ser humano? Tratando de evitar cualquier tipo de cuestionamiento metafísico, Sharon procura moldear y transformar la significación de lo humano mediante la misma práct ica y el ejercicio de la tecnociencia. La naturaleza humana no es sino el resultado final de una praxis y no un principio rector de la praxis. Más est e principio que opera implícitamente en su discurso no ha sido argumentado. El abordaje parecería desarrollarse en coordenadas sociológicas mas no filosóficas. En definitiva, parecería no importar qué es en sí misma la naturaleza humana. Justamente desde una posición adversa a todo cuestionamiento con una connotación metafísica se intenta resignificarla, repensarla a través de la relación histórica y contingente que est a realidad desconocida entable con la práct ica de la biotecnología. Sharon, en comunión con Foucault, sustantiviza est a relación para reconfigurar la naturaleza humana en una noción híbrida.

Lo que se propone resolver la autora no es si la biotecnología ha renaturalizado o re-esencializado lo humano o la naturaleza humana. Dando por supuest o todo est e proceso de resignificación le interesa resolver si est a renaturalización que ha tenido lugar en los últimos años es positiva o no. La autora termina diciendo que est a renaturalización es positiva en la medida que nos permite entender la naturaleza de un modo creativo y funcional para sus usuarios o consumidores (sic). Otro problema que podemos señalar es que el mapa de la discusión que ofrece corre el riesgo de clasificar las posiciones de una manera quizás excesivamente ingenua. Pues ninguno de los autores que analiza se reconoce bajo las categorías con las cuales Sharon clasifica sus tradiciones. La misma Sharon reconoce est a situación en la página 7.

Por otro lado –y aun asumiendo que muchos investigadores podrían est ar de acuerdo con ser incluidos dentro de las coordenadas del poshumanismo– no se entiende por qué Sharon incluye los bioconservadores dentro de ella. Pues ella misma los caract eriza como anti-poshumanistas. Sharon se limita a salvar est a contradicción explicando que su decisión de incluirlos se debe a que la comprensión negativa que los bioconservadores tienen resp ecto al poshumanismo toma parte de suyo en un discurso poshumanista.

Sea o no metodológicamente acertado el abordaje de la cuestión, el libro tiene la virtud de exponer un panorama amplio y actualizado de la bibliografía esp ecializada que la discute. Cumple con la tarea de introducir al lector en los argumentos que se esgrimen desde las principales posiciones existentes. Y en est e sentido el libro de Tamar Sharon es una lectura obligada y estimulante para todo lector interesado en el problema.

Nota

1 Conicet (Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas de la República Argentina).

María Teresa Gargiulo – Conicet. Universidad Nacional de Cuyo. Centro Universitario. Mendoza, Argentina. E-mail: [email protected]

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Leibniz: A very short introduction – ANTOGNAZZA (FU)

ANTOGNAZZA, M.R. Leibniz: A very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2016. Resenha de: SANTOS, César Schirmer dos. Uma introdução atualizada a Leibniz. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.17, n.3, p.390-391, set./dez., 2016.

Leibniz escreveu tanto que levará muito tempo até que sejam finalmente publicadas suas obras completas. Otimistas falam em décadas, pessimistas falam em séculos. Levando isso em conta, tudo o que podemos fazer é apresentar um retrato das obras de Leibniz a partir do material disponível. É exatamente isso o que a professora Maria Rosa Antognazza faz nesse pequeno e poderoso livrinho.

Maria Rosa Antognazza é professora do King’s College de Londres. No seu currículo encontramos artigos como “The hypercategorematic infinite” (2015) e “Primary matter, primitive passive power, and creaturely limitation in Leibniz” (2014), além de livros como Leibniz: An intellectual biography (2008) e Leibniz on the Trinity and the incarnation: Reason and revelation in the seventeenth century (2007).

O livro é muito bem organizado. O capítulo 1 trata da biografia de Leibniz. Tal como Spinoza, Leibniz teve que trabalhar para sobreviver. Jurista por formação, Leibniz trabalhou como diplomata e também como engenheiro de minas, entre tantas outras atividades. Tal amplitude no espectro de ofícios foi possível por causa da enorme curiosidade de Leibniz, mas também por sua genialidade e brilhantismo. Nas horas vagas, e também em horas, dias e anos em que ele deveria est ar se ocupando das tarefas a ele delegadas pelos seus exasperados empregadores, Leibniz deu contribuições decisivas à física, à matemática e à filosofia.

O capítulo 2 trata da lógica de Leibniz. Aqui vemos o quanto Leibniz foi importante para o desenvolvimento da ciência da computação. Em uma Europa fragmentada por guerras religiosas, Leibniz propôs que decidíssemos disputas religiosas, e quaisquer diferenças de opinião, através do cálculo. Para isso, seria preciso identificar os conceitos fundamentais, aqueles que compõem outros conceitos e que fazem parte das opiniões, e defini-los com precisão. Uma vez feito isso, poderíamos usar uma máquina – um análogo do ábaco, por exemplo – para calcular quem tem razão em uma disputa. Este projeto não foi realizado por Leibniz, e nós sabemos por quê. É preciso uma linguagem que a máquina entenda, e um meio da máquina passar das informações fornecidas a conclusões. Ora, é isso o que temos com nossas linguagens de programação e nossos processadores digitais. Isso Leibniz não tinha como produzir, mas vislumbrou.

O capítulo 3 trata dos projetos de enciclopédias e academias de ciências propostos por Leibniz. A Alemanha da virada dos séculos XVII-XVIII era um conjunto de “cidades-est ado” relativamente independentes. Algumas dessas unidades políticas eram suficientemente grandes para abrigar as universidades requeridas para formar os trabalhadores especializados, outras se viravam de outras maneiras. Uma dessas maneiras era o ensino através de enciclopédias, o que deu a Leibniz a ideia de uma enciclopédia organizada não em ordem alfabética, mas sim na ordem das razões. Primeiro os conhecimentos fundamentais, depois aqueles que imediatamente se seguem desses, e depois o campo aberto de conhecimentos que se seguem do que já foi descoberto. Essa proposta est á de acordo com a visão de Leibniz da pesquisa científica como uma tarefa coletiva, a qual requer instituições com financiamento garantido, o que levou Leibniz a propor imposto sobre o consumo de cigarro como meio de gerar recursos para a pesquisa.

Os capítulos 4-9 tratam da metafísica de Leibniz. Os capítulos 4-5 tratam de três elementos da metafísica de Leibniz: o princípio de identidade, o princípio de não contradição e o princípio da identidade dos indiscerníveis. Leibniz desdobra o princípio de identidade, segundo o qual A = A, em uma concepção na qual, seja qual for a verdade que se apresente, essa verdade é tal que o predicado est á contido no sujeito. No caso de algumas verdades da forma gênero-espécie isso é fácil de aceitar, pois parece analítico que ouro é um mineral, alface é um vegetal e baleia é um animal. Nesses casos, entender a definição do sujeito da frase é suficiente para se ver que a frase é verdadeira, pois visivelmente o predicado est á incluído no sujeito. Mas Leibniz defende que as verdades descobertas pelas observações de fatos empíricos também são assim. Tomemos uma verdade do tipo espécie-indivíduo, como Judas traiu Jesus Cristo. Não parece que o predicado esteja incluído no sujeito. Mas, para Leibniz, assim é, pois a propriedade de ter traído Jesus Cristo faz parte da identidade de Judas. Se Judas não tivesse traído Jesus Cristo, Judas não seria Judas. Dizer que Judas não traiu Jesus Cristo, então, seria mais do que enunciar uma falsidade, pois seria violar o princípio de não contradição, pois seria uma negação de uma instância de A = A.

O capítulo 6 trata da noção de realidade de Leibniz. Real, para Leibniz, é Deus, antes de tudo. O que quer que esteja na mente de Deus é real, e tudo o que é possível est á na mente de Deus, pois Deus só não pensa o que fere o princípio de não contradição, e o que não fere o princípio de não contradição é possível. Ou seja, o domínio do real é o domínio do possível. O domínio da existência é mais restrito, pois os únicos possíveis que são criados são aqueles que formam o melhor conjunto de compossíveis.

Os capítulos 7-8 tratam da questão da atividade da substância. Nenhum ser humano tem como conhecer cada um dos predicados que fazem com que Judas seja o indivíduo que ele é, pois é uma questão de fato se Judas fez isso ou aquilo, e nós só podemos saber disso através da história. Mas podemos conhecer duas coisas sobre qualquer substância individual, incluindo Judas. Primeiro, que cada substância tem cada um dos seus atributos, pois do contrário seria uma substância diferente daquela que é, se é que seria uma substância. Segundo, que cada substância individual é um princípio de ação, pois, do contrário, não seria uma substância. Leibniz concorda com Spinoza que toda substância age, mas conclui disso que nós agimos, em vez de concluir que não somos substâncias.

O capítulo 9 trata do atual est ado do debate sobre a filosofia de Leibniz. A principal questão que ocupa os especialistas em Leibniz é o estatuto ontológico do corpo na filosofia madura de Leibniz. Há dois problemas centrais. O primeiro problema é saber se, na fase final da sua investigação, Leibniz chega a uma noção estável e coerente de corpo. Há razões para duvidar disso. É possível que, pouco antes de morrer, Leibniz estivesse experimentando diversas posições, sem se comprometer com uma ou outra. O segundo problema é o que seria o corpo, para Leibniz, se for possível apresentar sua filosofia madura como uma proposta completa e coerente. Há duas posições. De acordo com a leitura idealista, Leibniz trata os corpos como meros fenômenos. De acordo com a leitura realista, Leibniz trata os corpos como entes com lugar na realidade criada e existente. A posição realista tem ganhado terreno, como podemos ver no artigo “Leibniz acerca de almas, corpos, agregados e substâncias na discussão com Fardella (1690)”, de Edgar Marques (2010), professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mas ainda há muito o que ser debatido.

Em resumo, est a breve introdução à vida e obra de Leibniz traz os elementos básicos para que o público visado conheça o fundamental da filosofia de Leibniz de acordo com o est ado atual da pesquisa. Estudantes e professores de graduação têm bastante a ganhar com essa leitura.

Referências

ANTOGNAZZA, M.R. 2015. The hypercategorematic infinite. The Leibniz Review, 25:5-30.

ANTOGNAZZA, M.R. 2014. Primary matter, primitive passive power, and creaturely limitation in Leibniz. Studia Leibnitiana, 46(2):167-186.

ANTOGNAZZA, M.R. 2008. Leibniz: An intellectual biography. Cambridge, Cambridge University Press, 653 p.

ANTOGNAZZA, M.R. 2007. Leibniz on the Trinity and the incarnation: Reason and revelation in the seventeenth century. New Haven, Yale University Press, 349 p.

MARQUES, E. 2010. Leibniz acerca de almas, corpos, agregados e substâncias na discussão com Fardella (1690). Kriterion: Revista de Filosofia, 51(121):7-20. https://doi.org/10.1590/s0100-512×2010000100001

César Schirmer dos Santos – Universidade Federal de Santa Maria. Departamento de Filosofia. Cidade Universitária. Santa Maria, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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Constructivity and Computability in Historical and Philosophical Perspective – DUBUCS; BOURDEAU (FU)

DUBUCS, J.; BOURDEAU, M. (Eds.). Constructivity and Computability in Historical and Philosophical Perspective. Dordrecht: Springer, 2014. (Series: Logic, Epistemology, and the Unity of Science). Resenha de: CARNIELLI1, Walter. Ser computável não é o mesmo que ser construtivo. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.17, n.2, p.244-246, mai./ago., 2016

This book is a collection of essays focusing on the relationship between computability and constructivity. Taking into account the 80 years that have passed since Alan Turing’s seminal paper of 1936, the papers in the book examine two lines of development: on the one hand, the restrictions, generalizations and other modifications of the original Turing machines, resulting from the pressure that the notion of computability experienced from the explosive demand for applications, but also from encounters with concepts that are in principle stranger to Turing machines, such as Kolmogorov complexity and linear logic. On the other hand, some of the papers examine a more conceptual question, namely the interconnections between computability and constructivity. An especially important topic is whether the notion of computable function has to be taken as primitive, or can be founded on recursion theory.

Chapter 1, “Constructive Recursive Functions, Church’s Thesis, and Brouwers Theory of the Creating Subject: Afterthoughts on a Parisian Joint Session” by Göran Sundholm (p. 1-35) discusses the interdependence between recursive functions and constructivity, a topic that will also be examined in Chapter 6 by another author. It is argued that constructive functions cannot be replaced by recursive functions. Nonconstructive mathematics (apparently) fail to have a computational meaning. But what about the converse? Sundholm asks: “Is every function used in constructive mathematics recursive?” The answer has been negative since Heyting and Skolem: in constructivism, the primitive notion of a function cannot be replaced by that of a general recursive functions. The first part of this chapter explains why. A second topic discussed by Sundholm is the so-called Theory of the Creative Subject, which has already been called “provocative, attractive and dangerous” by A.S. Troelstra in his Principles of Intuitionism (1969).

The Theory of the Creative Subject, controversial even within intuitionism, was proposed by Brower as a method of constructing counterexamples for classical theorems based on the activity of an idealized mathematician. It is well known that this method, in a version formulated by G. Kreisel and J. Myhill, can be reconstructed in a certain kind of Kripke model. By analyzing the controversy regarding the Theory of the Creative Subject, and the related Kripke’s Schema (which basically asserts for each statement A the existence of a sequence that witnesses the validity of A) Sundholm shows, in this dense paper, how Kripke’s Schema can be used as a replacement for the Theory of the Creative Subject, and how this theory can be proved to be classically consistent, despite some of its apparent paradoxical unfoldings.

Chapter 2, “The Developments of the Concept of Machine Computability from 1936 to the 1960s” by Jean Mosconi (p. 37-56) investigates the relation between computation and machines, explaining how Turing’s ideas were gradually adopted and conveniently modified, leading to a close model of contemporary computers. Although Mosconi emphasizes the notion of constructive objects and the general notion of an algorithm on the light of Turing machines, I think that the reader should also take into consideration an illuminating paper by E.G. Daylight (2015), which explains why a certain group of scholars somehow associated with the Association for Computing Machinery (ACM) became interested in Turing’s work and made him, in retrospect, ‘the father of computer science.’ It seems instructive to read this chapter keeping in mind the misleading conception that Turing’s ideas were immediately appreciated by people involved in computing, after his 1936 inception of Turing machines.

Chapter 3, “Kolmogorov Complexity in Perspective Part I: Information Theory and Randomness” by Marie Ferbus-Zanda and Serge Grigorieff (p. 57-94) studies Kolmogorov complexity and the related notion of randomness. Kolmogorov complexity theory, or algorithmic information theory, was independently introduced by R.J. Solomonoff, A.N. Kolmogorov, and G. Chaitin, in parallel with C.E. Shannon’s information theory, but with different motivations. Both theories are intimately connected to computers, as they aim to provide measures of information by using the idea of the bit as a unity. As proposed by Chaitin, the notion of complexity can be used to provide a notion of randomness, via the so-called algorithmic definition of randomness, by relying on the capabilities and limitations of digital computers. This chapter, with a more technical nature, explains the main concepts and proofs related to these topics, also expounding other related notions of complexity, such as L. Levin’s monotone complexity and K.P. Schnorr’s process complexity.

Though not directly emphasized in this chapter, it is worth noting the intimate connection between the famous Gödel’s incompleteness proof and the theory of random numbers, as made clear in several works by Chaitin (the most relevant papers in this respect are cited in the chapter’s bibliography). As far as the most known proofs of Gödel’s incompleteness theorem are based on a version of the paradox of Epimenides, there is a similar proof of randomic incompleteness based on a variant of Berry’s paradox. This relevant result on measuring randomness, together with other results such as P. Martin-Löf’s, showing that randomness is equivalent to incompressibility, points to the possibility of using randomness as a foundation for probability theory, as explained in the chapter.

Chapter 4, “Kolmogorov Complexity in Perspective Part II: Classification, Information Processing and Duality” by Marie Ferbus-Zanda (p. 95-134) is a sequel to the previous chapter, with a more conceptual look at Kolmogorov algorithmic information theory. The chapter proposes to take this theory seriously as a mathematical foundation of information classification, discussing how the notions of compression and information content are related to classification and structure, and more generally to database and information systems. Google’s method of extracting information from the gigantic, unstructured databank represented by the World Wide Web (bottom-up model) and the relational database method based on pure logic (top-down model) to organize data, as proposed by E.F. Codd in 1970, are paradigmatic cases of classification and structure of information studied in this intricate chapter. Such models are the basis for the duality between the two modes of definition of mathematical objects: iterative definitions, and inductive (or recursive) definitions. The chapter makes clear how foundations of mathematics, information theory, and real-world applications are closely connected.

Chapter 5, “Proof-Theoretic Semantics and Feasibility” by Jean Fichot (p. 135-157) deals with foundations of constructibility by examining interpretations of constructive reasoning according to which the meaning of logical constants is determined by the way they are used in a language, or in other words that the meaning of the logical constants can be specified in terms of the introduction rules governing theman idea that amounts to G. Gentzen’s proof-theoretical investigations, complemented with the view that elimination rules are strictly unnecessary and can be obtained as a consequence of introduction definitions. This involves, however, the idealization behind canonical proofs, with dangers to feasibility. By examining the notions of polytime functions (introduced by S. Bellantoni and S. Cook in 1979), and a modification of linear logic, the light affine logic, introduced by A. Asperti in 1998, Fichot outlines a proof-theoretic semantics for feasible logic and for first-order light affine logic, evaluating their consequences.

Chapter 6, “Recursive Functions and Constructive Mathematics” by Thierry Coquand (p. 159-167) again takes up a fundamental question already treated in Chapter 1: is the theory of recursive functions necessary for a rigorous treatment of constructible mathematics? The chapter explains that, from the point of view of constructive mathematics, recursive functions are not needed for the foundations of constructible mathematics, and that mathematics done from an intuitionistic viewpoint does not rely on any notion of algorithm. This is hardly a novelty: in our book, Computability: Computable Functions, Logic, and the Foundations of Mathematics (Epstein and Carnielli, 2008, Chapter 26)2, it is explained in clear terms that recursive analysis is quite different from Brower’s intuitionism, and also how Bishop criticizes Brower’s work as too imprecise and infinitistic, and recursive analysis as too formal and limited. Indeed, it is well known that Bishop takes the notion of constructive function as primitive, refusing to identify it with any formal notion. This chapter, however, enriches its arguments with some brief accounts on the work of Heyting, Skolem, Novikoff, and Lorenzen, besides Bishop.

Chapter 7, “Gödel and Intuitionism” by Mark Atten (p. 169-214) closes the book, discussing how Brouwer’s intuitionism inspired the work of Gödel, with reflections in his famous Dialectica Interpretation. The interest of Gödel for Husserl and Brouwer is comparable to Gödel’s fascination with Leibniz, and can explain Gödel’s belief that the phenomenology of Husserl would prove useful for his program of “developing philosophy as an exact science” and the Dialectica Interpretation as a phenomenological contribution to intuitionism. An appendix to Gödel’s archives shows how he anticipated the concept of autonomous transfinite progressions of theories (the idea of generating a hierarchy of theories via a bootstrapping process, introduced in the literature by G. Kreisel in 1958) while working on his incompleteness proof.

The present book is the result of a meeting under the same name, “Constructivity and Computability in Historical and Philosophical Perspective”, held at the École Normale Supérieure in Paris, in December 2006. As the back cover states, this book contributes to the unity of science by aiming to overcome disagreements and misunderstandings that stand in the way of a unifying view of logic, and I believe it reaches its aims by weaving a deep and detailed account linking the mathematical and philosophical aspects of constructibility and recursivity, showing the limitations of both constructivist and classical mathematics.

Although at some points it is a bit difficult to read, as often happens with collections of texts sewing together pieces with different patterns and styles, this book is highly recommendable for logicians, philosophers, mathematicians, and computer scientists who want to understand how their fields interact.

Notas

1 Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência. Barão Geraldo,13083-859, Caixa postal: 6133, Campinas, SP, Brasil. E-mail: [email protected]

2 See also the Brazilian edition, Computabilidade: Funções Computáveis, Lógica e os Fundamentos da Matemática (Carnielli and Epstein, 2009).

Referências

CARNIELLI, W.A.; EPSTEIN, R.L. 2009. Computabilidade: Funções Computáveis, Lógica e os Fundamentos da Matemática. São Paulo, Editora UNESP, 415 p.

DAYLIGHT, E.G. 2015. Towards a Historical Notion of ‘Turing the Father of Computer Science’. History and Philosophy of Logic, 36(3):205-228. https://doi.org/10.1080/01445340.2015.1082050

EPSTEIN, R.L.; CARNIELLI, W.A. 2008. Computability: Computable Functions, Logic, and the Foundations of Mathematics. Socorro, Advanced Reasoning Forum, 370 p.

TROELSTRA, A.S. 1969. Principles of Intuitionism. Berlin, Springer, 111 p. (Lecture Notes, no. 95). https://doi.org/10.1007/BFb0080643

Walter Carnielli – Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência. Campinas, SP, Brasil. E-mail: [email protected]

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Uma introdução à metafísica da natureza: Representação, realismo e leis científicas – GHINS (FU)

GHINS, M. Uma introdução à metafísica da natureza: Representação, realismo e leis científicas. Curitiba: Editora Universidade Federal do Paraná, 2013. Resenha de: CID2, Rodrigo Reis Lastra. Uma crítica à metafísica conectivista de Ghins. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.17, n.2, p.233-243, mai./ago., 2016´.

O livro de Michel Ghins (2013), Uma introdução à metafísica da natureza, é uma interessante tentativa de produção de uma metafísica das ciências. Esse é um projeto relevante, pois, se as nossas teorias científicas têm alguma relação com o mundo, gostaríamos de saber qual é. Uma metafísica das ciências nos diria o que fundamentalmente há no mundo e como isso se relaciona com os objetos teóricos das ciências. Este livro pretende justamente isso a partir de quatro capítulos. No primeiro, o autor introduz o problema da objetividade das nossas teorias científicas, vistas como modelos e leis para explicar fenômenos. No segundo capítulo, explora o debate entre realismo e antirrealismo em filosofia das ciências, defendendo que o mundo pode fazer as nossas teorias aproximadamente verdadeiras. No terceiro, mostra duas das principais concepções em metafísica das leis da natureza, as quais considera inadequadas para fundamentar a regularidade e a contrafactualidade, expondo, posteriormente, sua própria concepção das leis como sustentadas em propriedades disposicionais. Finalmente, no quarto capítulo, apresenta o debate sobre quais são as propriedades fundamentais, as categóricas ou as disposicionais, defendendo um realismo científico moderado com uma metafísica mista, tendo propriedades irredutíveis de ambos os tipos, sendo as leis científicas fundadas nos poderes causais existentes no nosso mundo, o que legitimaria que sejam chamadas de leis da natureza. Embora não tenhamos encontrado problemas em sua concepção de teoria científica, temos algumas críticas à sua adoção de uma metafísica dos poderes.

Ghins começa dizendo que a motivação principal da pesquisa científica é explicar e prever fenômenos. Para isso, os cientistas precisam ter uma atitude objetificante (chamada de “abstração primária”), na qual tomam o objeto do estudo separado de seu contexto holístico e tentam realizar observações independentes de suas subjetividades individuais. Com essa finalidade, eles abstraem algumas propriedades dos fenômenos dignas de interesse (o que se chama de “abstração secundária”) – apreensíveis por outras pessoas nas mesmas condições – e as organizam por meio de relações, formando um sistema. De modo mais específico, um modelo teórico é uma estrutura que satisfaz certas proposições, e ele é construído da seguinte forma, segundo Ghins: (i) estrutura perceptiva – primeiro selecionam-se as propriedades relevantes do fenômeno; (ii) modelo de dados – depois, são feitas medições particulares dessas propriedades com os instrumentos apropriados e esses dados são coletados, sendo os modelos de dados homomórficos à estrutura perceptiva; (iii) (sub)estruturas empíricas (também teóricas) – as informações obtidas nos modelos de dados são generalizadas e relacionadas numa subestrutura teórica de um modelo, de modo a permitir a previsibilidade; (iv) modelo teórico – relaciona as subestruturas empíricas com condições específicas (ceteris paribus); (v) teoria – uma classe de vários modelos que visam a dar conta de todo um domínio abrangente de tipos de objetos. “Por exemplo, a estrutura das medidas dos períodos orbitais pode ser embutida na classe dos modelos de dois corpos da mecânica clássica de partículas” (Ghins, 2013, p.22). Vejamos as Figuras 1 e 2 apresentadas por Ghins.

Para ser científica, além de empiricamente adequada, uma teoria precisa respeitar as condições de universalidade, simplicidade e poder explicativo (Ghins, 2013, p.24). O que será privilegiado depende de critérios pragmáticos, dados os objetivos da teoria, mas ainda assim uma teoria será mais empiricamente adequada quanto mais suas previsões forem precisas em relação às mensurações3. Uma teoria é empiricamente adequada “quando, para qualquer modelo de dados relevante, ela contém subestruturas empíricas homomórficas adequadas” (Ghins, 2013, p.22); é por isso que ela permite a previsibilidade. E ela não é empiricamente adequada “se as predições da teoria não forem conformes às observações nem for possível construir, com base na teoria, uma estrutura empírica homomórfica aos novos resultados” (Ghins, 2013, p.23).

Quadro CID FU v17 n2 p233 243 2016 II Metafísica da natureza

Figura 1. Abordagem de Ghins da formação de teorias científicas. Figure 1. Ghins’ account on the formation of scientific theories. Fonte: Ghins (2013, p.23).

Quadro CID FU v17 n2 p233 243 2016 I Metafísica da natureza

Figura 2. Abordagem de Ghins da formação de teorias científicas.

Figure 2. Ghins’ account on the formation of scientific theories. Fonte: Ghins (2013, p.27).

Sobre a universalidade, para Ghins (2013, p.25), quanto mais geral a teoria, mais preferível. Por exemplo,

a mecânica de Newton unifica a mecânica celeste de Kepler e a mecânica terrestre de Galileu […] A teoria unificadora, além de aumentar em muitas vezes a exatidão das predições, permite também predizer novas observações e, com isso, aumentar o poder preditivo, ou seja, em última instância, construir teorias empiricamente adequadas a um maior número de observações.

Com relação à simplicidade, ao poder explicativo e sua relação, eles geralmente são pensados como opostos, pois, quanto mais poder explicativo uma teoria possui, mais complexa ela se torna; no entanto, a complexidade dificulta o trabalho teórico, de modo que mais simplicidade seria preferível. Todavia, simplicidade demais – como uma teoria que apenas descreve os fatos do mundo – é inadequado, pois nada seria explicado.

Mesmo tendo a relação entre simplicidade e poder explicativo em vista, esta última noção não é facilmente caracterizável, dadas as distinções nas concepções sobre o que é uma teoria. “Hempel e Oppenheim identificam justamente o poder explicativo de uma teoria à sua capacidade de efetuar predições a partir de leis gerais” (Ghins, 2013, p.25); contudo, eles possuem uma concepção sintática de teoria, isto é, pensam uma teoria como um conjunto de proposições, dentre as quais contam as leis como proposições mais gerais. Há também uma outra visão, chamada de “concepção semântica” das teorias, que subestima o papel das leis e toma as teorias como classes de modelos. A alternativa desenvolvida por Ghins, chamada por ele de “teoria sintética”, é híbrida, no sentido de que uma teoria científica é vista como “um conjunto de modelos e de proposições satisfeitas (tornadas verdadeiras) por esses modelos” (Ghins, 2013, p.26)4. Em sua abordagem, uma teoria só é explicativa quando descreve mecanismos causais. Mas o que é um mecanismo causal?

Para Galileu e Descartes, um mecanismo é um conjunto de partes dotadas de formas geométricas cujas posições e velocidades estão relacionadas entre si. […] Para a ciência matematizada, um mecanismo nada mais é que um conjunto de grandezas – posições, velocidades, acelerações, formas geométricas, massas etc. – que mantêm entre si relações matemáticas. […] De modo bastante amplo, um mecanismo é um modelo, uma estrutura de elementos quantificáveis organizados por relações matemáticas, isto é, leis – e, agora acrescento, leis causais (Ghins, 2013, p.30).

O que são leis causais e o que são leis não causais? Um dos exemplos de lei trabalhado no livro de Ghins é a lei geral dos gases (PV=KT), fundamentada na teoria cinética dos gases. Ela é considerada uma lei de coexistência, por não ser temporal; portanto, ela não seria uma lei causal. Segundo Ghins, uma lei causal deve ser uma equação diferencial com uma derivada em relação ao tempo, já que

um mecanismo explicativo no sentido geral é um sistema cujo domínio, isto é, o conjunto das grandezas que são seus elementos, satisfaz leis de natureza causal. […] [Um] mecanismo não é mais que um sistema de propriedades quantificadas que tornam verdadeiras as leis causais, as quais descrevem a evolução dos valores daquelas propriedades ao longo do tempo. (Ghins, 2013, p.31).

Mesmo assim, a teoria cinética dos gases é explicativa, porque, ainda que a lei dos gases ideais não seja causal e, consequentemente, não descreva mecanismo algum, a teoria cinética explica como a variação nômica indicada na fórmula ocorre, a saber:

[…] a pressão resulta dos choques das moléculas com a parede do recipiente e a temperatura é proporcional à energia cinética média das moléculas do gás. […] A explicação da lei dos gases perfeitos repousa sobre leis5 fundamentais e causais que descrevem o comportamento de corpos considerados como pontos massivos sem extensão (Ghins, 2013, p.28).

Segundo Ghins, “a lei de Boyle-Mariotte não descreve um processo causal. Ela descreve uma situação num estado de equilíbrio. Para obter uma explicação, é necessário se referir às leis causais que descrevem os processos microscópicos” (2013, p.44). Por outro lado, as leis da teoria cinética de Maxwell-Boltzman, sobre a qual a explicação da lei de Boyle-Mariotte se apoia, são leis causais, já que são proposições que descrevem processos causais possíveis. As leis dessa teoria cinética são leis causais, porque as leis da mecânica são temporais, porque elas permitem explicar as variações temporais de propriedades determinadas ao longo de um processo ao reportá-las a causas definidas e porque “essas leis possuem termos que assumem a forma de derivadas temporais e que propomos identificar a efeitos. As variações de velocidade – as acelerações – são efeitos cujas causas são as forças pelas quais são produzidas as acelerações” (Ghins, 2013, p.43).

Mas em que medida pode-se aceitar que os modelos de nossas teorias representam corretamente a realidade? Em que medida pode-se acreditar que as leis científicas são verdadeiras? Essas são tanto questões ontológicas sobre a realidade dos objetos teóricos quanto questões epistemológicas sobre os limites do conhecimento científico. Construímos estruturas teóricas para dar conta de fenômenos, que, na realidade, são holisticamente apreendidos, e não isoladamente como o objeto científico. A dúvida, tal como expôs Bas van Fraassen, segundo Ghins, é “como uma entidade abstrata, como uma estrutura matemática, pode representar uma coisa que não é abstrata, uma coisa na natureza?” (2013, p.34). Essa objeção é conhecida pelo nome de “objeção da perda da realidade”.

A resposta de Ghins é dizer que ela se funda na ideia equivocada de que o cientista representa a realidade em seu modelo de dados e, consequentemente, nas subestruturas teóricas, nos modelos e nas teorias. “Quando um cientista afirma que o volume de um gás é igual a 1 dm3, ele pretende afirmar uma verdade a respeito de certas entidades fenomênicas. Asserções desse tipo não são representações” (Ghins, 2013, p. 35), mas são antes tentativas de descrição de certos aspectos da realidade. Para haver qualquer representação possível de uma entidade, tem de haver uma descrição anterior de suas propriedades. Tomar essas descrições de propriedades como se fossem representações implica criar uma distinção difícil de ser sustentada entre a contemplação do fenômeno do ponto de vista de lugar nenhum e as próprias construções representacionais. Toda contemplação de fenômeno é a partir de um ponto de vista, por mais que o ponto de vista seja intersubjetivo. As estruturas perceptivas, embora abstraídas dos objetos, não são estruturas abstratas, mas antes concretas, já que são apreendidas de situações particulares. Por exemplo, observamos uma bola de bilhar e vemos que ela tem a propriedade volume; não estamos representando a propriedade presente na bola como volume, mas estamos abstraindo uma propriedade da bola, a qual chamamos de “volume”, e depois medindo sua quantidade de acordo com uma medida convencionada. O que promove a objetividade, nessa concepção, é o acordo intersubjetivo com relação às estruturas perceptivas e aos modelos de dados (Ghins, 2013, p.38). E a posição metafísica defendida sobre a verdade, em Ghins, é a correspondentista (uma proposição é feita verdadeira – ou aproximadamente verdadeira – por algo do mundo), ainda que se assuma que nenhuma teoria da verdade como correspondência atualmente é satisfatória.

Poder-se-ia contra-argumentar a Ghins dizendo que não são apenas as propriedades abstraídas que têm de ser remetidas ao mundo, mas também as operações matemáticas. Sabemos que “volume” diz respeito a uma certa propriedade observável de um objeto, mas ao que diz respeito o termo “+”? Certamente, não significa “juntar”, pois podemos somar sem juntar coisas. Pode significar “reunir num conjunto”; mas conjunto é também um objeto matemático, que ainda não está se relacionando com a realidade. A objeção da perda da realidade, quando entra no domínio dos operadores matemáticos, leva a difíceis problemas… Não temos uma solução satisfatória para eles, mas cremos que Ghins também não. Talvez ninguém tenha. Se for o caso que ninguém tenha, então a melhor solução é deixarmos o nosso juízo em suspenso enquanto não obtivermos uma resposta satisfatória e continuarmos utilizando as operações matemáticas até lá.

Uma outra objeção que poderia ser feita, expressa pelo próprio Ghins, é que, embora não haja representação na estrutura perceptiva, nem no modelo de dados, nem na subestrutura teórica, existe representação quando começamos a criar modelos teóricos e teorias nas quais falamos sobre entidades inobserváveis.

No caso dos gases, é fácil verificar, por observações imediatas, que aquilo que está contido dentro de um recipiente tem de fato um volume, uma pressão e também o que podemos chamar de grau de calor. […] Por outro lado, a identificação de um gás com um conjunto de partículas que se movem e são dotadas das propriedades de possuir uma massa e de mover-se a certa velocidade é muito mais problemática. […] As partículas constitutivas de um gás não são visíveis e suas velocidades médias não são nem observáveis nem individualmente mensuráveis (Ghins, 2013, p.40-41).

Veja que a objeção aqui não é contra as observações imediatas, mas antes contra a explicação com inobserváveis que a teoria fornece para o fenômeno.

A resposta do autor é que, na medida em que a teoria tem adequação empírica, além das condições já descritas, isso é um forte indício, embora não uma razão suficiente, em favor de sua interpretação realista moderada, na qual as leis científicas podem ser aproximadamente verdadeiras. E não é razão suficiente por causa de uma objeção conhecida pelo nome de “argumento da subdeterminação da teoria” pelas estruturas perceptivas e pelos modelos de dados: “[…] visto que, em princípio, é sempre possível construir várias teorias incompatíveis entre si, mas que salvam as estruturas perceptivas relevantes, não temos nenhuma razão para acreditar na verdade, ao menos aproximada, de apenas uma dentre elas” (Ghins, 2013, p.41).

A resposta de Ghins (2013, p.41) é dizer que não basta indicar que pode haver teorias alternativas, mas deve-se fornecer alguma ou mostrar que uma já está sendo construída. Ele aceita que as teorias são realmente subdeterminadas pelos dados e, por isso, acaba aceitando que apenas a adequação empírica não garante a verdade de uma teoria. Ainda que se coloque a capacidade explicativa na história, haverá as dificuldades de dizer o que é uma boa explicação e como o fato de algo ser uma boa explicação, que é algo patentemente epistêmico, se relaciona com a verdade, que é algo metafísico. Pode-se dizer que uma teoria explicativa nos abre um acesso cognitivo a certas realidades externas e inobserváveis. E isso pode ser feito, sem muita dificuldade, segundo Ghins, ao aceitarmos a verdade das leis causais e uma noção de explicação baseada em mecanismos descritos por leis causais. O que Ghins defende é que (2013, p.45)

Nossas crenças na existência de objetos inobserváveis, tais como as moléculas, as partículas elementares, o campo gravitacional, os vírus, os genes, as placas tectônicas etc., encontram sua justificação a partir de considerações análogas àquelas que justificam nossas crenças na existência de entidades observáveis […] Da mesma forma, nossa crença na existência dos elétrons é justificada pela possibilidade de medir suas diversas propriedades de carga, spin e massa por meio de métodos independentes que proporcionam resultados precisos e convergentes.

A possibilidade do erro existe nessa concepção, e ela é remetida à própria possibilidade do erro no que diz respeito a entidades observáveis pelos nossos sentidos. Porém nós conseguimos diminuí-la ao repetirmos as observações, utilizando também outros sentidos além da visão e verificando se nossas observações são concordantes – o que, no caso do objeto científico, pode ser pensado como os instrumentos de mensuração. Por exemplo, no caso das moléculas (Ghins, 2013, p.44),

temos que dispor de métodos de mensuração que permitam determinar o valor da velocidade média, da massa e do número de moléculas. Além disso, é preciso que esses processos de medida da velocidade média e do número de moléculas sejam independentes dos métodos de mensuração da temperatura e da pressão.

Isso já ocorre, dado que podemos medir o mol de um gás por métodos independentes que fornecem resultados que convergem com um alto grau de precisão.

Outro argumento avaliado pelo autor é o conhecido “argumento do milagre” (ou no-miracle argument). Este nos diz que o realismo é a melhor explicação do sucesso empírico (previsões de mensurações bem-sucedidas) de nossas teorias, pois, se nossas teorias não são ao menos aproximadamente verdadeiras, então seu sucesso empírico é um milagre. Assim, ou aceitamos que as propriedades inobserváveis postuladas por uma teoria bem-sucedida seriam de entidades reais cuja existência é independente de nossos desejos, de nossas medidas e da nossa linguagem, ou aceitamos o sucesso, por milagre, da teoria.

Segundo Ghins, pode-se objetar a esse argumento que ele não é um argumento decisivo a favor do realismo e tem um caráter científico contestável, já que não tem a forma da explicação científica, baseada em leis causais, para dar conta da relação entre a verdade e o sucesso empírico. A solução de Ghins (2013, p.47) é dizer que a concordância entre as mensurações é mais exigente que o sucesso empírico, de modo que pode fundamentar melhor a verdade – ao menos a verdade aproximada – de uma teoria. Além disso, ele não pretende “explicar – e, certamente, não de modo científico – a concordância entre as mensurações de uma propriedade pela existência de uma entidade que a possui” (p. 47). O objetivo de Ghins, com o argumento do milagre, não é contrastar uma pseudoexplicação milagrosa com uma explicação de fato, mas fazer uma analogia entre razões para crer na existência de, por exemplo, um abacaxi, com diversas propriedades observáveis, e de um objeto, como um elétron, que só tem propriedades inobserváveis.

É possível, no entanto, objetar ainda que, na medida em que não conhecemos o mecanismo causal operante nos nossos instrumentos de mensuração, não podemos conhecer os mecanismos causais que viemos a conhecer a partir dos instrumentos de mensuração. Entretanto, isso não leva em consideração que, na experiência sensível ordinária, os mecanismos causais dos nossos sentidos (nossos instrumentos sensíveis de medição) não nos são totalmente conhecidos. Na experiência científica, diz-nos Ghins, os mecanismos causais dos instrumentos científicos de medição são bem conhecidos e descritos por meio de leis causais fundamentais. Ainda que isso não seja bem o caso e que não conheçamos perfeitamente o mecanismo causal dos nossos instrumentos de medida, conhecê-lo perfeitamente não é necessário para coletarmos dados com precisão; por exemplo, Galileu conseguiu dados precisos sobre os corpos celestes, mesmo sem conhecer as leis óticas envolvidas no telescópio.

O objetivo de Ghins até aqui é defender uma versão moderada – dado permitir a falsificação de teorias – de realismo cientifico, a qual ele pensa dar conta das objeções da perda da realidade e da subdeterminação da teoria, “argumentando [sobre entidades observáveis] que o êxito de nossas construções representacionais sustenta-se na verdade de proposições predicativas acerca dessas entidades” (2013, p.49-50). E sobre as entidades inobserváveis, Ghins crê que a razão pela qual as teorias têm poder explicativo permite-lhe falar verdadeiramente (aproximadamente) sobre elas. No entanto, o poder explicativo é uma exigência epistêmica, que o mundo não precisa cumprir, de modo que aquele não forneceria razões suficientes para crermos nas entidades inobserváveis das teorias. Por isso, Ghins critica o argumento do milagre como uma razão para crermos nas entidades inobserváveis postuladas pelas teorias. Embora esse argumento favoreça sua analogia entre razões para crer na existência de entidades observáveis e de não observáveis, ele não é aceito como conclusivo pelo autor. Sua razão principal a favor do realismo dessas entidades teóricas é que “estabelecemos nossas crenças na existência de entidades observáveis por observações repetidas e variadas, [e] defendemos a existência de entidades inobserváveis por meio de métodos de mensuração que sejam diversos e que proporcionem resultados concordantes” (Ghins, 2013, p.50). Seja qual for o caso, Ghins nos diz que, para crer na existência de certas entidades, seja um abacaxi ou um elétron, realizamos observações rigorosas e concordantes. Em nossas teorias científicas, segundo Ghins, expressamos, além de certas propriedades de certas entidades, também leis gerais que são satisfeitas pelos modelos teóricos de nossas teorias. Mas há uma grande divergência filosófica sobre a existência dessas leis científicas como leis da natureza. Por exemplo, segundo Ghins, Bas van Fraassen e Ronald Giere, seguidores da abordagem semântica das teorias científicas, defendem que o conceito de lei, além de ser problemático, é simplesmente inútil para compreender a natureza das teorias e da prática científica, que se utilizaria apenas de modelos. Outros filósofos, como Hempel e Oppenheim, defendem uma concepção sintática, na qual uma teoria é apenas um conjunto de proposições, das quais algumas são leis. Ghins discorda de ambos, por pensar que eles empobrecem as teorias científicas, já que não as representam adequadamente; por isso, ele constrói uma teoria híbrida, chamada por ele de “teoria sintética”, que aceita que as teorias são constituídas de modelos (teoria semântica) com leis (teoria sintática) satisfatíveis por tais modelos.

Mas o que seriam, na realidade, essas leis? Para responder essa pergunta, o caminho de Ghins é o seguinte: (i) avaliar a teoria regularista das leis; (ii) avaliar o necessitarismo contingencialista das leis; (iii) defender sua teoria necessitarista das leis metafisicamente necessárias como (Ghins, 2013, p.51, sic.)

proposições universais pertencentes a teorias empiricamente adequadas e explicativas, [e (…)] consideradas como sendo aproximada e parcialmente verdadeiras a propósito de sistemas reais. Uma teoria científica é composta de um conjunto de modelos e de proposições [d]entre as quais algumas alcançam o estatuto de leis.

Uma lei científica poderia ser considerada também uma lei da natureza, “se for possível elaborar argumentos em favor da existência de entidades metafísicas, tais como, por exemplo, disposições naturais ou poderes causais, que a tornassem aproximadamente verdadeira” (Ghins, 2013, p.52), e Ghins tenta fazer isso, mostrando que a regularidade e a contrafactualidade das leis se fundamentam nas propriedades disposicionais.

O regularismo (pelo menos na sua forma ingênua) toma as leis como proposições condicionais materiais, quantificadas universalmente, que são feitas verdadeiras pelos estados de coisas particulares, ou seja, toma-as como regularidades. Nessa concepção, as leis são verdadeiras, porém não necessárias. O primeiro problema que surge para o regularista é o chamado “problema da identificação”, que é a conjunção de dois problemas, a saber, (i) o problema (epistêmico) de saber como distinguir leis de regularidades meramente acidentais e (ii) o problema (ontológico) de indicar qual é o fato acerca do mundo que confere a uma regularidade seu estatuto nomológico. Por exemplo, seria dizer o que faz ser uma lei a regularidade de que toda pedra de urânio tem menos de 1 km3 e que não está presente na regularidade de que toda pedra de ouro tem menos de 1 km3 (já que consideramos este último como um mero fato contingente), e dizer quais critérios utilizaremos para distinguir um tipo de generalização de outro.

O regularismo sofisticado de Mill-Ramsey-Lewis, para responder 1, o problema epistêmico, diz-nos que uma lei é uma proposição universal que figura “como teorema (ou axioma) em todos os sistemas dedutivos verdadeiros que combinam simplicidade e força da melhor maneira” (Ghins, 2013, p. 54). Como simplicidade e força explicativa são opostos, seria adequado que mantivéssemos a melhor combinação entre eles. E ser um teorema ou axioma faz as leis serem algo mais que meras regularidades, a saber, elas são regularidades que estão presentes em todos os sistemas dedutivos verdadeiros equilibrados. Leis vácuas, como a lei newtoniana, que não são satisfeitas por nenhum sistema real, seriam leis na medida em que contribuem para maior simplicidade da totalidade da construção axiomática. Essa resposta certamente alivia um pouco o problema da identificação para o regularista, ao menos em sua parte epistêmica; porém, com relação à parte ontológica, “Lewis permanece silencioso sobre o que, na realidade do mundo, torna um sistema axiomático mais satisfatório que outro segundo seu critério de ‘melhor equilíbrio de simplicidade e força’” (Ghins, 2013, p.55). Outros problemas dessa forma de regularismo são que: (a) poucas teorias são axiomatizadas no sentido de Lewis e algumas não são nem axiomatizáveis, (b) o equilíbrio entre os critérios de simplicidade e força não foi precisado adequadamente, (c) e esses critérios são subjetivos, já que são epistêmicos e que não há necessidade alguma de a realidade os respeitar.

O neorregularismo de Psillos (2002, p.154 in Ghins, 2013, p.57), por sua vez, “defende uma posição realista segundo a qual a simplicidade de um sistema axiomático reflete a simplicidade objetiva da organização das regularidades fatuais”. Isso salva o regularismo do problema ontológico, mas, supostamente, segundo Ghins, o deixa à mercê do problema epistêmico, pois, ainda que identifique as leis com um tipo de regularidade e atribua simplicidade e uma estrutura nomológica para o próprio mundo, a contrapartida objetiva da lei não é acessível à observação direta, tal como desejaria que fosse o espírito empirista do regularista, e, consequentemente, não seria possível para o regularista distinguir as leis das regularidades que não são leis.

Não sabemos se esse argumento é bom, pois, se já aceitamos que o regularista pode distinguir leis de acidentes pelo fato de as leis possuírem uma posição especial nos melhores sistemas dedutivos, então o fato de ele atribuir a simplicidade desses sistemas dedutivos à existência de simplicidade no mundo não o impede de manter a distinção que resolveria o problema epistêmico. Ele não precisa de uma contraparte empiricamente acessível da lei; precisa somente de uma distinção, que, a princípio, poderia ser mantida, ao manter-se o espírito lewisiano, pela distinção de a lei ser um teorema ou axioma dentro de todos os melhores sistemas dedutivos para os fatos do mundo.

Um outro problema sério e persistente para qualquer forma de regularismo – na verdade, para qualquer forma de contingencialismo com relação às leis – é o problema da contrafactualidade. Se as leis do regularista são contingentes, elas não podem garantir a verdade de condicionais contrafactuais – condicionais cujo valor de verdade do antecedente é o falso. Tais condicionais são considerados trivialmente verdadeiros segundo a lógica de predicados de primeira ordem, se vistos como condicionais materiais comuns, já que um condicional material só é falso no caso de a antecedente ser verdadeira e a consequente ser falsa, e verdadeira em qualquer outra situação. Mas, na literatura filosófica, há muito trabalho sobre as condições de verdade dos contrafactuais que não os trivializariam. O fato de as leis regularistas não garantirem a verdade não trivial dos contrafactuais as deixa mais afastadas das leis científicas, já que estas garantiriam a contrafactualidade, diz-nos Ghins.

No entanto, pensamos nós, há uma objeção realizável por Lewis (1973), que tem uma teoria na qual ele tenta dar condições de verdade para os contrafactuais em termos de o que é o caso no mundo possível mais próximo. Um dos critérios para a proximidade entre os mundos é a semelhança de leis. Assim, no regularismo lewisiano, um contrafactual tal como “se Fa fosse o caso, Ga teria sido o caso” seria verdadeiro, se no mundo possível mais próximo Fa e Ga são o caso. Esse mundo possível é aquele com as mesmas leis que o nosso, mas com a antecedente do contrafactual sendo verdadeira. Uma objeção ao pensamento de Lewis é que seu contrafactual seria verdadeiro em muito menos situações do que as que esperaríamos. Um contrafactual cuja verdade surge a partir da verdade em todos os mundos possíveis relevantes, em vez de apenas no mais próximo, garante essa abrangência da verdade contrafactual, que não está presente na garantia da verdade contrafactual de Lewis. A abrangência científica da verdade dos contrafactuais chega a casos em que até algumas das leis não se mantêm (i.e., no caso de alguns contrafactuais contralegais), enquanto o mesmo não podemos dizer da teoria de Lewis.

O necessitarismo de Dretske-Armstrong-Tooley também não escapa das críticas do autor. Aquele nos diz que uma lei da natureza é uma relação universal contingente de necessitação entre universais imanentes, que garante (mais que a total contingência) a verdade no mundo atual, mas não em todos os mundos possíveis. E a relação de necessidade que opera ao nível dos universais implica também uma relação de necessidade ao nível dos indivíduos particulares que os exemplificam: N(F,G) → (x) N(Fx,Gx). Mas, a partir dessa definição, temos um problema, conhecido pelo nome de “problema da inferência”, de explicar a conexão entre a necessidade armstronguiana (necessitação) no nível dos universais e a do nível dos particulares6. A resposta de Armstrong é que a relação causal do domínio dos particulares e a necessitação são uma e a mesma relação, dado que os universais estão presentes nos particulares – o que tornaria a inferência acima, em algum sentido, analítica. Diferentemente do regularismo, o necessitarismo de Armstrong permitiria que a necessitação fosse observável, já que ele diz que observamos a necessitação, isto é, a causalidade, quando, por exemplo, sentimos o peso do nosso corpo. Um governista ante rem (teórico das leis como relações universais entre propriedades universais transcendentes), pensamos nós, também poderia dar conta desse problema ao dizer que a causalidade singular é instância da necessitação e que observamos, indiretamente, a necessitação por meio da observação da causalidade singular, tal como observamos, indiretamente, o azul universal ao observarmos uma instância sua em algo particular. De todo modo, observar os poderes das coisas também não é algo tão incontroverso assim.

Além de tomar essa observabilidade como bastante controversa, Ghins julga que há um problema não resolvido por necessitaristas (problema esse também para regularistas), a saber, distinguir propriedades naturais de não naturais. O problema é que, se não houver distinção e as propriedades de Goodman (propriedades como verzul) forem avaliadas pelos cientistas, teremos leis mutáveis no nosso sentido, embora imutáveis no de Goodman.7 Outros problemas, ainda, para o necessitarismo de Armstrong é que ele não dá conta de leis probabilísticas adequadamente – segundo Ghins, van Fraassen, em Laws and symmetries (1989, p.109-116), mostrou que a solução armstronguiana não era adequada – e nem de leis não causais (como as leis de conservação), além de não mostrar que a necessitação e a causalidade singular são a mesma relação.

Pensamos que é possível, tanto para teorias aristotélicas como a de Armstrong quanto para as teorias platônicas como a de Tooley, dar conta de leis de conservação como deriváveis de outras leis; por exemplo, se toda lei diz como uma forma de energia se transforma em outra, mas não há leis que determinem como a energia se extingue ou aumenta, então, por lógica apenas, chegamos à conclusão de que a quantidade total de energia deve ser sempre a mesma. Há proposições necessárias (se as leis forem necessárias) implicadas por leis que não são elas próprias leis, pois não são relações de necessitação entre universais. As leis probabilísticas, no entanto, são problemáticas; mas acreditamos que são problemáticas para qualquer teórico que seja: regularista, conectivista (metafísico dos poderes), governista in rebus (leis como universais imanentes) ou governista ante rem (leis como universais transcendentes).

Dados os problemas que Ghins (2013, p.64) aponta nessas concepções, sua proposta é

identificar epistemicamente as leis científicas como sendo proposições de forma lógica universal e (aproximadamente) verdadeiras, empregadas para construir teorias científicas explicativas empiricamente bem sucedidas. […] Segundo essa proposta, proposições universais podem ser chamadas de leis somente no contexto de uma teoria, como na concepção de Mill-Ramsey-Lewis. […] [Sua ideia é que] não se resolve o problema da identificação determinando o fundamento da necessidade das leis, mas estabelecendo sua verdade no contexto de uma teoria científica.

Assim, uma proposição é uma lei científica se ela fizer parte, como um teorema ou axioma, de uma teoria científica, interpretada realisticamente, que contém, entre outras coisas, proposições gerais com o status de lei. E essas leis científicas seriam leis da natureza na medida em que a verdade aproximativa das leis científicas é sustentada em poderes universais realmente existentes, que se expressam nas disposições essenciais das entidades naturais. Acreditamos que a proposta de identificar a lei científica com um teorema/axioma de alguma teoria científica é interessante, pois captura nossas intuições sobre a lei científica, mas identificar as leis científicas com poderes, e não com leis da natureza, essa proposta já é um tanto debatível.

A ideia de uma metafísica dos poderes é justamente apresentar qual é o fundamento modal que as leis científicas teriam, já que, a princípio, se elas são proposições descritivas, não podem logicamente implicar proposições que contenham modalidades, como os contrafactuais. Portanto, se há algo que conecta leis e proposições contrafactuais, temos de saber o que é. E, além disso, temos de explicar a existência de regularidades na natureza. As teorias anteriormente apresentadas têm problemas com a contrafactualidade, por causa da contingência; o regularismo, mais especificamente, têm problemas também com explicar a existência de regularidades na natureza, pois, se o que torna as leis verdadeiras são meras regularidades, aquelas apenas descrevem estas e não explicam por que estas acontecem; e o necessitarismo de Armstrong, embora dê conta da explicação da regularidade, tem os problemas indicados anteriormente, acredita Ghins. Se tivermos conseguido fugir dos problemas que afetam também a concepção conectivista de Ghins, então a posição governista seria, pelo menos, equivalente, em poder explicativo, àquela.8

A concepção de Ghins é de que o que torna verdadeira a proposição ‘p é uma lei,’ fundamentando assim a força modal de p, é a existência de poderes causais irredutíveis e essenciais às entidades que os têm (constituem necessariamente suas identidades). Mas o que é ter um poder causal, isto é, uma propriedade disposicional? Diz-nos Ghins (2013, p.69-70):

Uma entidade x possui a disposição D de manifestar a propriedade M em resposta ao estímulo T nas circunstâncias A, se e somente se, na eventualidade da entidade x ser submetida a T no ambiente A, x necessariamente manifestar M. Formalmente, temos (Bird, 2007, p.36-37):

D A,T,M x ↔ (Ax ˄ Tx) □→ Mx      (a)

Esse último enunciado pode ser considerado uma definição da propriedade disposicional D A,T,M . Então, é analiticamente verdadeiro e necessário que □DA,T,M x ↔ (Ax ˄ Tx) □→ Mx     (b)

Por exemplo, os copos de certos tipos de vidro têm a capacidade de se quebrar em certos tipos de circunstâncias (como quando sofrem certa quantidade de impacto e estão ausentes circunstâncias que agiriam como “antídotos” do processo causal). É em virtude dessa capacidade, poder ou propriedade disposicional que é necessário que o copo se quebre quando submetido a uma tal circunstância. E a relação entre essas disposições e a identidade de certos objetos é necessária; elas fazem parte da essência de tais objetos. Assim, seria parte da essência dos corpos frágeis que eles tenham uma disposição para se quebrar em certas circunstâncias. Se algo não tem esse poder de se quebrar, simplesmente não é um corpo frágil.

Um primeiro problema que vemos nessa concepção é a imaterialidade de um poder. Um copo de vidro tem o poder de se quebrar. Onde está esse poder? Você pega o vidro, leva para o microscópio e tudo que você vê são moléculas, uma junto à outra. Não vê poder algum de se quebrar; na verdade, não vê poder algum. Se há poderes nas coisas, eles são imateriais, estão presentes de algum modo estranho nas coisas. O teórico dos poderes tem de explicar como as coisas têm poderes. O teórico das leis, se for também categoricalista, dirá que a capacidade dos objetos advém de suas propriedades categóricas estarem submetidas a leis da natureza, e não que há capacidades ocultas em cada um dos objetos. É contra-argumentável que a imaterialidade das leis também atesta contra elas. Duas respostas são possíveis. Se defendemos o substantivismo armstronguiano, as leis podem ser cridas como materiais, pelo fato de os universais estarem presentes nas coisas particulares, e, se defendemos o substantivismo ante rem, ao estilo de Tooley (1977), podemos dizer que a imaterialidade das leis é menos problemática que a imaterialidade dos poderes, pois os poderes se movem junto com seus hospedeiros, enquanto as leis não se movem, e o movimento de algo imaterial é algo que, patentemente, precisa de explicação.

Uma objeção que consideramos ainda mais poderosa contra o teórico dos poderes é que ele não consegue descrever algo que um teórico categoricalista conseguiria, como, por exemplo, o resultado do contato de duas partículas como um resultado do contato das capacidades ou potencialidades ou poderes dessas partículas. Veja a seguir (Cid, 2011, p.40).

O conectivista poderia tentar dizer que as partículas do tipo X têm o poder de manifestar F quando interagem com as partículas do tipo Y9 e que as partículas do tipo Y têm o poder de manifestar F quando interagem com as partículas do tipo X, e que não há nada mais para a lei de que XY manifesta F do que esses poderes de X e de Y. O problema de dizer tal coisa é que a manifestação de F estaria sobredeterminada, já que ambas as partículas fariam F ser manifestado. Uma forma de tentar solucionar tal problema é dizendo que as partículas do tipo X têm o poder de manifestar F1 quando interagem com as partículas do tipo Y, que as partículas do tipo Y têm o poder de manifestar F2 quando interagem com as partículas do tipo X, e que (F1˄F2)→F. Poderíamos objetar a essa resposta dizendo que teríamos que explicar, então, como (F1˄F2)→F; e o conectivista não é capaz de explicar isso sem cair novamente no problema da sobredeterminação ou num regresso ao infinito. Pois se (F1˄F2)→F, então: (i) ou F1 está disposto a manifestar F quando estimulado por F2, e F2 está disposto a manifestar F quando estimulado por F1, (ii) ou F1 está disposto a manifestar F3 quando estimulado por F2, F2 está disposto a manifestar F4 quando estimulado por F1, e (F3˄F4)→F. O caso (i) faria F estar sobredeterminado. E com relação ao caso (ii), o problema seria ter que explicar a implicação de F3˄F4 para F, que só seria possível criando um caso como (i), que sobredeterminaria F, ou criando um outro caso como (ii) ad infinitum.

Ainda uma objeção, esta apontada por Ghins, contra uma teoria das disposições é chamada de “objeção da virtude dormitiva”: explicar a capacidade do vidro de se quebrar recorrendo a uma disposição para se quebrar (fragilidade) não nos explica nada sobre a capacidade de se quebrar; é apenas nomear a capacidade que já sabíamos que lá estava. A resposta de Ghins é dizer que, embora atribuir uma disposição não explique o fenômeno, ela nos fornece uma informação importante, de modo que permite que, por exemplo, nos previnamos da manifestação da disposição (protegendo o copo, talvez), além de constituir um convite a buscar o processo físico, químico, psicológico, etc. subjacente à manifestação das disposições. Com essa atribuição de propriedade disposicional, “acrescentamos um elemento suplementar, a saber, que a base desse comportamento regular é uma propriedade disposicional enraizada numa entidade. Ao afirmar tal coisa, operamos uma transição do nível puramente descritivo para o nível modal” (Ghins, 2013, p.73, grifo meu). Como pensamos ter mostrado, um teórico categoricalista, que não aceita a existência de disposições, descreveria a atribuição de propriedade disposicional de uma outra forma, com propriedades categóricas e leis (embora, em seu discurso superficial, possa achar conveniente apenas falar como se houvesse disposições, mas mantendo, em seu discurso profundo, que não há).

Contudo, Ghins sabe o quão debatível é falar de propriedades disposicionais irredutíveis e ele acaba adentrando na discussão sobre se, fundamentalmente, o que há na realidade são propriedades disposicionais irredutíveis ou se são propriedades categóricas irredutíveis. As propriedades categóricas seriam as propriedades primárias das coisas sobre as quais estariam fundamentadas todas as outras propriedades. Por exemplo, Armstrong (1983) pensa que as propriedades primárias são a forma, o tamanho e a organização interna, e que cores, sabores e disposições em geral são qualidades secundárias fundadas nas primárias. A ideia é que “as qualidades primárias, conforme se supõem, são definíveis independentemente de qualquer disposição das entidades que as possuem […] as qualidades primárias tornam possível a ação dos corpos uns sobre os outros e, em particular, a ação deles sobre os nossos órgãos sensoriais” (Ghins, 2013, p.75); elas seriam propriedades espaçotemporais.

Algumas objeções a essa ideia, feitas por Ghins, são que quantidades, tais como a carga ou a constante de Coulomb, não poderiam ser reduzidas a propriedades espaçotemporais e que é duvidoso que a estrutura do elétron, se ela existir, seja espacial. Para sanar esse problema, ele sugere que, na classe das propriedades categóricas, devemos incluir as propriedades e relações correspondentes aos símbolos matemáticos empregados na formulação das teorias científicas. Isso permitiria ainda a distinção entre propriedades categóricas e disposicionais, já que um elétron possuiria uma massa e uma carga, independentemente da possibilidade de interagir com outras massas e cargas. A dificuldade que prevemos com essa concepção é explicar o que seriam cargas, por exemplo, sem reduzi-las a algo que contenha uma disposição para atrair/repelir. Certamente o categoricalismo estrito não poderia aceitar cargas como propriedades categóricas. Ele teria de reduzir essas capacidades de atrair/repelir a propriedades categóricas governadas por leis. Sobre os símbolos matemáticos, a dificuldade é explicar o que, ontologicamente, são eles; mas essa é uma dificuldade, inserida no seio da filosofia da matemática, que todos os teóricos, das leis e dos poderes, enfrentam.

A teoria de Ghins, diferentemente de teorias estritamente categoricalistas (como o regularismo e o necessitarismo armstronguiano), é mista, por aceitar a existência tanto de propriedades categóricas, pensadas de modo abrangente, quanto de propriedades disposicionais – em vez de tentar reduzir estas últimas a propriedades categóricas. Ele pensa assim, porque, por exemplo, “ao lado de suas propriedades categóricas, o elétron possui igualmente propriedades disposicionais, tal como a capacidade de interagir com partículas e campos em conformidade a certas equações matemáticas como, por exemplo, as leis de Maxwell” (Ghins, 2013, p.84).

A razão para essa concepção mista é que, embora seja razoável supor o categoricalismo e, consequentemente, que as propriedades A, T e M – de DA,T,M x ↔ (Ax ˄ Tx) □→ Mx – possam ser caracterizadas exclusivamente por propriedades categóricas, ainda seria preciso que a definição não recorra a modalidades, já que as propriedades categóricas não seriam propriedades modais. O categoricalismo toma as propriedades como tendo uma natureza passiva; nele, “as propriedades modais não são inerentes às entidades que exemplificam as propriedades F e G, mas lhe são externamente impostas. Se o sal possui a disposição a dissolver-se em água, é porque existe uma relação de necessitação que liga a propriedade de ser sal à propriedade – complexa – de dissolver-se em água” (Ghins, 2013, p.81-82). Assim, o categoricalista deveria dar conta da implicação modal □→, à direita da bicondicional, sem usar, no lado esquerdo, propriedades modais. Isso parece uma tarefa impossível de realizar, segundo Ghins. Ele nos diz que isso é o “suficiente para fazer fracassar toda tentativa de reduzir inteiramente o significado de uma propriedade disposicional àquele de propriedades categóricas” (Ghins, 2013, p.81) e para fornecer razões para a crença em poderes irredutíveis a propriedades categóricas.

O que poderíamos responder a isso é que, em primeiro lugar, a tentativa de redução não é semântica, mas ontológica. Os categoricalistas estritos querem reduzir toda disposição a propriedades categóricas governadas por leis, e não o significado desses termos. Eles têm do lado esquerdo a necessitação conectando as propriedades, constituindo assim a lei. A lei, junto com as instâncias das propriedades governadas pela lei, fazem as coisas terem de acontecer em conformidade com a lei. A disposição do vidro de se quebrar é reduzida à lei sobre como se quebram conexões físicas entre certos tipos de moléculas junto com as instâncias das propriedades da lei presentes no copo de vidro. Nenhum dos universais da lei é ele mesmo modal, nem a necessitação e nem as propriedades relacionadas. As razões para uma lei ser necessária não estão na forma da lei, mas em outros argumentos (alguns deles apresentados em Cid, 2016). Assim, o substantivismo também pode respeitar o requisito de mostrar como algo naturalmente não modal implica frases modais. De todo modo, é ainda possível de se responder que não há necessidade alguma de redução das modalidades, que elas são um aspecto primitivo. Não acreditamos que este seja o melhor caminho de resposta – preferimos o primeiro –, mas também é viável.

As disposições, diz-nos Ghins, por conectarem necessariamente certos tipos de ocorrências com certos tipos de manifestações, dão conta da contrafactualidade. Elas também fornecem uma explicação das regularidades descritas pelas leis científicas. De fato, as leis científicas são suscetíveis de nos informar sobre a natureza interna das coisas de certos tipos de um modo preciso. Além disso, as disposições também podem dar conta das leis probabilísticas de modo elegante, diz-nos o autor, pois podemos identificar as tendências das coisas com as disposições probabilísticas.

Mas todas as entidades têm disposições irredutíveis? Precisamos postular a existência de poderes causais? Ghins pensa que sim, por causa de três argumentos (2013, p.89), os quais apresento a seguir.

  • Argumento I:

Se somos dotados de poderes causais, então temos a capacidade de agir sobre sistemas que são prima facie “inanimados” e “inertes”, isto é, sistemas que são à primeira vista passivos e desprovidos de poderes internos. […] Visto que reagem de modo diferenciado e previsível a determinadas ações nossas, parece razoável supor que os sistemas externos sejam dotados de uma capacidade interna de reagir de uma maneira específica.

Diríamos aqui que, se somos dotados de poderes causais, nada se segue sobre se os objetos também são dotados de poderes causais. Pode ser o caso que poderes causais venham apenas do livre-arbítrio e que apenas seres com livre-arbítrio os tenham (já que os exemplos paradigmáticos de capacidades que temos envolvem situações com opções, como a capacidade de se levantar, quando se está sentado). Além disso, se esse for um argumento a favor de adotar poderes causais irredutíveis, ele assume que somos dotados de poderes causais. Mas um categoricalista estrito nunca aceitaria isso. O que temos são propriedades categóricas, e sua subsunção a leis torna existente a ilusão de que temos capacidades. O modo diferenciável e previsível em que as coisas reagem pode igualmente ser explicado por propriedades categóricas governadas por leis.

  • Argumento II:

Poucas pessoas duvidam que um elétron submetido a um campo eletromagnético se comportará em conformidade com as equações de Maxwell. Se admitirmos que tais contrafactuais sejam verdadeiros, seremos conduzidos a postular a existência de disposições internas, poderes ou potências, que obrigam os sistemas que as possuem a comportarem-se de certa maneira precisamente porque esse comportamento corresponde à sua natureza ou essência.

Tal como argumentamos no parágrafo anterior, não há razões para postular a existência de disposições internas para as coisas; só precisamos de leis da natureza (obrigando os sistemas) e as propriedades categóricas (constituindo os sistemas). Além disso, se postulamos disposições, postulamos infinitas disposições para cada objeto existente, pois são infinitas as situações nas quais podem ocorrer diferentes coisas com os objetos. Costumamos pensar que os objetos particulares têm um número finito de propriedades, e não um número infinito de propriedades disposicionais.

  • Argumento III:

Se postularmos a existência de poderes causais que se manifestam nos processos descritos pelas leis científicas, alcançaremos uma imagem geral e coerente da realidade cujo comportamento tem como base as essências das substâncias.

Isso pode até ser verdade. A imagem geral numa metafísica dos poderes é coerente; no entanto, de modo mais preciso, ela tem certos problemas com a noção de poder que têm de ser solucionados, para que essa coerência se mantenha nas perspectivas menos gerais. De todo modo, é argumentável que uma concepção que não se utilize de poderes e fique apenas nas propriedades categóricas é, além de coerente, mais simples e mais intuitiva. Não estou argumentando em favor disso aqui, neste texto, mas apenas dizendo que isso é argumentável, já que uma concepção governista pode dar conta dos problemas apresentados por Ghins.

Em resumo, a concepção de Ghins (2013, p.85-86) nos diz que

As propriedades categóricas são as propriedades matemáticas e quantificáveis referidas pelos símbolos matemáticos que figuram nas leis científicas. […] [As] disposicionais, em circunstâncias favoráveis, lhes permitem comportar-se em conformidade com leis. […] A modelização restringe-se às propriedades categóricas. O que torna as leis verdadeiras são, antes de tudo, os modelos, os quais são estruturas matemáticas. Somente quando consideramos a aplicação desses modelos a sistemas reais é que entram em jogo as propriedades modais de tais sistemas. […] As leis científicas são proposições universalmente verdadeiras que integram teorias científicas bem estabelecidas e que descrevem regularidades existentes na natureza. As regularidades descritas nas várias disciplinas encontram seus fundamentos nas naturezas relacionais, reais, de certas entidades e em suas disposições a submeter-se a processos específicos. De acordo com essa interpretação metafísica, o problema ontológico da identificação está solucionado, e as leis científicas também adquirem o estatuto de leis necessárias da natureza. Se as leis fossem outras, um campo eletromagnético ou um elétron não poderia continuar sendo a entidade que é pela simples razão de que uma mudança nas leis se traduziria ipso facto numa mudança nas essências das coisas.

No entanto, ainda que fosse possível mostrar que a existência de poderes causais na natureza nos oferece a melhor explicação possível das regularidades observadas e da verdade dos contrafactuais, isso não justificaria a crença na existência de poderes causais, simplesmente porque não há qualquer garantia a priori de que a realidade respeite nossos critérios de inteligibilidade. Por isso, diz-nos Ghins, para validar qualquer afirmação de existência, a evidência empírica é imprescindível. E, de fato, nós temos uma experiência pessoal dos poderes causais: enquanto sentado, por exemplo, estou consciente da minha capacidade de me levantar e caminhar. Ainda que os fundamentos metafísicos das leis sejam os poderes universais, o nosso acesso epistêmico a elas e às demais propriedades naturais depende exclusivamente do sucesso dos modelos científicos e da observação de regularidades recorrentes. Se há disposições irredutíveis, que fundamentam a verdade aproximada dos modelos teóricos, ao sustentar as leis científicas que seriam satisfeitas por esses mesmos modelos, que, por sua vez, foram criados a partir da abstração da realidade nas estruturas perceptivas e nos modelos de dados, então o objetivo de Ghins de criar uma teoria sintética, realista moderada e que fundamente metafisicamente as ciências terá sido cumprido. De modo geral, o que Ghins pretende com esse livro é mostrar que não é irracional acreditar nas disposições essenciais das entidades naturais como fundamentos da verdade aproximativa das leis científicas. E nós concordamos que irracional não é, embora a ideia de poder esteja cercada de mistérios e dificuldades; pensamos, ainda, que, mesmo que não existam poderes irredutíveis, toda a perspectiva de ciência de Ghins pode ser mantida, pois leis da natureza realmente existentes poderiam fundamentar a verdade aproximada das leis científicas, por sustentarem os mecanismos que as leis e os modelos científicos tentam descrever.

Notas

1 Agradeço à CAPES pela bolsa de doutorado sanduíche, na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Belgique), com a qual foi possível obter a orientação do Dr. Alexandre Guay e ter conversas pessoais com o Dr. Michel Ghins.

2 Doutor em Lógica e Metafísica pelo Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor substituto no Instituto Federal de Minas Gerais. Av. Serra da Piedade, 299, Morada da Serra, Sabará, MG, Brasil. E-mail: [email protected]

3 Aqui vale uma nota, a saber, que uma teoria “mística” – como a previsão do futuro por meio dos búzios – pode acabar sendo empiricamente adequada, no sentido de Ghins, se ela obtém previsões bem-sucedidas e se mede algo no mundo para isso; no entanto, na medida em que essas teorias místicas não costumam ser estatisticamente bem-sucedidas em suas previsões, elas não são empiricamente adequadas. O fato de que elas poderiam ser bem-sucedidas e, assim, empiricamente adequadas nos mostra que ou o conceito de empiricamente adequado não é adequado para restringir o domínio das ciências e para justificar suas práticas ou, no caso de uma teoria mística ser bem-sucedida, teríamos que aceitá-la como empiricamente adequada (tão empiricamente adequada quanto as ciências). Mas o que justifica a prática científica, distinguindo-a de teorias místicas, acredito que nos diria Ghins, é a intersubjetividade da estrutura perceptiva e do modelo de dados.

4 Há um conflito aparente entre a ideia de que as leis são tornadas verdadeiras por modelos e a ideia de que os poderes causais são o fundamento das leis. Se os poderes causais fundam as leis, então são eles, e não os modelos, que as fazem verdadeiras. Além disso, se modelos e proposições têm o mesmo estatuto ontológico de serem entidades representacionais, portadores de valor de verdade (truth bearers) ou de algum outro valor (como adequação/inadequação), um não pode ser o veridador do outro, já que veridadores não são entidades representacionais. Mas é argumentável que um modelo é justamente o modelo de um poder causal. Se esse for o caso, então, se for o poder ou se for o modelo do poder que tornam a lei verdadeira, isso não fará diferença. O ponto, talvez, aqui, seja apenas um preciosismo terminológico, no qual diríamos que um modelo é feito verdadeiro (ou aproximadamente verdadeiro), tal como uma lei científica, por um poder causal, embora o modelo satisfaça sempre a lei científica. Embora uma lei científica e um modelo teórico só sejam aproximadamente verdadeiros, dada a distância entre a teoria e a realidade, a relação de satisfação entre o modelo e a lei não é aproximada. Se um modelo não satisfaz a lei, ele tem de ser mudado ou a lei tem de ser mudada. A escolha entre mudar o modelo ou a lei é pragmática.

5 Leis mais gerais da mecânica estatística de partículas.

6 O problema da inferência também pode ser expresso em outros termos, com menos compromissos ontológicos, se pensarmos que o que devemos explicar é a condicional: N(F,G) → (x)(Fx→Gx). Esta formulação é preferível, se quisermos tratar do problema sem a pressuposição de que há também o universal da necessitação no domínio dos particulares (o autor usa sua própria formulação, pois se direciona contra a concepção armstronguiana, que, de fato, pensa que a necessitação é idêntica à causalidade singular e, por isso, age também nos particulares). Um universalista transcendentalista crente da necessitação, por exemplo, poderia querer dizer que a necessitação, como universal, transcende os particulares, mas que a causalidade singular entre estados de coisas é apenas uma instância da necessitação. No entanto “(x)(Fx→Gx)” é neutro o suficiente para não pressupor nem a instanciação da necessitação. A condicional nos diz que a necessitação N, relacionando as propriedades universais F e G, implica que tudo que é um F é também um G. Como explicar essa implicação?

7 Michel Ghins, numa conversa privada, disse-me que tem plena noção de que esse problema também se aplica à sua metafísica dos poderes. Sua solução é dizer que ele identifica as propriedades naturais com as propriedades definidas pelas teorias científicas; no entanto, essa solução não é exclusiva ao metafísico dos poderes, mas logicamente possível também a qualquer teórico das leis. Por exemplo, Armstrong (1983), como defensor da necessitação contingente das leis, e Cid (2011), como defensor da necessidade metafísica das leis, sustentam, ambos, que devemos pensar as propriedades naturais como as propriedades indicadas pelas ciências.

8 De fato, eu acredito que o poder explicativo do conectivismo é menor que o do substantivismo, principalmente do substantivismo ante rem. Podem-se encontrar argumentos em Cid (2011). Vou apresentar alguns a seguir.

9 Ou, alternativamente, no caso do defensor dos átomos metafísicos, quando duas partículas do tipo X (do tipo átomo metafísico) interagem do modo Y, elas produzem F.

Referências

ARMSTRONG, D. 1983. What is a law of nature? Cambridge, Cambridge University Press, 180 p.

BIRD, A. 2007. Nature’s Metaphysics. Laws and Properties. Oxford, Clarendon Press, 246 p.

CID, R. 2011. O que é uma lei da natureza? Rio de Janeiro, RJ. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 114 p.

CID, R. 2016. São as leis da natureza metafisicamente necessárias? Rio de Janeiro, RJ. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 184 p.

LEWIS, D. 1973. Counterfactuals. Cambridge, Harvard University Press, 168 p.

PSILLOS, S. 2002. Causation and Explanation. Montreal, McGill-Queen’s University Press, 336 p.

TOOLEY, M. 1977. The Nature of Laws. Canadian Journal of Philosophy, 7(4):667-698. https://doi.org/10.1080/00455091.1977.10716190

VAN FRAASSEN, B. 1989. Laws and Symmetry. Oxford, Oxford University Press, 416 p.

Rodrigo Reis Lastra Cid – Doutor em Lógica e Metafísica pelo Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor substituto no Instituto Federal de Minas Gerais. Sabará, MG, Brasil. E-mail: [email protected]

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A Escola Ibérica da Paz nas Universidades de Coimbra e Évora (Século XVI) (vol. I). (Séculos XVI e XVII) (vol. II) – CALAFATE (FU)

CALAFATE, P. A Escola Ibérica da Paz nas Universidades de Coimbra e Évora (Século XVI) (vol. I). (Séculos XVI e XVII) (vol. II). Coimbra: Edições Almedina, 2015. Resenha de: NASCIMENTO1, Marlo do. Os mestres da Escola Ibérica da Paz. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.17, n.1, p.81-84, jan./abr., 2016.

A publicação da obra A Escola Ibérica da Paz vem a ser um resgate de textos latinos manuscritos e impressos de alguns professores renascentistas das Universidades de Coimbra e Évora. Os dois volumes da referida obra foram publicados sob a direção de Pedro Calafate, professor da Universidade de Lisboa, e são fruto do trabalho de uma equipe interdisciplinar que realizou suas atividades via projeto Corpus Lusitanorum de Pace: o contributo das Universidades de Coimbra e Évora para a Escola Ibérica da Paz2. Este grupo de pesquisadores tratou de investigar, transcrever e traduzir manuscritos e textos latinos impressos de autores como Luís de Molina, Pedro Simões, António de São Domingos, Fernando Pérez, Martín de Azpilcueta, Martín de Ledesma, Fernão Rebelo e Francisco Suárez.

O volume I tem por título A Escola Ibérica da Paz nas Universidades de Coimbra e Évora (Século XVI), com direção de Pedro Calafate e coordenação de Ana Maria Tarrío e Ricardo Ventura. Este volume contém dois estudos introdutórios, apresentação dos textos e, em seguida, a transcrição e tradução de textos de Luís de Molina, Pedro Simões, António de São Domingos, Fernando Pérez (todos em versão bilíngue latim/português) e ainda, em anexo, um texto transcrito de autor anônimo. Os temas abordados versam sobre questões da guerra e da paz, relacionando-as a temáticas que implicam problemáticas de cunho ético, político e jurídico. Conforme aponta Pedro Calafate, est es textos não deixam de ser verdadeiros manifest os sobre o valor da paz e o respeito pela soberania dos povos.

O Estudo introdutório – I, escrito por Pedro Calafate, tem por título “A Guerra Justa e a igualdade natural dos povos: os debates ético-jurídicos sobre os direitos da pessoa humana”. Nest a introdução, o autor aborda várias temáticas desenvolvidas pela Escola Ibérica da Paz, entre elas: o limite do poder papal e do imperador, a legitimidade das soberanias indígenas, a noção de que o poder dos príncipes pagãos não difere daquele dos príncipes cristãos, a compreensão de que a rudeza dos povos não lhes impede a liberdade nem o direito de domínio e de posse. Discute ainda as punições de crimes contra o gênero humano (sacrifícios humanos, morte de seres humanos inocentes) e apresenta a compreensão de que o cumprimento de ordens superiores não deve justificar o ato de um soldado cometer um crime contra o gênero humano. Ressalta ainda a importância do respeito ao direito natural de sociedade e comunicação, e ainda o direito ao comércio, sendo justa causa de guerra o caso de haver impedimentos violentos contra est es direitos.

No Estudo introdutório – II, escrito por Miguel Nogueira de Brito, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, o qual versa sobre “A primeira fundação do Direito Internacional Moderno”, ressalta o autor a relevância dos escritos dos teólogos-juristas da segunda escolástica para a fundação do direito internacional moderno. Para isso, ele apresenta o contraste entre as doutrinas dos autores da segunda escolástica (primeira fundação do direito internacional) e os autores da “segunda” fundação do direito internacional público, com destaque para Grócio e Pufendorf. Assim, expõe que os da primeira fundação entendem o direito internacional como direito dos povos e os da segunda assumem que a comunidade é como um instrumento de proteção do indivíduo. Compreender o direto internacional a partir do direito dos povos conduz o autor a relacionar o pensamento dos autores da segunda escolástica com o pensamento de John Rawls. Isso porque a obra de Rawls A Lei dos Povos (1999) é alvo de muitas críticas justamente porque ele aborda as relações internacionais na perspectiva dos povos havendo uma grande semelhança com o pensamento dos autores da segunda escolástica. Por fim, enaltece a importância das ideias destes escolásticos para as discussões sobre o direito internacional mais recente.

Antes de adentrar propriamente os textos transcritos e traduzidos, Ricardo Ventura, da Universidade de Lisboa, tece uma apresentação dos textos, o que muito auxilia na posterior leitura. A apreciação destes textos não só traz à tona a cultura presente nas universidades portuguesas do século XVI, como também mostra o que se tem de mais original no pensamento português, fruto de uma extensão da influência da Escola de Salamanca.

Como primeiro texto temos o escrito de Luís Molina intitulado Da fé – Artigo 8 Se os infiéis devem ser forçados a abraçar a fé (p. 76-105), transcrito e traduzido por Luís Machado de Abreu. A primeira conclusão que se tem é que não é lícito obrigar nenhum dos infiéis a abraçar o batismo e tampouco a fé, e que não é lícito fazer guerra contra eles por est a razão ou subjugá-los. Como uma segunda conclusão se tem que é lícito atrair aqueles que são infiéis com favores, dinheiro e afabilidade, para que desta forma possam ser levados a prestar culto a Deus. A terceira conclusão é que qualquer pessoa tem o direito de anunciar o Evangelho em qualquer lugar. Quarta conclusão: é lícito fazer guerra, se for necessário, contra aqueles que impedem a pregação do Evangelho como forma de vingar alguma ofensa, com a devida proporcionalidade. Mostra-se lícito forçar os hereges e apóstatas a conservar a fé que receberam no batismo ou fazê-los abraçá-la novamente, porque a ideia é que a Igreja tem poder sobre aqueles que receberam o batismo.

Em seguida, temos o texto chamado Notas sobre a Matéria acerca da Guerra, lecionadas pelo Reverendo Padre Pedro Simões no ano de 1575 (p. 106-209). Este teve a transcrição de Joana Serafim, tradução e anotação de Ana Maria Tarrío e Mariana Costa Castanho, com o estabelecimento do texto e revisão final de Ana Maria Tarrío e Ricardo Ventura. Pouco se sabe sobre Pedro Simões: apenas que em 1557 ingressou na Companhia de Jesus e em 1569 foi professor da Universidade de Évora. Nest e escrito, o autor trata da questão da guerra em três momentos. Além da referência tomista, o texto tem como inspiração as cinco questões sobre a guerra apresentadas na suma de Caetano. Os três momentos abordados por Pedro Simões são: (i) Acerca das condições da guerra justa; (ii) acerca dos soldados e dos restantes que cooperam na guerra; e (iii) acerca do que é lícito fazer em uma guerra justa. Uma das temáticas que permeia est es momentos e vale ser destacada é a importante discussão sobre os títulos que legitimam o poder português nas Índias.

Em seu escrito, António de São Domingos também discute sobre a matéria da guerra. Este autor nasceu em Coimbra em 1531 e professou em 1547 no convento de São Domingos em Lisboa. Assumiu a cadeira prima na Universidade de Coimbra em 1574 e veio a falecer entre 1596 e 1598. Seu texto De bello. Questio 40 (p. 210-341) tem a mesma estruturação feita por São Tomás ao tratar do tema em sua Suma Teológica, ques ão 40, que a estrutura em quatro artigos. Este escrito teve a transcrição e o estabelecimento do texto feitos por Ricardo Ventura e contou com a revisão final da transcrição, tradução do latim e notas de António Guimarães Pinto. Os quatro artigos são assim apresentados: no Artigo 1º, a questão é se fazer guerra é sempre pecado; no artigo 2º, se é lícito aos clérigos combater; no artigo 3º, se numa guerra justa é lícito usar de ciladas; e no artigo 4º, se é lícito combater nos dias santos. É importante destacar, deste manuscrito, que Frei António, ao elencar os títulos que dão direito à guerra justa, diverge de Francisco de Vitória e seus discípulos que defendiam que o direito que Cristo concedeu aos apóstolos de ir pelo mundo e pregar o Evangelho a toda criatura (Mc 16,15) era um direito natural. Para Frei António de São Domingos não era assim, pois est e direito concedido por Cristo não poderia ser confundido com um direito natural. Além disso, salienta (f. 68) que o Evangelho deve ser pregado com mansidão e não por força das armas. Desta maneira, é possível revelar o reconhecido respeito que o autor possuía por quem ainda não era conhecedor da revelação cristã.

Temos ainda o escrito de 1588 intitulado Sobre a Matéria da Guerra (p. 342-497), de Fernando Pérez. A transcrição e o estabelecimento do texto são de Filipa Roldão e Ricardo Ventura, e ele teve como revisor final da transcrição e tradutor António Guimarães Pinto. Fernando Pérez, nascido em Córdoba por volta de 1530, foi professor da Universidade de Évora, ocupando a cadeira prima nesta Universidade de 1567 a 1572. In materiam de Bello a Patre Doctore Ferdinandus Perez é um texto inspirado, principalmente, na questão 40 da II-II da Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino. Desta forma, o autor também desenvolve sua temática por meio de quatro artigos a partir das questões levantadas por São Tomás. Cabe lembrar que o texto de Pérez é semelhante em estruturação ao De Bello de António de São Domingos. Talvez a novidade apresentada neste texto seja justamente a relação que Pérez faz das questões levantadas por Tomás com questões pertinentes à sua época, como, por exemplo, reflexões sobre a questão da soberania dos hispânicos sobre as Índias, sobre a guerra contra mouros e turcos, sobre o poder papal, se o mesmo se estende para fora da Igreja, sobre a defesa do direito natural no caso de matar inocentes, sobre a legitimidade de subjugar povos considerados bárbaros (africanos, indígenas do Brasil e outros).

No final deste primeiro volume, também podemos encontrar a minuta de uma carta dirigida a D. João III, de autor anônimo, de 1556 (?), e nela se encontram as causas pelas quais se poderia mover guerra justa contra infiéis. A minuta desta carta tem a transcrição paleográfica de João G. Ramalho Fialho. Este texto carece de um pouco mais de atenção do leitor pelo fato da grafia ser um pouco distinta daquela com que est amos acostumados.

É possível dizer que este primeiro volume é um convite a pensar o direito internacional e seus vários desdobramentos, principalmente no diz respeito a questões de guerra e de paz. O que fica muito claro nestes escritos é a preocupação dos autores em pensar a guerra em função da paz, e est a relação é um dos motivos que tornam seus escritos fascinantes. Por fim, imagino que seja preciso ressaltar uma pequena falha do volume I, que é a falta do Índice Onomástico, o que se pode encontrar no Volume II, que em seguida abordaremos. Ressalto a falta deste tipo de índice porque est a é uma obra com uma da gama de autores importantes citados e a busca dos mesmos se torna um pouco mais difícil sem est a ferramenta.

Ao adentrar o Volume II, deparamo-nos com escritos sobre a justiça, o poder e a escravatura. Sob a direção e coordenação de Pedro Calafate, est e volume é estruturado em duas partes. A primeira parte contém uma introdução à Relectio C. Novit de Iudiciis de Martín de Azpilcueta, de autoria de Pedro Calafate. Em seguida, temos o texto propriamente dito e, no final dest a primeira parte, em anexo o Novit Ille de Inocêncio III. A segunda parte também possui uma nota introdutória elaborada por Pedro Calafate. Na sequência temos três capítulos, nos quais encontramos, respectivamente, a tradução dos escritos de Martín de Ledesma, Fernão Rebelo e Francisco Suárez.

Inicialmente, é importante ressaltar que a introdução à Relectio de Martín de Azpilcueta, feita pelo Pedro Calafate, é muito válida, pois ela cumpre o intuito de realmente introduzir o leitor no escrito de Azpilcueta que vem em seguida. Nela, Pedro Calafate apresenta claramente o contexto em que o escrito se insere, além de destacar as principais questões discutidas nele. O escrito Sobre o Poder Supremo (p. 23-181), propriamente dito, de Martín de Azpilcueta, tem a tradução do latim e anotação realizada por António Guimarães Pinto. Martín de Azpilcueta, que foi professor da Universidade de Coimbra, aborda em sua Relectio C. Novit de Iudiciis variados temas, porém a discussão central gira em torno do poder supremo dos reis e dos papas, uma temática um tanto delicada de ser trabalhada, pois o que est á em pauta são os limites do poder temporal e do poder espiritual, questões que envolvem a relação de soberania do Estado e da Igreja.

A Relectio é estruturada em forma de anotações, seis no total. Elas foram desenvolvidas a partir da reflexão sobre o texto de Inocêncio III Novit Ille (1204), que pode ser encontrado em anexo à Parte I deste volume, logo após o escrito de Azpilcueta. Nas duas primeiras anotações, encontramos discussões de questões referentes à onisciência divina à sua relação com o livre-arbítrio, e a crítica à astrologia supersticiosa e às práticas de adivinhação, pelo fato de que elas interferem no âmbito da ciência divina. Porém, é nas anotações III a VI que podemos encontrar o centro do escrito, que versa mais propriamente sobre a questão do poder supremo dos monarcas supremos (tanto reis como papas). Cabe ainda ressaltar que Azpilcueta, fazendo jus à Escola Ibérica da Paz, trata da defesa da soberania legítima dos povos do Novo Mundo, defendendo, no âmbito jurídico, que nem o papa nem o imperador possuíam direito sobre o território e a soberania indígena do Novo Mundo.

Na segunda parte deste volume, podemos encontrar uma nota introdutória seguida de três capítulos onde temos, respectivamente, a tradução de escritos de Martín de Ledesma, Fernão Rebelo e Francisco Suárez.

A nota introdutória desta parte, de autoria de Pedro Calafate, apresenta a relevância do conjunto de textos escolhidos dos professores das Universidades de Évora e Coimbra, que tratam de questões como: origem e natureza do poder civil, a escravatura, as relações entre infiéis e cristãos no período entre os séculos XVI e XVII.

No primeiro capítulo, encontraremos excertos de Martín de Ledesma, professor na Universidade de Coimbra entre os anos de 1540-1562, tendo como título Secunda Quartae (p. 197-202). A seleção de textos e a tradução do latim são de Leonel Ribeiro dos Santos a partir da edição príncipe (Coimbra, 1560). São seis excertos intitulados pelo próprio tradutor. Neles são tratados temas que envolvem a defesa da soberania dos povos e do direito natural, o combate do argumento de que a inferioridade civilizacional justifica a guerra e a escravatura, condenando, assim, a escravatura e declarando-a ilegítima quando se tem como pretexto tornar cristãos os escravos. Também discorre sobre o poder papal, destacando que o mesmo não é senhor das coisas temporais e que o poder civil não está sujeito ao poder temporal do papa.

No segundo capítulo, temos o texto de Fernão Rebelo, nascido em 1547, que foi professor da Universidade de Évora. Este escrito tem por título Opus de Obligationibus, Justitiae, Religionis et Caritatis3 (p. 203-241), cuja tradução do latim é de António Guimarães, a partir da edição príncipe (Lyon, 1608). A opção por traduzir apenas algumas questões desta obra se deve à escolha temática. Pelo fato deste escrito possuir uma gama variada de temas, explica Calafate (p. 194), optou-se traduzir apenas as questões relativas à escravatura. E é dentro dessa temática que Fernão Rebelo discorre sobre algumas questões como: quando é legítimo um homem tornar-se escravo de outro, o que legitima a posse de escravos, que tipo de poder tem o senhor sobre o escravo e quais os limites desse poder, quais direitos possui um escravo, quando é lícita a fuga de um escravo e quando est e deve tornar-se livre.

No terceiro e último capítulo deste volume, encontramos o texto de Francisco Suárez chamado Defensio Fidei Catholicae et Apostolicae Adversus Anglicanae Sectae Errores4 (p. 243-301). Suárez é movido a escrever est a obra no intuito de combater a teses jusdivinistas do rei Jaime I de Inglaterra. A tradução destes capítulos do livro III, cujo título Principatus Politicus se justifica pelo fato deles incidirem mais especificamente sobre a questão da fundamentação da doutrina democrática de Francisco Suárez, conforme explica em nota o tradutor do texto, André Santos Campos (p. 245). Já o capítulo IV do livro VI, que tem por título De Iuramento Fidelitatis, vem de certa forma complementar o que foi exposto no livro III, porém com destaque para o direito à resistência ativa e a discussão em torno do poder indireto do papa ao tratar de questões de ordem temporal.

Cabe ressaltar que a obra A Escola Ibérica da Paz (vol. I e II) é importante por vários motivos. Dentre eles, pode-se destacar que est a obra é válida por resgatar o pensamento destes autores do Renascimento através de seus escritos, pensamento est e que ilumina de maneira crítica vários acontecimentos históricos dos séculos XVI e XVII referentes às questões de guerra e paz, justiça, poder e escravatura. Ela também resgata uma memória histórica que nos auxilia e influencia a pensar o presente e o futuro sob uma nova perspectiva, ou seja, sob a perspectiva de quem compreende o direito como algo inclusivo, do qual todos fazem parte, não distinguindo as pessoas por raça, credo, classe social, costumes, etc. Além disso, é importante ressaltar que a obra A Escola Ibérica da Paz (vol. I e II), que pode ser adquirida através do site da Editora Almedina, permite o contato, de maneira mais fácil, com textos de autores que, de outra forma, seriam de difícil acesso ao público menos especializado.

Notas

1 Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Av. Unisinos, 950, Cristo Rei, 93022-750, São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: [email protected] 2 Projeto PTDC/FIL-ETI/119182/2010 do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, tendo como investigador responsável o Professor Pedro Calafate.

2 Projeto PTDC/FIL-ETI/119182/2010 do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, tendo como investigador responsável o Professor Pedro Calafate.

3 Desta obra foram traduzidas as questões 9, 10, 11, 12, 13 do livro I.

4 Traduziram-se do latim, a partir da edição príncipe (Coimbra, 1613), apenas os capítulos II, III e IV do livro III, que possui em sua totalidade nove capítulos, e o capítulo IV do livro VI, que possui em sua totalidade 12 capítulos.

Marlo do Nascimento – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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Empirically Informed Ethics: Morality between Facts and Norms – CHRISTEN et al (FU)

CHRISTEN, M.; VAN SCHAIK, C.; FISCHER, J.; HUPPENBAUER, M.; TANNER, C. (Eds.). Empirically Informed Ethics: Morality between Facts and Norms. London: Springer, 2014. Resenha de: TRUJILLO, Laura Yenisa Cabrera. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.16, n.2, p.194-197, mai./ago., 2015.

Historically, facts and norms have been considered as two separate realms, each one approached by different analytical tools and each one studied with different purpose in mind. Empirically Informed Ethics: Morality between Facts and Norms gathers contributions from philosophers, theologians and empirical scientists who, in spite of their firm standings in their own disciplines, see the value of crossing to realms beyond their traditional one and learning how these other realms can inform their own work.

This book is of interest for two main reasons. On the one hand it provides an overview of recent developments in empirical investigations of morality. On the other hand it assesses their importance and impact for ethical thinking. Empirically Informed Ethics is suitable for those who are new into cross-disciplinary work, those who want to learn more on the benefits and caveats that come with it, or just to get a picture of empirical investigations within ethics.

The book is organized in six parts; each one with the exception of the last one consists in three chapters. Part I, entitled ‘What is empirically informed ethics?’, begins with a chapter (Chapter 1) by M. Christen and M. Alfano outlining the field of empirically informed ethics. They start by presenting the phenomenon that empirically informed ethics investigates, namely moral agency. This chapter continues with some important distinctions in how empirical data is used, e.g. as an indicator of the feasibility of ethical thought, as foundations of normative theory or as framing of an ethical problem. In what follows Christen and Alfano provide an overview of the different kinds of empirical methodologies and data that can inform ethics. The chapter concludes by presenting several problems raised by this approach.

The second chapter by J. Fischer focuses on how understanding of the field affects the role of empirical research on morality for ethics. Fischer provides three arguments in favor of comprehending ethics as a rational justification of moral judgment, the first one rooted in the very essence of morality, the second on its authenticity and the third one on its being necessary to deal with moral conflict. Fischer also argues that empirically informed ethics “can deliver crucial insights into the type of reasons involved in moral reflection” (p. 39) and thus “be better suited in guiding us to the right moral thinking compared to an ethics that purely understands itself as the rational justification of morality” (p. 43).

The final chapter of Part I is by A. Naves de Brito (Chapter 3) and deals with moral behavior and moral sentiments. He starts with the hypothesis that “moral values can be understood and their authority explained on the basis of how humans are naturally disposed to behave in groups” (p. 45). He draws a distinction between universalism and egalitarianism in relation to a theory of value and explains the different problems each of these have in terms of naturalization. For universalism this relates to the search for the natural basis of normativity in morality, whereas in egalitarianism to the natural basis for considering equality as a moral value (p. 57). In his conclusion Naves de Brito puts forward that “universality and equality are to be defended in any tolerable human concept of morality, simply because they are constituent elements of human morality, and not fundamentally because it is rationally plausible to choose them” (p. 62).

Part II, entitled ‘Investigating origins of morality’, starts with a chapter by C. van Schaik and colleagues (Chapter 4). Van Schaik and colleagues’ chapter ‘Morality as a biological adaptation – An evolutionary model based on the lifestyle of human foragers’ offers a departure from the traditional way in which morality is seen as rooted in rational reflection. They present sympathy, concern with reputation, the wish to conform and the sense of fairness as the “major components of human moral psychology upon which our reflective morality is built” (p. 77). Furthermore they suggest that these moral emotions arise very early, which suggest an innate moral core.

The next chapter (Chapter 5) by S.F. Brosnan deals with the evidence for moral behaviors in non-human primates. She starts by discussing the evolution of moral behaviors, making clear that the scientific goal of understanding what moral behavior is and the ethicist’s goal of determining what ought to be are not the same. Brosnan describes that behavior that is shared between species due to common descent is known as homology, whereas behavior that may be shared among species due to common environmental pressures, constraints and opportunities is known as convergence. Social interventions, reciprocity, inequity and prosocial behavior are four behaviors put forward by Brosnan as behaviors that uphold social norms. In addition she puts moral emotions as a potential mechanism for moral behavior that is common between humans and other species.

This part ends with a chapter by J.J. Prinz (Chapter 6) entitled ‘Where do morals come from? A plea for a cultural approach’. Prinz argues that such an approach has implications for “how to think about the biological contributions to morality and the processes by which moral values are acquired” (p. 99). In the first part of his chapter he discusses what morality is, including the role of emotion and moral judgment and the content of morality. The second part of the chapter focuses on where moral values come from. Is morality innate or is it influenced by culture and history? Connected to this, Prinz argues that the scientific study of morality should include “fields that track sources of cultural variation” (p. 116). This chapter is a very nice addition to this part of the book as a call for even further expansion of the sources of empirical data used to inform ethics.

Part III of the book is entitled ‘Assessing the moral agent’ and starts with a chapter by C. Tanner and M. Christen on moral intelligence (Chapter 7). They start by defining what moral intelligence is—the agent’s capacity to process and manage moral problems—and then move on to present a model that provides the foundation for the moral intelligence framework, a framework for understanding moral competencies. According to Tanner and Christen, the moral intelligence framework includes: a reference system (moral compass), ability and willingness to prioritize (moral commitment), ability to recognize a moral issue (moral sensitivity), an ability to develop and determine a morally satisfactory course of action (moral problem solving) and the ability to build up moral behavior by acting consistently despite barriers (moral resoluteness) (p. 122).

Then they introduce the elements and moral competences that they deem as essential for moral agents, and conclude by presenting some ideas on how to improve moral intelligence.

The next chapter (Chapter 8) is on ‘Moral brains – possibilities and limits of the neuroscience of ethics’. K. Prehen and H.R. Heekeren start this chapter by providing a brief overview of traditional recent psychological models on moral judgment and behavior. Then they introduce the neuroscientific approach and the methods applied to the study of the ‘moral brain’, such as examination of brain damaged patients and neurostimulation. They move on to present major lines of research while at the same time offering a critical overview of these. They end by presenting their own empirical findings on the influence of individual differences in moral judgment competences based on neuroimaging studies (p. 138).

The last chapter of this part (Chapter 9) focuses on using experiments in ethics. Here S. Nichols, M. Timmons and T. Lopez start by introducing ethical conservatism. They move on to highlight the problem of moral luck and two different epistemic accounts of luck-blame judgments: the rational inference account and the epistemic bias account. Nichols and colleagues then discuss psychological research on moral luck, as well as luck in the context of control and negligence.

Part IV of Empirically Informed Ethics, entitled ‘Justification between rational reflection and intuitions’, starts with a chapter on intuitions in moral reasoning by G.J.M.W. van Thield and J.J.M van Delden. The authors discuss normative empirical reflective equilibrium as a model for substantial justification of moral claims. Van Thield and van Delden argue that this model differs from the traditional reflective equilibrium approach in two main respects: (i) moral intuitions of agents other than the thinker are included and (ii) empirical research is used to obtain information about these intuitions (p. 179). In this chapter van Thield and van Delden also discuss four types of coherence in moral justification: explanatory, deductive, deliberative and analogical coherence, as well as durability, transcendence and experienced perception as ways to assess the justificatory power of moral intuitions.

Chapter 11 by M. Musschenga touches on issues of moral expertise. In this chapter Musschenga argues that in order to strengthen the quality of reflective equilibrium the initial judgments should come from moral experts. According to the author, “a moral expert is someone who, by virtue of his knowledge, training, experience, and other skills […] is competent enough to make justifiable judgments on issues in his particular moral domain” (p. 200). In terms of the limits of moral expertise, Musschenga argues that “[f]or moral experts the ultimate source of moral beliefs and values that guide their judgment and decisions are not their own moral views, but the views of society at large which are embodied in the relevant documents and policies” (p. 207).

The final chapter of this part (Chapter 12) touches on issues of social variability in moral judgments. In this chapter E.H. Witte and T. Gollan introduce the prescriptive attribution concept by its formal analysis, report two extensions of the model, present empirical measurement of the justification and conclude by offering some empirical results on determinants of prescriptive attributions.

Part V, ‘Practicing ethics in the real world’, starts with a chapter (Chapter 13) by D. Narvaez and D. Lapsley on becoming a moral person. In particular they emphasize moral development and moral character as a result of social interactions.

In the next chapter (Chapter 14), M. Huppenbauer and C. Tanner write about ethical leadership with a focus on how to integrate empirical and ethical aspects for promoting moral decision-making in business practice. In doing so, the core of their argument is based on the idea that “empirical research without normative reflection is ‘blind’ […] similarly normative reflection is ‘empty’ without empirical insights” (p. 240). I find this chapter in particular to truly speak about the goals of the book.

The last chapter of this part (Chapter 15), ‘The empirical turn in bioethics’, by T. Krones, emphasizes the benefits of transdisciplinary work within bioethics, namely to “improve theory and practice of medicine and health care” (p. 256).

Part VI, ‘Critical Postcript’, ends with the chapter by A. Kauppinen entitled ‘Ethics and empirical psychology – Critical remarks to empirically informed ethics’. Kauppinen starts by presenting two main theses of empirical facts within armchair traditionalism and then presents how these theses are seen under what he calls ethical empiricism. In both the bold and modest claims of empirical empiricism what is key is that armchair traditionalism is rejected. Kauppinen then charts various ways in which empirical results might be or have been claimed to be important to metaethics and normative ethics, and closes the chapter by suggesting that “while armchair reflection will and ought to continue to be central to ethical inquiry, findings about what, why, and how we judge may stimulate and even challenge its results at several important junctures” (p. 305).

Overall the book is clear and covers a wide range of important aspects for those aiming to make the contributions of ethics more valuable and relevant for society. In particular, I enjoyed reading the opening chapter, the chapter by Prinz and the one by Huppenbauer and Tanner. This book deserves to be read by anyone interested in stepping out of their traditional norms and facts boundaries or by those who have never found the world of facts and norms as mutually exclusive realms, and particularly by anyone new to this field. For those already familiar with some (if not all) of the topics that the book covers, there is still some benefit to be gained from reading about some recent empirical investigations in areas in which they may not have such detailed knowledge or using different approaches from the ones they are familiar with.

Laura Yenisa Cabrera Trujillo – Assistant Professor of Neuroethics Michigan State University Center for Ethics & Humanities. USA. E-mail: [email protected]

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Hegel-Husserl-Heidegger – GADAMER (FU)

GADAMER, H-G. Hegel-Husserl-Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2012. Resenha de: KAHLMEYER-MERTENS, Roberto S. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.15, n.1, p.84-87, Jan./abr., 2014.

O nome de Hans-Georg Gadamer (1900-2002) se confunde com a ideia de hermenêutica. Esta afirmativa se legitima ao conhecermos as contribuições que o filósofo trouxe a esse campo de saber. Retirar a hermenêutica do registro metódico, que fazia com que esta ainda permanecesse distanciada de seus objetos, trazendo-a para o domínio filosófico (nas esferas estética, histórica e da linguagem) talvez tenha sido o mais significativo acréscimo do pensamento gadameriano (Rohden, 2002). Não se pode, contudo, em detrimento de suas ideias próprias, desconsiderar as apropriações que o autor faz das figuras filosóficas que, de alguma maneira, se encontram atreladas à hermenêutica e fenomenologia contemporâneas. Com vivo interesse hermenêutico, Gadamer comenta pensadores que influíram decisivamente em sua formação acadêmica, em sua síntese filosófica original e, de modo mais amplo, na cena intelectual do século XX. Valendo-se de ensaios, conferências e falas de circunstância, o autor nos oferece, com a clareza que lhe é habitual, interpretações que – além de sempre contar com a atitude hermenêutica fundamental – se beneficiam da experiência deste que não apenas viveu as ideias do século passado quanto conviveu com alguns de seus propositores.

Algumas dessas interpretações estão já disponíveis em português na série Hermenêutica em retrospectiva, editada entre os anos 2007-2008 pela Editora Vozes (Gadamer, 2007a, 2007b, 2007c, 2007d, 2008). Recentemente, sob o mesmo selo editorial, o leitor brasileiro passou também a contar com mais dessas leituras de Gadamer enfeixadas sob o título de Hegel-Husserl-Heidegger. Com esta entrada, chegamos a nutrir expectativas (em parte induzidos pelo distinto e quase homônimo capítulo que Sartre [1997] consagra aos três filósofos no interior de O ser e o nada) quanto ao livro tratar-se de um único e coeso ensaio que tentaria mesclar as ideias dos três filósofos. Entretanto, mesmo vendo nossas expectativas neste sentido dissipadas, a obra, coletânea de textos de diversas épocas, não deixa de gratificar os interessados em questões hermenêuticas e fenomenológicas, bem como, pontualmente, os pesquisadores dos referidos filósofos germânicos.

Equivalendo ao terceiro volume das Obras Reunidas (Gesammelte Werke), Hegel-Husserl-Heidegger traz 28 escritos distribuídos em três partes referentes aos filósofos nomeados no título. Desiguais em número de textos, as partes são também diferentes em extensão e gênero; alguns são longos ensaios e, outros, recensões e alocuções menores.

É isso que se vê na primeira seção, composta por cinco escritos sobre Hegel: “Hegel e a dialética antiga” (p. 13-46), “O mundo às avessas” (p. 47-69), “A dialética da autoconsciência” (p. 70-92), “A ideia da lógica hegeliana” (p. 93-121) e “Hegel e Heidegger” (p. 122-140). No primeiro tópico, temos a tentativa de Gadamer (que também era filólogo clássico) de pensar a dialética antiga em sintonia com a moderna; nos demais, é possível entrever o procedimento hermenêutico do autor ao caracterizar a filosofia da subjetividade hegeliana a partir da noção de “entendimento” na Fenomenologia do espírito e nas doutrinas da Lógica maior. Embora Gadamer seja bem pouco pretensioso frente a estes trabalhos que, para ele, apenas contribuiriam para “se aprender a soletrar Hegel” (p. 8), nosso autor se mostra um distinto leitor de Hegel, mostrando-se familiarizado com a literatura que – de Rosenkranz a Kojève – compõe o repertório crítico junto ao qual os problemas hegelianos se adensam e se esclarecem.

Proporcionalmente reduzida é a seção reservada a Husserl. Isto, no entanto, não significa que Gadamer atribuía importância menor ao fundador da Fenomenologia. Reconhecendo a extensão e magnitude do pensamento de Husserl, Gadamer nos oferece um conjunto de recensões outrora publicadas no periódico Philosophische Rundschau; com essas, pretende escutar, uma vez mais, o que foi dito por Husserl e estabelecer os acentos cabidos aos pontos de convergência e ressonância da fenomenologia. Isso pode ser conferido em textos como: “O movimento fenomenológico” (p. 143-199), “A ciência e o ‘mundo da vida’” (p. 200-216) e “Sobre a atualidade da fenomenologia husserliana” (p. 217-232). Entre os três títulos, voltemos nossas atenções ao primeiro. Neste longo escrito, encontramos uma apresentação muito didática dos termos da fenomenologia husserliana em seus objetivos, aspectos metódicos e, principalmente, seus objetos de crítica (a teoria do conhecimento, a ideia de sujeito e outras hipostasias). Um pouco do nível dos textos que Gadamer consagra a Husserl, e uma ideia do que o leitor interessado nessa fenomenologia encontrará nessa segunda parte do livro, pode ser apreciado nas seguintes linhas:

A fenomenologia não era menos crítica em relação aos hábitos do pensamento da filosofia contemporânea. Ela queria dar voz ao fenômeno, ou seja, ela buscou evitar toda e qualquer construção indemonstrável e colocar à prova criticamente o domínio autoevidente de teorias fi losóficas. Assim, ela considerava, por exemplo, uma construção marcada por preconceitos, quando se procura deduzir todos os fenômenos da vida social humana de um único princípio, por exemplo, a partir do princípio da maior utilidade ou mesmo a partir do princípio do prazer. Mas ela se remete sobretudo contra a construção que imperava na outrora disciplina fundamental da filosofia: a teoria do conhecimento (Gadamer, 2012, p.144).

Dentre as três seções componentes do livro, a mais substancial é a terceira. Inteiramente dedicada a Heidegger (o que denota que é sobre este que recai a ênfase do livro), seus ensaios, conferências e discursos não são inteiramente inéditos, já tendo sido publicados originalmente entre os anos de 1964-1986. Na maioria desses escritos é possível identificar o interesse gadameriano em caracterizar o pensamento de Heidegger em dois tempos: o antes e o depois da chamada “virada hermenêutica”.

Dos 20 textos sobre Heidegger, chama-nos atenção “Existencialismo e filosofia da existência” (p. 235-249). Esta distinção entre o pensamento do filósofo de Freiburg e a dita corrente existencialista poderia ser considerada uma temática “requentada” se fosse desconsiderado o fato de ele ter sido escrito em 1981, época em que se vivia uma verdadeira voga existencial ou um momento em que, como diz Gadamer (2012, p.235): “O que não era existencial não contava”. Problematizando a designação em pauta, nosso comentarista apresenta os termos das filosofias da existência na Alemanha e dos motivos da aversão de Jaspers e Heidegger ao rótulo. Gadamer ainda nos mostra o quanto reflexões desses autores apropriam certo “pathos existencial” presente na obra de pensadores fundamentais como Kierkegaard, Nietzsche e Husserl. Tal texto, se lido diante da consideração de seu contexto de época, ainda se presta a reforçar o quanto a filosofia de Heidegger não é existencialista.

O texto “História da filosofia” (p. 398-412), também de 1981, é outro que se destaca do conjunto. Lançando um olhar inteligente sobre o tema, Gadamer procura estabelecer um lugar para a história da filosofia no pensamento de Heidegger. Com isso, reforça o quanto, em Heidegger, a história da filosofia é menos historiografia dos problemas do pensamento do que questionamento filosófico propriamente.1 Entretanto, ao tomar este caminho, Gadamer se vê instado a tratar, também, do conceito heideggeriano de história, este que, como sabemos, possui acepções diversas em diferentes épocas (como se vê nos primeiros trabalhos de Heidegger, implicando as noções de historicidade e temporalidade existenciais e nos encaminhamentos para a obra tardia do filósofo, na qual a “história do ser” ganha proposição e relevo). Antes, porém, de chegar a esse ponto, Gadamer faz uma reconstrução histórica do conceito de história da filosofia mostrando o quanto ele surge do gesto inaugural de Hegel; como ganharia a acolhida de Schleiermacher; receberia contributos da escola histórica de Berlim e de pensadores a esta ambientados (como é o caso de Dilthey) e mereceria críticas quando é assumido como “história das ideias” no bojo do movimento neokantiano (em especial com Windelband).

“Martin Heidegger, 75 anos” (p. 250-264), “O pensador Martin Heidegger” (p. 298-305), e “Martin Heidegger, 85 anos” (p. 350-361) são discursos comemorativos por ocasião de aniversários do filósofo. Nesses (mais do que o registro de apreço de Gadamer a seu mestre) se encontra uma narrativa detalhada da trajetória de Heidegger, com ênfase em seus excitantes momentos iniciais. Longe do tom retórico e das formalidades (geralmente recorrentes em falas similares), o relato de Gadamer assume, por vezes, o tom de um memorialismo refinado. Em meio ao exercício de apresentar traços personais do filósofo, ilustrar o rigor de sua atitude fenomenológica, compreender seus conceitos fundamentais e revisitar as críticas voltadas à sua filosofia, é possível identificar o esforço de Gadamer em marcar suas posições frente ao pensamento de Heidegger, ou, como confessa o próprio Gadamer (2012, p.9):

Foi necessário o distanciamento que a conquista de um nível próprio pressupõe, até que eu estivesse respectivamente em condições de destacar a tal ponto o meu acompanhamento dos caminhos de Heidegger de minha própria busca por um caminho e uma senda, que eu pudesse apresentar por si mesmo o caminho do pensamento de Heidegger.

É claro que o recorte específico dado por nossa resenha não faz com que prescindamos da leitura dos demais textos do compêndio: “A teologia de Marburgo” (p. 250-264), “O que é metafísica?” (p. 281-285), “Kant e a virada hermenêutica” (p. 286-297), “A linguagem da metafísica” (p. 306-317), “Platão” (p. 318-332), “A verdade da obra de arte” (p. 333-349), “O caminho até a viragem” (p. 362-381), “Os gregos” (p. 382-397), “Há uma medida sobre a terra?” (p. 446-470), “Sobre o início do pensamento” (p. 507-531), “Em meio ao retorno ao início” (p. 532561) e “O caminho uno de Martin Heidegger” (p. 562-580). Afinal, estes escritos ajudam a introduzir o pensamento de Heidegger mostrando o quanto o autor foi tão obstinado quanto intrépido ao se afastar da filosofia e linguagem tradicionais, encaminhando-se a um pensamento novo e renovador.

Ao fim, é preciso indicar que, embora o título sugira apenas o universo de Hegel, Husserl e Heidegger, também comparecem no horizonte da obra autores (direta ou indiretamente) ligados ao pensamento dos primeiros. Destarte, vale conferir como Gadamer se posiciona frente a Natorp, Scheler e Hartmann.

Notas

1 Isso já poderia ser conferido pelo leitor brasileiro na preleção História da filosofia, de Tomás de Aquino a Kant (Heidegger, 2009).

Referências

GADAMER, H-G. 2012. Hegel-Husserl-Heidegger. Petrópolis, Vozes, 608 p.

GADAMER, H-G. 2007a. Hermenêutica em retrospectiva: Heidegger em retrospectiva. Petrópolis, Vozes, vol. 1, 132 p.

GADAMER, H-G. 2007b. Hermenêutica em retrospectiva: a virada hermenêutica. Petrópolis, Vozes, vol. 2, 212 p.

GADAMER, H-G. 2007c. Hermenêutica em retrospectiva: hermenêutica e a filosofia prática. Petrópolis, Vozes, vol. 3, 95 p.

GADAMER, H-G. 2007d. Hermenêutica em retrospectiva: a posição da filosofia na sociedade. Petrópolis, Vozes, vol. 4, 131 p.

GADAMER, H-G. 2008. Hermenêutica em retrospectiva: encontros filosóficos. Petrópolis, Vozes, vol. 5, 119 p.

HEIDEGGER, M. 2009. História da filosofia, de Tomás de Aquino a Kant. Petrópolis, Vozes, 271p.

ROHDEN, L. 2002. Hermenêutica filosófica: entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem. São Leopoldo, Editora Unisinos, 317 p.

SARTRE, J.P. 1997. Husserl, Hegel, Heidegger. In: J.-P. SARTRE; P. PERDIGÃ O, O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis, Vozes, p.302-325.

Roberto S. Kahlmeyer-Mertens – Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Toledo, PR, Brasil. E-mail: [email protected]

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Desconstruir a metafísica? – AUBENQUE (FU)

AUBENQUE, P. Desconstruir a metafísica? São Paulo: Edições Loyola, 2012. Resenha de: ENGLER, Maicon Reus. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.14, n.3, p.242-245, set./dez., 2013.

A publicação das conferências de Pierre Aubenque, ministradas durante os anos em que dirigiu a Cátedra de Metafísica Étienne Gilson (1997-1998), representa sem dúvida um acontecimento digno de nota no meio acadêmico brasileiro. Isso porque esse livro, conquanto despretensioso, tem o mérito de ir de encontro a duas tendências que parecem ser as dominantes nos estudos atuais de metafísica: a primeira, que toma a superação desse “estilo” de pensamento como um fato histórico irrevogavelmente assentado e que viceja tanto entre pós-modernos quanto entre filósofos analíticos; e a segunda, que continua a desenvolver pesquisas sobre metafísicas do passado sem levar em conta as críticas lançadas contra tal empreendimento e, mais do que isso, sem pretender qualquer modificação do presente estado de coisas. O primeiro polo desdenha o estudo histórico por si mesmo e crê que a filosofia deva tratar primordialmente de temas do presente. Esforçam-se os seus ontólogos por abarcar as conquistas da física quântica e da neurologia, julgando que a ciência moderna tornou obsoletas as reflexões sobre o ser, ao passo que os estudiosos de ética e de política, temendo a tirania de uma razão absoluta, proclamam que aquilo que fazem “não é metafísica”, declaração que por si só os exime de outras reflexões sobre esse problema. O segundo polo, por sua vez, vive num nicho temporal confortavelmente isolado, no interior do qual o pensamento de um filósofo desfruta de autonomia e relevância intrínsecas, sem que quaisquer mudanças históricas minorem o possível valor de suas ideias. Para esses estudiosos, o escrutínio da história apresenta-se como algo neutro e objetivo, que não é afetado pelo que se passa no tempo presente e que tampouco o afeta. Eles tomam as divisões acadêmicas da filosofia como secções próprias do pensamento, embora a sua preocupação para com a história devesse impedi-los de cometer tal erro. Assim, para usar de uma imagem, pode-se dizer que, de um lado, estão os intelectuais que vivem na crista da onda histórica e que, como a água da superfície, também se agitam e deixam levar pelas marés mais sutis e os ventos mais caprichosos; de outro, temos os intelectuais que vivem muito abaixo da superfície e que não têm a pretensão de agir sobre ela, tampouco acreditando que algo vindo de cima possa incomodar o seu paciente trabalho de escafandrista. Aparadas as arestas do excesso que toda tipificação ideal acarreta, esses parecem ser dois veios claramente identificáveis na filosofia hodierna, quando se tenta pensar a questão da superação da metafísica.

Conhecido por outras obras que já se tornaram clássicos da filosofia – como os estudos sobre a ética e sobre a metafísica de Aristóteles –, Aubenque tem a vantagem e a autoridade para “nadar” entre esses dois extremos e, de modo dialético, propor aproximações, releituras e guinadas de inegável alcance teórico. Ao primeiro grupo acima, sugere que a metafísica é algo que sobrenada à tentativa de superá-la, porquanto tal tentativa seja apenas mais um dos vários projetos que brotam de seu interior; ao segundo, mostra que o exame de um pensador do passado pode alterar a nossa apreciação dos mais candentes problemas do presente, ademais de estar inegavelmente conectado com o que se passa em nossos dias. O livro propõese a investigar de forma sucinta um projeto que medrou na segunda metade do século XX e, aparentemente, não oferece nenhuma resposta clara para a pergunta que levanta em seu título (p. 9); contudo, ao longo de suas páginas sobressai-se a tese susodita de que a superação da metafísica é um projeto nascido da própria metafísica, que já se fazia presente em Aristóteles (p. 9), e que possui, portanto, apenas a aparência de iconoclastia (p. 11).

O primeiro capítulo trata da história crítica da metafísica elaborada por Étienne Gilson e comenta algumas posturas que esse intelectual compartilhava com Heidegger. Aubenque mostra que Étienne pensava o ser como a um juízo pressuposto por todos os demais juízos; logo, o ser não era um conceito, mas tinha a função de dar as condições de possibilidade de toda a objetivação e, destarte, fazer com que os entes existissem (p. 13-14). Como Heidegger, Gilson teria percebido que o erro recorrente da metafísica consistiu em tentar falar do ser, ao mesmo tempo em que o substituía por algum ente privilegiado; em vez de metafísica, elaborava-se assim uma ontoprotologia que tratava do Uno, de Deus, do Bem, do mundo ou do Homem. Para Gilson, esse processo realizava a essencialização da existência e lembrava os movimentos antevistos pelo diagnóstico heideggeriano, de acordo com o qual a maneira de proceder da metafísica ontoteológica levava ao esquecimento do ser e a sua redução à entidade (p. 20). A divergência entre os dois autores estaria na cura que propõem a esse “mal”: enquanto que Heidegger visava sair da metafísica através da poesia, do mito e da mística, pelo menos em uma das fases de seu pensamento, Gilson acreditava que era possível superá-la a partir de seu interior (p. 21). Esse tema retorna no segundo capítulo, onde Aubenque traz à baila filósofos como Platão e Aristóteles e explica como eles, não obstante as respostas que deram ao problema, já tinham percebido o passo em falso do pensamento que substitui o ser pelo ente e cai, assim, nas teias da ontoteologia (p. 27). O capítulo concentra-se mais em Aristóteles e estuda as suas respostas para a pergunta sobre o ser, bem como a sua dificuldade de erigir uma ciência sobre algo que não era propriamente um gênero e, pois, desrespeitava uma condição básica de sua concepção de ciência (p. 29). Aubenque defende que Aristóteles tentou criar uma ciência dos princípios e causas supremas e, com isso, transformou a metafísica ora em hiperfísica, ora em teologia. A partir das suas respostas, os autores medievais teriam usado o conceito de analogia para falar dos demais entes em relação ao ente supremo, popularizando uma metafísica baseada em diversos graus de ser (proporcionalidade). Assim, a doutrina de São Tomás de Aquino sobre a analogia teria sido o principal fator para o esquecimento da diferença ontológica na história do Ocidente (p. 38).

No terceiro capítulo, o autor aborda a superação neoplatônica da metafísica, levada a termo através da proeminência conferida ao Uno. Segundo Aubenque, o fato de ser impossível que o Uno receba quaisquer predicados, estando acima das categorias, torna-o imune à posição de um superente que tomaria o lugar do Ser (p. 43). Seria um erro dos intérpretes modernos crer que o Uno seja um substituto para o Ser; na verdade, Plotino usaria de metáforas inteligíveis para assinalar aquilo que nem ao menos é real, dado que esteja acima do Ser (p. 44). Tampouco seria o Uno o primeiro motor imóvel, uma vez que também não é possível atribuir-lhe causalidade (p. 46). Com o pensamento sobre o Uno, em suma, Plotino teria tentado fugir do afã de substituir o Ser por um superente. Essa problemática continua a ser discutida no quarto capítulo, que elucida as reflexões de Heidegger em torno da superação da metafísica. Heidegger, como se sabe, foi o responsável pela crítica da metafísica ontoteológica, que se esquece da pergunta pelo sentido do ser e passa a questionar qual seria o ente mais ente de todos (p. 49). O autor ilustra também o sentido da Destruktion empregada por Heidegger, que consistia na remoção das camadas de pensamento solidificadas pela tradição, camadas essas que faziam da pergunta pelo sentido do ser algo evidente (selbstverständlich) (p. 53). Apesar de Heidegger possuir um apreço pela ideia de “origem”, o qual será depois criticado por Derrida em virtude de suas conotações metafísicas, ele não estaria interessado, com essa destruição, num retorno aos gregos, como pensaram alguns de seus adversários, mas na tentativa de remover os pilares da tradição ontológica do Ocidente, dentro da qual o ser, sendo desde sempre apreendido como presença, não pôde aparecer como acontecimento ou temporalidade extática (p. 56-57). No começo, o peso de Nietzsche sobre Heidegger tê-lo-ia levado a pensar que esse processo de entificação do ser começara com Platão; com o tempo, todavia, ele teria admitido que ele já estava presente em Parmênides, por conta de sua tese de que o ser e o pensar são a mesma coisa (p. 58).

O quinto capítulo comenta a proposta de desconstrução da metafísica ensaiada por Derrida, a qual seria, na visão de Aubenque, a mais radical de todas (p. 61). Derrida teria percebido que não se pode ao menos dizer que a metafísica é falsa, uma vez que os critérios de verdade e falsidade vigoram em seu interior e são ainda, pois, critérios de índole metafísica. Destarte, baseando-se na libertação da escrita do logocentrismo, um acontecimento do século XX cujo epifenômeno é a linguística estrutural (p. 63), Derrida proporia o usufruto da liberdade de sentidos no interior dos textos, sem a pressuposição de um sujeito como substrato ou de um significado transcendental e primeiro (p. 65). Esse trabalho seria desempenhado pelo “conceito” de differánce, a verdadeira alavanca da desconstrução. Sem ser um princípio ou uma hipóstase, a differánce seria a maneira de manter sempre aberta a possibilidade do pensamento, tal como ocorre no âmbito da escrita, que também não tem começo nem fim, não remete a um significante último e se dirige, ao contrário, a significantes indefinidamente disponíveis (p. 66-67). O projeto de Derrida consistiria, assim, numa subversão interna dos conceitos da metafísica, ou, para utilizar a metáfora de Aubenque, na destruição de uma casa que usasse o material procedente do desabamento dessa mesma casa (p. 69). Essa abertura indefinida para o questionar, que não pretende chegar a lugar algum, recorda a leitura que o próprio Aubenque faz da Metafísica de Aristóteles, leitura essa que perpassa o último capítulo do livro, o qual, em forma de questão, discute uma possível volta ao pensamento do Estagirita. Junto de suas respostas ontoteológicas, que fariam do ser ora um hiperente, ora o próprio Deus, Aristóteles teria tentado criar uma ciência cujo escopo era discutir o ser enquanto ser, reconhecendo de antemão que ele não se exprime de um só modo e tampouco constitui um gênero (p. 78). Não obstante conferisse sentido primordial à substância, Aristóteles não reduziria o ser a ela, dando uma resposta catalográfica que faria jus à polissemia do ser e à exuberância de seus acidentes (p. 80). O sentido focal da ousía também não seria um dado pronto, mas algo a ser buscado continuamente pelos pensadores; como a substância não é um gênero, o projeto da metafísica seria desde o seu início, portanto, reconhecidamente aporético e dialético, apresentando assim a primeira forma de sua autossuperação. Para Aubenque, esse é o verdadeiro sentido da preposição “metá” que nomeia essa “ciência”: a ideia de que a metafísica inclui em seu desenvolvimento a sua própria superação e deve dirigir-se sempre para além de si mesma (p. 82).

O livro ainda dispõe de um apêndice onde Aubenque, sem tencionar qualquer exaustão, fornece alguns princípios hermenêuticos para a elaboração de uma história crítica da metafísica. De acordo com sua visão, a história da metafísica é diferente da história da filosofia em geral; ela é, na verdade, a história das pré-compreensões do sentido do Ser. Contudo, segundo a tese de Heidegger, a história dos diferentes lógoi sobre o Ser é a própria história do Ser (p. 86), de modo que a metafísica e a sua história se confundem. Por conseguinte, não há pura historiografia e tampouco pura filosofia, como comentado acima. Ademais, Aubenque julga que a questão do esquecimento seria outra categoria indispensável em tal estudo, dado que o ser se oculte ao mesmo tempo em que se revela. Ele seria mais um dos mecanismos da metafísica que deveriam ser autonomizados e isolados para melhor compreensão (p. 92). Por fim, conviria que fossem deixados de lado os contextos em que as metafísicas surgem e a tese historicista de que elas são um efeito do seu tempo, para evidenciar que, ao revés, cada metafísica gera o seu tempo, no sentido de que possui influência determinante sobre os mais variados âmbitos, como o político, o artístico, etc. (p. 93-95).

Assim, o apêndice fornece algumas teses fundamentais sobre como se deve olhar para a história da metafísica. Como dito no início, o livro de Aubenque vem em boa hora e pode contribuir para que se aprofundem as discussões e linhas de pesquisa sobre metafísica no meio acadêmico brasileiro. Nesse sentido, ele desempenha papel similar a outros livros que propõem novas leituras da modernidade e contemporaneidade baseados em estudos de autores antigos. Apesar de alguns lapsus attentionis1, a tradução de Aldo Vannucchi é fluida e de agradável leitura, contribuindo ainda mais para que se aprecie a importância da obra.

Maicon Reus Engler – Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Florianópolis, SC, Brasil. E-mail: [email protected]

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Ser e tempo – HEIDEGGER (FU)

HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Campinas/Petrópolis: Editora da Unicamp/ Vozes, 2012. Resenha de: KAHLMEYER-MERTENS, Roberto Saraiva. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.14, n.2, p.169-174, mai./ago., 2013

No final do ano de 2012, editou-se uma nova tradução de Ser e tempo para o português. Esta obra de Martin Heidegger é um marco na investigação fenomenológica por apresentar uma fenomenologia que não toma por pressuposto uma consciência sintetizadora de vivências e por não se perfazer mediante um procedimento metódico-fenomenológico (como, nos dois casos, ainda propunha Edmund Husserl). Com acento ontológico-existencial e depurando o método em atitude fenomenológica, o livro de Heidegger contribui para inaugurar novos caminhos ao pensamento contemporâneo. A obra, entretanto, é considerada por alguns uma excrescência linguística, dada a especificidade técnica de seu vocabulário e as formulações num “idioma” filosófico sui generis. Isso faz com que Ser e tempo exija dedicação e atenção de seus leitores e ofereça um sem-número de dificuldades próprias da língua e da filosofia aos que se candidatam a traduzi-lo.

No Brasil, uma primeira tradução de Ser e tempo foi editada entre os anos de 1985-1986; entretanto, essa versão para o português, mesmo passando por revisões ao longo de suas inúmeras edições, ainda padece de problemas que dificultam sua leitura,1 o que faz com que esse empreendimento incipiente fique aquém das expectativas do público estudioso.

Uma segunda tradução de Ser e tempo, elaborada de maneira descontínua pelo professor Fausto Castilho desde 1949, foi também concluída na década de 80, quando ganhou a revisão que lhe conferiu homogeneidade terminológica e coerência em seu arranjo geral. Esta nova transposição para o português repara, em boa medida, alguns dos fatores que geravam insatisfatoriedade na anterior. É o que se faz patente, mesmo em uma primeira aproximação ao texto, quando nele encontramos um discurso mais direto, fluido e livre de afetações de estilo que só fazem obstruir a leitura. Estas qualidades, apenas possíveis graças a uma maior literalidade do texto e a um adicional cuidado com a sintaxe das línguas alemã e portuguesa, são traços de consistência que deixam transparecer a qualificação filosófica e linguística desse experimentado tradutor de obras clássicas.

Um exame comparativo do texto português com o original alemão nos permite identificar certa tendência da nova versão em privilegiar termos cuja etimologia oriunda do latim é presente. Fica nítida, assim, a opção do tradutor em utilizar o vocabulário português de matriz latina, na certa acreditando que, ao lançar mão deste expediente, se colocaria em contato com a significação mais primordial das palavras.

Reconhecemos que a utilização dessa “metodologia” de tradução pode propiciar soluções plausíveis e, mesmo, elegantes; é o que se vê, por exemplo, na transposição do vocábulo alemão Umwelt. A tradução brasileira anterior reservava para este a expressão “mundo-circundante” (como mais tarde também se veria na tradução norte-americana de Stambauth, com Surrounding World) (Heidegger, 1996). A atual, por sua vez, utiliza “mundo-ambiente”, escolha que, seguindo as francesas que optam por monde ambient (Heidegger, 1964, 1986) e a italiana, com mondo-ambiente (Heidegger, 1953), preserva, benfazejamente, a noção de âmbito ou ambiência, presentes na compreensão coloquial do termo “meio ambiente”. A atual versão brasileira, entretanto, optou prudentemente por não utilizar esta expressão (meio ambiente), talvez evitando associações equivocadas com o discurso de preservação ambiental hoje amplamente difundido (opção que a clássica tradução para língua inglesa de Macquarrie e Robinson não se opôs a fazer ao usar environment) (Heidegger, 1962).

Outra solução acertada é a transposição de Schuld por “culpa” (em vez de “débito”, como se tem na primeira tradução). Ao utilizar o termo, no contexto da conquista da existência autêntica do ser-aí, Castilho não apenas retoma a literalidade da palavra, quanto reaviva os laços que esta possui com a tradição teológico-cristã em meio a qual – lembremos – Heidegger se formou. Do mesmo modo, por meio do vocábulo “culpa”, é possível se identificar mais claramente os influxos que as ideias de Kierkegaard teriam sobre a filosofia heideggeriana na época da redação de Ser e tempo.

Sem que se tenha qualquer tipo de má vontade com a nova colação – mas agindo com a isenção que manda o amicus Plato sed magis amica veritas2 – será necessário reconhecer que o recurso ao latim não é algo que possa ser feito indistintamente. Uma leitura mais atenta da nova versão nos mostrará que o referido procedimento, por vezes, contrasta com vertentes de tradução que se estabeleceram e se consolidam na forma de cânon desde os anos 70 (data em que se editaram as primeiras obras de Heidegger em português no Brasil). As referidas vertentes orientam a criação da massa crítica em torno da filosofia heideggeriana. Deste modo, indicamos que a terminologia diferenciada estabelecida na mais nova versão (esta centrada em opções muito próprias) acaba, em alguns casos, nos colocando diante de implicações hermenêuticas pouco desejáveis. A presente resenha crítica da tradução de Fausto Castilho examina, a partir daqui, na impossibilidade de ser cabal, apenas algumas dessas escolhas e seus desdobramentos questionáveis.

Comecemos pela expressão Dasein, noção em torno da qual se elabora a analítica da existência constante em Ser e tempo, justamente por essa nomear a essência do humano. Embora haja, não apenas no Brasil,3 uma tendência a traduzir o termo literalmente para o português pela locução “ser-aí”, Dasein parece repelir as traduções que lhe são atribuídas, de sorte que, sobre o vocábulo, ainda não há consenso definitivo entre tradutores e comentadores de Heidegger. Evidência disso se encontra nas tentativas inglesas, que ora usam There-being (Richardson, 1967), ora being-there (Dreyfus, 1995); também a sua versão francesa (Heidegger, 1964) por être-là é discutível, a ponto de o próprio Heidegger ter objetado sobre o uso do -là, que indicaria um distanciamento locativo que alteraria a ideia do “aí” constante no prefixo germânico Da-. Isso porque, para o filósofo: “O ‘aí’ (Da) em Ser e tempo não significa uma definição de lugar para um ente, mas indica a abertura na qual o ente pode estar presente para o homem, inclusive para si mesmo” (Heidegger, 2009, p.159).

Na primeira edição brasileira, a tradução dada à palavra Dasein precisaria transigir com a artificialidade de certa interpretação. Ao verter Dasein por “presença” (conforme justifica a tradutora), o vocábulo latino praesentia seria tomado por parâmetro, supostamente tendo no prefixo prae (“pré-”) a dinâmica existencial daquele ente que se antecipa a si mesmo, e, no radical -sentia (“-sença”), a forma derivada do verbo latino essere correspondente ao alemão sein (“ser”), que indicaria a dimensão ontológica do Dasein. Ao nos colocarmos diante deste argumento, ponderamos o quanto tal opção não se distanciaria da intenção primordial de Heidegger ao se servir do termo Dasein. Afinal, se acatarmos tal justificativa, restaria indagar sobre os motivos que teriam levado o filósofo a não utilizar, neste contexto, o vocábulo Präsenz, disponível em sua língua.

Ademais, “presença” se distancia sobremaneira da etimologia da palavra alemã Dasein, afinal, onde aqui se identifica o advérbio de lugar Da, ali se tem um prefixo “pré-” que não se presta a determinar o “aí” enquanto abertura do ser-aí para seu mundo-fático, horizonte originário no qual se constituem as possibilidades de ser do referido ente.4 Não apenas distante da etimologia original, o termo “presença” se põe em desacordo com o significado que Heidegger tem primordialmente em vista quando usa a expressão Dasein, uma vez que aponta, exatamente, para a experiência oposta a do ente que existe. Isso porque, para a analítica da existência, um ente presente seria aquele dado de antemão (Vorhandenheit), seria um ente cujo modo de ser não dependeria da dinâmica do existir, mas que se apresentaria sob o modo de ser da constância (ständige Anwesenheit), determinação vigente e indispensável à tentativa metafísica de tornar os entes pensáveis. Uma tal “metafísica da presença” é, exatamente, o que Heidegger confronta na ontologia fundamental de Ser e tempo.

É provável que tenha sido por essas dificuldades, e em nome da maior fidedignidade possível aos intuitos heideggerianos, que Castilho escolheu conservar o referido vocábulo em alemão, a exemplo das traduções para o inglês, da francesa e da espanhola (Heidegger, 1964, 1996, 1997). Devemos reconhecer que, assim procedendo, são evitados os muitos inconvenientes que a transposição da palavra suscita; por outro lado, perdemos, com isso, boa oportunidade de pensar tão importante termo filosófico em nossa língua. É preciso que se diga, todavia, que, sob o ponto de vista do conceito, manter Dasein no original não é atitude menos interpretativa do que a primeira. Neste caso, teríamos uma leitura que sugere que Dasein, em si mesmo, teria pouco a dizer, e que, por este motivo, poderia ficar sem ser traduzido, esperando que seu significado fosse depreendido a partir dos contextos nos quais o termo comparece. O estranhamento que este posicionamento provoca se reforça quando lembramos que, contando com uma louvável edição bilíngue, nos seria permitido conferir no original, a qualquer tempo, qualquer tradução portuguesa dada a Dasein.

Adiante, guardando as ordens de aparição e relevância dos conceitos, poderíamos ressaltar casos em que certas opções (feitas a partir do referido recurso ao latim) induzem em problemas conceituais. É o que vemos na transposição da palavra Verstehen por “entendimento”. Nesta, se identifica, primeiramente, uma aproximação ao vocábulo latino intellegere; em segundo lugar, a tentativa de apoiar tal opção nas versões de Ser e tempo para a língua inglesa, que se servem do termo understanding (= entendimento). No inglês, understanding talvez fosse o único vocábulo para traduzir Verstehen (= compreensão),5 solução que, diga-se de passagem, se aproximaria bastante semântica e etimologicamente do alemão, e que até serviria para traduzi-lo plenamente não fossem as atávicas ligações que a palavra inglesa possui com uma tradição anglo-saxã de pensamento fortemente influenciada pelo empirismo.

Traduzir Verstehen por “entendimento”, sem qualquer sobreaviso, talvez pudesse dar ao leitor a falsa impressão de que a fenomenologia de Heidegger teria por propósito um diálogo com a filosofia de Locke ou com a de Hume; entretanto, se isso soa apenas como uma conjectura, é certo dizer que tal opção turva o conceito de compreensão, crucial para a tradição hermenêutica que – de Schleiermacher a Dilthey – fala alto na fenomenologia heideggeriana, marcando indelevelmente projetos filosóficos vivos naquela obra.

Outro ponto que nos oferece matéria para pensar é a tradução da tríade de conceitos referentes aos comportamentos do ser-aí, Sorge, Besorge e Fürsorge, traduzida por “preocupação”, “ocupação” e “preocupação com o outro” (diferentemente da primeira versão brasileira na qual constava, respectivamente: “cura”, “ocupação” e “preocupação”). Fica nítido que o novo tradutor procurou optar por termos que possuíssem um mesmo radical, remontando ao escopo heideggeriano de evidenciar que as duas últimas expressões (e as experiências por elas expressadas) seriam derivadas da primeira.

Em alemão coloquial, Sorge (palavra da qual se originam as outras) significa preocupação. Talvez por este motivo a tradução em apreço tenha optado por este termo. No entanto, o uso cotidiano desta expressa ansiedades ou inquietações pelas quais, às vezes, se passa na vida. Ora, não é neste sentido habitual que o filósofo compreende Sorge; é isso que encontramos em Ser e tempo: “A expressão nada tem a ver com ‘sofrimento’, ‘aborrecimento’, nem ‘preocupação com a vida’, que podem ser onticamente encontradas em todo ser-aí” (Heidegger, 2012, p.181). Neste caso, se não desejarmos incorrer no preciosismo da palavra “cura”, mais apropriado seria o uso do termo “cuidado”,6 mesmo que tal solução implique o obscurecimento daquele radical. Isto nos parece mais justificado do que alterar o cânon que, até então, reservava a palavra Fürsorge para designar uma preocupação com os demais seres-aí, ou, como indicaria o prefixo Für- : “ocupação para com o outro”.

Já seria possível entrever os impactos e eventuais confusões que a substituição dos termos (“cuidado” por “preocupação”, e “preocupação” por “preocupação com o outro”) acarretaria sobre as pesquisas em andamento e sobre a literatura especializada que usa “cuidado” para referir-se a este modo de ser do ser-aí. O mesmo ocorre com as traduções de existentiell e Faktizität (“existencial” e “facticidade”, referentes ao ontológico do ser-aí) por “existenciário” e “factualidade”, que apontam à direção oposta (traços ônticos do mesmo ente). Tais alterações fariam, mesmo, com que os nomes de dois dos projetos filosóficos integrantes de Ser e tempo sejam indevidamente alterados para “analítica existenciária” e “hermenêutica da factualidade” (sic). Ainda seria possível questionar, por fim, se “resolução”, palavra usada no contexto do comportamento singular do ser-aí, seria adequada para traduzir Entschlossenheit (usualmente vertido por “decisão”). Embora recorrido por alguns intérpretes de línguas latinas (Heidegger, 1951, 1964, 1986, 1997), a resolutio no conceito de “resolução” suscita a errônea ideia de um ato de vontade, de um arbítrio que seria propriedade de um sujeito, o que muito se distancia da maneira com a qual Heidegger trata do conceito de decisão e do ente capaz de atender ao chamado do ser, rearticulando-se a um conjunto de sentidos e significados próprios à existência autêntica.

Ao longo de toda a nova tradução de Ser e tempo, encontraremos alterações terminológicas. Diante da impossibilidade de considerar cada escolha feita, asseguramos que, em muitos casos, temos o ganho de clareza trazido pelo recurso à etimologia dos termos; outros há em que as mudanças não chegam a fazer diferença substancial frente às versões anteriores; é o que se pode avaliar a partir do rol de comparações que se segue. Na atual edição, o termo Weltlichkeit é traduzido, como no francês, por “mundidade” (onde na primeira edição brasileira tínhamos “mundanidade”); Verweisung é vertida por “remissão” (na antiga tradução se lia “referência”); Bewandtnis é traduzida por “conjuntação” (onde antes se lia “conjuntura”); Bedeutsamkeit é “significatividade” (antes se tinha “significância”), e innerweltlich begegnende Seiende seria “entes do-interior-do-mundo” (em vez de “entes intramundanos”)… Diante dessas opções, houve quem apontasse o comprometimento estético que algumas das palavras sofreram na conversão para o português. Seria justo, neste caso, lembrar que a própria terminologia de Ser e tempo, diante da necessidade de descrever fenomenalmente seus “objetos”, seria responsável, mesmo no alemão, por certos exotismos. Nessas horas, aquilo que Heidegger disse sob as dificuldades de expressão da fenomenologia vem em defesa de seus tradutores:

No que se refere à rudeza e à “falta de beleza” na expressão das análises que se seguem, convém notar que uma coisa é contar algo sobre ente numa narração, outra é apreendê-lo em seu ser. Para levar a cabo tarefa referida por último, faltam, no mais das vezes, não só as palavras, mas, sobretudo, a “gramática” (Heidegger, 2012, p.131).

Convictos da não existência de uma tradução perfeita, e levando em conta as dificuldades específicas da matéria, será necessário dizer que, se considerarmos a legibilidade o critério de qualidade para toda tradução, este empreendimento em torno à nova tradução de Ser e tempo foi bem-sucedido. Isso porque, como já foi mencionado acima, por meio de uma linguagem mais objetiva, fluente e sóbria, lucrou-se uma melhor compreensibilidade, e não apenas isso; mesmo possuindo incontornáveis arestas, o texto estabelecido parece se aproximar, mais fidedignamente, ao sentido presente no original, conseguindo reproduzir tonalidades mais próximas à experiência do pensamento de Heidegger.

A nova colação brasileira de Ser e tempo constitui, por fim, alternativa à preexistente e, ao trazer o texto alemão-português, torna-se também a primeira edição bilíngue que se conhece no Ocidente (assim notifica Fausto Castilho em seu prefácio). Mais do que apenas um luxo, este seria um recurso certamente útil à pesquisa, benefício que devemos à iniciativa das Editoras Unicamp (Coleção Multilíngues de Filosofia) e Vozes (que possui os direitos de Ser e tempo para o português).

Notas

1 Isso pode ser comprovado com uma leitura dos §§ 15-18, tópicos sensivelmente comprometidos na antiga tradução.

2 “Sou amigo de Platão, mas sou mais amigo da verdade”, ditado atribuído a Aristóteles.

3 É o que se vê em traduções portuguesas (Heidegger, 2002) e nas traduções de Sein und Zeit para as demais línguas latinas, como a de Gaos, ser ahí, para o espanhol (Heidegger, 1951), e a de Chiodi, Esserci, em italiano (Heidegger, 1953).

4 Como se viu na citação de Heidegger imediatamente acima.

5 Uma vez que comprehension traduz uma ideia de um “abarcamento” que apenas forçosamente estaria associada àquele contexto específico. Contudo, alguns poucos intérpretes ainda insistem na utilização deste termo (Richardson, 1967).

6 Amplamente utilizado por tradutores e comentaristas de Heidegger. É o que se vê com a tradução inglesa, ora como care (Heidegger, 1962, 1996), ora como concern (Richardson, 1967), e no francês como souci (Heidegger, 1964, 1986), na espanhola (Heidegger, 1997).

Referências

DREYFUS, H. L. 1995. Being-in-the-world – A commentary on Heidegger’s “Being and time”. Cambridge, The MIT Press, 370 p.

HEIDEGGER, M. 1996. Being and Time. New York, State University of New York Press, 487 p.

HEIDEGGER, M. 1962. Being and Time. Harper San Francisco, San Francisco, 589 p.

HEIDEGGER, M. 2002. Caminhos da floresta. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 455 p.

HEIDEGGER, M. 1951. El ser y el tiempo. Fondo de Cultura Económica, México, 480 p.

HEIDEGGER, M. 1953. Essere e tempo. Fratelli Bocca, Roma, 455 p.

HEIDEGGER, M. 1986. Être et temps. Gallimard, Paris, 596 p.

HEIDEGGER, M. 1964. L’être et le temps. Gallimard, Paris, 328 p.

HEIDEGGER, M. 2009. Seminários de Zollikon – Protocolos, diálogos, cartas. Petrópolis, Vozes, 370 p.

HEIDEGGER, M. 2012. Ser e tempo. Campinas/Petrópolis, Editora da Unicamp/ Vozes, 1200 p.

HEIDEGGER, M. 1997. Ser y tiempo. Santiago de Chile, Editorial Universitária, 498 p.

RICHARDSON, W.J. 1967. Heidegger – Through phenomenology to thought. The Hague, Martinus Nijhoff, 765 p.

Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Toledo, PR, Brasil. E-mail: [email protected]

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Aristotle’s Concept of Chance – DUDLEY (FU)

DUDLEY, J. Aristotle’s Concept of Chance. 1ªed. Albany: Suny Press, 2012. Resenha de: HOBUSS, João. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.14, n.1, p.105-111, jan./abr., 2013.

A obra de Dudley tem vários méritos, dentre os quais o mais importante é a análise minuciosa e exaustiva da concepção aristotélica de “acaso” (tuché), que aparece na Física, onde Aristóteles busca refutar, segundo o autor, a ideia sustentada por Demócrito de que a ordem existente no universo deve-se ao acaso (Dudley, 2012, p.2). Obviamente, a preocupação aristotélica no que concerne ao acaso não se restringe à Física, podendo ser encontrada nos seus tratados éticos e mesmo nas suas obras biológicas.

Evidentemente, o interesse acerca do acaso não se restringe a Aristóteles, mas pode ser encontrado em diversos filósofos, com diferentes abordagens ao longo da História da Filosofia. Podemos encontrá-las, assumindo diversos matizes (Dudley, 2012, p.3-12):

(i) o acaso aparece em pensadores tais como Heráclito, Empédocles1 e Anaxágoras, defensores de um tipo de determinismo universal, que entendem que certos eventos necessários são causados pelo acaso;

(ii) outra visão concebe que um evento marcado pelo acaso é de “natureza desconhecida e imprevisível” (Dudley, 2012, p.3). Essa visão açambarca pensadores tão variados como Cícero, Voltaire, Russel;

(iii) na Física (Aristóteles, 1999b, II 4), Aristóteles menciona os que consideram o acaso uma causa misteriosa e divina, o que seria o entendimento, por exemplo, de Platão;

(iv) Hume e Demócrito atribuem ao acaso a ausência de vinculação com uma causa: a afi rmação da primeira constitui-se em uma negação da segunda;

(v) já Epicuro defende a realidade dos eventos associados ao acaso, salientando seu caráter completamente não causado, o que pode ser percebido na célebre ideia do clinamen, entendido como a conditio da vontade livre (free will) dos homens, semelhante à defesa que faz W. James do acaso como causa da vontade livre.

A essas cinco concepções acerca do acaso, que serão retomados ao longo da obra de Dudley, acrescentar-se-á a de Aristóteles, que aparece primeiramente na Física (Aristóteles, 1999b, II 4) de Aristóteles. Antes de voltar a Dudley e ao que me interessa mais especialmente na sua leitura, seria interessante mostrar o que encontramos no capítulo mencionado da obra aristotélica, bem como nos capítulos seguintes (5 e 6).

Em Física (Aristóteles, 1999b, II 4), Aristóteles vai analisar o acaso e a espontaneidade (automaton), afirmando que é sustentado que ambos contam como causa (Aristóteles, 1999b, 195b31), na medida em que determinadas coisas ocorrem através do acaso e da espontaneidade. A questão é saber (i) de que modo o acaso e a espontaneidade operam como causa, tendo como pano de fundo o que Aristóteles sustentou no capítulo precedente da Física; (ii) se acaso e espontaneidade são uma mesma coisa ou coisas diferentes; (iii) e o que define o acaso e a espontaneidade. Antes de responder a tais indagações, Aristóteles considera três teorias correntes.

(a) Segundo ele, alguns até mesmo questionam a existência de tais noções, na medida em que, para eles, nada que ocorre no mundo pode ser produzido pelo acaso, pois para cada coisa que ocorre deve existir uma causa determinada (Aristóteles, 1999b, 196a1-3). (b) Outros, diferentemente, creem ser a espontaneidade a causa de todos os mundos existentes, que foi a partir dela que se produziu o movimento em vórtice “que separou e organizou os componentes do universo na sua disposição atual” (Aristóteles, 1999b, 196a25-28). (c) Por fim, temos os que acreditam que o acaso é uma causa, embora não possa ser percebida pela inteligência humana, pois é divino e supralunar (Aristóteles, 1999b, 196b5-8).

Com base nessas três teorias, Aristóteles buscará explicitar o que são realmente o acaso e a espontaneidade, e se são, como já observado, o mesmo, ou são coisas distintas. Isso ele faz no capítulo 5.

Neste capítulo, Aristóteles estabelece a diferenciação, bastante conhecida por todos, entre o que ocorre necessariamente, ou seja, do mesmo modo, e o que ocorre nas mais das vezes. O acaso não entre em nenhuma dessas duas categorias, do que ocorre por necessidade ou nas mais das vezes (Aristóteles, 1999b, 196b1013: oute tou ex anankês kai aiei oute tou hos epi to polu). Mas não podemos restringir todas as coisas a essas duas categorias, pois existem as que se realizam para além das duas e que seriam efeito do acaso. Logo, para Aristóteles, o acaso e a espontaneidade têm realidade (Aristóteles, 1999, 196b15).

Para estabelecer seu ponto, Aristóteles apresenta algumas divisões (Aristóteles, 1999b, 196b17-29):

(a) Dentre os eventos, alguns se produzem em vista de algo, outros não;

(b) Em relação aos primeiros, alguns se produzem por escolha deliberada, outros não, embora essas duas categorias pertençam ao que é em vista de alguma coisa;

(c) Entre as coisas que se produzem à margem do necessário e do que se produz nas mais das vezes, a algumas pode pertencer a característica de ser em vista de alguma coisa;

(d) É em vista de alguma coisa tudo o que pode ser produzido pelo pensamento ou pela natureza;

(e) Por conseguinte, quando tais coisas se produzem por acidente, afirmamos que são consequência do acaso;

(f) Assim, a causa em si é determinada, enquanto a causa por acidente é indeterminada, já que um número indefinido de acidentes pode advir a uma mesma coisa.

A partir do desdobramento garantido pelas divisões acima, Aristóteles afirma que, quando isso ocorre entre os eventos “em vista de”, isto é, a consequência seja do acaso, seja da espontaneidade. Dessa forma, ele pode ressaltar que:

É, então, evidente que o acaso é uma causa por acidente nas coisas que advêm por escolha deliberada, entre as que viriam em vista de algo. Eis porque o pensamento e o acaso dizem respeito ao mesmo objeto: é que não há escolha deliberada sem pensamento (hê gar proairesis ouk aneu dianoias) (Aristóteles, 1999b, 197a5-7).

Mas resta ainda especificar a distinção entre acaso e espontaneidade, o que é feito em Física (Aristóteles, 1999b, II 6). Ora, conforme Aristóteles, tudo o que ocorre por acaso ocorre por espontaneidade, mas nem tudo que acontece por espontaneidade ocorre por acaso, já que a espontaneidade possui uma maior extensão do que o acaso. Lembremos que o acaso pressupõe a escolha deliberada, o que exclui do acaso todo ser inanimado, bem como qualquer animal ou criança recém-nascida. Inversamente, a espontaneidade refere-se aos animais e a seres inanimados. Mas, é necessário salientar, e Aristóteles o faz, que entre as coisas que se produzem espontaneamente, ocorrem por acaso todas as que envolvem escolha deliberada, própria de quem possui a capacidade de escolher (Aristóteles, 1999b, 197a36-197b23). Nesse sentido, entre os variados tipos de causa, o acaso e a espontaneidade pertencem àquelas de onde deflui o princípio do movimento (Aristóteles, 1999b, 198a1-5), e são causas por acidente, sempre posteriores às causas em si2.

Uma vez delineados em termos gerais como operam, na Física, o acaso e a espontaneidade, iremos nos deter mais apuradamente na noção de acaso na ética aristotélica, bem como na sua relação com o pretenso determinismo aristotélico, na medida em que escolhas devem ser feiras diante das múltiplas questões tratadas por John Dudley.

Um tema bastante complexo, e absolutamente importante, é a discussão levada a cabo por Dudley a respeito das relações entre acaso, vontade livre, acidentes e o determinismo que alguns comentadores atribuem a Aristóteles.

Como afirma Dudley, geralmente “o determinismo pode ser definido como a teoria de que todos eventos ocorrem necessariamente” (Dudley, 2012, p.271), em outras palavras, tudo que ocorre ocorre, necessariamente, a partir de uma causa antecedente. Dudley vai procurar distinguir, no que concerne à ideia de causalidade final, uma necessidade absoluta, própria da esfera supralunar e do Primeiro Motor Imóvel, e uma necessidade que não é absoluta, própria do mundo sublunar, onde se realiza a agência humana. A causalidade final do Primeiro Motor Imóvel, na esfera sublunar, funciona diretamente tão somente sobre as espécies, e, indiretamente, na medida, por exemplo, em que o sol e a lua se movem por necessidade absoluta devido à causalidade final do Primeiro Motor (Dudley, 2012, p.273). Logo, o determinismo “devido à causalidade final […] não pode ser encontrado na área sublunar” (p. 278). Do mesmo modo que não encontramos um determinismo a partir da causalidade final, também não encontraremos um determinismo baseado na causalidade eficiente.

Dudley observa em Aristóteles uma rejeição da visão mecanicista do mundo que pode ser encontrada em Demócrito, onde está assentada a concepção de um necessitarismo relacionado a causas eficientes per se (p. 278). Essa rejeição estaria baseada na ausência do referido necessitarismo, tendo como razão as noções aristotélicas de (i) escolha livre, (ii) acidentes e (iii) acaso:

Estas causas quebram as cadeias de causas necessárias, explanam a realidade da contingência dos eventos futuros (sublunares), e tornam o futuro inerentemente imprevisível (Dudley, 2012, p.278).

(i) Segundo Dudley, “todos os seres humanos possuem liberdade (freedom), isto é, eles são livres para agir ou não agir” (Dudley, 2012, p.280), pois, como é sabido, tanto a virtude quanto o vício dependem de nós (to eph’ hêmin), como pode ser visto quando lemos o texto da Ética Nicomaquéia III 7. Depreende-se da argumentação de Dudley que essa passagem, bem como outra citada por ele na Ética Eudemia, (Aristóteles, 1996, 1223a4-9)3, onde aparece a afirmação de que o homem é o princípio primeiro e mestre de todas as ações, implicam a possibilidade do agente agir diferentemente diante das circunstâncias que se lhe apresentam, pois depende dele agir ou não agir, já que as mesmas dependem tão somente dele (eph’ autôi)4. Ora, sem apresentar nenhuma dúvida (ele afirma: it is clear) a despeito de muitas passagens embaraçantes que parecem ir de encontro ao menos à ideia de “clareza” neste tópico, Dudley reitera a sua leitura do texto aristotélico, ou seja, de que há uma rejeição absolutamente incontornável da visão que sustenta o determinismo causal dos seres humanos (Dudley, 2012, p.280). Mas é válido mencionar que Dudley reconhece que não é possível encontrar uma justificação a posteriori – nos tratados éticos de Aristóteles – no que diz respeito à liberdade concedida aos seres humanos: esta justificação dá-se somente a priori, como em Kant (Dudley, 2012, p.286). Infelizmente, ele não trata de modo mais vertical o problema da liberdade, deixando o leitor ávido por um maior desenvolvimento do problema, certamente complicado, embora ele afirme que [it is clear] que “somente os seres humanos são livres, porque a liberdade (como a felicidade) requer a possessão do intelecto” (Dudley, 2012, p.281-282), intelecto que pressupõe deliberação e escolha. (ii)

Nessa seção, Dudley vai restringir sua análise dos acidentes aos acidentes inusuais, e que estes são outra fonte da existência da contingência do mundo sublunar – e da introdução da mesma no interior de uma cadeia de causas necessárias -, o que vai se agregar à sua análise da livre escolha como um dos fundamentos da crítica ao determinismo (Dudley, 2012, p.286). O autor faz um exame exaustivo do ponto, mas, para fins pragmáticos, mostraremos os principais pontos da argumentação.

Dudley detém-se na análise do difícil livro VI 3 da Metafísica, locus da possível defesa aristotélica da incompatibilidade dos acidentes inusuais com o determinismo5, que seria o objetivo precípuo deste capítulo da Metafísica. A primeira frase do capítulo aponta que há princípios (archai) e causas (aitiai) que estão sujeitos à geração e à corrupção, sem que venham a ser ou se corromper, o que deixa claro, para Dudley, que estamos tratando da existência de causas acidentais, bem como sublinhando o fato de que “não há genesis ou phthora de acidentes” (Dudley, 2012, p.290), pois os acidentes não tem como característica própria existir por si mesmos, diferentemente da substância, já que eles estão presentes apenas no momento em que estão presentes e permanecem assim até o momento que deixam de estar. Um exemplo utilizado por Dudley é o do camaleão. O camaleão é verde e se se torna amarelo; é ele, e não a cor, que devém: quem se torna algo é a substância, e não o acidente, porque este se inere na substância (verde é sempre verde, e amarelo é sempre amarelo). Isso significa que o acidentes possuem uma “existência potencial real”, embora não existam por si mesmos.

A interpretação da primeira frase é crucial, pois remete à ideia de que a existência de causas acidentais impediria que o determinismo fosse verdadeiro. Logo, existem causas acidentais, e o determinismo não é o caso (Dudley, 2012, p.292), recusando, mais uma vez, a implementação de um necessitarismo inflexível, pois se isso ocorresse, acarretaria a existência tão somente de causas por si mesmas, ou seja, somente causas substanciais, o que reivindicaria a verdade do determinismo, o que é enjeitado por Aristóteles, a partir da construção de Dudley. Deste modo, evitar-se-ia interpretar Aristóteles, embora Dudley não faça essa alusão, a partir de uma perspectiva estoica, ou seja, a partir de um encadeamento causal necessário (posto pelo Destino), o que nos permitiria inclusive prever o futuro [ou adivinhá-lo…]. Claro que Aristóteles reconhece que quem está vivo morrerá, mas essa é uma concessão menor à visão determinista, pois o ponto é saber como ocorrerá a morte, se por doença, ou por violência, visto que a causa da morte é indeterminada (Dudley, 2012, p.294-295), embora seja possível traçar um caminho inverso até a origem, ou ponto de partida, que levou até tal acontecimento, mas ponto de partida que não implica que algo ocorra de um modo ou outro, no caso, a morte de um indivíduo: é exatamente a existência de causas acidentais que impede o determinismo e sustenta a ideia de que os eventos não são necessários, decorrendo disto a impossibilidade da predição do futuro (Dudley, 2012, p.299):

o futuro não pode ser predito, porque a cadeia de causas envolve não somente causas per se, mas também causas acidentais ou coincidências (tanto quanto, evidentemente, escolhas humanas).

As causas acidentais nos “salvam” do determinismo6. O determinismo, seja o hard determinismo, seja o soft determinismo, não poderia coerir com a doutrina aristotélica, pois todo evento não sujeito à ciência é, para Dudley, contingente. (iii)

Bem, a rejeição ao determinismo por parte de Aristóteles, para além da vontade livre e dos acidentes, encontra um terceiro e definitivo aspecto, qual seja, o papel desempenhado pelo acaso.

Segundo Dudley, os eventos ocorridos por acaso são “inesperados e imprevisíveis, devido ao fato de não serem acessíveis à ciência” (Dudley, 2012, p.314), pois esta última refere-se apenas às coisas que se produzem sempre ou nas mais das vezes, enquanto os eventos devido ao acaso não podem ser reduzidos à necessidade, já que são inusuais e indeterminados: “o que é essencialmente imprevisível não é pré-determinado” (Dudley, 2012, p.316), o que não pode ser afirmado do que é determinado, que é, essencialmente, cognoscível.

É por isso que Dudley sustenta que o acaso pressupõe a escolha livre e os acidentes:

Assim segue que as duas razões para rejeitar o determinismo tratadas nas seções (i) e (ii), a saber, livre escolha e acidentes [inusuais], são, cada um a seu modo, pressupostos pelo termo ‘acaso’. Não poderia haver acaso se não houvesse escolha livre, e não poderia haver acaso se não houvesse acidentes [inusuais].

Busquei, nesse pequeno extrato do livro de Dudley, mostrar seus aspectos principais, especialmente na ideia de Dudley de que Aristóteles rejeita o determinismo, ideia com a qual concordo plenamente. E o livro é muito importante, pois nos mostra elementos importantes para construir uma tese forte a esse respeito em Aristóteles, sobretudo no que me interessa no momento, isto é, no seu corpus ético.

Devido a isso, Aristotle’s Concept of Chance traz uma contribuição bastante valiosa, especialmente por tratar com minúcia a concepção aristotélica de acaso, algo que não recebeu tanta atenção dos comentadores ao longo dos anos, e essa análise rigorosa desperta nos comentadores aristotélicos um interesse maior pelo mesmo, o que já é um reconhecimento do mérito do trabalho de Dudley.

Observado esse aspecto, cabe ressaltar que, embora as soluções do autor representem uma contribuição importante, por vezes fica a impressão de que os argumentos muitas vezes ignoram evidências textuais que podem complicar muito a defesa da rejeição do determinismo em Aristóteles e que poderiam ter sido enfrentadas por Dudley para reforçar sua tese, o que enriqueceria, ainda mais, o seu trabalho. Cito duas delas:

Contudo, se assim ocorre que leva uma vida de modo acrático e não obedece aos médicos, adoecerá voluntariamente. Por um lado, era-lhe, em um momento, possível de não adoecer; tendo dissipado a saúde, não lhe é mais possível, assim como não é mais possível àquele que lançou uma pedra recuperá-la; no entanto, estava em seu poder o lançar, pois o princípio estava nele. Similarmente, era possível ao injusto e ao intemperante não se tornarem tais no início, e por isso o são voluntariamente. Porém, aos que se tornaram injustos ou intemperantes, não lhes é mais possível não o serem” (Aristóteles e Zignano, 2008, EN 1114a14-21)7.

As coisas não se apresentam, efetivamente do mesmo modo no caso das ciências e das capacidades, e naquele das disposições (hexeis), pois uma mesma capacidade ou ciência parecem fazer ou conhecer as coisas contrárias, enquanto uma disposição que tem um contrário não engendra os contrários (Aristóteles, 1999a, 1129a11-15).

Essas duas passagens podem dar a entender que uma dada disposição [de caráter], uma vez adquirida, funciona como uma [segunda] natureza, ou seja, se me tornei injusto ou intemperante, não posso mais deixar de sê-lo, já que uma disposição não produz o seu contrário. Ora, se uma disposição se traveste de tamanha inflexibilidade, obviamente o papel da escolha livre, dos acidentes e do acaso deverão ser contrastados com o peso de tais evidências textuais que encontramos na Ética Nicomaquéia para indicar uma solução para a possível contradição. Isso, Dudley não faz, e seria importante que tivesse feito, pois são passagens que devem ser enfrentadas com muita precisão e tenacidade.

De qualquer modo, e independentemente dessas últimas considerações, o livro deve ser lido e recomendado, pois nos apresenta uma análise instigante e de muito fôlego de questões cruciais nas obras de Aristóteles.

Notas

1 Estes dois são citados por Cícero, no De Fato XXXIX, como deterministas incontornáveis. O nome de Aristóteles aparece, muito discutivelmente junto a eles, o que o vincularia a alguma forma de determinismo. Na realidade, um tsunami determinista assola a interpretação das obras aristotélicas hodiernamente, tendo como importantes defensores S. Bobzien (1998, 2013), M. Frede (2011) e S. Sauvé Meyer (2011), e, antes deles, D. Furley (1977), J. Hintikka (1977) e P. Donini (1989). Carlo Natali (2004, p.181) afi rma, penso eu que com total razão que “a tendência em ler a fi losofi a de Aristóteles em termos próximos do estoicismo se percebe claramente […] em Susan Sauvé Meyer […] Pessoalmente cremos também que a solução do problema do determinismo consiste na distinção de tipos de causa, e nisso Sauvé Meyer tem razão, mas ela consiste na distinção aristotélica, não na distinção crisipiana”. A respeito de Furley, Natali ressalta o mesmo equívoco: “na reconstrução de Furley, a teoria aristotélica da ação humana toma uma forma estoica: ele coloca a existência de duas cadeias causais determinadas […], quando as duas cadeias se encontram, o resultado só pode ser uma ação necessária (Natali, 2004, p.181).

2 Para um excelente comentário dessas passagens, ver Aristóteles (2009, p.277-328).

3 A esse respeito, ver também Aristóteles (1996, 1225b8-10; 1226a23-33).

4 Não há uma discussão por parte do autor sobre de que modo podemos tornar coerente o conteúdo da EE e aquele da EN, já que podemos encontrar, em alguns comentadores de Aristóteles, a afirmação, como é o caso de Donini (1989, cap. IV), que o quadro conceitual da EN é diferente e mais sofisticado do que o encontrado na EE. Por exemplo, a passagem citada de Ética Nicomaquéia (Aristóteles, 2008, III 7), mencionada por mim, que parece estar de acordo com o que encontramos na EE, difere profundamente de uma outra passagem da (Aristóteles, 2008, III 7), e que apontaria um desacordo total também com a Ética Eudemia (Aristóteles, 1996, II 6). Retornarei a isso posteriormente.

5 Para uma visão distinta ver Donini (1989, cap. II).

6 Donini, contrariamente a Dudley, afi rma (1989, p.42-43), que “I testi di Metaph. E 3 [e di De interpr. 9] non dovrebbero, nemmeno indurre a credere che Aristotele sostenesse uma forma di indeterminismo così estremo, di giudicare il futuro como qualcosa di completamente opaco ala capacità di previsione dell’uommo perché sempre totalmente aperto a qualsiasi esito”.

7 Tradução de Marco Zingano.

Referências

ARISTÓTELES. 1996. Aristotle Eudemian Ethics. Books I, II and VIII. 2ª ed., Oxford, Clarendon Press, 212 p.

ARISTÓTELES. 1999a. Nicomachean Ethics. 2ª ed., Indianapolis/Cambridge, Hackett, 364 p.

ARISTÓTELES. 1999b. Physique. Paris, Vrin, 336 p.

ARISTÓTELES. 2009. Física I-II. Campinas, Ed. da UNICAMP, 416 p.

ARISTÓTELES; ZINGANO, M. 2008. Aristóteles. Ethica Nicomachea I 13–III 8. Tratado de Filosofi a Moral. São Paulo, Odysseus, 224 p.

BOBZIEN, S. 1998. The inadvertent conception and late birth of the free-will problem. Phronesis, 43(2):133-175. http://dx.doi.org/10.1163/15685289860511069

BOBZIEN, S. 2013. Aristotle’s Nicomachean Ethics 1113b7-8 and free choice. The Cambridge Companion to Nicomachean Ethics. [no prelo].

DONINI, P.L. 1989. Ethos. Aristotele e il determinismo. Alessandria, Edizioni dell Orso, 155 p.

FREDE, M. 2011. A free will. Origins of the notion in ancient thought. Berkeley, University of California Press, 208 p.

FURLEY. D.J. 1977. Aristotle on the voluntary. In: J. BARNES; M. SCHOFIELD; R. SORABJI (eds.), Articles on Aristotle: ethics and politics. London, Duckworth, vol. 2, p.47-60.

HINTIKKA, J. 1977. Aristotle on modality and determinism. Acta Philosophica Fennica, 29(1):7-124.

MEYER, S.S. 2011. Aristotle on moral responsibility. Character and cause. 2ª ed., Oxford, Oxford University Press, 216p.

NATALI, C. 2004. L’action éffi cace. Études sur la philosophie de l’action d’Aristote. Louvain-La-Neuve, Éditions Peters, 252 p.

João Hobuss – Universidade Federal de Pelotas. Departamento de Filosofia. Pelotas, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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Fazendo e desfazendo direitos humanos – RUBIO (FU)

RUBIO, D.S. Fazendo e desfazendo direitos humanos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2010. Resenha de: JÚNIOR, Roberto Galvão Faleiros. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.14, n.1, p.100-104, jan./abr., 2013.

Correntemente, os direitos humanos são compreendidos e, consequentemente, instrumentalizados, dentro de uma perspectiva universalizante, de forma hierárquica, de matriz jurídico-estatal, formalista e pós-violatória, gerando uma cultura anestesiada, reproduzindo práticas e anseios simplificados das relações humanas.

Os paradigmas hegemônicos do direito acabam respaldando a manutenção e a difusão desses aspectos tradicionais, engendrando percepções insuficientes sobre os múltiplos fenômenos jurídicos.

No entanto, de maneira oposta, David Sánchez Rubio, professor titular de Filosofia do Direito da Universidade de Sevilha, estrutura sua produção acadêmica e desenvolvimento teórico através de “[…] uma concepção muito mais complexa, racional, sócio-histórica e holística, que priorize as próprias práticas humanas, que são as que realmente fazem e desfazem, constroem e desconstroem os direitos humanos […]” (p. 12-13).

O viés crítico, sócio-histórico, relaciona-se com as obras de diversos autores, principalmente os da proclamada filosofia da libertação. Há uma nítida inspiração, dentre outros, em Joaquin Herrera Flores, Franz Hinkelammert e, especialmente, em Helio Gallardo.

Dentro dessa compreensão, insere-se a obra “Fazendo e desfazendo direitos humanos”, traduzida pelo professor Clovis Gorczevski, da Universidade de Santa Cruz do Sul, editada pela EDUNISC, e que conta com a apresentação aprofundada do professor Antonio Carlos Wolkmer da Universidade de Santa Catarina.

Wolkmer, aliás, é um dos privilegiados interlocutores de David Sánchez Rubio, tendo, também, uma importante parcela de influência na solidificação do pensamento do autor e de sua aproximação com a realidade brasileira e com o pluralismo jurídico.

Ao longo do livro, o autor sevilhano traz diversos elementos para a percepção e a edificação de uma “[…] noção sinestésica dos direitos humanos, que nos extraia da anestesia […]” (p. 18). Abordando de maneira extremamente crítica o entendimento tradicional, denuncia o abismo consolidado entre o que se diz e o que se faz sobre os direitos humanos.

A obra reúne diversos trabalhos que, modificados e ampliados, foram reunidos e publicados conjuntamente. Embora divididos em quatro capítulos com temáticas distintas, os artigos mantêm uma profunda identidade teórica, proximidades em suas fundamentações e, sobretudo, complementaridade em suas colocações e anseios propositivos.

A identidade teórica e a proximidade de fundamentos são didaticamente expostas logo na introdução. O autor ressalta que vivemos em uma cultura inexistente de direitos humanos, propalando, infelizmente, uma perspectiva estreita e reduzida, o que força a estruturação da dicotomia entre o que é discursivamente exposto e o que é realizado concretamente. Essa concepção arcaica vincula quase que cegamente os direitos humanos à emanação das normas jurídicas estatais e às declarações e aos tratados internacionais.

Procurando contrapor esse torpor, o autor recorre às formulações do cientista político Helio Gallardo (p. 8 e 13), que visualiza, ao menos, cinco elementos nos direitos humanos: a luta social; a reflexão filosófica ou a dimensão teórica e doutrinal; o reconhecimento jurídico positivo e institucional; a eficácia e a efetividade jurídica; a sensibilidade sociocultural.

Assim, a partir das contribuições de Gallardo, sustenta as análises expostas através dos artigos/capítulos, o que lhe permite mapear e denunciar que, comumente, os direitos humanos são entendidos pelo que disseram filósofos e cientistas políticos. Adverte que há uma absolutização da vinculação dos direitos humanos com instituições e com normas, ocorrendo, por conseguinte, um superdimensionamento da dimensão pós-violatória (recorrência constante a demandas processuais e institucionais) o que explica, em certa medida, a baixa taxa eficacial dos direitos assegurados em leis e tratados.

No entanto, procura deixar pontuado claramente em todos os capítulos do livro que “[…] os direitos humanos possuem como referente básico a vocação de autonomia dos sujeitos sociais como matriz de autonomia dos indivíduos ou pessoas” (p. 16). Neste sentido, os seres humanos devem criar condições sociais e individuais para relegar as experiências dominadoras e edificar as experiências emancipatórias. Para tanto, devem priorizar os elementos (explicitados por Helio Gallardo) que são negligenciados costumeiramente: a luta e a ação social; a eficácia não jurídica; e a sensibilidade sociocultural, ou seja, as relações, práticas ou tramas sociais.

Com substrato nessa sólida fundamentação política e filosófica, no primeiro capítulo, intitulado “Sobre direitos humanos: imagens, espelhos, cegueiras e obscuridades”, pontua os aspectos meramente refletidos com que a sociedade e o direito situam as relações sociais. A questão meramente formal da concepção usual de direitos humanos, que, com substrato na democracia liberal, dificulta a incorporação de novos sujeitos e novas liberdades.

O reconhecimento dos direitos humanos de todos acaba ficando adstrito à “personalidade”, à “cidadania” e à “capacidade de trabalho”, definindo as classes que são titulares desses direitos. Nesse viés, os “[…] critérios que se estabeleçam para adjudicar aos indivíduos a categoria de ‘pessoa’, ‘cidadão’, ou ‘capaz de obrar’, lhes outorgam o reconhecimentos dos direitos fundamentais, refletidos em cada norma constitucional” (p. 29).

Dentro dessa peculiar análise é possível identificar sujeitos sociais ou classes, excluídos mesmo dentro desta promessa de incorporação democrática dos anseios de “todos”. Os direitos e as reivindicações, mesmo quando reconhecidos e normatizados, acabam sonegados em dimensão concreta, em sua finalidade específica.

O que fica ressaltado neste artigo é a necessária e permanente luta por espaços de abertura e consolidação de direitos, o que incorpora lugares para além do jurídico-estatal, já que, para o autor, “[…] os direitos humanos entendidos como prática social, como expressão axiológica, normativa e institucional, que em cada contexto abre e consolida espaços de luta por expressões múltiplas da dignidade humana, não se reduzem a um único momento histórico e a uma única dimensão jurídico-procedimental e formal” (p. 41).

Neste trabalho, o autor deixa clara a importância que os direitos humanos têm como processo de criação contínua de subjetividades, de espaços de luta e consolidação permanente de inúmeras tramas sociais.

O segundo capítulo, “Herança, recriações, cuidados, ambientes e espaços comuns e/ou locais para a humanidade, povos indígenas e direitos humanos”, é o único trabalho inédito do autor e desenvolve diversas problemáticas envolvendo o patrimônio comum da humanidade.

No entanto, em diversos momentos, explicita-se que o patrimônio comum deve ser compreendido como recreações, espaços, usos e entornos comuns. Assim, consegue direcionar e problematizar de forma contundente as questões que envolvem a titularidade, o dever de gerir e a proteção que esses espaços devem incorporar.

Nesse viés, salienta que a herança comum da humanidade deve receber proteção e tratamento internacional com dimensões globais, sendo utilizada, em todos os sentidos e dimensões, a favor da humanidade.

Para sustentar essas colocações, afirma que a herança, ou o patrimônio comum de povos e comunidades deve ser compreendido como: bens comuns da humanidade e bens comuns globais. Os primeiros são os espaços públicos, terras comuns, bosques e conhecimentos tradicionais que afetam grupos de pessoas que vivenciam realidades sociais, culturais ou étnicas comuns em dimensões mais regionalizadas, contextualizadas. De outra forma, entende por bens comuns globais a atmosfera, os oceanos, a lua, etc., tendo por destinatários não grupos restritos com vínculos entre si, mas sim um número indeterminado de pessoas, ou seja, todos os seres humanos.

Essas peculiaridades são possíveis a partir do momento que identifica as características das heranças comuns da humanidade: a inapropriabilidade, a necessária utilização por todos os povos, a participação internacional nos benefícios obtidos pela exploração dos recursos naturais comuns e a sua conservação para as futuras gerações (o que pode indicar uma comunidade universal).

De forma contundente, também, denuncia a mercantilização de diversas formas e expressões da vida. Atenta para os perigos oriundos desse processo, sobretudo pelo fato de estarmos imersos em um sistema capitalista destruidor e devastador, que, de todo modo, absorve e redesenha as mercadorias conforme suas necessidades, reproduzindo processos de colonização.

Na tentativa de apontar algumas soluções para essas disparidades, parte para realçar o papel primordial – que por vezes é sonegado – que as comunidades indígenas podem exercer.

O reconhecimento deve perpassar pelas heranças locais para beneficiar a totalidade da humanidade, refletindo um regime jurídico especial através da autodeterminação, do território, da cultura e do consentimento prévio.

Dentro dessa exemplificação, através das especificidades indígenas, é possível indicar três eixos que permitem afastar as heranças comuns do caráter patrimonialista: não devem ser comercializadas, devem passar pela delimitação coletiva da titularidade e da gestão e a vinculação com uma concepção sócio-histórica de direitos humanos.

Já no capítulo terceiro, “Paradoxos do universal, direitos humanos e pluriversalismo de confluência”, profundas e controversas questões são abordadas sobre a costumeira polêmica dicotomia entre a universalidade e o relativismo cultural nas questões envolvendo os direitos humanos. Sem resvalar nos argumentos popularizados, o autor sevilhano contribui lucidamente para revelar problemáticas encobertas e desconsideradas.

Ao analisar pormenorizadamente a linguagem hegemônica do universalismo, identifica três paradoxos: o discurso oficial é favorável ou desfavorável ao deslocamento de pessoas dependendo do interesse dos grupos que controlam o sistema capitalista; um propalado discurso de estrita universalidade; e a titularidade exclusivista da cultura ocidental em procurar definir os direitos humanos.

Essa situação peculiar desenvolve-se no denominado universalismo de confluência, pois absolutiza a expansão de uma ou algumas universalidades em detrimento de outras culturas ou possibilidades.

Aventa essa hipótese em razão dos anseios à eventual pré-disposição que os seres humanos teriam pela unidade, pela necessidade de atingir a verdade e universalizar seus desejos.

A relação entre universalismo e relativismo não pode ser enfrentada de maneira dualista, maniqueísta. É evidente que eventuais soluções ou respostas sairão de um enfrentamento relacional, de uma busca pelas complementaridades e discrepâncias.

Demonstrando outras contribuições teóricas, sustenta que devemos agenciar múltiplas culturas e inúmeros grupos humanos em “particularidades concretas tensionadas de universalidade” (p. 102), promovendo e tencionando diversas possibilidades de relacionar o concreto e o idealizado.

Essas nomeações indicam que não devemos realçar apenas uma pretensão de unidade, mas que diversas pretensões devem ser levadas em consideração, com suas diferenças e relações sociais.

Nesse sentido, explicita que estamos diante “[…] não de um ‘universalismo, mas sim de um pluriversalismo de confluência’ aberto a partir de suas distintas procedências, a um permanente diálogo e a um contínuo processo de construção sem imposições etnocêntricas e homogêneas” (p. 102).

No quarto e último capítulo, “Ciência-ficção e direitos humanos: tramas sociais e princípios de impossibilidade”, David Sánchez Rubio inova no desenvolvimento das reflexões sobre os direitos humanos ao trazer, de maneira inovadora, a ficção científica para contribuir na reflexão do tema.

Essa peculiaridade é iniciada tendo por base a questão da modernidade, dos paradigmas e seus pilares: regulação e emancipação, com sustentação nos estudos de Boaventura de Sousa Santos.

No pilar regulação, encontram-se os princípios do Estado, do mercado e da comunidade. Já no pilar emancipação, identifica-se a lógica estético-expressiva (arte e literatura), a cognitivo-instrumental (ciência e técnica) e a moral-prática (moral e direito).

Desse modo, “[…] a racionalidade estético-expressiva é a que mais tem conservado a dimensão emancipadora da modernidade” (p. 119), o que pode indicar a peculiar importância que a ficção científica pode assumir no pilar emancipação na modernidade, pois “[…] a partir da ciência-ficção também se dão elementos com os quais se pode vislumbrar outra ciência que intercomunique, dialogue, encontre a relacionalidade e a recursividade de todas as partes e facetas da realidade” (p. 120).

Aprofundando a questão, buscando unir os direitos humanos e a ficção científica, traz os elementos contidos nos princípios de impossibilidade e a consequente idealização da empiria, do concreto e o conceito de tramas sociais, as construções cotidianas dos diversos sujeitos sociais.

Esses conceitos permitem o questionamento da mentalidade ocidental que valoriza, demasiadamente, os ideais de abstração, idealização e fetichização. Assim, no processo de humanização, de defesa e promoção dos direitos humanos, podemos estar sujeitos tanto à consolidação dos direitos como, também, a sua desconfiguração.

De todo modo, através da lógica estético-expressiva, através da ficção científica, poderá promover e consolidar direitos humanos. Nesse sentido, o autor deixa claro que: “[…] o que queremos dizer é que o humano se constrói, se faz” (p. 140).

A relevância do livro é notória face às cotidianas e permanentes formas de abordar direitos humanos e, do mesmo modo, o fenômeno jurídico. A perspectiva assumida permite revelações e discussões de situações e vivências sonegadas nas reflexões filosóficas e jurídicas atuais.

Roberto Galvão Faleiros Júnior – Universidade Estadual Paulista – Campus de Franca. Franca, SP, Brasil. E-mail: [email protected]

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Lecciones de ética – KANT (FU)

KANT, I. Lecciones de ética. 3ª ed. Barcelona: Crítica, 2009. Resenha de: SCARIOT, Juliane. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.13, n.3, p.442-445, set./dez., 2012.

Como eram as aulas de filosofia prática do professor Immanuel Kant? Qual era a bibliografia básica utilizada nas referidas aulas? Quais eram os temas centralmente abordados? Na função de professor, Kant possuía um estilo similar àquele do Kant filósofo? Essas perguntas servem de estímulo para a leitura da obra Lecciones de ética, a qual foi editada a partir de manuscritos de ouvintes dos cursos de Kant. Frise-se que a mencionada obra constitui um dos cursos acadêmicos kantianos mais negligenciados, pois, enquanto outro curso, a Antropologia sob o ponto de vista pragmático, foi publicado ainda em 1798, as Lecciones de ética foram editadas somente em 1924.

Apesar de contar com uma tradução para o inglês desde 1930, a edição em espanhol foi publicada somente em 1988, e ainda não há nenhuma versão para o português. A edição espanhola aqui utilizada tomou por base o texto Moralphilosophie Collins, datado de 1784-1785, o qual integra o primeiro volume do tomo XXVII das Obras completas editadas pela Academia. Ademais, em notas ao pé da página, a versão em espanhol apresenta as pequenas divergências existentes entre o texto de Collins, base da tradução, e o de Menzer. Aliás, é importante lembrar que há várias versões das Lecciones de ética, cada qual com uma data diferente, mas com o texto praticamente igual.

Na introdução da edição em espanhol, Roberto Rodríguez Aramayo ressalta que a descrição das aulas de Kant como descontraídas não é compatível com um professor que dita pontualmente todo o conteúdo. Assim, surge a hipótese de que Kant lecionava de forma tão vivaz e repleta de digressões que os alunos eram incapazes de anotar integralmente as palavras dele, o que culminava no comércio de apontamentos para que fosse possível ter uma versão completa. Em relação à descontração nas aulas do filósofo de Königsberg, resta evidenciado que o mestre contava anedotas, era bem-humorado e incentivava os estudantes a pensarem por conta própria. Tendo em mente tais características, pode-se ler as Lecciones de ética e aproveitar as explicações pormenorizadas do professor Kant.

A obra é estruturada a partir de duas grandes partes: a primeira, cujo título é Philosophia Practica Universalis, fornece uma visão geral da filosofia prática, com ênfase na seara conceitual; a segunda, nominada Ethica, com destaque para a aplicação dos preceitos éticos no cotidiano dos seres humanos. Já no Proemio da primeira parte, delimita-se o âmbito da filosofia prática: regras de comportamento ligadas ao livre-arbítrio, as quais contrastam com a filosofia teórica, composta por regras de conhecimento. Destarte, a filosofia prática possui ações e condutas livres como objeto e, ao abstrair tal objeto, pode-se afirmar que a referida modalidade de filosofia proporciona uma regra do bom uso da liberdade, regras que determinam o que deve ser mesmo que nunca tenha ocorrido. Assim, examina-se um ser que possui livre-arbítrio, ou seja, um ser racional, sendo que Kant deixa claro que pode não ser exclusivamente o ser humano.

Conforme o professor Kant, as regras do que deve acontecer são expressas através de imperativos. Dessa forma, há três espécies de regras, as quais correspondem a três diferentes tipos de imperativos. Primeiramente são apresentadas as (i) regras de habilidade, expressas por imperativos problemáticos, cujo enunciado traduz uma necessidade da vontade relacionada a um fim arbitrário, pois aqui se considera algo bom quando é meio de obtenção para um fim apetecido. Tais regras não integram a filosofia prática, pois mandam apenas hipoteticamente. Assim, apenas as regras de (ii) sagacidade e de (iii) moralidade pertencem ao âmbito da filosofia prática; estas são necessárias objetivamente, enquanto aquelas o são de forma subjetiva.

As (ii) regras de sagacidade são enunciadas por imperativos pragmáticos, constituindo regras do entendimento sobre o que seja a felicidade e dos meios adequados para alcançá-la. Dessa maneira, há um fim determinado, a felicidade, que exige destreza no uso dos meios. Por fim, as (iii) regras de moralidade são expressas por imperativos morais, nos quais “o fim é propriamente indeterminado e a ação tampouco está determinada conforme ao fim, mas se dirige unicamente ao livre-arbítrio, seja qual for o fim. O imperativo moral manda, pois, absolutamente, sem atender aos fins” (Kant, 2009, p.42). Assim, o imperativo moral requer boa vontade expressa em ações livres, o que proporciona ao agente um valor interno – a moralidade.

Após as regras e imperativos, Kant passa a analisar o summum bonum, o qual é definido como um ideal, um arquétipo do conceito de bem que se liga tanto à felicidade das criaturas racionais como à dignidade destas. Ao expor o bem supremo segundo Diógenes, Epicuro e Zenão, Kant aponta os equívocos de cada pensador. Na sequência, o sistema moral é concebido como intelectual, ou seja, sem fundamentos externos, como na educação ou no governo. Nesse sentido, a lei moral possui uma necessidade categórica, que não decorre da experiência, mas da razão pura; possui fundamento na índole interna, o que exclui fundamentos externos, como o teológico. Além disso, as ações podem ser exigidas prática ou patologicamente, isto é, segundo leis da liberdade ou da inclinação sensível.

Kant lembra que todos os fundamentos do discernimento moral são objetivos, mas os fundamentos da execução também podem ser subjetivos. Quanto à execução, é importante mencionar a coação, imposição de uma ação a contragosto, o que pode possuir motivação prática ou relacionada às inclinações sensíveis. Assim, o ser racional pode satisfazer sua obrigação por coação ou por dever, ou seja, motivado interna ou externamente. Aliás, interna e externa também pode ser uma das classificações das obrigações. Estas são obrigações perfeitas, integrantes do âmbito jurídico, nas quais posso ser coagido por outro; já as obrigações internas são imperfeitas, correspondentes à seara ética, na qual cabe autocoação. Nota-se que as obrigações externas são maiores que as internas, pois as obrigações externas podem ser internas, mas não o contrário.

Ao diferenciar o jurídico do ético, Kant faz algumas afirmações que merecem destaque: (a) as disposições de ânimo não podem ser exigidas juridicamente, pois sua natureza interna impede seu reconhecimento; (b) a satisfação da obrigação jurídica é condição para todo dever ético; (c) as omissões éticas, ao contrário das jurídicas, não são propriamente ações. Isso significa que Kant já reconhecia que: (a) o direito apenas pode exigir ações ou abstenções, não intenções; (b) os deveres jurídicos têm primazia sobre os éticos, de forma que não cabe discussão acerca da ação ou omissão que é exigida juridicamente, apenas deve ser cumprida independentemente da intenção do agente. Por fim, (c) na concepção kantiana omissões éticas não podem ser imputadas ao agente por outro ser humano.

O professor Kant também analisa o castigo nos âmbitos jurídico e ético. Neste classifica a punição como puramente retributiva e naquele como preventiva, seja através da melhoria do infrator ou da dissuasão dos demais pelo exemplo. O filósofo afirma que há dois foros para julgar as ações humanas: um externo, competência do direito, e outro interno. Este tribunal interno, chamado de consciência moral, julga e sanciona as ações. Como fica claro na segunda parte da obra, Kant atribui à consciência moral o julgamento do próprio agente conforme a lei moral. É interessante notar que, após a condenação ou a absolvição, deve ocorrer o arrependimento moral e a adequação das ações ao ditame judicial, sendo que há destaque ao segundo ato – a adequação. Afinal, nem no foro humano a dívida é satisfeita somente com o arrependimento.

Na segunda parte, o filósofo de Königsberg continua a distinguir ética e direito, reiterando que um bom cidadão diferencia-se do homem virtuoso, pois este age com base na boa intenção, enquanto aquele é motivado pela coação. Na sequência, examina-se a religião, concebida como resultado da união da teologia com a moralidade. Para o filósofo, a crença na existência de Deus deriva da razão. Afinal, “qual seria a razão de nutrir intenções puras que, à exceção de Deus, ninguém pode perceber?” (Kant, 2009, p.122). Esse Ser Supremo é concebido como onisciente, para que perceba as intenções do agente, sendo impossível nutrir intenções morais puras sem acreditar que há um Ser que as observa.

Quanto aos deveres, tema central da Ethica, Kant enfatiza os deveres do ser racional para consigo mesmo, pois são negligenciados pelos filósofos e constituem a base para que o sujeito seja capaz de praticar qualquer outro dever. Além disso, os deveres para consigo mesmo atendem à dignidade do gênero humano, e sua violação despoja o homem de seu valor em termos absolutos, enquanto a violação dos demais deveres éticos apenas retira o valor em termos relativos. Daqui emerge a concepção de dignidade, que primeiramente inviabiliza que qualquer ser racional utilize a si próprio como meio. É óbvio que uma pessoa pode trabalhar e, nesse sentido, ser meio para outra pessoa, mas nem por isso perderá sua condição de pessoa e de fim. Aliás, Kant condena a preguiça e a ociosidade, afirmando que, quanto mais ocupados, mais vivos nos sentimos.

No tocante à dignidade, esta é delineada como algo cujo valor é superior à vida. O filósofo reitera que a vida em si não representa o bem supremo que foi confiado ao ser humano e tampouco o que deve ser atendido em primeiro lugar. A dignidade possui valor superior à sobrevivência, pois “quando o homem não pode conservar a vida senão humilhando sua condição de ser humano, mais vale que a sacrifique” (Kant, 2009, p.196). Em que pese essa afirmação kantiana, o filósofo considera o suicídio um ato intrinsecamente detestável, pois representa a destruição da humanidade e coloca esta abaixo da animalidade. Igualmente condenável é a prostituição, que transforma o ser humano em coisa para a satisfação da inclinação sexual de outro.

Já quanto aos deveres para com outros homens, Kant divide-os em deveres de afeto ou benevolência e deveres de justiça ou obrigação, de forma que há um instinto para a benevolência, o que não ocorre com a justiça. Sob a rubrica de deveres para com outros seres racionais, incluem-se os deveres para com outros seres vivos não racionais e coisas. Ademais, Kant afirma que os seres humanos são como hóspedes da natureza, que possuem a obrigação de restringir o consumo, pois devem desfrutar dos recursos vitais tendo em vista a felicidade alheia. Nesse ponto, nota-se que, apesar de elaborar uma ética antropocêntrica, Kant manifesta claramente uma preocupação ambiental, principalmente com o consumo consciente e com a não violência para com animais e vegetais.

Por fim, o filósofo de Königsberg trabalha brevemente vários temas, dentre os quais se destaca a retomada da ideia de humanidade, ao argumentar que se pode diferenciar o homem mesmo de sua humanidade e que os juízes devem observar esta ao aplicar o castigo, inclusive no caso de um grande criminoso. Também é delineada uma concepção de amizade calcada em um ideal de que, se todos os homens zelassem pela felicidade dos outros, o bem-estar próprio seria atingido através dos demais. O último tema é a educação, composta pela formação e pela instrução, sendo que aquela é negativa e visa à segregação de tudo o que é contrário à natureza, enquanto a instrução pode ser negativa, ao prevenir o cometimento de erros, ou positiva, ao agregar conhecimentos. Assim, todo o lado negativo da educação chama-se disciplina, a qual supõe coerção, contrapõe-se à liberdade, e seu aspecto mais elementar baseia-se na obediência. Para Kant, a suprema perfeição moral que o gênero humano pode alcançar depende do transcurso de muitos séculos e da educação.

Em suma, Immanuel Kant dispensa apresentações, afinal representa um marco na Filosofia, mas a obra Lecciones de ética possibilita aos leitores conhecer uma faceta negligenciada de Kant: a de professor. Neste ofício, ele se socorre da filosofia de Baumgarten e, com exemplos e explicações pormenorizadas, clarifica muitos dos temas abordados nas obras Crítica da razão prática, Fundamentação da metafísica dos costumes e A metafísica dos costumes. A obra evidencia a veracidade da declaração inicial contida na introdução da edição espanhola de Lecciones de ética, qual seja, que, além de filósofo, Kant é um autêntico mestre da humanidade.

Juliane Scariot – Universidade de Caxias do Sul. Caxias do Sul, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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Universals: the contemporary debate – MACBRIDE (FU)

MACBRIDE, F. Universals: the contemporary debate. In: R. LE POIDEVIN; P. SIMONS; A. MCGONIGAL; R.P. CAMERON (eds.), The Routledge Companion to Metaphysics. Oxon: Routledge, p.276-285, 2009. Resenha de: CID, Rodrigo Reis Lastra. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.13, n.3, p.439-441, set./dez., 2012

O problema no qual se inserem nominalismo e realismo, diz-nos MacBride, é o de como explicar as características repetidas das coisas. Enquanto o realista nos diz que as características repetidas se explicam por serem universais, ou seja, por serem as naturezas comuns que várias coisas compartilham, o nominalista nos diz que é possível explicar essas características repetidas com apenas particulares concretos (sem universais).

O nominalista nos diz que ter uma natureza em comum é como ter um amigo em comum: o amigo em comum não é algo universal que existe em cada um dos amigos que o tem; ele é algo particular que se relaciona particularmente com os amigos particulares. A ideia do nominalista é a de que há coisas vermelhas, mas não há o vermelho, e a de que a semelhança entre as coisas vermelhas é irredutível. Tomar a semelhança entre coisas vermelhas como irredutível seria melhor que postular universais, diria ele, pois como os universais não existiriam, eles não poderiam explicar nada e, consequentemente, não poderiam avançar a explicação para além de tomar a semelhança como primitiva. Por sua vez, o realista também alude razões para postular os universais, a saber, (i) os universais explicam a semelhança, (ii) as leis naturais versam sobre propriedades universais, (iii) nós contamos coisas sob um certo tipo universal e (iv) nós falamos sobre as coisas com termos universais.

O que o nominalista inquire ao realista é: como pode um universal existir em duas coisas distintas? A pergunta é interessante, pois se o universal está dividido nas duas coisas, então tem de haver um universal que explica a semelhança entre as duas partes do universal, que explica por que elas são partes do mesmo universal. Se o universal não está dividido nas coisas que o instanciam, então ele estaria completamente em cada uma das coisas que o instanciam. Mas aqui novamente há um problema: como poderia algo estar completamente em duas coisas distintas que ocupam lugares diferentes ao mesmo tempo? Como pode algo estar em dois lugares distintos (desconectados) ao mesmo tempo?

Uma solução possível ao realista é aceitar um realismo transcendente, de universais que estão fora do tempo e do espaço, e não nas próprias coisas. O problema que essa solução deve resolver é justamente explicar como universais fora do espaço e do tempo podem conferir a natureza de particulares espaçotemporalmente localizados.

É também viável logicamente defender uma forma de nominalismo moderada, na qual os particulares têm propriedades particulares (que são os tropos ou particulares abstratos) e essas propriedades não podem ser compartilhadas, embora possam se assemelhar (primitivamente) perfeitamente umas às outras. Haveria, então, segundo ele, coisas vermelhas por haver coisas que se assemelham com a cabine londrina de telefone público.

E é possível a defesa de um realismo extremo, no qual se eliminam os particulares a favor dos feixes de universais. A ideia aqui é a de que não devemos usar uma ontologia de substância e atributo, pois ela implica a existência de particulares nus (bare particulars, que seria o que resta após todas as propriedades terem sido removidas por abstração de um particular), que seriam os portadores das propriedades. Embora Leibniz não veja nada de mal nos particulares nus, Hume nega a possibilidade de sua existência baseado na impossibilidade de os conhecermos (já que só poderíamos conhecer algo a partir de suas propriedades). Uma ontologia de feixes de propriedades universais, sem nenhum particular, escaparia desse problema. No entanto, o realismo extremo dos feixes é à primeira vista problemático, pois dois objetos concretos poderiam ter as mesmas propriedades universais; e, se isso fosse o caso, um não seria diferente do outro. Uma solução possível é dizer que dois objetos concretos não podem ter todos os mesmos universais, já que há propriedades como as rotas espaçotemporais dos objetos, que, embora sejam universais, se forem ocupadas por um objeto, não podem ser ocupadas por outro.

MacBride (p. 281) fala um pouco, além das propriedades, também das relações. Pois podemos aceitar a existência de propriedades sem aceitar a existência de relações. Por exemplo, podemos aceitar que há algo como a propriedade de ser uma mão, mas que não há algo como a relação de uma mão de estar em cima da outra. Enquanto as propriedades são expressas por predicados monádicos, as relações são expressas por predicados diádicos.

Quando nos perguntamos sobre o que é responsável pela relação entre as minhas mãos quando uma está em cima da outra, o nominalista extremo tende a dizer que nada além de mim e das minhas mãos é responsável por essa relação. No entanto, tanto realistas extremos e moderados, quanto nominalistas moderados podem aceitar ou não a existência de relações. A resposta que cada um desses der influenciará muito a sua teoria.

Dos que aceitam a existência de relações, os realistas diriam que a repetição de relações que há entre as minhas mãos e as suas mãos é explicada por meio de uma relação universal. Os nominalistas moderados diriam que as relações são particulares e se assemelham irredutivelmente umas às outras. Por sua vez, os realistas e nominalistas que rejeitam a existência de relações têm a tarefa de explicar como as coisas estão relacionadas de certas formas sem que haja relações, havendo apenas propriedades.

Uma objeção que se faz ao realista de relações é que, se pensamos a relação como universal, então se tivermos uma relação entre A e B, e tivermos a mesma relação entre B e C, teríamos que ter a mesma relação entre A e C, o que nem sempre ocorre. Veja um exemplo: A é amigo de B, B é amigo de C, mas A não é amigo de C. O problema aqui é que ser a mesma relação não estaria respeitando a transitividade da identidade.

Finalmente, MacBride se pergunta se há realmente uma distinção clara entre universais e particulares. Ele nos indica que a distinção comum é pensar que o universal é o um que une os muitos. Mas, se for nesses termos, a distinção não é clara, pois podemos pensar no particular como aquilo que une as muitas características que ele tem (p. ex.: Sócrates é aquilo que une as suas características). O autor finaliza o texto nos deixando o problema da distinção entre particulares e universais em aberto.

Rodrigo Reis Lastra Cid – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia – PPGLM. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

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Suposição, significado e referência – COSTA (FU)

COSTA, J.B. da. Suposição, significado e referência. Porto Alegre, Letra & Vida, 2012.1. Resenha de: DURÁN, Joan E. Caravedo. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.13, n.3, p.432-438, set./dez., 2012

La multiplicidad de accesos y brechas a investigar que procura y abre un escrito son, probablemente, las cualidades que mejor demuestren el valor de un texto en general. El texto que aquí pretendemos reseñar tiene esas escasas cualidades. Por un lado, y esto se muestra ab initio, en tanto que lo que se busca en el texto es un diálogo en el terreno de las teorías del lenguaje, en específico en torno al tema de la referencia, entre Ockham y las teorías contemporáneas. Pero, por otro, y esto es aún más interesante, en tanto no aparece como un objetivo explícito del texto el brindar interesantes flancos para la investigación de Ockham dentro del contexto histórico filosófico en general. Las potenciales conexiones que podrían realizarse entre Ockham y los filósofos de la modernidad, como Descartes, o entre algunos de los miembros de la llamada segunda escolástica, como Suárez2, sugieren la amplitud del texto y su capacidad de abrir brechas de investigación. De esta manera, la reseña que sigue llamará la atención, no sólo sobre algunos tópicos que incitan al diálogo entre este autor y la contemporaneidad, sino que procurará mostrar una de las tantas conexiones a las que invita de manera tácita.

Debe resaltarse, de antemano, la capacidad de la autora de realizar síntesis que permiten consolidar horizontes históricos estupendos donde ubicar los temas en discusión. No se puede decir, de esta manera, que el texto se limite a una mera exégesis de los puntos saltantes del texto filosófico, lo cual podría hacerlo ya una obra importante; lo que la autora hábilmente logra es ubicar los problemas que aborda en un marco que les procura una claridad superior y permite, a un lector neófito en cualquiera de los temas que se abordan, encontrar una buena perspectiva de cada uno de los problemas que se tratan. Un ejemplo de este proceder se encuentra en la introducción (cf. p. 15-18), donde podemos apreciar un recuento del discurrir histórico del tratamiento de algunos tópicos sobre la significación desde Aristóteles hasta Ockham. Otra síntesis de este tipo, digna de ser resaltada, es la que la autora realiza en el último capítulo del texto en torno a las principales corrientes contemporáneas que abordan el problema de la referencia (cf. p. 95-108).

En lo que sigue, y dado lo dicho, procuraremos entonces reseñar y mostrar, en sus puntos más saltantes, la argumentación de la autora en torno al debate que se plantea. Puesto que, como hemos dicho, llamaremos la atención sobre los tópicos que resultan atractivos a la filosofía contemporánea y a los que la autora no se aboca y, en tanto preferimos mostrar las nuevas rutas tácitas de investigación, pedimos al lector no juzgue inapropiado el énfasis que pondremos en la exposición de Ockham y la presentación que, por otra parte, incluso podría denominarse escueta que consignamos al problema de la referencia en la contemporaneidad. Esperamos con esto no ir contra el espíritu general de la obra.

La argumentación que la autora sigue para poder aproximar a Ockham a las teorías contemporáneas en torno a la referencia surca los siguientes estadios. En primer lugar, ya que las teorías de la referencia contemporáneas se mueven en el horizonte de la semántica, es necesario mostrar que al interior de la teoría ockhamista del lenguaje existe también una teoría semántica. Esta última afirmación puede ser mostrada a partir de la discusión de la concepción que el venerabilis inceptor tiene del término y de su identidad con el signo. Desde esta discusión surge, inmediatamente, la necesidad de revisar el carácter significativo de los términos y, sobre todo, revisar el rango especial que tienen, dentro de este marco, los concepta; concepta que son signos naturales. Estos últimos, asimismo, tienen una preeminencia frente a los demás tipos de signos. El análisis de la significación, a su vez, abre las puertas para la discusión de la suppositio; la cual tiene un rol principal en el desarrollo que plantea la autora. Desplegados ya estos temas, en el último capítulo se procurará mostrar cómo es que es posible una aproximación, sobre la base de la lectura de Claude Panaccio, entre Ockham y las teorías de la referencia contemporáneas. Procuremos ahondar, con este esquema esbozado, los puntos centrales de la investigación.

En el primer capítulo, como hemos visto, la autora procura defender que existe una teoría semántica en Ockham, “pois –según afirma– nem todos concordam que exista uma teoria semântica nos escritos ockhamianos, mas apenas uma teoria sintática” (p. 21). Esta semántica propuesta se constituirá sobre la base de términos y de su relación referencial al mundo. Cabe anotar que, como es de esperarse, dicha referencialidad semántica se dará en torno al debate contemporáneo en el cual estaba inmerso el propio Ockham, esto es, en torno a la discusión relativa a la teoría de la suppositio (cf. p. 22). El ingreso a este debate, abordado desde esta perspectiva “terminista” de Ockham, es la puerta de acceso para rastrear la semántica en este autor. Así, según precisa da Costa, “[e]sta semântica é composta de termos. Estes termos, por sua vez, se compõem de partes que formam as proposições. Vimos que a relação dos signos com os objetos a que eles se referem está expressa nas propriedades dos termos” (p. 47-48).

El análisis de la lógica terminista es desarrollado con amplitud y rigor a lo largo del primer capítulo, recurriendo, en principio, a la identidad entre la noción de término y la de signo (cf. p. 26), y al análisis de las propiedades de los términos (p. 37-47). En este primer capítulo aparece, asimismo, una noción fundamental en el tratamiento de los términos en Ockham, a saber, el hecho de que los términos siempre son tratados al interior de una proposición, in propositio (cf. p. 37); noción a la que debemos atender y retener.

El despliegue de los problemas principales en torno a la existencia de una semántica en la obra de Ockham nos ha mostrado el carácter de esta como semántica de términos. Estos, según hemos mencionado, son concebidos como signos (cf. p. 54). Se sigue, por mor de la fuerza argumentativa, la necesidad de abordar el tema del signum y la significatio en Ockham. A esto mismo, justamente, se aboca el segundo capítulo de la obra (titulado “Signum et significatio en Ockham”). En este, la autora se esmera en mostrar la posibilidad de “elaborar uma semântica puramente extensional” (p. 74) sobre la base de la perspectiva ockhamista. Esto es, una semántica donde los sujetos denotados sean siempre cosas singulares y no entidades abstractas universales. Esto es elaborado por Ockham, según se muestra, a partir de la aseveración de la existencia previa de un “lenguaje mental” que contiene objetivamente3 a los universales al modo de concepta. Ockham, de esta manera, esgrime una división en los signos, para dar cuenta de este lenguaje mental, puesto que “os signos podem ser classificados em signos convencionais e signos naturais” (p. 55). Los signos naturales son los concepta mentalis, que bien pueden ser vistos como un entramado conceptual dado que es propiedad de todos los seres con lenguaje. Todos los signos arbitrarios se remiten, primariamente, a estos concepta y secundariamente, mediante dichos concepta, a la cosa misma (cf. p. 73).

Este particular carácter de los conceptos de la mente, por un lado, implica la existencia de un intermediario entre la cosa y la mente, i.e., el concepto mental natural o no arbitrario (cf. p. 54). Este intermediario, por su parte, es aquello que permite la relación de significación; significación que puede ser expresada como la relación del concepto con algo que no es él mismo, pero que se conoce por su intermedio. Por otro lado, esto resalta el carácter principal que tiene el lenguaje frente al pensamiento. Como dice la autora: “[p]ara os medievais, sem linguagem não há pensamento” (p. 56). En Ockham, en este sentido, esta tesis puede verse extremada al punto de llegar a reconocer que en él “sem linguagem mental não existem as coisas. Há um elemento que é anterior e que define o processo de nossa apreensão das coisas no mundo” (p. 56). Esto, sin dudas, llama a la reflexión sobre el carácter que en la actualidad le atribuyen al lenguaje muchos filósofos contemporáneos, filósofos que entienden que el lenguaje es el que determina los límites de la comprensión del mundo en general4.

Con este lenguaje mental preexistente (cf. p. 68) Ockham se libera de la species medieval, que fundaba, en Tomás, por ejemplo, la relación entre la cosa y el mundo (cf. p. 58). Ya no es necesario argüir que el proceso de aprehensión de los conceptos debe partir de especie sensorial e irse elevando hasta una especie inteligible que permitiese, de esta manera, la aprehensión de la quidditas5. Así, puede verse que Ockham es perfectamente consecuente con su principio de economía, o navaja de Ockham, que reza, tal como se encuentra en este autor: frustra fit per plura quod potest fieri per pauciora (inútilmente se hace mediante muchas cosas lo que puede hacerse mediante menos). Se ve que, también consecuentemente con este principio, el autor afirma la tesis que niega la existencia de los universales como realidades extramentales. Así las ideas en la mente divina, al modo de ejemplares en la mente divina, que habían sido instituidas por San Agustín, en su breve tratado Sobre las ideas (cf. Secada, 2000, p.59), quedan desterradas del horizonte del venerabilis inceptor; y queda así reestablecida la omnipotencia divina.

La anulación de las realidades universales como cosas extramentales y la aseveración de un lenguaje natural mental, que dota a cada hombre de concepta dados con anterioridad a la experiencia con el mundo, terminan por llevar a la siguiente conclusión: “O universal, por sua vez, é definido como um signo natural que exprime diretamente a coisa significada” (p. 61). De esta manera, el signo mental, que forma parte de un lenguaje mental preexistente, permite aseverar una semántica que excluye todo rastro de entidades universales. Se logra afirmar una semántica de corte puramente extensional; semántica que termina por remitir siempre a individuos particulares concretos y nunca a entidades universales abstractas. Se salva la contradicción de afirmar que hay algo así como un universal que por el hecho de existir es necesariamente singular y que sea, por su propio carácter universal, a su vez, muchas cosas.

Es aquí, por cierto, que creo que cabría hacer al menos una acotación con respecto a Descartes (en tanto punto de inflexión entre el medioevo y la modernidad). La conexión se estructura, en relación al lenguaje mental. Como hemos visto, en Ockham la relación entre los concepta y el mundo es una relación de significación; relación que impediría, según parece, asumir una tesis que cosifique las entidades intramentales y cierre al que el denomina intelecto puro dentro de sí, tal como hace Descartes. Sin embargo, y tal como muestra Gueroult6, es el cambio de perspectiva que opera Descartes el que puede considerarse central dentro de su filosofía. Lo que prima es, en este sentido, una atención sobre la mente y sobre lo que en ella se da con prioridad frente a todo lo extramental7. La afirmación ockhamista de un lenguaje mental y subjetivo parece un camino que se presta con excesiva facilidad para lograr la empresa cartesiana. Sin ánimo de introducirme más en esta tesis, que ha recibido ya algún tratamiento (cf. Gomila, 1996), me gustaría enfatizar, por otro lado, un camino que puede conducir a reafirmar esta conexión entre ambos autores: la negación de las species. Descartes afirma, en las respuestas a las quintas objeciones que le había planteado Gassendi, lo siguiente: “Ninguna especie corporal es recibida en el espíritu, sino que la concepción o la intelección pura de las cosas, ya sea corporales, ya espirituales, se hace sin ninguna imagen o especie corporal” (Descartes, 2009, p.615, OL 507). Tal como vimos en Ockham, la afirmación de los concepta suprimía la necesidad de las species, lo que era consecuente con el principio de economía. Tras haber resaltado esta segunda conexión, volvamos al decurso expositivo.

Desplegado el tema del lenguaje mental ockhamista y revisada la prioridad del signum mentis frente a las otras clases de signos, y sabiendo de antemano que el signo es para Ockham, “aquilo que conduz ao conhecimento de alguma coisa e possui a capacidade de supor por ela ou de agrupar-se com ela na proposição” (p. 26; las cursivas son nuestras), se hace absolutamente necesario revisar esta capacidad de suponer que tiene el signo, lo cual abre las puertas del tema principal del tercer capítulo, que se intitula: “A teoria da suppositio”.

El capítulo se abre con una discusión acerca de lo que significa suppositio. De esta manera, se enmarca, en primer lugar, el tema en su contexto histórico (cf. p. 76-80). En esta discusión, asimismo, se menciona un significado general del término suppositio, estableciéndolo como “colocar uma coisa no lugar de outra” (p. 77). Ockham agrega –y esta es su innovación– un carácter que podemos denominar intraproposicional, como mencionamos más arriba. Así, “[p]odemos afirmar que a definição da suposição dos conceitos como sendo parte do contexto proposicional, sed nunquam nisi in propositione, é determinante em Ockham” (p. 81). Las suposiciones, por su parte, serán divididas en tres clases. Así, vemos que estas pueden ser simples, materiales o personales (cf. p. 82). Un buen ejemplo de la primera clase de suposición son los conceptos universales, sin remitirlos a lo que ellos eventualmente podrían significar (que es necesariamente singular, como se vio). Los universales sólo existen como concepta. La suposición simple es, por ello, aquella que sólo refiere a entidades que existen en el alma, como intenciones del alma, sin referir a su carácter significativo (cf. p. 82). Cabe decir que en el contexto de esta explicación la autora cae en cierta oscuridad; oscuridad que, por lo demás, fácilmente puede ser salvada en las notas a pie de página que contienen el texto latino de Ockham. La suposición material, por otro lado, refiere a la capacidad lingüística de referirse al propio lenguaje (cf. p. 83).

La suposición personal es aquella que tiene carácter significativo y es ella la que se configura como principal dentro de la filosofía del lenguaje de Ockham. Así, como afirma da Costa: “Suposição pessoal é caracterizada pela atualização proposicional da significação de um signo linguístico, enquanto este ocupa na proposição o lugar dos singulares existentes como ‘coisa em si’” (p. 85). Puesto que el conocimiento implica a fortiori una relación de significación con el mundo, es evidente que siempre que usemos términos para obtener algún conocimiento de las cosas, entonces haremos uso de esta última clase de suposiciones. Esto, como señala la autora, implica “a primazia da suposição pessoal sobre as suposições simples e material” (p. 85), o, en otras palabras, la primacía de la suposición significativa frente a las no-significativas. Cómo la suposición personal significa a los individuos singulares se explica con detalle en el texto (cf. p. 86-90).

Es fundamental comprender que la filosofía terminista que introduce Ockham tiene un papel principal dentro de su consideración del concepto de verdad. De esta manera, podemos afirmar con la autora que Ockham “se distancia da concepção de verdade como correspondência da coisa com o intelecto […] e põe a verdade relacionada com as proposições […] [assim] abandona o caráter metafísico da palavra verdade e acentua o seu significado lógico-semântico” (p. 90-91).

Esta variación en el concepto de verdad en Ockham debe necesariamente resultar atractiva para muchos de los pensadores contemporáneos que, en una línea sobre todo hermenéutica de la verdad8, procuran abandonar el ideal “correspondentista” de la verdad. Ockham se constituye así como un interlocutor a tomar en cuenta en el contexto de estas discusiones; interlocutor con el cual debemos enfrentarnos, si queremos tener un horizonte amplio al respecto del asunto de pensar el tema de la verdad y su relación con el lenguaje en términos no metafísicos.

Tras una discusión larga y rica alrededor de las principales corrientes filosóficas que abordan el tema de la referencia (cf. p. 95-108), da Costa aborda, finalmente, el tema específico del trabajo, a saber, si es que puede, o no, entenderse el concepto de suposición en Ockham como un concepto de referencia (cf. p. 108ss.). Para ello, la autora, amparada en el desarrollo preliminar que ha llevado a cabo, y que hemos revisado en sus líneas generales, termina por dar una respuesta afirmativa a esta interrogante (cf. p. 109). La respuesta afirmativa se ampara en, por un lado, la existencia de una semántica en Ockham, que vincula las nociones principales ya mencionadas: término, significación y suposición. Por otro lado, se ampara en la aseveración ockhamista de que la teoría de la suposición se da necesariamente a un nivel proposicional; hecho que lo distingue, según la autora, de los pensadores que lo antecedieron en esta problemática y, por ende, lo aproxima a las actuales discusiones en torno al problema de la referencia.

La autora termina el estudio con la lectura de Ockham que hace C. Panaccio. Me limito a esta lectura pues la propia autora afirma que el “eixo ao redor do qual girará nosso estudo será a tese apresentada por Panaccio” (p. 19). Aquí solo citaré los tres grandes tópicos a partir de los cuales, este último autor, sostiene que puede haber una aproximación productiva al venerabilis inceptor por parte de la contemporaneidad. Y la existencia de este tópico común entre Ockham y nuestros tiempos garantiza la posibilidad de un diálogo consistente. Puesto que, la discusión en general, no sólo requiere un campo de comprensión adecuado entre interlocutores, sino que, como parte de este campo de comprensión, requiere también una adecuada precisión del qué alrededor del cual gira el diálogo. Como es bien sabido, de no haber rasgos específicos de confluencia, no hay discusión en ningún sentido. Panaccio, por consiguiente, reclama que debe ubicarse a Ockham dentro de la posición nominalista, la cual “defende a linguagem que privilegia a nominação como relação semântica por excelência” (p. 115). Sobre la base de la nominación, Panaccio constituye lo que él denomina un nominalismo no radical o nominalismo moderado. Este nominalismo está estructurado sobre la base de tres principios: (i) las propiedades semánticas de las expresiones lingüísticas son funciones de sus componentes elementares; (ii) ciertos signos intraproposicionales poseen una significación independiente de la proposición; (iii) los signos, sean complejos o simples, denotan un solo objeto (simple o complejo) (cf. p. 115).

El texto, sin dudas, es rico en nuevos aspectos, como se ha intentado mostrar. No sólo por la exposición que realiza, sino, como había mencionado al inicio, por los múltiples derroteros que nos abre en la consideración de Ockham como un autor que tiene en la actualidad el carácter de un interlocutor que invita a la reflexión. Con esta pista, hemos procurado mostrar, no sólo el acercamiento que promueve la autora entre Ockham y las actuales teorías semánticas y, en específico, a las teorías de la referencia, sino también, dentro de nuestras limitaciones evidentes, hemos deseado mostrar la proximidad existente entre Ockham y nuestra época en otros tópicos, por ejemplo, en las teorías de la verdad que podrían encontrar en Ockham algún punto con el cual coincidir o bien del cual deben diferenciarse adecuadamente. Por otro lado, hemos visto que hay un asunto histórico que parece hacerse evidente en Ockham, en lo relativo al lenguaje mental, y que pareciera poder vincularse con Descartes, por ejemplo; y, probablemente, con toda la modernidad. Esta intromisión no ha pretendido, por supuesto, mostrar una nueva tesis, sino sólo intentar mostrar al lector las sucesivas brechas que se abren con la exposición que la autora realiza sobre el venerabilis inceptor.

Quisiéramos concluir, permítanoslo el lector, con una última acotación. Hay otro tema que ha sido tocado en nuestra reseña de manera tangencial, pero que está presente en la exposición de la autora en la postulación de los concepta como signos naturales y la correlativa anulación de la existencia de los universales. El tema al que nos referimos es el del nominalismo. Él merece, en la actualidad, una atención especial, profunda y, sobre todo, de un ojo avizor para escatimar sus alcances. Un texto como el que hemos reseñado es en este aspecto una contribución fundamental para la reflexión sobre nuestro tiempo. El tema del nominalismo y su conexión con nuestra concepción del mundo está expresado, con claridad, en un pasaje de la extensa obra de Borges. De lo que se trata es de saber, por supuesto, si Borges tenía o no razón al respecto. Por lo mismo, quisiéramos concluir con ese pasaje, el cual debe fungir como una nueva invitación a leer la obra a la que nos hemos abocado: “El nominalismo, antes la novedad de unos pocos, hoy abarca a toda la gente; su victoria es tan vasta y fundamental que su nombre es inútil. Nadie se declara nominalista porque no hay quien sea otra cosa” (Borges, 1974, p.746).

Notas

1 Mis especiales agradecimientos en la composición de esta modesta reseña a Cléber Dias, por su asesoría académica y sus comentarios precisos, y a Rosella Roggero, por su compañía y comprensión constante.

2 Quien de hecho es mencionado por la autora (cf. p.68-69). Aunque se debe decir que la posibilidad de conexiones es aun más amplia

3 En el sentido del esse obiectivum medieval, entendido como objeto intencional, que tanto parece costarles entender a muchos de los modernos exegetas, quienes no comprenden cómo el término objetividad ha variado tremendamente desde el medioevo hasta nuestros días.

4 Por ejemplo, esto parece llevarnos a pensar la sentencia del Tractatus de Wittgenstein donde se afirma: “Los límites de mi lenguaje significan los límites de mi mundo” [Die Grenzen meiner Sprache bedeuten die Grenzen meiner Welt] (Wittgenstein, 1973, p.163 [5.6]).

5 Para una discusión más amplia de este tema cf. Tweedale (1989).

6 “En efecto, el orden del análisis es el orden de la invención, por tanto, de la ratio cognoscendi; se determina según las exigencias de nuestra certeza: es la concatenación de las condiciones que la vuelven posible. El orden sintético es, por el contrario, el que se establece entre los resultados de las ciencias; y estos resultados son la verdad de la cosa. Es, pues, el orden e la ratio essendi…”. Es claro que Descartes seguirá el orden de la ratio cognoscendi. (Cf. Gueroult, 1995, t. I, p.24).

7 Ejemplo de esto es el dictum metódico de Descartes en este respecto: “No podemos conocer nada antes de conocer el entendimiento, porque el conocimiento de todas las cosas depende de él, y no a la inversa; luego, después de examinar todo lo que sigue inmediatamente al conocimiento del entendimiento puro, enumerará entre otras cosas todos los demás instrumentos de conocimiento que poseemos…” (Descartes, 1967, p.66 [AT X, 395])

8 Heidegger, en su artículo titulado “De la esencia de la verdad” (cf. Heidegger, 2007), comienza a establecer el carácter secundario de la noción de verdad como adaequatio; discusión que luego asumirá la tradición hermenéutica que tiene como a uno de sus principales exponentes a H.-G. Gadamer.

Referências

BORGES, J.L. 1974. Otras inquisiciones. In: J.L. BORGES, Obras completas. Buenos Aires, Emecé, 1161 p.

DESCARTES, R. 1967. Reglas para la dirección del espíritu. In: R. DESCARTES, Obras escogidas. Buenos Aires, Editorial Sudamericana, p.35-131.

DESCARTES, R. 2009. Respuestas del autor a las quintas objeciones. In: R. DESCARTES, Meditaciones acerca de la Filosofía Primera: seguidas de las objeciones y respuestas. Bogotá, Universidad Nacional de Colombia, p.583-618.

GOMILA, A. 1996. La teoría de las ideas de Descartes. Teorema, XVI:47-69.

GUEROULT, M. 1995. Descartes según el orden de las razones. Caracas, Monte Ávila Editores Latinoamericana, 458 p.

HEIDEGGER, M. 2007. De la esencia de la verdad. In: M. HEIDEGGER, Hitos. Madrid, Alianza, p.151-171.

SECADA, J. 2000. Cartesian Metaphysics. Cambridge, Cambridge University Press, 333 p. http://dx.doi.org/10.1017/CBO9780511487309

TWEEDALE, M. 1989. Mental Representation in Later Medieval Scholasticism. In: J.-C. SMITH (ed.), Historical Foundations of Cognitive Science. London, Kluwer Academic Publisher, p.35-55.

WITTGENSTEIN, L. 1973. Tractatus logico-philosophicus. Madrid, Alianza, 221 p.

Joan E. Caravedo Durán – Pontificia Universidad Católica del Perú. Perú. E-mail: [email protected]

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[DR]

 

Um século de conhecimento: arte, filosofia, ciência e tecnologia do século XX – SIMON (FU)

SIMON, S. (Org.). Um século de conhecimento: arte, filosofia, ciência e tecnologia do século XX. Brasília: Editora UnB, 2001. Resenha de: NEDEL, José. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.13, n.2, 199-208, mai./ago., 2012.

A obra e o século XX

O organizador da obra, Samuel Simon, professor adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília, faz a apresentação, falando do seu objetivo, de sua abrangência, além de traçar uma síntese dos acontecimentos mais relevantes do século relacionados ao tema.

Objetivo

O principal objetivo da obra, em 31 capítulos, em 1.282 páginas de 24 x 17 cm, é a análise completa, escrita em língua portuguesa, das teorias científicas nas várias áreas do conhecimento do séc. XX e dos desdobramentos daí advindos. A cada autor foi solicitada a análise crítica e prospectiva de uma área de conhecimento, compreendendo: situá-la historicamente, referir seu desenvolvimento na passagem do séc. XIX para o séc. XX, quando fosse o caso, oferecer uma análise propriamente dita, e apresentar as tendências possíveis da respectiva área para o séc. XXI.

Abrangência

O livro resultou sendo uma versão crítica do que tem sido feito no séc. XX, fora alguns domínios do conhecimento, não contemplados, por não ter sido possível contar com os respectivos especialistas (p. 18).

As informações abrangem ciências humanas, da natureza e exatas; saúde e nutricionismo; tecnologias e artes. Estão contempladas as seguintes especialidades, umas mais desenvolvidas que outras: Administração, Agronomia, Antropologia, Arqueologia, Arquitetura, Biologia, Botânica, Ciência cognitiva, Ciência da informação, Cinema, Computação, Comunicação, Cosmologia, Ecologia comportamental, Educação física e esporte, Engenharia aeroespacial, Engenharia de minas, Estatística, Filosofia, Física, Geografia, História, Matemática, Museologia, Música, Nutrição, Paleontologia, Química, Relações internacionais, Sociologia e Teoria literária.

Panorâmica do séc. XX

A descrição geral do séc. XX pode ser composta pelo que consta da Apresentação (p. 7-19) e do Prefácio de Roberto A. Salmeron (p. 21-26). Uma advertência oportuna é a de que o conhecimento teórico e aplicado, que obteve grande desenvolvimento no séc. XX, não se iniciou nele, nem mesmo no séc. XVII, com a revolução científica. Com efeito, as atuais definições da teoria científica são herdeiras de uma tradição de 2,5 mil anos de conhecimento ocidental e oriental. Ao lado do desenvolvimento científico e tecnológico, ocorreu também o das artes e da filosofia.

Desenvolvimento

Em síntese, o conhecimento científico no séc. XX ensejou o aparecimento de novas áreas, aprofundando duas tendências iniciadas no séc. XVII: a crescente especialização do conhecimento e o estabelecimento de interconexões entre áreas até então bastante distintas (p. 7). A história das ideias ensina que a aproximação entre fenômenos antes sem conexão, integrando um mesmo conjunto explicativo, é uma tendência definitiva. Segundo Roberto A. Salmeron, as novas interconexões das várias ciências, ao lado da matematização crescente em vários domínios científicos e da abstração, são, talvez, os traços mais característicos das ciências no séc. XX (p. 14).

Interconexões

Como exemplos, vale notar as interconexões nos seguintes tópicos: O uso da matemática constitui-se a base da física moderna (Galilleu Galilei e Newton). A física, até então, fundamentalmente qualitativa, apropria-se da matemática e a desenvolve, como se vê do cálculo diferencial e integral nos estudos de Newton e Leibniz. A química também tem fortes vínculos com a física e a matemática. A biologia mantém conexões com a química e a matemática, importante desde os trabalhos de Mendel. A sociologia, a antropologia e a área das relações internacionais são tributárias da história que, de maneira recíproca, examina novos fatos à luz dessas ciências e de outros domínios das ciências humanas. A museologia mantém estreitas relações com a arqueologia (p. 8). O uso cada vez mais relevante da computação compete com a matemática em muitos casos. Herdeira disso é a inteligência artificial, conduzindo a novos domínios, como o da vida artificial (p. 15).

Abstração

Para Salmeron, “a característica mais importante do séc. XX […] é a passagem para a abstração, nas ciências e nas artes” (p. 23 e 26). É assim que Louis de Broglie, em 1924, apresentou tese de doutorado na qual mostrou que a cada partícula se pode associar uma onda. Foi a origem da mecânica ondulatória, posteriormente chamada mecânica quântica, que tem fundamentos abstratos, isto é, sem relação com nossa experiência diária. E ela é fundamental para a interpretação da física moderna, em particular dos fenômenos atômicos. Uma teoria abstrata tem inúmeras aplicações, das quais nem nos damos conta: máquina fotográfica digital, ressonância magnética, scanner, transistor, etc. Mais de 30% da indústria moderna de vanguarda são baseados em fenômenos quânticos. Outro exemplo de abstração: a psicanálise que trata da mente humana sem medicamentos, sem intervenção física no corpo (p. 24).

Também na arte houve mudança radical, com a introdução da abstração no modo de pensar. A primeira obra nesse sentido foi o quadro de Picasso Les Mademoiselles d’Avignon, de 1907: cinco mulheres nuas, com desenho simplificado, rostos de três delas representados por máscaras africanas, o fundo com cores vivas sem gradação e contrastes violentos. O quadro, que suscitou escândalo e forte rejeição na época, abriu nova perspectiva para a pintura: a produção de obras que não representam objetos reais. Isso logo foi seguido por outros artistas, como o inglês Thomas Moore, que desenvolveu a abstração na escultura, e Arnhold Schönberg, que o fez na música, com seu dodecafonismo, vindo ele a tornar-se o precursor do que se convencionou chamar música moderna.

Avanços

Os avanços nas ciências e no domínio da natureza ao longo do séc. XX são notáveis. O desenvolvimento tecnológico tem sido extremamente acelerado. O homem conseguiu sobrevoar os oceanos em poucas horas, ir à Lua, desenvolver computadores de altíssima velocidade e pequeno porte, manipular o código genético, aumentar a expectativa de vida, propor conceitos altamente abstratos, como de sinergia (administração), estruturalismo antropológico (antropologia), axialidades (arquitetura), totipotência (botânica), sistemas especialistas (ciência da informação), espiral do silêncio (comunicação), frases protocolares (filosofia), cadeia trófica (paleontologia), etc. Pôde ainda olhar para os confins do universo e obter evidência empírica sobre a existência de um objeto extragaláctico, chegando à cifra de 100 bilhões de galáxias em contínua expansão (p. 8-9).

As artes também conheceram mudanças importantes: o cinema, produto genuíno do séc. XX, tornou-se uma poderosa indústria. Além de oferecer entretenimento, tornouse espaço para a reflexão sobre o homem, sua diversidade cultural, seus valores (p. 9).

Qualidade de vida

O resultado de pesquisas das ciências fundamentais e do aprimoramento da técnica ajudou a minorar o sofrimento de milhões de pessoas. Desde o início do séc. XX, o aumento da oferta de alimentos foi maior que o crescimento da população. Houve enorme progresso social: o homem vivia melhor no fim do que no começo do século, apesar das injustiças e desigualdades existentes em muitos lugares. Trabalha com muito mais conforto e produz muito mais, goza de saúde melhor, vive 30 anos mais e tem mais lazer do que no começo do século (p. 22).

Pela metade do século, iniciando a descoberta dos antibióticos, a medicina deu um salto: muitas doenças passaram a ser curadas, e a procura de medicamentos para tratar ou prevenir doenças tornou-se rotina. Com os avanços da genética e a descoberta da biologia molecular, a biologia se transformou: passamos a ter nova visão da herança da vida e dos fenômenos vitais. Inúmeras aplicações da física tornaram-se inseparáveis de nossa vida cotidiana, tais como telégrafo, telefone, rádio, televisão, computador, novos materiais, aparelhos domésticos e de aplicação na medicina, no transporte, etc. (p. 22).

Limitações

Contudo, são de notar também limitações do conhecimento científico. Muitas questões não estão resolvidas até hoje. Há implicações éticas da ciência aplicada, v. g., da engenharia genética. O conhecimento produzido e acumulado ao longo de milênios tem pouca influência sobre os governantes no tocante à sua adequada utilização em prol de uma vida mais digna (como as questões ecológicas). Esse conhecimento também não tem conseguido reverter o uso indevido, muitas vezes com a ajuda de cientistas, de alguns de seus resultados (p. 10-11).

Algumas observações pontuais

Os autores deste livro monumental, no âmbito da respectiva especialidade, procuram dar conta do que aconteceu no séc. XX, tão rico em desenvolvimento e novidades científicas e tecnológicas. Uma súmula de cada um dos capítulos não caberia nesta simples nota bibliográfica. Por isso apenas alguns tópicos são selecionados e trazidos à consideração dos leitores, não mais do que para despertar o interesse pela leitura exaustiva da obra.

Roque de Barros Laraia (“Da ciência biológica à social: a trajetória da antropologia no século XX”, p.95-117) chama a atenção para o postulado da unidade biológica da espécie humana, já afirmada por Confúcio, 400 anos antes de Cristo, nestes termos: “A natureza dos homens é a mesma; são os seus hábitos que os mantêm separados” (p. 103). Segundo Laraia, aliás, “a antropologia reafirmou o princípio da igualdade da mente humana” (p. 116). A reafirmação dessa verdade reconhecida pela antropologia científica abala, com toda a pertinência, o próprio fundamento de concepções ou teses a favor da desigualdade qualitativa entre raças humanas, que ao longo da história têm ensejado discriminações e exclusões, hoje universalmente condenadas, mesmo que na prática por vezes apenas em vias de superação.

Waldenor Barbosa da Cruz (“Herança e evolução: aventuras da biologia no século XX”, p.195-288). Merece destaque esta observação do autor: “Nenhuma tecnologia científica tem consequências mais profundas sobre o homem do que a derivada da biologia: a biotecnologia. Isto porque afeta não somente nosso estilo de vida, mas também nossos valores éticos e morais e até mesmo põe em questão a evolução de nossa espécie. Por essa razão, os avanços da biologia, particularmente da biotecnologia, são tão amplamente discutidos em todos os meios de comunicação social […]” (p. 279).

O autor pondera que, nesse contexto, surge a bioética. A biologia molecular possibilitou o mapeamento físico do genoma humano e a criação de técnicas para sua manipulação. Isso possibilita ações com objetivos médicos (prevenção, diagnóstico, tratamento de doenças), práticas de exclusão social de indivíduos com genes não desejáveis e construção de indivíduos perfeitos (em suma, processos de cura e eugenia). A mesma tecnologia aplicada a genomas vegetais leva aos alimentos transgênicos, que também envolvem discussões éticas. O patenteamento de genes humanos é inaceitável. Aliás, a UNESCO já o deixou claro na Declaração universal sobre o genoma humano e direitos humanos, 1997 (p. 281). E o autor conclui: “Não é preciso ter bola de cristal para prever que a bioética será cada vez mais importante nas próximas décadas” (p. 282).

Bem apropriadas são as ponderações do autor. É que as questões de bioética são por via de regra polêmicas. Volta e meia retornam à pauta das discussões em âmbito nacional, como já tem acontecido com o aborto, inclusive de feto anencefálico, o uso de embriões humanos na pesquisa, alimentos transgênicos e outras questões que envolvem a vida e a dignidade humana. Nesses casos, a pura ciência biológica, não tendo o alcance necessário para a solução, deve mesmo ser socorrida pela ética em sua vertente aplicada, no caso a bioética.

Aluizio Arcela (“Computação: uma ciência exata com aspirações humanas e sociais”, p.503-557), em meio à explicitação de sua “ciência exata” da computação, faz um juízo crítico da psicanálise, nestes termos: “A psicanálise […] mostra-se vítima de seus próprios ensinamentos ao demonstrar dificuldades de sair da sua infância científica e, assim, ainda não traz uma luz suficiente, algo que explique formalmente, como convém à computação, o que são os complexos, os medos, os desejos e tudo o mais que se manifesta nesse domínio chamado inconsciente, se possível na mesma medida que a lógica o faz para o raciocínio” (p. 554).

Em verdade, exigir da análise da mente humana o rigor da lógica ou da computação, no mínimo, não é devido nem razoável. É que a psyché é misteriosa, apenas acessível de forma indireta, por introspecção, e nunca de modo cabal. Aliás, cada saber tem o rigor e a exatidão que seu objeto permite ou requer, como Aristóteles já ensinou in illo tempore. Se o teorema da incompletude de Kurt Gödel, segundo o qual todos os sistemas matemáticos suficientemente fortes são incompletos, porque neles há teoremas que não podem ser demonstrados nem negados (proposições indecidíveis), tem aplicação na própria computação na versão segundo a qual “nem todos os enunciados verdadeiros da aritmética podem ser demonstrados por computador” (p. 515), não deve causar espécie que na análise dos complexos, medos e desejos da alma humana não haja clareza insofismável como a que é possível na lógica e na computação. Há outros modelos de ciência, particularmente na área das ciências humanas.

Luiz Martins (“Teorias da comunicação no século XX”, p.559-604) faz judiciosas observações acerca do mundo atual e da qualidade da comunicação despejada sobre todos diariamente. Segundo ele, a humanidade foi vitoriosa no campo tecnológico e do ponto de vista das possibilidades de uma interconexão global. Porém, a sociedade moderna está marcada por exclusões e alargamento dos abismos sociais. O mundo sistêmico venceu o mundo da vida, dito em categorias habermasianas (p. 564-565). Há livre trânsito de capital financeiro e mercadorias, mas barreiras à circulação de pessoas, sobretudo em busca de trabalho e asilo. O mundo globalizado se caracteriza por exclusões: fechamento de fronteiras e apartheids sociais (p. 588). “Tal como ironicamente aconteceu no período das circunavegações, novamente o mundo se completa enquanto esfera, mas fragmenta-se em matéria de humanismo. A ‘aldeia global’ totaliza-se para explodir em estilhaços, sucumbindo às categorias dominantes do poder e do dinheiro, diabolicamente fragmentadoras” (p. 589). Pelo visto, a influência do discurso de Habermas sobre o autor é palpável, aliás, expressamente admitido.

O autor pondera que, em relação aos MCM, não raro vence o mau gosto, o grotesco. Na radiodifusão educativa há muito input e pouco output. O papel dos MCM, especialmente da TV, tem estado mais para a deseducação das massas do que para a elevação do nível educacional e cultural das populações, a julgar de obras recentes publicadas pela UNESCO. As crianças são mais vítimas do que beneficiárias dos meios de comunicação: os conteúdos educativos perdem para as programações repletas de violência e degradação dos valores morais e humanos. Os meninos são fascinados por heróis agressivos, como o Exterminador do futuro (p. 573-574).

Obviamente, o alerta do autor deve ser levado em conta. A qualidade das apresentações artísticas e de diversão é ruim, quando não péssima, na maioria dos canais da TV brasileira. O exemplo atual mais chocante disso é o programa Big Brother Brasil que anualmente é encenado e continua no ar, apesar das muitas críticas, por razões de faturamento da empresa de comunicação que o promove, desprezados os bons costumes, os valores educativos e a qualidade artística do espetáculo digno de um zoológico humano.

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro (“A abordagem evolutiva no estudo do comportamento animal e humano”, p.631-659) defende em sua abordagem evolutiva que não há dicotomia verdadeira entre o genético e o cultural; que a cultura também é vista como manifestação genética dos animais, evoluída dentro das populações e moldada por seleção natural. Segundo ele, somos seres culturais porque fomos moldados pela seleção natural para sermos assim. Por sinal, atualmente se acredita que há genes até mesmo para a religiosidade. O principal argumento em favor dessa ideia é que, apesar da enorme diversidade étnica e cultural entre os homens, até hoje não se descobriu povo ou civilização totalmente ateu sobre o nosso planeta (p. 651). Assim, “para desvendarmos as virtudes e maldades da natureza humana, precisaremos conhecer um pouco mais sobre os genes” (p. 655).

Com certeza, uma antropologia de feição mais clássica não teria dificuldade em relativizar esse entendimento biologista do autor. O ser humano é um composto psicofísico que ultrapassa seu patrimônio genético. Nessa condição, realiza atos orgânicos em que o corpo (no caso, a parte biológica) e a psique são concausas; e outros atos, os da inteligência e da vontade, em que o corpo entra apenas como condição, não como causa. Nesse nível situa-se o mundo da cultura criado pelo ser humano ao longo de sua rica aventura sobre o planeta. Na cultura, nela incluída a religião, os genes intervêm, não como causas (que produzem o resultado), ou como determinantes, mas como condições (necessárias para que a causa – a alma, a mente, o espírito – possa produzir o resultado). Entre genético e cultural há, sim, uma distinção radical. Mas distinção não quer dizer separação, pois ambas as partes funcionam sinergicamente no ser humano hígido. A valer a tese do autor, de que a cultura, inclusive a religiosidade, é genética, caberia indagar: por que dela não ocorre nenhum indício entre os chimpanzés, cujo patrimônio genético, segundo pesquisas recentes, é idêntico ao dos humanos em noventa e nove por cento? Não chegaram lá ainda? Ou porque, encerrados na mera perspectiva biológica, não têm acesso ao mundo simbólico? Essa, porém, não é uma questão científica, de antropologia física, mas de antropologia filosófica. A luz da biologia é insuficiente, de curto alcance, para resolvê-la.

Aldo Antônio de Azevedo e Alexandre Luiz Gonçalves de Rezende (“As dimensões humanas da educação física e do esporte na cultura”, p.661-710) fazem um grave alerta sobre Educação Física nas escolas brasileiras. Segundo eles, com as mudanças na concepção educacional, a ginástica foi perdendo espaço no contexto escolar para o esporte, passando a consolidar-se nas academias, ao lado da musculação, como prática orientada para a modelagem estética do corpo. No Brasil, a esportivização da Educação Física resultou na perda de sua identidade pedagógica e no questionamento de seu papel dentro da escola. O professor passou a ser técnico esportivo interessado em treinar seleções, relegados a segundo plano os alunos apontados como desprovidos de aptidões naturais para o esporte (p. 700).

Se a denúncia é verdadeira, deve ser levada em conta pelos educadores e instituições de ensino, a fim de que não se perca uma prática indispensável à educação integral, consagrada ao longo da história da educação no Ocidente, e não se induza a discriminação dos educandos havidos como menos prendados para o esporte.

Nelson Gonçalves Gomes (“Os progressos da filosofia no século XX”, p.795-871) escreve um valioso ensaio de síntese das reflexões filosóficas no séc. XX. Passa pelas principais correntes, como o idealismo, o positivismo, a fenomenologia, a filosofia analítica, até a pós-analítica para a qual as lógicas intensionais abriram horizontes (p. 867). Observa que na filosofia não há progresso consensual (p. 861), mas progressos controversiais, isto é, formação de correntes, em processo contínuo, com diferentes posições diante dos grandes problemas. As concepções exercem influência umas sobre as outras e evoluem, por exemplo, o neotomismo analítico (p. 861-862).

Da filosofia analítica o autor aponta os resultados mais interessantes: o papel privilegiado conferido à linguagem, como instrumento de pensamento; o emprego de métodos formais no tratamento das questões filosóficas; o uso da lógica como recurso auxiliar (p. 864). Afirma: “A filosofia analítica, tal como existiu na primeira metade do século XX, esgotou-se. ‘Filosofia analítica’ tornou-se uma espécie de guarda-chuva que abriga toda uma família de filosofias, que têm em comum o cuidado no uso da linguagem e a exigência do emprego de argumentos” (p. 867). Informa que, a partir daí, alguns falam em “filosofia pós-analítica”, que retoma grande parte da tradição, mas não de forma conservadora, uma vez que discute grande variedade de problemas novos. O retorno dos temas clássicos se faz muitas vezes com emprego de linguagens sofisticadas e argumentação rigorosa, frequentemente formulada com o auxílio de lógicas intensionais. Esclarece que essas lógicas, desenvolvidas na segunda metade do séc. XX, são sistemas nos quais se trabalha com frases regidas por expressões como necessariamente, possivelmente, obrigatoriamente, surgindo assim a lógica modal, a deôntica, a epistêmica e outras, para as quais são construídos sistemas peculiares de semântica, as semânticas dos mundos possíveis (p. 867).

Pelo visto, o autor traz a análise até os dias atuais e transita por tudo com objetividade e desenvoltura. No mais, oferece preciosas dicas para extensão e aprofundamento dos temas por parte dos interessados.

José David M. Vianna (“A física e o século XX”, p.873- 916) apresenta um longo estudo sobre os avanços da física no último século e faz uma observação sobre cuja pertinência a história futura da ciência dirá, a saber.

No início do séc. XX, pelo menos o primeiro quarto de século, a física foi marcada por desdobramentos de resultados e propostas da segunda metade do séc. XIX: a sintetização das leis do eletromagnetismo (Clerk Maxwell); a descoberta dos raios catódicos (Johann W. Hittorf e William Crookes); do efeito fotoelétrico (Hertz e Philipp von Lenard); dos raios X (Wilhelm K. von Roentgen); da radioatividade (Henri Becquerel); a confirmação da existência de ondas eletromagnéticas (Heinrich Rudolf Hertz); o desenvolvimento da teoria clássica do elétron (Hendrick A. Lorentz), etc. (p. 873-874). Isso leva a pensar sobre quanto das ideias surgidas nos últimos 25 anos do séc. XX poderão influenciar as descobertas do séc. XXI. Nessa situação encontram-se estes tópicos: a informação quântica, as cordas e supercordas (strings e superstrings), os materiais nanoestruturados, o confinamento e os novos materiais, o caos, os quarks, os campos de calibre (gauge), a unificação da interação forte com a fraca e a eletromagnética, e a superunificação das quatro interações básicas, etc. Tudo pode entrar como itens de uma pauta de projetos cujo desenrolar continuará a fazer da física uma ciência de interesse cada vez maior (p. 912). E ela tem de assinalar novos progressos, porque desafios múltiplos lhe estão postos. Um deles é não menos do que este, como afirma o autor: “Um dos desafios para este século que se inicia é encontrar um modelo para a estrutura fundamental da matéria” (p. 898).

Haverá de encontrá-lo? Se acontecer, com certeza, não será pouco.

Ignez Costa Barbosa Ferreira (“A visão geográfica do espaço do homem”, p.817-944) traça um estudo preciso do desenvolvimento da geografia, das origens até as perspectivas atuais. Enquadra-se no novo paradigma de base ecológica, surgido em decorrência da pressão dos problemas ambientais, preocupado com a atuação antrópica sobre a natureza, em que o próprio homem seja visto como elemento do ecossistema (p. 935). A autora pensa que “a preservação do hábitat do homem na superfície da Terra é a grande questão da sociedade” (p. 918). Por isso, “desenvolvimento e preservação do ambiente torna-se uma das grandes questões atuais e um dos maiores desafios para a produção do espaço geográfico pela sociedade” (p. 940). Sobre o papel da geografia entende que sua principal contribuição está em “apontar saídas, a partir do território, no sentido de se construir um espaço socialmente mais justo e ambientalmente sustentável” (p. 941). Pelo visto, a postura da autora é coerente com o paradigma da sustentabilidade do nosso planeta, hoje elemento precípuo de agendas internacionais.

Estevão de Rezende Martins (“A renovação contemporânea da historiografia”, p.945-985) conclui seu estudo pelo caráter científico de sua disciplina, nestes termos: “A história do século XX tornou-se, indiscutivelmente, ciência histórica. Seus procedimentos metódicos, suas práticas de pesquisa e seus resultados satisfazem aos critérios da confiabilidade, verossimilhança e controlabilidade. Seu produto – a historiografia – submete-se ao crivo intersubjetivo da comunidade profissional” (p. 979).

É de notar, porém, que a submissão ao crivo intersubjetivo não é marca exclusiva da ciência, mas de todo produto cultural. A rigor, não representa critério de cientificidade, nem que conduza ao consenso, pois nem este não é indicativo infalível de verdade. Com efeito, o consenso pode estar alicerçado em falsas evidências capazes de ensejar juízos e afirmações equivocadas. Disso a história universal registra exemplos abundantes.

Conrado Silva (“O século mais instigante de toda a história da música”, p.1049-1067) faz uma observação que suscita preocupação, nestes termos: “É um fato singular do século: pela primeira vez em toda a história da música, não existe um cânone que sirva de base para definir as características do estilo. O próprio conceito de cânone hoje já não tem mais função. A divergência de critérios é o que importa” (p. 1052). Nesse contexto, compreende-se quiçá melhor o próprio Schoenberg com sua música atonal (sistema dodecafônico).

O autor continua sua observação, quase uma lamentação: “Ainda na primeira geração pós-internet, a realidade mostra uma nivelação por baixo da criação musical. A difusão de programas de criação e de sequenciação de som permitiu a entrada no meio musical de uma quantidade enorme de aprendizes de feiticeiros interessados em mostrar suas experiências, em geral objetos sonoros banais, de pouco interesse musical, resultado de pouca reflexão nos princípios básicos de confecção da estrutura musical” (p. 1064).

Essa situação, profundamente lamentável, não representa sequer novidade para um consumidor leigo de música, porque a indigência cultural, literária e musical muitas vezes salta aos olhos de qualquer pessoa minimamente informada. Infelizmente, esse experimentalismo permeado de pobreza, banalidade e mau gosto denunciado pelo autor não é exclusivo da música, mas atinge também outras áreas, como a das artes plásticas e da literatura, especialmente na poesia. Qualquer garatuja ou instalação por mais abstrusa que seja vai para bienal… Uma simples prosinha empilhada, em geral hermética ou sem sentido, sai premiada em concurso de poemas. A exemplo do abandono dos princípios da estrutura musical, também foram descartadas para o cadoz das antiqualhas as regras clássicas da composição poética. Cada um agora faz a sua regra, o que transforma a suposta arte em pura facilidade, impulso emocional, sem racionalidade. Entretanto, a verdadeira arte, como toda virtude, é da ordem do difícil, segundo a lição indescartável de autores como Platão, Aristóteles, T. de Aquino e outros. Salústio a recolheu dos gregos e a transmitiu a César: Ad virtutem una ardua via est (Epistolae ad Caesarem 1, 7) – O caminho da virtude é um só, e este é árduo. É urgente um retorno aos clássicos.

Marcus Faro de Castro (“De Westphalia a Seattle: A teoria das relações internacionais em transição”, p.1153-1222) examina com amplitude o complexo das relações internacionais em sua gênese e transformação. Passa pelo realismo de Edward Carr e Hans Morgenthau, o neorrealismo de Kenneth Waltz, a teoria da interdependência de Robert Keohane e Joseph Nye, e chega ao construtivismo dos tempos mais recentes, perspectiva constituída de apropriação e adaptação de contribuições oriundas sobretudo da teoria social europeia, que surgiu em meados de 1980 e teve seu florescimento nos anos 1990. Nessa perspectiva, os fatos do mundo, inclusive a política, o uso do poder, a violência exercida pelo Estado, são socialmente construídos, em parte com base em elementos subjetivos (significados linguísticos, valores, crenças religiosas, aspirações, normas morais, preconceitos, valores culturais, sentimentos), que formam estruturas motivacionais da ação. Esses elementos ideacionais podem ser criticados ou expostos à interpretação e possível reelaboração por meio de práticas sociais participativas (p. 1205-1206).

O autor visualiza, para a Teoria das Relações Internacionais, como perspectiva profícua no futuro previsível, tanto como atitude do trabalho intelectual quanto como prática política, a abertura ao pluralismo de valores (p. 1211), o que será consentâneo com a preservação da liberdade. Obviamente, essa perspectiva é coerente com a tendência majoritária hoje de progressivo apreço dos direitos humanos pelos povos e a sua efetiva aplicação na prática das nações.

Vilma Figueiredo (“Do fato social à multiplicidade social”, p.1223-1253) faz observações que ressumam a humildade que deveria ser o apanágio do todo cientista. Lembra esta palavra de Max Weber: “Nenhuma ciência […] será capaz de, definitivamente, ensinar aos homens a melhor maneira de viverem, ou às sociedades, de se organizarem, e tampouco de dizer à humanidade qual será o seu futuro: sempre existirão as esferas ou dimensões da sociedade nas quais a ação social não-racional prevalece e a ciência pode expressar-se, apenas, em termos de probabilidades” (p. 1230). Em outras palavras, a ciência é limitada, quer na extensão, quer no aprofundamento das questões de seu objeto. “O século ensinou que a teoria sociológica não deve pretender ser abrangente no sentido de não deixar lugar para o desconhecido, para o indefinido. Isso não é desejável nem necessário. A ciência apenas é possível porque se pode afirmar algo sem que se saiba tudo. A ciência é inexaurível” (p. 1245).

Ninguém jamais saberá tudo, nenhuma ciência humana exaurirá o cognoscível. Por isso, a correta organização das sociedades há de ser sempre criação humana, em condições históricas concretas, observadas algumas verdades incontestes que a história, inclusive a recente, nos ensinou: que é falaciosa a busca exclusiva da igualdade social em detrimento da liberdade. A prova dessa falácia, já a deu o rotundo fracasso da marcante experiência histórica que mudou a face do mundo contemporâneo, ou seja, a implantação do comunismo na Rússia e a criação da União Soviética (p. 1232).

Em suma, a experiência soviética permitiu confirmar hipóteses derivadas de Durkheim e Weber sobre a natureza do vínculo social e da dominação política: que o vigor das sociedades se origina da relação equilibrada entre igualdade, disciplina e regulação de um lado, e liberdade, inovação e criação de outro. “O excesso de disciplina leva à rotinização e ao marasmo; a liberdade sem controle opõe-se à formação do consenso e dá origem à anomia social” (p. 1232). Em verdade, a eterna questão política é encontrar o equilíbrio entre liberdade e disciplina: o grau ótimo de liberdade que não só não prejudique, mas ainda assegure a estabilidade e a segurança desejadas no convívio social.

Henryk Siewierski (“Correntes e perspectivas da teoria da literatura no século XX”, p.1255-1281), na questão da intertextualidade, termo que Julia Kristeva propôs em substituição à intersubjetividade, rejeita a crítica desconstrucionista, ou pós-estruturalista, dos que negam a autonomia do texto. Esses autores questionam o caráter objetivo da estrutura de uma obra literária (p. 1272), dizendo que qualquer texto é inconcebível isolado de outros textos, por ser privado de autonomia ou significado fixo (independência da intenção do autor e do contexto histórico), de objetividade (estabilidade estrutural e independência da interpretação) e unidade (unicidade e integralidade) (p. 1269). Para os desconstrucionistas, “não há texto em si”, sendo impossível seu “fechamento” (p. 1270).

Para o autor, esse radicalismo leva ao ceticismo extremo segundo o qual “toda leitura é desleitura” (misreading), porque todo texto dependeria de interpretação, e essa seria imprevisível (p. 1270). Aponta, ao final, para a moderação, nos termos do aviso de Gadamer, no posfácio de Wahrheit und Methode: “Seria mau hermeneuta aquele que imaginasse que a ele pertence a última palavra”. Com certeza, a moderação, tão exaltada por Aristóteles e a tradição ocidental, vale como caminho seguro, mormente em matérias distantes da evidência cartesiana das ideias claras e distintas.

Considerações finais

Os destaques feitos até aqui não pretendem mais do que despertar a curiosidade para toda a obra, inclusive para os capítulos não mencionados, por motivo de espaço. Trata-se de uma obra que merece não apenas ser lida, como também estudada, pelo alto valor de seu conteúdo quase enciclopédico. As lacunas mencionadas pelo organizador com certeza serão preenchidas em alguma reedição. Talvez até, na questão das relações internacionais, ou na da filosofia, uma referência à importante contribuição recente de John Rawls, Alasdair MacIntyre, Charles Taylor e outros. Como o trabalho está, porém, já comprova à saciedade, relativamente à oportunidade de sua publicação, o que a coautora Vilma Figueiredo afirma da ciência, em si inexaurível, em relação à qual “se pode afirmar algo sem que se saiba tudo” (p. 1245). O dito já é mais do que suficiente para atrair não só o leitor comum, a exemplo deste da nota bibliográfica, mas também o estudioso de cada área, inclusive o especialista.

José Nedel – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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A causa sagrada de Darwin – DESMOND; MOORE (FU)

DESMOND, A.; MOORE, J. A causa sagrada de Darwin. Rio de Janeiro: Record, 2009. Resenha de: JÚNIOR, José Costa. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.13, n.2, p.209-212, mai./ago., 2012.

Os historiadores Adrian Desmond e James Moore buscam neste volume, amparados em uma ampla pesquisa documental, mostrar que uma causa humanista muito profunda levou Charles Darwin a desenvolver a teoria científica mais extraordinária sobre a origem e a manutenção das espécies. Os autores, que escreveram uma biografia de Darwin (Desmond e Moore, 2000), apresentam aqui a tese de que “a teoria da evolução humana não foi a última peça do quebra-cabeça de Darwin, mas sim a primeira” (pag. 14). O objetivo do livro é mostrar que o horror de Darwin à escravidão foi uma motivação de fundo para que o naturalista inglês concebesse a teoria da evolução das espécies através da seleção natural. Nesse sentido, essa motivação inicial deu-se, em parte, devido à intensa preocupação de Darwin com a unidade da espécie humana e uma ampla noção de irmandade entre os homens. A brutalidade da escravidão, que transformava os negros em outra espécie, uma “besta a ser algemada”, revoltava Darwin, e tal sentimento foi a base para a desconfiança de que podemos todos ter uma única origem.

O livro é dividido em 13 capítulos, detalhados com a presença de diversos personagens históricos inseridas no contexto da construção da teoria de Darwin: o avô Erasmus, o capitão Fitzroy, a esposa Emma, os companheiros Lyell e Hooker e o preconceituoso Agassiz. No capítulo 1, O negro retinto, um amigo íntimo, é revelado que Darwin mantinha uma grande amizade com um assistente negro em Cambridge. Trata-se de um pano de fundo para explicar como a escravidão exemplificava atrocidades absolutamente deprimentes. Darwin conheceu na viagem do Beagle (1831-1836) aquilo que foi a maior migração forçada de seres humanos ao longo da história e passou a combater a ideia de que os negros eram uma espécie diferente e inferior.

Já no capítulo 2, Crânios da raça dos imbecis, procura-se mostrar como a expansão europeia do séc. XIX levou ao contato com diversos povos, cuja aparente falta de sofisticação induziu o europeu a enaltecer cada vez mais sua própria história. Nesse contexto, surge a frenologia, uma pseudociência que defendia a possibilidade de definir características morais e intelectuais dos indivíduos a partir de medições cranianas. Para Darwin, tratava-se de “hipótese fantástica e absurda”.

No terceiro capítulo, Um único sangue em todas as nações, os autores apresentam o Espírito de Cambridge, onde Darwin começou sua vida acadêmica. A ciência era vista como complemento do cristianismo, e todas as criaturas deveriam ser respeitadas como criaturas de Deus. O homem seria uma espécie “à parte”, com alma imortal e responsabilidade por sua conduta. Na década de 1830, com a chegada dos liberais ao poder, tem início uma exigência de abolição da escravidão nas colônias inglesas, através do Abolition Act de 1833, que, no entanto, garantia apenas a abolição para crianças de até 6 anos de idade. Nesse contexto, Darwin parte para a sua grande viagem, na qual veria o sofrimento dos escravos na América, a maioria deles trabalhando para empresas inglesas. É o que nos é apresentado no quarto capítulo, A vida nos países escravagistas.

Darwin não foi um fanático apologista da causa, tendo apenas aceitado sua “herança moral”. Sua família e comunidade próxima sempre foram abolicionistas. O contexto da viagem do Beagle era formado pelos privilégios comerciais da Inglaterra e por sua Marinha forte. O capitão do Beagle, Robert Fitzroy, extremamente conservador, aceitou o então jovem liberal Charles Darwin em seu barco. O contato com o pluralismo cultural levou o jovem Charles a pensar a unidade da humanidade e o significado disso para as relações entre os homens. A origem da aparente desigualdade entre os homens poderia ser simplesmente a adequação aos diferentes ambientes existentes no planeta. Darwin começou, então, a compreender o papel da relação entre o ambiente e as necessidades das espécies.

No quinto capítulo, A origem comum: do pai do homem ao pai de todos os mamíferos, lemos que a imagem que Darwin tinha de uma natureza em transformação era extremamente peculiar. As raças humanas estavam unidas pelo sangue: muitos galhos de uma árvore que confluíam em um único ancestral. Nesse sentido, a pergunta mais importante, para além da ancestralidade comum, era: como surgem as diferenças na espécie humana? Uma origem ancestral era possível, pois somos semelhantes na dor, doença, morte, sofrimento e fome. Entretanto, havia uma arrogância cósmica dos humanos que separava os humanos “divinos” de criaturas bestiais. Para Darwin, os seres humanos não eram os seres absolutos nem a finalidade da natureza: “É um absurdo dizer que um animal é superior ao outro”. As espécies dividem-se através de adaptações, porém não houve tempo para a espécie Homo sapiens sapiens dividir-se em espécies. É interessante ressaltar que os resultados científicos que temos hoje para a negação da existência de raças são bem próximos da argumentação darwinista: muitos autores defendem que não houve tempo para que a espécie humana tenha originado raças (Pena e Birchal, 2005-2006). Nesse debate, a luta antiescravagista mudara sua atenção para o sul dos Estados Unidos, com o arrefecimento da escravidão nas colônias inglesas, e os diversos conflitos na região, que motivaram uma guerra, chamaram a atenção de Darwin. Também durante essa época, Darwin começou a compreender as limitações da teoria da seleção natural para o âmbito das diferenças entre os humanos. Uma teoria complementar seria necessária para explicar adequadamente tais variações.

No capítulo 6, A hibridização dos seres humanos, os autores apresentam o contexto da crítica ao impacto da “civilização” em certas sociedades: onde quer que os europeus tenham chegado, foram arautos do extermínio das tribos nativas. As invasões europeias acabavam por forçar uma miscigenação nas tribos do interior, na visão de Darwin. Nesse ponto, Darwin tem contato com a tese de Malthus acerca das limitações na produção e sente a necessidade de ter mais cuidado ao tratar das características da humanidade.

Já no sétimo capítulo, temos um relato da viagem de Lyell aos Estados Unidos, onde encontrou “homens mais preocupados com a santidade da propriedade do que com os direitos sagrados do homem”. Intitulado Essa questão mortalmente odiosa, mostra como Lyell não abriu seus olhos para o horror, como acontecera com Darwin no Brasil. Em 1840, Darwin fecha seus Notebooks, que continham informações relevantes sobre o processo evolutivo; entretanto, seu trabalho sobre a origem comum das espécies só seria publicado “sobre seu cadáver” e alguém competente deveria editar o ensaio, e este editor seria justamente Lyell. Para Lyell, “uma lei superior que governa a criação das espécies pode ajudar a explicar as formas de distribuição da vida nas rochas, mesmo que essa lei possa continuar um mistério para sempre”. Assim, observando as diversas nuances raciais da América, Lyell entende que “se todos fossem membros da mesma espécie, haveria esperança”.

No capítulo 8, Animais domésticos e instituições domésticas, é apresentado o debate entre “unitaristas” (defensores da origem comum das raças humanas) e “pluralistas” (defensores da origem em separado das raças humanas), que se define pelo embate entre a analogia e a flexibilidade das espécies domésticas e dos híbridos. Para Darwin, somente sua teoria evolutiva poderia resolver a controversa questão do hibridismo. A exuberância do tema das raças humanas, a anatomia, a fisiologia e a fertilidade inter-racial apontavam que o negro e o branco eram membros da mesma espécie. Porém, uma resposta fatual mais ampla era necessária para a confirmação da unidade humana.

No nono capítulo, Ai, que vergonha, Agassiz!, conhecemos o homem que foi responsável por fazer Darwin manifestar-se efetivamente a respeito da humanidade: Louis Agassiz, um dos mais respeitados naturalistas da América de então, tornou-se o maior rival de Darwin. Agassiz era a síntese de um homem da ciência: independência, objetividade e espiritualidade, com um pouco de democracia, e autor “dos argumentos mais convincentes em favor da imutabilidade das espécies”. Tinha repugnância pelos negros, que, segundo ele, “ameaçavam o futuro dos EUA”. Defendia que o local de origem de uma espécie era “determinado pela vontade do Criador”, e não pela dispersão e adaptação de um tronco originário comum. A origem comum humana seria uma evolução “condenável e ateia”.

No capítulo 10, A contaminação do sangue negro, os autores apontam que enquanto Darwin colocava suas ideias no papel, um conflito começava nos EUA: o embate entre republicanos do norte antiescravagistas e democratas sulistas pró-escravidão. Uma defesa viável da unidade humana, a alternativa às criações múltiplas de Agassiz, estava começando a aproximar-se da “origem comum” evolutiva de Darwin. A crença de Darwin na transmutação era muito forte, mas, como transformar insights antigos numa teoria sólida sobre as origens raciais? Talvez a resposta estivesse na diferença entre os sexos humanos. A seleção sexual poderia explicar por que a pele humana era mais útil nos climas tropicais.

Essa possibilidade é explorada no capítulo 11, A ciência secreta separa-se de sua causa sagrada. Com a chegada de um manuscrito de Wallace em 1858, Darwin temia que “sua originalidade fosse esmagada”. Hooker e Lyell garantiram a primazia dos escritos de Darwin (1854 e 1857), com a concordância de Wallace. Enquanto forma de explicar a criação, A origem das espécies “insultaria o Gênesis” de qualquer maneira, e falar sobre raças humanas poderia comprometer ainda mais a aceitação da seleção sexual. Provar que as raças tinham uma origem comum era provar que senhor e escravo tinham uma origem comum, e tal conclusão acabaria finalmente com essa atrocidade. Assim, as diferenças raciais entre os descendentes eram em parte naturais, em parte artificiais em relação aos animais domésticos. Mas, em última instância, todos derivavam de uma única espécie muita antiga. Darwin resolveu um problema que polarizara a ciência. No entanto, sua resolução alimentava forte antagonismo social: “O mundo teria muita dificuldade para engolir a seleção natural” e suas consequências para a humanidade.

O capítulo 12, Os canibais e a confederação de Londres, apresenta a Sociedade Antropológica de Londres, fundada em 1863, durante a Guerra Civil nos EUA, onde não havia lugar para ideias de que o negro é “um irmão”. Entretanto, a Sociedade Antropológica era o único órgão de Londres que tolerava debates sobre o darwinismo. Nesse contexto, Darwin enfrentava a perspectiva desagradável de publicar ele mesmo sua teoria da seleção sexual, como explicação das variações das raças, oriundas de um tronco comum.

No último capítulo, intitulado A origem das raças, os autores mostram como, em 1866, Darwin reuniu coragem para discutir as origens raciais humanas, explicando como a competição entre os machos e as escolhas das fêmeas produziram as raças humanas a partir de uma espécie ancestral e como homens e mulheres escolhiam traços desejáveis em seus pares. O fundamento de A origem do homem sempre foi a seleção sexual, justificada pela evidência do espectro zoológico. Darwin nunca capitularia nessa questão fundamental, de tão essencial que era para a crença de uma vida inteira na “fraternidade humana”. Darwin encerra o livro propondo que, “finalmente, quando os princípios da evolução forem aceitos pela maioria, a controvérsia entre monogenistas e poligenistas vai ter uma morte silenciosa da qual ninguém vai se dar conta” (Darwin, 1974, p.216). Talvez ele não imaginasse que não era apenas essa controvérsia que morreria.

Uma observação importante em relação ao livro é como ele exemplifica a relação entre ciência e moralidade. Este debate é bastante atual e remete às disputas entre filósofos e sociobiólogos: qual é a relevância da compreensão de nossa constituição biológica para o âmbito da moral? As ciências se ocupam do que é: os fatos constituem a referência empírica das teorias científicas. Já a moral está ligada a um trabalho de reflexão sobre hábitos, costumes e ações. Assim, a última analisa as origens e os fundamentos dos costumes que regem e articulam fatos, normas e valores e não deve confundir-se com o domínio das proposições científicas, conforme Hume já nos alertou (Hume, 2001). Entretanto, apesar do conhecimento científico não fundamentar valores, é capaz de esclarecer erros e preconceitos, desempenhando um papel libertador no exercício das escolhas morais, ao contrário das teorias que buscam, a partir de fatos, fundamentar valores, como algumas linhas da sociobiologia e o darwinismo social. A ciência pode trazer elementos que contribuam para a reflexão e ampliar o campo no qual possamos exercer nossa liberdade. É o que fez Darwin, segundo os autores de A causa sagrada de Darwin, mostrando como um cientista pode afastar certas práticas morais deturpadas e mudar para sempre o lugar do homem na natureza.

Referências

DARWIN, C. 1974. A origem do homem e a seleção sexual. Tradução de Attílio Cancian e Eduardo Nunes Fonseca. São Paulo, Hemus Livraria Editora, 715 p.

DESMOND, A.; MOORE, J. 2000. Darwin: a vida de um evolucionista atormentado. Tradução de Cynthia Azevedo. São Paulo, Geração Editorial, 672 p.

HUME, David. 2001. Tratado da natureza humana. Tradução de Serafim da Silva Pontes. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 740p.

PENA, S.; BIRCHAL, T. 2005-2006. A inexistência biológica versus a existência social de raças humanas: pode a ciência instruir o etos social? Revista USP, Vol. 68: pp. 10-21.

José Costa Júnior – Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de Filosofia Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: [email protected]

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Representing Capital – JAMESON (FU)

JAMESON, F. Representing Capital. London/New York: Verso, 2011. Resenha de: FLECK, Amaro de Oliveira. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.13, n.1, p.90-94, jan./abr., 2012.

O novo livro de Fredric Jameson, Representing Capital: A Commentary on Volume One, tem por finalidade oferecer uma releitura do primeiro livro de O Capital de Karl Marx. A obra está dividida em sete capítulos, sendo os três primeiros uma apresentação central da argumentação marxiana – o primeiro capítulo é dedicado inteiramente à primeira seção, o segundo trata da segunda à sétima e o terceiro unicamente da oitava (a edição de O Capital em língua inglesa contém oito seções, e não sete, como as traduções em português e o original em alemão, sendo a oitava os dois capítulos finais, que, na edição em português e no original alemão, pertencem à sétima seção). Os três capítulos posteriores são análises detalhadas da questão do tempo (o quarto), do espaço (o quinto) e da dialética (o sexto), e o capítulo final é um rápido estudo sobre as conclusões políticas a serem tiradas de um livro que, segundo Jameson, não é ele mesmo político. Se O Capital não é um livro político, que será então? Ora, segundo Jameson, este não é um tratado filosófico (pois não lida primariamente com questões de verdade), e tampouco um econômico, no sentido especializado da maioria dos departamentos universitários; não tem por objetivo formular esta ou aquela concepção de capital, nem mesmo é um livro sobre trabalho; mas sim, em uma declaração que o próprio Jameson chama de escandalosa, é um livro sobre desemprego (retornarei a esta afirmação no último parágrafo da presente resenha). A questão da representação, que já aparece no próprio título da obra de Jameson, se refere ao fato de o capitalismo não ser visível como tal, de este ser uma totalidade que só é perceptível através de seus sintomas. Cada representação que se faz dele é, portanto, parcial, e somente por intermédio de uma pluralidade de perspectivas pode-se abordá-lo. Deste modo, a pesquisa não visa exaurir a totalidade, mas sim chegar a seu centro ausente utilizando distintas abordagens incompatíveis, tal como o “método” žižekiano da visão de paralaxe.

O primeiro capítulo, intitulado “o jogo das categorias”, discute a primeira seção da obra marxiana, seção esta que, segundo Jameson, é um tratado autônomo completo, tal como “o ouro do Reno” frente à tetralogia do anel wagneriana. Esta primeira seção lida com um enigma, o enigma de como coisas qualitativamente diferentes podem ser quantitativamente equiparadas, isto é, a velha questão da identidade e da diferença, porém agora remetida ao problema concreto do intercâmbio de mercadorias. E eis um dos pontos altos, a meu ver, do livro de Jameson: em vez de resolver falsamente o problema, aceitando o dogma marxista mas não marxiano de que este enigma é resolvido quando se percebe que a diferença qualitativa das mercadorias revela uma identidade do trabalho indiferenciado que subjaz nestas, Jameson segue atentamente a argumentação marxiana e nota que o próprio Marx não resolve tal enigma, mas o deixa em suspenso, de modo que “o quiasmo prevalece no estilo de Marx” (p. 23). Este problema não resolvido é transmudado na seção seguinte em um novo enigma, enigma este que ocupará as seções centrais de O Capital. De tal modo, conclui Jameson: “Toda a seção um pode então ser entendida como um ataque em bloco à ideologia do mercado, ou, se preferires, como uma crítica fundamental do conceito de troca e, na verdade, da verdadeira equação de identidade como tal” (p. 17).

“A unidade dos opostos”, capítulo seguinte do livro, começa com a transformação do enigma da equivalência do qualitativamente distinto no mistério do aumento do valor, isto é, de “como um lucro pode ser feito da troca de valores iguais?” (p. 47), sendo que este é o verdadeiro enigma a ser resolvido (o primeiro, diz Jameson, era uma falsa questão, falsamente resolvido com a aparição do dinheiro, que cristaliza a relação social que envolvia aquela questão). A esfera da circulação, na qual a troca ocorre, é insuficiente para resolver este enigma. Torna-se necessário, assim, analisar como as mercadorias são produzidas, aliás, torna-se necessário perceber a peculiaridade de uma mercadoria sui generis, a força de trabalho, que cria, na esfera da produção, mais valor do que aquele que é pago por ela na esfera da circulação. Isto é, o capitalista paga um tanto para contratar o trabalhador, mas este, durante o tempo no qual é contratado, cria mais valor do que o tanto inicial que foi pago por ele. O tom das quatro últimas seções analisadas neste capítulo (a saber, da quarta à sétima, mas que se manterá na oitava) é o que dá nome a ele. Segundo Jameson, há uma unidade dos opostos, de dois clímax antagônicos, positivo e negativo, otimista e pessimista, heroico e trágico. Assim Marx tratará a cooperação, a manufatura e a maquinaria, os aumentos da produtividade do trabalho, tanto com admiração quanto com pesar, notando que o progresso traz miséria e a riqueza privação. Jameson aponta ainda para o fato de Marx fechar a porta para regressões nostálgicas de formas mais simples e mais humanas de produção, diferentemente das críticas mais tradicionais ao capitalismo; mais tarde (no quarto capítulo), Jameson notará que, ao contrário do antimodernismo de Heidegger que propõe superar a alienação da técnica por algum modo de regressão, é justamente a alta produtividade introduzida pela maquinaria que poderia permitir um sistema econômico radicalmente diferente. Por fim, Jameson fala que os capitalistas nunca são o sujeito da história, mas suportes (Jameson cita o termo alemão, usado diversas vezes por Marx, Träger, também traduzido como “portador”) do capital, algo que, segundo ele, Marx nunca utiliza para se referir ao proletário (mas voltarei também a esta questão no parágrafo final).

“História como coda” (“coda” denota a seção conclusiva de uma composição, o seu arremate), o terceiro capítulo do livro de Jameson, que termina a seção expositiva do primeiro livro de O Capital, é um estudo focado na oitava seção da referida obra marxiana, parte esta que, segundo Jameson, pode também ser lida como um tratado autônomo, e mantendo a analogia musical, que vê na primeira seção uma “abertura” independente, este é a “coda”, o arremate, um capítulo propriamente histórico, ou, como o próprio Jameson afirma, “aquilo que geralmente tem sido estigmatizado como ‘filosofia da história’ – isto é, uma narrativa dos vários modos de produção, uma história das histórias” (p. 74). Neste capítulo, Jameson expõe a genealogia marxiana do capital, apontando para os processos de acumulações primitivas (conseguidas, em grande parte, com a caça de escravos no continente europeu e com o trabalho escravo nos trabalhos de mineração feitos no continente americano) que criaram a possibilidade de um mesmo capitalista empregar simultaneamente um grande número de assalariados, sendo que é a venda da força de trabalho por parte do trabalhador para o proprietário dos meios de produção que marca o começo do capitalismo, nos séculos XVI e XVII. Jameson observa também que “estruturas não capitalistas coexistem com estruturas capitalistas” (p. 84), de tal modo que a passagem do modo de produção feudal para o capitalista não é súbita, mas um longo processo transicional. Seguindo a proposta do livro, que é mostrar que há dois clímax antagônicos que se interpõem ao longo da obra, Jameson irá apontar para o fato de haver duas suposições acerca do final do capitalismo, uma heroica, a outra cômica. O final heroico está no término do capítulo sobre “a assim chamada acumulação primitiva”, e consiste na “expropriação dos expropriadores”, na transformação da propriedade privada capitalista em propriedade social; já o final cômico está no exemplo do infeliz Sr. Peel (no começo do capítulo final de O Capital, sobre “a teoria moderna da colonização”), um capitalista que migra para a Austrália com 3 mil trabalhadores para montar uma indústria, mas que vê seus trabalhadores se dissiparem tão logo chegam ao novo mundo, mundo este no qual encontram terra fértil barata em vez das relações inglesas de produção.

O quarto e o quinto capítulo de Representing Capital, denominados, respectivamente, “Capital em seu tempo” e “Capital em seu espaço”, tratam, como o título aponta, das questões da temporalidade e da espacialidade do sistema capitalista. A partir da observação de Althusser de que cada modo de produção específico produz e oculta a temporalidade apropriada a ele, Jameson aponta para o fato de haver uma dualidade no tempo capitalista na qual o capital tanto produz mercadorias quanto reproduz a si mesmo concomitantemente, de modo que o capital “oblitera os vestígios de sua própria pré-história” (p. 105), transformando-se a si mesmo em algo aparentemente “natural”. Se o tempo, segundo Jameson, corresponde à dimensão da quantidade, já que é ele que mede o valor de cada mercadoria, o espaço corresponde, portanto, à dimensão da qualidade. Com esta afirmação, Jameson visitará os capítulos mais “empírico-descritivos” da obra marxiana, revelando a precariedade das condições de trabalho nas apertadas fábricas capitalistas, assim como o modo farsesco pelo qual os capitalistas seguiam a legislação que regulava suas atividades, criando escolas, por exemplo, nas quais o próprio professor assinava em “x” por ser analfabeto.

O sexto capítulo, “Capital e a dialética” – a meu ver o outro ponto alto do livro de Jameson – é uma forte defesa da dialética contra seus detratores, em especial contra aqueles que querem ler Marx analiticamente (a escola do “marxismo analítico” de Cohen, Roemer e Elster), estruturalmente (tal como Althusser), ou a partir do historicismo (exemplificado com Karl Korsch). Jameson insiste sobre a dimensão antagônica do capitalismo, apresentada por Marx de modo positivo e negativo simultaneamente, de modo que sofrimento humano e alta produtividade tecnológica, vidas desperdiçadas e progresso científico, possam ser entendidos como fenômenos oriundos de um mesmo processo, processo este que só quando apresentado dialeticamente consegue explicar o antagonismo como tal (Jameson chega mesmo a nomear o antagonismo como “lei geral absoluta”, a unidade da produção capitalista com o desemprego). A negatividade e a contradição tem um papel central em O Capital, e privá-lo destas categorias, algo necessário nas leituras não dialéticas, conduz a “conclusões socialdemocratas de um tipo familiar, a saber, bem-estar, criação de novos tipos de ocupações, e outros remédios keynesianos” (p. 129).

“Conclusões políticas”, capítulo final da obra, volta a defender a ideia de que O Capital não é um livro político, seja no sentido de visar a uma prática, estratégia ou tática política, tal como os livros de Lênin, Maquiavel, ou mesmo do Marx do Manifesto comunista; seja no sentido de uma teoria política, algo que, para Jameson, é idêntico à teoria constitucional, desde sua origem em Aristóteles e Políbio. Mas não ser um livro político, para Jameson, é antes uma vantagem do que uma desvantagem. Segundo o referido autor, a centralidade da leitura do primeiro livro de O Capital deve ser o conceito de desemprego, já que Marx “mostra que o desemprego é estruturalmente inseparável da dinâmica de acumulação e expansão que constitui a verdadeira natureza do capital” (p. 149). Marx assim mantém em aberto duas possíveis experiências políticas resultantes da leitura de sua obra, como já notara Korsch (algo que, mais uma vez, remete ao antagonismo que o perpassa): por um lado, um voluntarismo oriundo da piedade pelas vítimas do sistema capitalista e da indignação frente a tal sistema; por outro lado, um fatalismo, associado a um cinismo passivo de desesperança e impotência frente este mesmo sistema todo-poderoso. Jameson, contudo, altera esta dualidade em outra, a saber, a tensão estrutural notada por Althusser entre as categorias de dominação e de exploração. O autor defende que se deve dar ênfase à categoria de exploração, que resulta em uma crítica ético-moral, frente à categoria de dominação, centralmente política, de tal modo que a balança tenda mais para o socialismo, resultante da crítica radical da exploração econômica do que simplesmente à democracia, resultante da crítica radical à dominação política.

Se, por um lado, a meu ver, o livro de Jameson tem a virtude de reapresentar o conteúdo do primeiro livro de O Capital de um modo claro e sucinto, com ótimas observações quanto ao método e à exposição da obra marxiana, além de instigantes e ousados comentários que convidam a revisitar uma obra que muito ainda tem a dizer; por outro lado, parece-me inegável que o autor comete alguns deslizes e que algumas de suas interpretações são, no mínimo, improváveis. Quando Jameson diz, por exemplo, que Marx só se refere ao capitalista como “suporte” do capital, e nunca atribui ao proletário a mesma função, ele deixa de perceber que Marx usa o adjetivo “agente” e “sujeito do processo” (ou ainda “sujeito automático”) para a própria categoria do capital, ignorando assim a passagem do capítulo “A reprodução simples” na qual Marx diz: “Do ponto de vista social, a classe trabalhadora é, portanto, mesmo fora do processo direto de trabalho, um acessório do capital, do mesmo modo que o instrumento morto de trabalho”(Marx, 1985, p.158, ênfase minha). Também, ao afirmar que O Capital é um livro sobre desemprego, Jameson reduz todo o antagonismo estrutural do capitalismo, que ele tão bem descreve, a uma única dimensão, obliterando assim as demais, como se o capitalismo superasse sua própria contradição fundante no momento que assegurasse o pleno emprego, algo que a social-democracia, que Jameson tanto critica, algumas vezes efetivamente conseguiu. O Capital é um livro sobre um processo estruturante das sociedades modernas ocidentais (a saber, o próprio processo capitalista) e que possui implicações políticas, filosóficas e econômicas, que são desdobradas ao longo do primeiro livro desta obra. Nada se ganha centrando sua leitura na questão do desemprego, um tópico sem dúvida importante, mas não por isso prioritário. Por fim, Jameson não consegue deixar claro no que concorda e no que discorda frente ao marxismo mais tradicional, algo problemático para um livro que se apresenta como uma releitura; não dialoga com as leituras mais recentes (e quiçá mais interessantes) da obra madura marxiana (como Moishe Postone, Christopher Arthur, Tony Smith, dentre tantos outros), dando um tom antiquado ao texto (o comentário de referência, ao qual ele se aproxima e distancia ainda é Althusser); e deixa diversas questões em aberto (Qual a dominação específica do capitalismo? Qual a importância da questão das classes? Por que a categoria de dominação é política e sua crítica conduz à democracia e não ao socialismo, ou, melhor ainda, a um socialismo democrático?). Enfim, com altos e baixos, o livro de Jameson deve servir, ao menos, para atiçar os debates entre aqueles que renovam a crítica ao capitalismo.

Referências

MARX, K. 1985. O Capital: Livro I, Volume II. São Paulo, Nova Cultural, 158 p.

Amaro de Oliveira Fleck – Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Florianópolis, SC, Brasil. E-mail: [email protected]

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Kierkegaard: construção do estético – ADORNO (FU)

ADORNO, T. Kierkegaard: construção do estético. São Paulo: Editora da UNESP, 2010. Resenha de: SILVA, Elias Gomes da. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.12, n.3, p.292-297, set./dez., 2011.

Este livro de Theodor W. Adorno surge no mercado editorial brasileiro como pressuposto e reconhecimento de que o autor alemão foi responsável por uma experiência intelectual cujos aportes teóricos são postos em um ambiente de fecundidade e fronteira (p. 7). Diversas obras foram publicadas sobre o pensamento de Sören Kierkegaard nas últimas décadas, inclusive muitas na América Latina. Estes textos, enquanto produções científicas, preferencialmente, são desenvolvidos a fim de estabelecer uma investigação pautada por uma postura plural, onde o que predomina em última instância é a tentativa de demonstrar a originalidade que compõe o entorno do complexo pensamento do autor. A tradução e publicação dessa obra de Adorno se comprometem com a maximização e atualização dos debates entre diversos pesquisadores no território nacional, tanto com aqueles que se propõem estudar a obra de Kierkegaard, como também com a comunidade adorniana como um todo.

Preliminarmente, a obra está estruturada e dividida em três partes principais (p. 11). Na primeira parte, o leitor se depara com a tese de habilitação de Adorno ao ensino superior na Universidade de Frankfurt am Main, detidamente elaborada entre os anos 1929 e 1930, contendo também as reestruturações estabelecidas pelo próprio Adorno e publicadas em 1933 nas quais o mesmo se propôs apresentar algumas pontuações sutilmente diferenciadas. Na segunda e terceira parte do livro, foram inseridos dois anexos, onde o autor pode demonstrar alguns apontamentos e novas formulações adquiridas ao longo de sua vida acadêmica e, sobretudo, em sua maturidade. Dentro dessa estruturação tripla, vejamos a primeira parte, cujo conjunto de textos é mais extenso.

Na primeira parte do livro, temos os seguintes capítulos: Exposição do estético, Constituição da interioridade, Explicação da interioridade, Conceito do existir, A lógica das “esferas”, Razão e sacrifício e Construção do estético.

No primeiro capítulo (Exposição do estético), Adorno tenta demonstrar a base que compõe a metodologia utilizada por Kierkegaard na exposição de seu pensamento. Em sua explicação, a autor alemão afirma ter encontrado o fio condutor que possibilita uma maior compreensão do filósofo dinamarquês. Para Adorno, ao lermos a obra de Kierkegaard, a primeira coisa de que precisamos para compreendê-la é distingui-la da poesia propriamente dita (p. 12). Os fundamentos que norteiam a filosofia de Kierkegaard não podem ser necessariamente os fundamentos poéticos (p. 12). Objetivando advogar essa ideia, Adorno afirma que, em sua obra, o próprio Kierkegaard teria renegado a ideia de ser confundido com um simples poeta (p. 12). Embora a obra do nórdico esteja carregada de elementos poéticos, os mesmos devem ser entendidos como metáforas, estratégia e alegorias, que visam a atingir uma espécie de telos superior (p. 41). Adorno nos alerta dizendo que não poderíamos desconsiderar “[…] a seriedade estratégica de Kierkegaard se pretendesse anular a dignidade da palavra pelo recurso psicológico aos pseudônimos” (p. 40). Haja vista que a exposição do estético em Kierkegaard possui relevâncias filosóficas significativas, cujas figuras estéticas devem ser pensadas apenas como metáforas, estratégicas e alegorias objetivando um telos, que não se limita a simples narrativas poéticas.

No segundo e no terceiro capítulos, Adorno fala sobre o tema da interioridade. O mesmo nos é apresentado de duas maneiras: a Constituição da interioridade e a Explicação da interioridade. No primeiro caso, predomina a tentativa do autor de demonstrar que, na obra de Kierkegaard, o conceito de interioridade está estabelecido a partir de sua concepção de antropologia teológica. Adorno afirma que, para Kierkegaard, a existência humana está sobreposta sobre a ideia de ter que decidir sobre a verdade e não verdade do simples pensar apenas pelo recurso racional da existência pensante (p. 65). Ou seja, nele a interioridade não visa necessariamente à determinação da subjetividade, e sim um postulado ontológico, tendo em vista que a mesma não aparece como teor da primeira, mas, sobretudo, como o seu palco. Pensar o conceito de interioridade em Kierkegaard é entender que as matrizes de sua constituição só podem ser de fato efetivadas onde se reconhece a alienação do sujeito e do objeto (p. 71). Dessa alienação nascem as críticas da interpretação de Adorno sobre Kierkegaard. Através de uma dialética imanente, a chamada interioridade sem objeto projeta-se para uma “ontologia transcendente” cujo ideal é: “O eu producente é o mesmo que o eu produzido” (p. 73). Em Kierkegaard, a subjetividade sem objeto é extremamente dolorosa. Trata-se de uma espécie de interioridade que chora a sua perda (p. 77). O curso desse processo é vivido e ocorre na situação ou intérieur.

Na Explicação da interioridade (terceiro capítulo), Adorno se dedica a demonstrar que, embora o conceito de interioridade em Kierkegaard se remeta a uma esfera privada e que supostamente estaria liberta do processo de coisificação, mesmo assim esta, por sua vez, pertenceria necessariamente a uma estrutura social específica, ainda que de forma polêmica (p. 113). Adorno faz uma crítica dizendo que, ao negar a questão social, o dinamarquês ficara à mercê de sua própria posição social (p. 114). Estabelecendo uma espécie de “leitura marxista” de Kierkegaard, o autor afirma que o mesmo possui características de um “pequeno burguês” (p. 115), tendo em vista que sua ética autônoma da pessoa absoluta prova em seus conteúdos sua relatividade à situação própria da classe burguesa. Assim, Adorno nos diz: “O si mesmo concreto é para Kierkegaard idêntico ao si mesmo burguês” (p. 117). Já na segunda parte do mesmo capítulo, o autor tece alguns apontamentos quanto à origem do espiritualismo de Kierkegaard. Essa tese espiritualista recebeu o nome de “corpo espiritual”, onde, de maneira metafórica, os elementos corporais aparecem sob o signo do “significado” entre a verdade e a não verdade do espírito (p. 122). Em Kierkegaard, as figuras corporais aprisionam o espírito na aparência da situação e do intérieur, fazendo com que Adorno reconheça o teor mítico como componente essencial na filosofia de Kierkegaard (p. 123). Os desdobramentos desses pressupostos podem esclarecer diversos outros temas, tais como: “a relação da interioridade sem objeto como ontologia oculta” (p. 134), “o esconjuro dialético do paradoxo da fé como interior que é incomensurável com o próprio exterior” (p. 135), “a determinação da subjetividade como indiferença em relação à história exterior cujo fundamento ocorre na melancolia” (p. 140), entre outros.

No quarto capítulo, temos a definição do conceito de existir. De todos os conceitos de Kierkegaard, o mais conhecido é o de existir (p. 157), o que em tese não significa fácil compreensão. A concepção de existir na filosofia kierkegaardiana se estabelece a partir de sua polêmica com o “cristianismo oficial”, o que para Adorno faz com que a mesma perca a sua atualidade radical, transformando-se numa espécie de “situação mental” para a qual instituição religiosa e a vida do indivíduo há tempos já saíram da dialética por meio da qual Kierkegaard as encontrou ligadas, embora ainda permanecendo como potências inimigas (p. 157). Assim, a pertinência e a atualidade radical do conceito só podem ser de fato preservadas, quando desvinculadas majoritariamente da dogmática positiva e das controvérsias com o protestantismo. A pergunta de Kierkegaard sobre a verdade parece ser mais atual e urgente, quando se remete à realidade da existência [Dasein] sem interferência da tese dogmática (p. 157). O grande legado do conceito de existir encontra-se na questão ontológica. Para Adorno, a questão pelo sentido do ser-aí [Dasein] é o que hoje mais se busca extrair da leitura de Kierkegaard. Todavia, a utilização do termo ontologia para o autor dinamarquês só pode ser entendida polemicamente, ou seja, como sinônimo de metafísica. Pois, nota-se que o “[…] ser-aí não pode ser compreendido como modo de ser, nem mesmo em sentido “aberto” [“erschlossen”] a si mesmo” (p. 158). O que interessa não é a construção de uma ontologia fundamental, mas sim o estabelecer de um movimento que deve conduzir o indivíduo a uma interioridade sem objeto, cujo comprometimento mítico destina-se à liberdade de encontrar uma verdade paradoxal (p. 164). O conceito de existência não é interpretado literalmente como ontologia; para Kierkegaard, o indivíduo não é capaz por si mesmo de reconhecer seu próprio eu. A existência precisa ser conquistada. Como se diz: “[…] ela conjura sem imagens, para apossar-se dele em pura espiritualidade” (p. 168). A conquista da existência só é possível em um ambiente mítico. A existencialidade em um ambiente mítico desemboca na doutrina kierkegaardiana do desespero (p. 185).

Adorno, no quinto capítulo, descreve e analisa a questão da lógica das “esferas”. Nesse sentido, pretende abordar aquilo que é chamado de os modos de existência. O filósofo alemão denomina os mesmos de “sistema da existência”, fazendo a seguinte ressalva: por mais cuidadoso que seja em evitar para essa teoria o título de sistema filosófico, Kierkegaard acabará por revelar seu caráter sistêmico, sobretudo ao utilizar a palavra “esquema” ao se referir à sua doutrina das esferas (p. 194), advogando essa ideia de sistema, Adorno faz uma comparação com Kant dizendo: “[…] com esse esquema, podemos nos orientar sem sermos perturbados” (p. 194). Ainda nesse mesmo capítulo, o autor analisa a questão da origem das esferas, o que para ele possuiria necessariamente caráter hierárquico. (p. 197). As três esferas da existência, a estética, a ética e a religiosa, têm como “lógica operacional” o elemento dialético, cuja mutação deve ocorrer preferencialmente através do salto (p. 211). A esfera estética é a dialética não dialética voltada para fora de si mesma, enquanto que a esfera ética é a dialética não dialética voltada para dentro de si mesma (p. 196). No que diz respeito à esfera religiosa, Adorno afirma que se trata de uma dimensão existencial cuja fundamentação dialética é determinada pelo paradoxo da dúvida, que é representada pela fé e pela ideia de vida santa, apostólica, tal como Kierkegaard polemicamente demonstra (p. 211).

Adorno termina a primeira parte do livro com os seus dois últimos capítulos, que são: Razão e sacrifício e Construção do estético. No primeiro caso, temos a tentativa adorniana de demonstrar o “autoaniquilamento do idealismo” na obra de Kierkegaard. A noção de autoaniquilamento do idealismo tem como principal expoente Hegel. Adorno afirma que se trata do método dialético, onde a totalidade é recebida a partir da dinâmica de conceitos abstratos, onde jamais se contemplam ou resultam fenômenos individuais (p. 233). É esse método que Kierkegaard pretende criticar. Porém, para Adorno, embora Kierkegaard tenha escarnecido incansavelmente de Hegel, o mesmo seria muito mais parecido com ele do que gostaria de pensar (p. 234). Por exemplo: os elementos da “resignação infinita” que compõem a filosofia de Kierkegaard; ainda que hipoteticamente tente excluir essa suposta totalidade, o mesmo acaba, sem perceber, remetendo-se a totalidade. Seria algo profundamente semelhante aos projetos de Feuerbach em seu “conceito iluminista de homem”, como também ao pensamento que Marx desenvolveu, sobretudo as categorias do valor de troca e da mercadoria, que também conservam por certo a memória de totalidade como quintessência do conjunto de ações de todos os fenômenos da sociedade capitalista (p. 234).

Na Construção do estético, o autor fala da presença persistente da melancolia, que mesmo diante de todos os outros estádios, se encontraria ainda nos últimos escritos de Kierkegaard (p. 270). Isso ocorreria, porque o dinamarquês estabilizou as bases de seu pensamento voltado para uma espécie de “sacrifício existencial” (p. 290), cuja melancolia teria a difícil tarefa de estabelecer a devida mediação. Por esse motivo, a existência humana para Kierkegaard é considerada trágica (p. 278). A interioridade sacrifical busca desejosamente a reconciliação consigo mesma e com Deus, ou seja, o projeto de reconciliação da existência só pode ocorrer mediante o uso da melancolia-mediadora (p. 278). Assim, a construção do estético em Kierkegaard está determinada pelo desejo da reconciliação. Todavia, na medida em que o projeto de reconciliação possui dimensões de caráter teológico-metafísico, a doutrina kierkegaardiana da arte ficará subordinada indiscutivelmente a esse telos. Dito isso, para Kierkegaard o estético é determinado por imagens efêmeras (p. 280), onde o sacrifício existencial não atinge conjuro subjetivo (p. 285). Na esfera estética, o pathos da subjetividade não pode se autoreconciliar. Trata-se daquela região da aparência dialética, onde a felicidade é prometida historicamente como a decomposição da existência (p. 285). Por outro lado, Adorno também reconhece a estratégia de Kierkegaard de valorizar a arte como método filosófico. A rigor: “Quanto mais arte mais interioridade” (p. 292). A comunicação kierkegaardiana tem como principal regra a construção de um pensamento subjetivo, onde o locutor tenta exigir do receptor a autonomia de poder atentar para a forma intersubjetiva da comunicação (p. 292).

Os dois anexos inseridos na última parte do livro realçam a obra. O primeiro deles, A doutrina kierkegaardiana do amor, é de 1940 (dez anos após a defesa de sua tese). Trata-se da conferência para teólogos e filósofos do círculo americano de Paul Tillich. Nela o autor teve a ocasião de posicionar-se mais precisamente na temática da religiosidade. Para Adorno, a essência da obra de Kierkegaard está direcionada ao processo vivo da fé, devendo inclusive ser compreendida a partir de sua principal tese de que a subjetividade é a verdade (p. 311). Do início ao fim, através dos estádios da existência, a filosofia de Kierkegaard é estruturada na tentativa de levar o leitor à dialética de uma verdade teológica. Não se trata do trabalho de um simples teórico, que, após ter encontrado, se propõe ensinar, sistematizando o caminho. Ou seja, de forma existencialmente trágica, Kierkegaard se propõe alcançar o crístico, sem que ele próprio, de algum modo, tenha alcançado primeiro, tendo em vista, que o mesmo não partilha do típico otimismo da filosofia idealista, de poder, a partir de si mesmo, chegar ao absoluto.

Adorno se propõe tecer algumas afirmações sobre As obras de amor, publicada em 1874. A primeira delas é que, em Kierkegaard, o amor só pode ser de fato cristão, quando é capaz de amar cada homem por amor a Deus e numa relação com Deus (p. 314). A prática do amor transforma-se na qualidade da pura interioridade. Adorno interpreta a concepção de amor em Kierkegaard como uma determinação abstrata e universal, o que torna o objeto do amor indiferente. As diferenças individuais e comportamentais dos homens são reduzidas a meras determinações. Para Adorno, o mandamento cristão do amor (na versão de Kierkegaard) não conhece nenhum objeto. Ele diz: “A substancialidade do amor carece de objeto” (p. 314). O amor deve ser uma ruptura com a natureza (p. 315) Tendo em vista a sua relação com Deus, o mesmo deve significar a ruptura dos impulsos próprios do imediato. Dito isso, a doutrina kierkegaardiana do amor possui caráter totalmente abstrato (p. 323). Assim, para o filósofo alemão Kierkegaard teria tomado de “empréstimo” características da burguesia, para desenvolver o seu conceito universal de homem, empurrando-as para o cristianismo (p. 323). Adorno também reconhece o lado demoníaco desse tipo de amor, sobretudo no exagero da transcendência que ameaça a cada instante transmudar-se em algo sombrio, da humilhação do espírito diante de Deus na nua e crua hybris, para ele provar sua própria onipotência criadora com onipotência do amor (p. 316-317), fazendo com isso nitidamente oposição à doutrina kierkegaardiana do amor, onde não é permitido questionar o sagrado, mas sim submeter-se (p. 326-327). A esperança que Kierkegaard deposita no amor não é, porém, outra coisa senão a realidade encarnada da redenção (p. 338).

Finalizando o livro, temos o anexo II: Kierkegaard outra vez. Adorno agora se concentra, sobretudo, nos abusos cometidos contra a obra de Kierkegaard, ressaltando seu lado não conformista (p. 15). Pronunciado em 1963, ano de comemoração dos 150 anos do nascimento de Kierkegaard, o texto possuiu seis tópicos. No primeiro deles, Adorno apresenta Kierkegaard como testemunha e discípulo da verdade (p. 339). Nesse sentido, o autor não teria, em hipótese alguma, a pretensão obsessiva de ser uma espécie de “mestre-fundador” de nenhuma nova escola filosófica. Ou seja, “[…] ter seguidores, fundar uma escola, eram temas de zombaria para quem se designava como indivíduo” (p. 341). Se Kierkegaard, durante toda a sua vida, combateu a objetivação da filosofia como sistema, que subtrai dela a experiência do indivíduo, conseqüentemente o mesmo teria se contraposto também a essa moderna tentativa de seus interpretes, de elevar a sua “teologia” ao status de positiva (p. 342).

Nos demais tópicos do anexo, Adorno continua a sair em defesa de Kierkegaard, principalmente contra alguns pastores e filósofos que, naquela ocasião na Alemanha, haviam se apropriado da filosofia de Kierkegaard com o pressuposto de um padroeiro ou de uma espécie de mestre-fundador (p. 343). Através dos trabalhos de tradução de Christoph Schrempf, Theodor Haecker, a obra de Kierkegaard se tornou uma espécie de estandarte do protestantismo, sobretudo nos trabalhos do teólogo Karl Barth. Por outro lado, tendo em vista as duas camadas (teológicofilosófica) que compõem a obra de Kierkegaard, em meados dos 1920 suas reflexões foram destacadas por Heidegger e Jaspers, sendo direcionadas para uma ontologia antropológica (p. 344), legando com isso a Kierkegaard os atributos de um filosófico clássico. Para Adorno, essa trajetória de “vitória” constitui-se uma espécie de inverdade, sobretudo em relação às máximas e aos conteúdos doutrinários do próprio Kierkegaard (p. 347).

Todavia, para consolidar essa tese, Adorno afirmou a necessidade de pensar a filosofia de Kierkegaard, sobretudo, a partir de sua relação com Hegel (p. 350), o que, de fato, não constitui uma relação feliz. Na verdade, para o alemão, a maior parte dos elementos que compõem a obra de Kierkegaard possuiu algum tipo de “relação-de-instância” nos trabalhos de Hegel. Os principais são: a dialética, a mediação, o salto, a interioridade (como consciência infeliz). Elementos esses que, segundo Adorno, não teriam sido interpretados corretamente pelo próprio Kierkegaard. No sistema de Hegel, a consciência infeliz está antes nesse meio-termo onde o pensar abstrato entra em contato com a singularidade da consciência como singularidade (p. 352). Desse modo, de maneira irônica, Adorno chega a dizer que Hegel teria derrotado seu inimigo mortal póstumo (Kierkegaard), ao inventá-lo profeticamente, a partir do movimento de sua própria filosofia (p. 353).

Desse fato resulta que, para Adorno, a tese fundamental de Kierkegaard – de que a verdade é a subjetividade – deve ser compreendida como algo de caráter idealista, embora reconhecendo que Kierkegaard tentou paralisar essa realidade, hipostasiando-a sob o nome de paradoxo. Também nisso ele permaneceria, ainda que às avessas, um discípulo de Hegel, visto que tinha restrições à lógica da não contradição (p. 354).

Poderíamos dizer que, nesse anexo, embora Adorno reconhecesse como grotesca a apropriação da filosofia de Kierkegaard como “espinha dorsal” de um novo sistema teológico ou filosófico, em hipótese alguma ele muda o seu discurso, mas conserva a sua principal característica, estabelecendo uma leitura de Kierkegaard polêmica e não convencional.

Elias Gomes da Silva – Universidade Federal de Ouro Preto. Ouro Preto, MG, Brasil. E-mail: [email protected]

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A realização e a proteção internacional dos direitos humanos fundamentais – desafios do século XXI – BAEZ; CASSEL (FU)

BAEZ, N.L.X.; CASSEL, D. (Orgs.). A realização e a proteção internacional dos direitos humanos fundamentais – desafios do século XXI. Joaçaba: Editora UNOESC, 2011. Resenha de: HAHN, Paulo; PEZZELLA, Maria Cristina Cereser. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.12, n.3, p.290-291, set./dez., 2011

Dentre os diversos lançamentos da Editora Unoesc para o ano de 2011, a obra A realização e a proteção internacional dos direitos humanos fundamentais – desafios do século XXI merece um destaque todo especial. Ela é um dos resultados de um Intercâmbio Jurídico-Cultural e Projeto de Pesquisa Interinstitucional: Dimensões Materiais e Eficaciais dos Direitos Humanos Fundamentais entre instituições e pesquisadores dos Estados Unidos e do Brasil.

Inicialmente deram início a este Projeto de Pesquisa a Universidade do Oeste de Santa Catarina e o Center for Civil and Human Rights, da University of Notre Dame (EUA). Posteriormente, como decorrência desses trabalhos e pela importância da temática, o projeto teve aderência de outras instituições e culminou na formalização de um intercâmbio jurídico-cultural entre Estados Unidos e Brasil. Nos Estados Unidos uniram-se a este intercâmbio a Connecticut University, a Fordham University, a organização não governamental Due Process of Law Foundation e a Embaixada Americana. E no Brasil estas ações de intercâmbio foram também apoiadas pela Universidade Católica de Pernambuco, pela Escola da Magistratura do Rio de Janeiro e pela Embaixada Brasileira nos Estados Unidos. Em 2012, na ocasião de três grandes eventos internacionais nos Estados Unidos, o presente livro também será lançado em inglês.

Em consonância com a proposta do projeto de pesquisa, as atividades foram direcionadas para o estudo dos direitos humanos fundamentais e do multiculturalismo, bem como para os mecanismos de proteção transnacionais dessa categoria. Na base dessas iniciativas, duas grandes linhas de investigação foram constituídas: a primeira, voltada aos direitos fundamentais civis, concentrando-se nos recortes epistemológicos e pragmáticos de alguns direitos subjetivos constitucionalizados e condizentes à pessoa humana, quais sejam, os direitos de personalidade e da informação, não sem antes formatar bases cognitivas e reflexivas comuns a esta discussão, relacionadas à compreensão de dois fenômenos jurídicos e sociais inerentes aos aspectos desenhados, a saber: a constitucionalização dos direitos fundamentais civis e os níveis de implicação destes direitos nas relações privadas. A segunda linha de investigação está voltada aos direitos fundamentais sociais, com delimitação igualmente epistemológica e pragmática de alguns direitos sociais condizentes à pessoa humana, quais sejam, direito fundamental ao trabalho digno e direito fundamental à seguridade social, não sem antes formatar bases cognitivas e reflexivas comuns a esta discussão, relacionadas à teoria dos direitos fundamentais sociais e políticas públicas de efetivação dos direitos fundamentais sociais.

Esta obra está dividida em quatro grandes capítulos: o primeiro reúne diversos artigos que discutem temas relacionados aos direitos humanos fundamentais e ao multiculturalismo; o segundo capítulo do livro aborda os desafios dos direitos humanos fundamentais civis no século XXI; no terceiro capítulo a problematização central das reflexões diz respeito aos direitos humanos fundamentais sociais no século XXI. Por fim, no último e quarto capítulo, a reflexão acontece no âmbito da Transnacionalidade e proteção internacional dos direitos humanos fundamentais.

Trata-se, pois, de um livro crítico e prospectivo que contém aspectos importantes acerca da natureza, da hermenêutica e de políticas públicas sobre os direitos humanos fundamentais, destacando-se o seu processo de internacionalização e os mecanismos que surgiram para a sua proteção, tanto na esfera interna dos Estados quanto na seara transnacional. Tratar a temática dos direitos fundamentais pressupõe criar uma postura crítica face aos inúmeros questionamentos que dizem respeito ao seu desenvolvimento histórico e filosófico.

O início do processo epistemológico contextualiza-se num momento histórico, que remonta à Modernidade, na qual se destaca o filósofo John Locke como sendo o maior representante do direito natural. O pressuposto fundamental do direito natural se assenta no fato de que a legislação de um país, ou seja, o direito positivo, somente será válido quando respeitar os direitos naturais inatos dos homens, que o constituem por meio de um contrato social em que manifestaram a sua vontade. O ser humano possui um complexo de direitos naturais inatos que são: a vida, a liberdade e a propriedade. Esses direitos não são transferidos para a formação do corpo político no momento em que se estabelece o contrato social, que foi a origem do Estado moderno. São, portanto, preexistentes a todo ordenamento jurídico, são imprescritíveis, inalienáveis e dotados de eficácia.

Tanto em Locke como em muitos outros autores, já emerge a concepção do direito à diversidade individual e à diversidade cultural das comunidades humanas, surgindo tratados sobre a tolerância para com aquele que é e que pensa diferente. Este paradigma cultural encontra, na atualidade, o foro de interculturalidade ou, dito em outras palavras, no horizonte da teoria crítica dos direitos fundamentais: o reconhecimento da alteridade do outro em sua identidade pessoal e cultural. Este fato como parte da condição originária do ser humano vai positivando-se em textos constitucionais desde as grandes revoluções do século XVIII até alcançarmos uma nova concepção universal da dignidade da pessoa humana que se expressa pelo sempre mais inovador conceito de direitos fundamentais do ser humano em sua realidade histórica.

E é a partir do século XX que começa a crescer uma afirmação cada vez maior dos direitos fundamentais com os incontáveis movimentos e lutas sociais e as inúmeras declarações universais dos direitos humanos (os grandes marcos são: ONU em 1948, OEA em 1966 e União Europeia em 2001). No campo filosófico, o século XX causa um giro kantiano ao reafirmar a liberdade e a sua justificação pelo imperativo categórico, criando as teorias que justificam e fundamentam o mínimo existencial da pessoa humana; isso vem sendo dominante no campo da filosofia política e do direito nas últimas décadas do século XX.

Em suma, temos nessa edição uma série de artigos em torno dos direitos humanos universais que prestam uma valiosa contribuição para promover maior aproximação jurídica e filosófica entre os juristas e filósofos dos hemisférios Sul e Norte do continente americano.

Paulo Hahn – Universidade do Oeste de Santa Catarina. Chapecó, SC, Brasil. E-mail: [email protected]

Maria Cristina Cereser Pezzella – Universidade do Oeste de Santa Catarina. Chapecó, SC, Brasil. E-mail: [email protected]

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A construção do mundo histórico nas ciências humanas – DILTHEY (FU)

DILTHEY, W. A construção do mundo histórico nas ciências humanas. São Paulo: Editora da UNESP, 2010. Resenha de: KAHLMEYER-MERTENS, Roberto S. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.12, n.3, p.287-289, set./dez., 2011.

Sem uma vasta tradição de recepção e crítica no Brasil (e proporcionalmente pouco estudado mesmo na Alemanha, seu país natal), Wilhelm Dilthey (1883-1911) é apontado como um dos mais influentes pensadores na transição do século XIX para o XX. Filho de um pastor calvinista e criado no caldo de cultura aquecido por nomes como Bopp, Humboldt, Ranke, Ritter e Savigny, Dilthey lança as bases para uma análise muito lúcida sobre as ciências positivas em sua época. Tal exame preparou o terreno para autores que, mais tarde, seriam protagonistas da crítica às ciências nas primeiras décadas do século XX (é o caso de Spengler, com seu Decadência do Ocidente).

A influência de Dilthey sobre os seus contemporâneos se explica dado sua obra, desde muito cedo, ter se dedicado a um único escopo: a fundamentação das ciências humanas, fato que lhe garantiu antecipação e maturidade. Atestamos a precocidade de tal filosofia, cientes de que sua intenção já aparece na pauta do autor desde a juventude mais tenra, quando, no ano de 1850, com apenas 17 anos, Dilthey já acenava à necessidade de um movimento que tornasse possível “a constituição definitiva da ciência histórica e, por meio dela, as ciências do espírito”. Projeto filosófico entabulado na juventude, é este mesmo que vemos desenvolvido, com várias feições e de maneira pouco sistemática, nos trabalhos das décadas de 1890-1900, até às vésperas da morte do autor.

Em seus primeiros trabalhos, Dilthey toma Kant e Hegel por interlocutores (o segundo como alvo de contestação) e, apropriando-se do método hermenêutico de Schleiermacher, desenvolve algo que poderíamos chamar de “crítica da razão histórica”. Como a denominação anuncia, Dilthey visa a estender a intuição do projeto crítico kantiano ao domínio da história, passo que dependeria da determinação do estatuto do homem na constituição das ciências históricas. Assim, Dilthey investe na fundamentação das ciências do homem, da sociedade e da história, sabendo que é o âmbito da vida (isto é, um espaço vivencial total) que garante as percepções de um mundo constituído. Num outro período mais adiantado de sua obra, apostando no projeto de uma psicologia analítico-descritiva, Dilthey pretende uma fundamentação psicológico-gnosiológica das ciências (como nomeia seu comentador Eugenio Imaz). Em ambos os casos, contudo, está presente a preocupação em mostrar que as ciências do espírito, ou as assim chamadas ciências humanas, precisam estar fundamentadas num solo humano, para que, a partir daí, seus fenômenos possam ser compreendidos segundo um mundo vivenciado, não sendo mais abstrativamente explicados pelas ciências naturais, positivas.

Trazendo elementos tanto da temática da razão histórica quanto da psicologia, o ensaio A construção do mundo histórico nas ciências humanas é um trabalho de maturidade do filósofo. Também nele, Dilthey se mostra preocupado em estabelecer uma relação saudável entre as ciências da realidade histórico-social e as da natureza de modo que a primeira receba fundamentação adequada; é isso que se constata quando, já no início do primeiro capítulo, o filósofo propõe: “Nós precisamos procurar o tipo de relação existente nas ciências humanas com o estado de fato da humanidade” (p. 22). Essa afirmativa pretende mostrar o quanto dependemos de uma apreensão do lugar do homem na própria constituição da vida histórica, esta que, por sua vez, se engendra imediatamente a partir da percepção de uma conjuntura histórica específica.

Entendendo que as vivências humanas se manifestam e articulam essa rede histórica complexa, edificando um todo de referências (sendo estas tanto materiais quanto psíquicas), Dilthey anuncia que o presente fato nos defronta “com o problema acerca de como a construção do mundo histórico no sujeito torna possível um saber sobre a realidade espiritual” (p. 167). Sem dúvida, o tema do mundo histórico encontra no homem base para ser problematizado, pois o homem é o ponto de conexão de um determinado tempo e das visões de mundo que pertencem ao mesmo. Deste modo, o homem (e as vivências constituintes do estado de fato de sua humanidade) é o ser sobre o qual se assentaria primordialmente a vida histórica da totalidade.

Além dos tópicos referentes às vivências, abordados em nossa breve síntese, Dilthey ainda introduz em seu livro (entre a primeira parte e os diversos adendos que esboçam uma segunda) a exposição dos conceitos de hermenêutica, expressão, compreensão, interpretação e visão de mundo, todos decisivos ao projeto de sua fundamentação das ciências históricas e sociais.

Produto de um conjunto de conferências apresentadas na Academia Prussiana de Ciências, a obra foi publicada em 1910, e é contemporânea a outros ensaios de temática afim, entre os quais destacamos Ideias sobre uma psicologia descritiva e analítica (1907-08) (recomendado como entrada para leitura do outro). Por ter ficado inacabada, apenas composta por textos provisórios e indicações para prosseguimentos futuros, a obra em apreço possui caráter fragmentário (o leitor se deparará com ideias em aberto, com frases inconclusas e com o uso recorrente da expressão “etc.”, indicando pontos que ainda dependeriam de maior desdobramento conceitual).

Enfocando aspectos editoriais da publicação, A construção do mundo histórico nas ciências humanas é bem editorada e possui a elegante encadernação em capa dura típica da Coleção Clássicos UNESP.

A tradução (que orienta os propósitos desta resenha), assinada por Marco Antônio Casanova, cumpre com excelência a tarefa de trazer a obra de Dilthey ao português, mostrando-se, inclusive, a par dos cânones mais atuais dos estudos sobre o filósofo. Um exemplo disso está na adoção do termo “ciências humanas” para traduzir a expressão alemã Geisteswissenschaften (em vez do tradicional “ciências do espírito”). Essa plausível opção encontra precedente nas traduções de língua inglesa e endosso junto a especialistas, entre eles o exegeta alemão Matthias Jung que, em seu Dilthey uma introdução, assevera:

A tradução para o conceito de “ciências do espírito”, “ciências humanas”, expressa melhor a conexão de sentido da realidade sócio-histórica do que sua correspondente alemã, na qual a noção de “espírito” facilmente pode ser mal entendida como algo independente da lida com homens reais. O projeto diltheyano das ciências humanas deve ser livremente entendido não com um fim em si mesmo, mas como pertencente à conexão ampla de sua busca pelas possibilidades científicas de acesso à experiência necessária ao mundo da vida, a relação sujeito-objeto (Jung, 1996, p.8-9).

Não bastasse esse argumento, a opção também parece editorialmente acertada, uma vez que cria maior identidade com o público de alguns dos cursos universitários brasileiros, dos denominados cursos de ciências humanas.

Dotada de dois breves, mas substanciais, aparatos críticos, uma nota do tradutor e outra dos editores, a edição brasileira faz a cortesia de fornecer dados biobibliográficos do filósofo, como, por exemplo, a posição e importância do referido trabalho no panorama da obra. Esses subsídios favorecem, em muito, o acesso do leitor brasileiro a elementos do pensamento de Wilhelm Dilthey.

Referências

JUNG, M. 1996. Dilthey zur Einführung. Junius, Hamburg, 219 p.

Roberto S. Kahlmeyer-Mertens – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

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The necessary and the possible – LOUX (FU)

LOUX, M. The necessary and the possible. In: M. LOUX, Metaphysics: A contemporary introduction. 3ª ed. New York: Routledge, p.153-186, 2006. Resenha de: CID, Rodrigo. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.12, n.3, p.280-286, set./dez., 2011

Neste capítulo, Loux apresenta alguns problemas com relação às modalidades e algumas das relações entre elas e o vocabulário dos mundos possíveis, expondo as duas principais posições ontológicas com relação a tais mundos e às modalidades e com relação à natureza das modalidades, a saber, o possibilismo e o actualismo, defendidos respectivamente por Lewis e Plantinga. Essas são teorias inconsistentes entre si, que intentam nos dizer se os mundos possíveis são concretos ou abstratos e se existe algo além do que é actual.

Inicialmente, o autor nos fornece uma breve introdução, que expõe de modo breve a diferença entre as modalidades de re e de dicto, a relação entre as modalidades e os mundos possíveis e as duas principais posições ontológicas já citadas. A diferença é que a modalidade de dicto toma a necessidade e a possibilidade como atribuídas a proposições, enquanto a modalidade de re toma essas noções como atribuídas ao modo como uma coisa exemplifica ou instancia uma propriedade, a saber, necessariamente ou contingentemente. A relação seria que uma semântica de mundos possíveis nos ajudaria a esclarecer as noções modais da possibilidade e da necessidade – vistas tanto como de re, quanto como de dicto. E as posições, de modo resumido, são as seguintes:

(a) David Lewis: Este utiliza o conceito de “mundos possíveis” para formular uma abordagem nominalista austera, que apenas toma como existentes particulares concretos e conjuntos, compatível com uma redução das modalidades a entidades ou conceitos não modais, redução esta que Lewis também intenta fazer. Por exemplo, ele tenta reduzir as noções de “proposição”, “propriedade”, “modalidades” (de re e de dicto) e “contrafactuais” a constructos a partir de mundos possíveis. Tais mundos são tomados como entidades concretas do mesmo tipo que o nosso mundo e eles são formados apenas por partes concretas.

(b) Alvin Plantinga: Este não utiliza os mundos possíveis para reduzir conceitos ou entidades, pois pensa que mundos possíveis fazem parte de uma rede interconectada de conceitos que se explicam uns aos outros, mas que não podem ser explicados por conceitos fora de tal rede; e, assim, pensa que o máximo que podemos fazer não é reduzi-los, mas explicar as relações entre os conceitos de tal rede. Para ele, os mundos possíveis são entidades abstratas platônicas, que são estados de coisas possíveis maximais necessariamente existentes, mas que podem ou não obter (o que obtém é o mundo atual).

Posteriormente, Loux passa a nos falar sobre alguns problemas com relação às modalidades. Um deles é sobre o quão problemáticas são as nossas noções modais. Por exemplo, quando dizemos que uma proposição ser necessariamente verdadeira é o mesmo que ela ser impossível de ser falsa, utilizamos noções modais para explicar noções modais – o que só poderia ser feito se as noções modais não forem problemáticas. Mas são elas problemáticas?

Alguns filósofos, céticos quanto ao uso de noções modais, pensam que sim. Uma razão para isso pode ser uma orientação empirista em metafísica, que os faz só aceitar como legítimos os conceitos que podem ser apreendidos a partir de algum confronto empírico com o mundo. E, segundo eles, a experiência apenas nos diz como o mundo é, e não como o mundo possivelmente ou necessariamente é, de modo que as noções modais não poderiam ser características do mundo. Segundo essa perspectiva, toda a modalidade é meramente linguística: a necessidade se dá apenas em virtude da analiticidade da linguagem.

Outra razão, ainda de objetores empiristas, mas mais relacionada a questões técnicas, é a tese de que um corpo linguístico ou que um fragmento do mesmo (ou um conjunto L de sentenças) apropriado para fazermos metafísica deve ser extensional. “L” é extensional se, e só se, para cada sentença de L, a substituição de constituintes da sentença por expressões correferenciais não alterna o valor de verdade da sentença. E a correferencialidade se dá da seguinte maneira: (i) entre termos singulares que nomeiam o mesmo objeto, (ii) entre termos gerais que são satisfeitos pelos mesmos objetos, e (iii) entre sentenças que têm o mesmo valor de verdade. A motivação principal para sustentar tal tese é que temos sistemas lógicos bem desenvolvidos para lidar com as linguagens extensionais (como o cálculo proposicional, como a teoria dos conjuntos, ou como a lógica de predicados de primeira ordem), e a linguagem modal não é extensional.

As noções modais não passam no teste de extensionalidade, ou melhor, elas não mantêm o valor da verdade de suas sentenças cujos constituintes foram substituídos por expressões correferenciais. E é por isso que elas são rejeitadas por alguns empiristas como inaptas a nos dar instrumentos para fazermos filosofia de modo sério. Algumas das sentenças utilizadas por Loux para mostrar como as noções modais falham em passar no teste de extensionalidade são as seguintes: (4) Dois mais dois é igual a quatro e solteiros são não casados, (5) É necessário que dois mais dois é igual a quatro e que solteiros são não casados, e (6) É necessário que Bill Clinton é presidente e que solteiros são não casados. Ele nos diz que 4 é necessariamente verdadeira, mas que ao lhe aplicamos o operador “é necessário que”, formando 5, e substituirmos uma de suas sentenças constituintes – como a sentença “dois mais dois é igual a quatro” – por outra com o mesmo valor de verdade – digamos “Bill Clinton é presidente” – passando, por exemplo, a 6, o valor de verdade se altera de verdadeiro em 5 para falso em 6, dado que não é necessário que Bill Clinton seja presidente. A introdução das modalidades faz com que sentenças extensionais, tal como 4, tornem-se intensionais. O que, para os empiristas, já atestaria contra o uso dessas noções na filosofia.

Assim, como as noções modais são intensionais, alguém que quisesse utilizálas, não poderia usar de nossa lógica extensional para realizar inferências com frases modais; e, portanto, teria que se comprometer com prover uma abordagem de como ocorrem as relações inferenciais entre as sentenças que contêm operadores modais, ou seja, teria que nos fornecer uma lógica modal. Os críticos aqui costumam dizer que a imensa quantidade que há de sistematizações não equivalentes da inferência modal atesta a favor de que não temos uma noção firme de o que são as modalidades.

Nos anos 50 e 60, lógicos e metafísicos retomaram a noção leibniziana de “mundos possíveis” – a de que o mundo atual é apenas um entre uma infinidade de mundos possíveis – e tentaram, por meio dela, esclarecer as nossas noções modais. A ideia central é que uma proposição tem valores de verdades tanto no mundo atual, quanto em outros mundos possíveis, e que a necessidade e a possibilidade podem ser explicadas por meio da quantificação (respectivamente, universal e existencial) sobre mundos possíveis. Uma proposição “P” é possível (ou possivelmente verdadeira) sse é verdadeira em pelo menos um mundo possível; “P” é necessária (ou necessariamente verdadeira) sse é verdadeira em todos os mundos possíveis. Uma vantagem dessa abordagem neoleibniziana das modalidades é que ela pode explicar a existência da pluralidade de sistemas de lógica modal, indicando que eles variam de acordo com as restrições que fazemos na quantificação sobre os mundos.

Mas aceitar o uso dos mundos possíveis para falar das modalidades pode gerar alguns problemas. Um deles é a aparência de afastamento das nossas intuições comuns, dado que até podemos aceitar pré-filosoficamente que há muitos modos que as coisas poderiam ser, mas achamos difícil aceitar que há uma pluralidade de mundos possíveis. A resposta a esse problema é, normalmente, que o quadro conceitual [framework] dos mundos possíveis é apenas uma regimentação das nossas crenças pré-filosóficas, ou seja, que falar sobre mundos possíveis é apenas um modo formal de falarmos sobre os modos como as coisas podem ou têm de ser.

As modalidades, tal como exposto até agora, são apenas as modalidades de dicto, ou seja, apenas as atribuições das propriedades de ser necessariamente verdadeira (ou necessária) e de ser possivelmente verdadeira (ou possível) às proposições (ou às verdades destas). E, no vocabulário dos mundos possíveis, elas são entendidas como uma quantificação sobre mundos. Um outro tipo de modalidade, que é conhecida como modalidade de re, diz respeito ao modo como uma coisa exemplifica uma propriedade (e não sobre o modo como uma proposição é verdadeira/falsa), a saber, essencialmente ou acidentalmente. Loux exemplifica a distinção entre esses dois tipos da modalidade da seguinte maneira: nos apresenta uma hipótese, a saber, a de que Stephen Hawking está pensando no número 2, nos fornece duas frases supostamente com modalidades de tipos diferentes, e nos mostra que uma é verdadeira, enquanto a outra é falsa.

(I) A coisa em que Stephen Hawking está pensando é necessariamente um número par. [Modalidade de re] (II) Necessariamente a coisa em que Stephen Hawking está pensando é um número par. [Modalidade de dicto]

Como Stephen Hawking está pensando no número 2 e tal número é necessariamente (ou essencialmente) par, então I é verdadeira, enquanto II é falsa, dado que é contingente (e, portanto, não necessário) que Stephen Hawking esteja pensando num número par. Segundo os defensores das modalidades, a modalidade de re também pode ser iluminada por referência ao vocabulário dos mundos possíveis. Assim: um objeto x tem a propriedade P necessariamente ou essencialmente sse x tem P no mundo atual e em todos os mundos possíveis em que existe; e um objeto x tem uma propriedade P contingentemente ou acidentalmente sse x tem P no mundo atual e há pelo menos um mundo possível em que x existe e não tem P. Além disso, ambas as modalidades, de re e de dicto, são pensadas como quantificações sobre mundos, porém a diferença é que na modalidade de re há uma certa restrição no uso dos quantificadores, a saber, eles terem de quantificar apenas sobre os mundos em que o objeto em questão (que possui alguma propriedade essencialmente ou contingentemente) existe.

Mas como devemos interpretar a conexão entre os mundos possíveis e as modalidades? – pergunta-se Loux. As duas posições antagônicas principais são:

(i) os que acreditam que as noções modais (com os mundos possíveis incluídos) formam uma rede interconectada de conceitos que se explicam uns aos outros e que não podem ser explicados por conceitos externos à rede, e que, por isso, o máximo que podemos fazer é explicar as relações entre essas noções; e (ii) os que pensam que os mundos possíveis, juntos com a teoria dos conjuntos, proveriam os recursos para realizarmos as reduções – de entidades intensionais, como proposições, propriedades, contrafactuais e modalidades, a entidades concretas, apropriadamente extensionais, como os mundos possíveis seriam nessa abordagem – exigidas pelo nominalismo austero de mundos possíveis.

Tais nominalistas escapariam de problemas com relação às reduções propostas que não levavam em conta mundos possíveis. Por exemplo, agora ele poderia dizer que uma propriedade F é simplesmente o conjunto de todos os particulares, actuais e não actuais, que são F (ou o conjunto dos conjuntos que em cada mundo são compostos dos objetos que são F). E, de modo geral, uma propriedade F seria um conjunto estruturado de tal modo que correlaciona mundos possíveis com conjuntos de objetos (ou seja, de tal modo que atribui um conjunto de objetos para cada mundo). Isso evitaria o problema para o nominalista de, por exemplo, ter de tomar a propriedade de ter rins como idêntica à propriedade de ter coração, já que os membros que pertencem aos supostos dois conjuntos são os mesmos no mundo actual, e já que a identidade de membros implica a identidade de conjunto. Evitaria porque nos mundos possíveis não atuais há objetos com ruins e sem coração, de modo que a extensão dos conjuntos referentes às propriedades supracitadas, quando levamos em conta a totalidade dos mundos possíveis, irá diferir.

Eles também pensam que a teoria dos conjuntos junto com os mundos possíveis poderiam nos ajudar a reduzir as proposições: uma proposição seria o conjunto de mundos em que ela é verdadeira. Porém, se não queremos uma definição circular, temos de responder: em quais mundos seria uma proposição P verdadeira? A resposta é que ela seria verdadeira nos mundos P-ish, e que tais mundos P-ish, para qualquer proposição P, seriam entidades básicas. Assim, a definição não seria circular, e uma proposição seria apenas o conjunto de todos os mundos possíveis P-ish. Como os mundos são entidades concretas formados por entidades concretas, a motivação nominalista austera estaria sendo mantida nesta abordagem.

Nesse mesmo espírito, o nominalismo tenta também reduzir as modalidades, de dicto e de re, respectivamente, a uma junção de teoria dos conjuntos com mundos possíveis tal como se segue. Uma proposição P seria necessariamente verdadeira sse o conjunto dos mundos P-ish tem todos os mundos possíveis como membros. P seria necessariamente falsa sse o conjunto dos mundos P-ish não tem nenhum mundo possível como membro. P seria possivelmente verdadeira sse o conjunto dos mundos P-ish tem algum mundo possível como membro. E assim por diante. No caso das modalidades de re, há uma certa divergência dentro do conjunto dos nominalistas, a saber, entre os que acreditam na identidade transmundial e os que não acreditam em tal identidade – embora ambos concordem que ela deve ser reduzida a um discurso que se utiliza de mundos possíveis e teoria dos conjuntos. Os que aceitam a identidade transmundial, como nominalista que são, pensam uma propriedade como um conjunto (ou uma função) que atribui para cada mundo um conjunto de objetos. Assim, um objeto x é pensado como exemplificando actualmente uma propriedade P sse x é membro do conjunto de objetos P atribui ao mundo atual; x exemplifica P essencialmente sse x é membro de cada conjunto que P atribui a cada um dos mundos possíveis em que x existe; e x exemplifica P acidentalmente sse x é membro do conjunto que P atribui ao mundo atual e x não é membro de pelo menos um conjunto que P atribui a um mundo possível em que x existe. Com essas reduções, o nominalista intenta transformar áreas problemáticas do discurso (por exemplo, que falam sobre entidades intensionais ou entidades abstratas) em áreas não problemáticas (que falam de conjuntos e particulares concretos). Se o nominalista pretende reduzir tais noções, então deve deixar claro o que são os mundos possíveis independentemente dessas noções.

Uma dessas teorias nominalistas pertence a David Lewis. Ela diz que os mundos possíveis são entidades concretas do mesmo tipo que o nosso mundo, que são isolados espaciotemporalmente uns dos outros, que são formados por todos os particulares concretos que estejam em relação espaciotemporal, e que são tão reais quanto o nosso mundo. O mundo actual seria apenas o mundo em que se está ao pronunciá-lo; todo mundo seria actual com relação a si próprio, pois “atual” é visto como um indexical na abordagem lewisiana.

O problema dessa concepção é explicar como pode haver indivíduos que sejam transmundiais, pois parece que a aceitação de que há tais indivíduos pressupõe a falsidade da indiscernibilidade dos idênticos, que é o princípio que diz que: necessariamente, para quaisquer objetos a e b, se a é idêntico a b, então para qualquer propriedade @, a exemplifica @ sse b exemplifica @. Mas, segundo o próprio Lewis, há propriedades que x-em-W tem que x-em-W’ não tem, como a propriedade de ser um filósofo – o que ou violaria a indiscernibilidade dos idênticos, ou faria com que x-emW e x-em-W’ fossem indivíduos diferentes.

Lewis aceita que x-emW e x-em-W’ são indivíduos diferentes e defende uma teoria das contrapartes para explicar a relação entre eles. Uma contraparte de x é um indivíduo em outro mundo que parece com x em muitos aspectos importantes, mas que não é x. Nessa abordagem, uma propriedade P é essencial a x sse x e todas as suas contrapartes exemplificam P; e P é acidental a x sse x exemplifica P e alguma contraparte de x não exemplifica P.

A teoria de Lewis assume a tese do possibilismo, a saber, a tese que assere que existem objetos não actuais possíveis. Contudo, a maioria dos outros filósofos assume o actualismo, a saber, a tese de que tudo que existe é actual. Algumas objeções feitas pelos actualistas a uma teoria nominalista austera, como a teoria de Lewis, são que (a) o uso da teoria dos conjuntos para reduzir proposições não é interessante, pois faz com que haja apenas uma proposição necessariamente verdadeira e uma proposição necessariamente falsa, embora haja várias; que (b) as propriedades coexemplificadas nos mesmos mundos (como as propriedades de “ser um triângulo” e “ter 180º como soma dos ângulos internos”) teriam de ser consideradas idênticas; e que (c) as proposições não podem ser conjuntos, pois não acreditamos em conjuntos e conjuntos não podem ser verdadeiros ou falsos – as proposições, diferentemente dos conjuntos, são representativas.

Além dessas críticas, os actualistas defendem que podem prover uma abordagem completamente actualista da ideia de que há diversos modos que as coisas podem ser, utilizando os mundos possíveis. Contrariamente ao nominalismo, o actualismo, segundo Loux, não pretende ser um projeto que reduza entidades ou conceitos modais e não modais, pois defende que não é possível explicar as noções modais por meio de noções externas à rede de conceitos a que as noções modais pertencem. O projeto actualista apenas explica as relações entre tais noções.

Um exemplo de teoria actualista bem desenvolvida é a teoria de Alvin Plantinga. Ela defende que propriedades, proposições e modalidades estão intimamente conectadas e que não conseguimos explicá-las sem essas mesmas noções. Para Plantinga, todas as propriedades são objetos necessários que podem ou não ser exemplificadas em um mundo. Um mundo é uma entidade abstrata idêntica a um estado de coisas maximal possível, que também seria um ser necessário e poderia ou não obter (análogo à exemplificação); apenas um estado de coisas possível obtém, a saber, o mundo actual. Um estado de coisas S é maximal sse para todo estado de coisas (maximal ou não) S’, S inclui ou exclui S’. S exclui S’ sse é impossível S’ obter caso S tenha obtido, e S inclui S’ sse é impossível que S obtenha e S’ não obtenha. Nessa visão, até o mundo actual é um objeto abstrato, pois é um objeto abstrato que pode ou não obter. E isso faz o mundo actual diferir do que tomamos como o nosso universo físico, pois o universo é um objeto contingente e concreto que não poderia falhar em obter, enquanto o estado de coisas actual é um objeto abstrato necessário que de fato obtém, mas que poderia ou não obter.

Além disso, Plantinga preserva a distinção entre proposições e estado de coisas, falando que a primeira tem uma propriedade que nenhum estado de coisas teria, a saber, a de ser verdadeira ou falsa, e nos indica a relação entre eles, falando que para todo estado de coisas há uma proposição tal que o estado de coisas obtém sse a proposição for verdadeira. Uma proposição é verdadeira em um mundo possível sse tal mundo tivesse sido atual, tal proposição seria verdadeira. Isso é o que é preciso para aceitarmos as definições tradicionais das modalidades de dicto em termos de mundos.

Para lidar com a modalidade de re, Plantinga nos diz que objetos existentes no mundo atual podem existir em outros mundos possíveis. Mas “um objeto existir num mundo possível” apenas quer dizer que é impossível para tal mundo ser actual e tal objeto não existir, ou seja, que se tal mundo tivesse sido actual, tal objeto existiria. A isso, Plantinga junta a noção de “ter a propriedade P num mundo”: x tem a propriedade P em W sse W tivesse se tornado actual, x teria P. E, com tais instrumentos, Plantinga pode aceitar a abordagem tradicional da modalidade de re em termos de mundos possíveis.

Como Plantinga quer evitar o resultado necessitarista desagradável de que nada exemplifica propriedades contingentemente, ele precisa aceitar a identidade transmundial, caso não aceite a relação de contraparte – coisa que não aceita. Saul Kripke tem alguns argumentos contra a teoria das contrapartes. Um deles é que ela não corresponde às nossas intuições modais, pois, quando fico aliviado dos danos que eu poderia ter sofrido, fico aliviado, pois tal possibilidade é referente a mim. Se estivéssemos falando algo sobre contrapartes, eu não deveria ficar aliviado. Plantinga tem um argumento melhor, contra a incompatibilidade entre identidade transmundial e indiscernibilidade de idênticos: ele diz que o fato de x ter P em W e não ter P em W’ não nos permite inferir que P não pode ser atribuída a x sem estar indexicalizada a algum mundo. Na verdade, as propriedades indexicalizadas se fundam nas não indexicalizadas, e um objeto de fato tem as propriedades não indexicalizadas que ele actualmente tem. O que faria que x tivesse todas as propriedades indexicalizadas que tem e todas as propriedades que actualmente tem – o que removeria a incompatibilidade da identidade transmundial com a indiscernibilidade de idênticos.

Plantinga também defende que esses indivíduos transmundiais têm, em adição a propriedades essenciais triviais (que todos os objetos têm) e a propriedades essenciais gerais (que podem ser compartilhadas ou exemplificadas por mais de um particular), essências individuais (essencialismo leibniziano), que são propriedades essenciais de um particular e que não são exemplificadas por mais nenhum particular (tais essências são chamadas por ele de “haecceities” ou, em português, “ecceidades”). Exemplos de tais essências seriam as propriedades indexicalizadas que pertencem necessariamente e unicamente ao particular de cuja essência estamos falando. Plantinga pensa que qualquer essência de um objeto implica todas as suas propriedades (onde “P implica Q” apenas quer dizer necessariamente todo objeto que exemplifica P também exemplifica Q). Por exemplo, a propriedade de ser idêntico a Sócrates implica todas as propriedades essenciais de Sócrates. E, como entre essas propriedades essenciais estão as propriedades indexicalizadas, segue-se que, a partir da essência de um particular, um ser onisciente poderia saber tudo que é o caso nos diversos mundos possíveis com relação a tal particular.

Enfim, Loux nos mostra em seu texto que Plantinga e Lewis nos apresentam teorias interessantes sobre a natureza das modalidades e dos mundos possíveis, e nos indica como o nominalismo influencia o debate. Vale a leitura.

Rodrigo Cid – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista CAPES. Professor substituto na UFRJ PPGLM, IFCS/UFRJ. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

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Hobbes: Natureza, história e política – VILANOVA; BARROS (FU)

VILANOVA, M.G.; BARROS, D.F. Hobbes: Natureza, história e política. São Paulo: Discurso Editorial, 2009. Resenha de: CRUZ, Michael de Souza. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.12, n.2, p.192-195, mai./ago., 2011.

Hobbes: Natureza, história e política é uma coletânea de artigos de alguns trabalhos apresentados no Colóquio Internacional (que possui o mesmo nome do livro) realizado na USP (Universidade de São Paulo), em São Paulo, em outubro de 2009. Fruto da parceria entre CAPES e MINCyT a partir dos grupos de pesquisa da UNC (Universidad de Córdoba) e USP, o colóquio foi organizado em diferentes mesas temáticas, que foram seguidas pelo livro, contando com a participação de especialistas da filosofia hobbesiana da Argentina e do Brasil. Com o objetivo maior de estimular a troca de ideias entre os pesquisadores dos dois países (divulgar diferentes linhas de pesquisa, resultados e projeções), tal colóquio teve como resultado impresso tal livro, que retrata ao leitor a grandiosidade da filosofia de Thomas Hobbes de uma maneira perspícua. Os artigos são apresentados segundo os diferentes eixos temáticos: Hobbes e a Tradição, Religião e Política, Filosofia Natural e Política e O Legado de Hobbes na Contemporaneidade.

Após a apresentação dos editores, segue o artigo de Abertura: Hobbes, recente (p. 9-19), de R.J. Ribeiro. Em seu artigo, Ribeiro pretende mostrar ao leitor a atualidade da filosofia de Hobbes a despeito do temor gerado pela sua política (em especial, o Leviatã) aos seus contemporâneos. Como filósofo, o que Hobbes faz é levar a cabo o princípio de que “conhecemos o que fazemos”, desde a geometria ao contrato social (seus maiores exemplos de saberes teórico e prático). Contudo, o autor julga que a marca distintiva da filosofia hobbesiana é justamente o seu legado político: “se dependesse de sua ciência, Hobbes seria nota de rodapé” (Ribeiro, 2009). Hobbes é essencialmente um teórico da soberania que desnudou o que há de terrível no poder: a importância central do seu próprio uso. Entretanto, há que distinguir pavor (ou temor) de medo (awe), cabendo o uso desse último no exercício da soberania no Leviatã. Manter os súditos não em uma condição aterrorizada, mas em “reverente temor”, isto é, em um sentimento que está entre o temor e a reverência, eis a originalidade e a riqueza da filosofia política hobbesiana.

Na temática Hobbes e a Tradição, temos: Hobbes, Bodin e a liberdade como problema (p. 21-32), de D.F. Barros. Nesse artigo, o autor problematiza a tese cara a alguns intérpretes da filosofia de Hobbes que afirmam que a sua teoria política é fundadora da doutrina do liberalismo político. Tal como apregoam os defensores de tal tese, a função central do soberano hobbesiano é a proteção daquilo que seria mais germinal ao pensamento liberal: vida e propriedade. Entretanto, Barros replica: como conciliar o poder ilimitado do soberano em mandar (tal como uma “máquina despótica”) com um modelo de Estado destinado a guardar e proteger os direitos naturais do indivíduo? No artigo Leviatã e Oceana (p. 33-44), E. Ostrensky defende uma tese heterodoxa acerca do Leviatã: tratava-se de um experimento constitucional, isto é, um modelo político para uma nova ordem que se fazia necessária na Inglaterra pós-guerra civil. A defesa dessa tese passa pela análise de uma tese complementar que estabelece que os méritos e limitações do Leviatã como um experimento constitucional foram apresentados nas críticas de James Harrington em sua obra Oceana. Em favor da primeira tese, a autora estabelece: (i) a obra se apresenta como projeto científico genuíno, amparado num método rigoroso; (ii) oferece-se como ortodoxia a ser adotada nas universidades e contempla subcasos de soberania absoluta (adquirida e instituída). Em favor da segunda tese, estabelece que Oceana (obra dedicada a Oliver Cromwell) é o contra-ataque republicano ao modelo absoluto desenhado por Hobbes no Leviatã, criticando-lhe a concepção de que haveria liberdade num regime monárquico e percebendo na obra hobbesiana uma receita antiquada para a solução de conflitos. Em Pasiones e imaginación: tradición y modernidad (p. 45-60), M.L.L. de Stier pretende mostrar o que a teoria das paixões de Hobbes guarda em comum e em que sentido rompe com a teoria aristotélico-escolástica. No que diz respeito à primeira perspectiva, a autora atenta para o fato de que tanto Aristóteles e a Escolástica quanto Hobbes defendem que as paixões são basicamente movimentos e afecções involuntárias vinculadas ao prazer e a dor. Acerca da perspectiva de diferenciação das teorias, Stier joga luz no conceito de vontade: enquanto que na concepção aristotélico-escolástica ela é uma faculdade ou capacidade de querer, para Hobbes ela nada mais do que um ato ou um apetite último da deliberação.

Na temática Religião e Política, temos o artigo Hobbes y los usos políticos de La Trinidad (p. 63-82), de A.J. Coldero. Coldero trata em seu artigo de uma das questões mais delicadas da filosofia de Hobbes: o papel e o lugar da religião na commonwealth. E faz isso tratando de um dos problemas teológicos mais intrincados: a trindade. Tal como já expresso pelo título do artigo, o autor afirma o caráter instrumental da leitura bíblica hobbesiana, evidenciado pela sua forma “politizante” de interpretação das escrituras. Sendo assim, o próprio problema da trindade sofrerá essa instrumentalização. Não obstante, isso não exclui o exercício hobbesiano de uma leitura própria da trindade (Pai, Filho e Espírito Santo). Essa análise leva, segundo o autor, a uma tensão que não teria passado despercebida da análise de Hobbes, entre duas perspectivas trinitárias: econômica (aspecto histórico e centrado na divisão das pessoas) e ontológica (que faz referência a uma unidade divina “substancial”). Além disso, acerca da disputa interpretativa estabelecida entre Edwin Curley e Aloysius Martinich, Coldero segue a linha deste último; enquanto o primeiro defende uma ironia hobbesiana ao tratar da questão política (desacreditando no dogma trinitário, mas reafirmando a teoria da personificação), o último parte do reconhecimento factual da legitimidade da doutrina da trindade à época de Hobbes. A despeito da dita instrumentalização do religioso ao político em Hobbes, M.G. Villanova, em Desobediência de motivação religiosa (p. 83-95), trata a questão da religião em Hobbes sob outra perspectiva: a religião como motivação da desobediência civil. É sabido que, paralelo ao irrestrito poder do soberano, é admitido por Hobbes o direito de resistência, isto é, à defesa da liberdade vital e corporal. Contudo, sustenta o autor, o filósofo reconheceria também o direito à proteção de “bens imateriais”, a exemplo da crença religiosa. Assim como no direito de natureza pré-cívico, o mesmo pode-se dizer quanto ao direito de resistência do cidadão na commonwealth, ou seja, continua a pertencer a ele a avaliação quanto à conveniência de quando e como resistir ao direito de punir do soberano.

Na temática Filosofia Natural e Política, temos ¿Quién obedece al Leviatán? (p. 97-109), de D.J. Rosanovich. Em seu artigo, cujo título mais esclarecedor não pode ser, Rosanovich procura estabelecer quais são os “atores políticos” que têm lugar na teoria de Hobbes. A tese central do autor é que, na contramão do que proporiam, por exemplo, Locke e Kant, Hobbes recusa aceitar atores coletivos como elementos fundadores do Estado. Nesse sentido, em vez de uma pessoa jurídica ou de um povo, Hobbes afirma que uma multidão, isto é, um conglomerado de indivíduos, é logicamente anterior ao Estado. Recusa também, por conseguinte, a ideia de um pacto bilateral entre os indivíduos e o soberano na criação do Estado. Porque o pacto é somente entre indivíduos, o soberano é alheio a ele, razão pela qual o ato de instituição da soberania não pode ser desfeito. Entretanto, do fato de Hobbes recusar a constituição de agentes supraindividuais na formação do Estado, daí não se segue que o soberano não possa constituir mecanismos que gerem condições sociais aptas a favorecer a obediência dos súditos. Talvez o artigo de C. Balzi, Descripción de un animal artificial, o ¿por qué Hobbes escribió Leviathan? (p. 111-123), seja o mais polêmico e heterodoxo do livro no que toca à interpretação do sistema filosófico de Hobbes. O autor indaga-se acerca das razões históricas e intelectuais do filósofo ter escrito o Leviatã, visto que era uma obra que não parecia estar no itinerário filosófico hobbesiano (mas sim a tradução para o inglês do De Cive). Para Balzi, a criação do conceito de representação, o quadro sinóptico das ciências, o extenso aparato teológico e a valorização da retórica não são explicações suficientes para isso. Seria, na verdade, a fundamentação do conceito de Estado a grande tarefa do Leviatã – que não fora realizada nas obras anteriores. Entretanto, ao fundamentar a sua interpretação, o autor acaba por valorizar o quadro sinóptico das ciências do capítulo IX do Leviatã, em que Hobbes estabeleceria a completa autonomia da sua Filosofia Civil em relação à sua Filosofia Primeira. Assim, o Livro I da obra não seria mais um tratado antropológico que fundamentaria a política, mas tão somente uma parte negativa (pars destruens) do Leviatã. Já em Thomas Hobbes e o argumento dominador (p. 125-141), W.B. Lisboa faz de uma dificuldade filosófica que remonta a Aristóteles e aos os medievais um convite à compreensão do sistema filosófico de Hobbes. Sabendo-se que o argumento dominador (supostamente apresentado primeiramente por Diodoro Cronos; também analisado por Aristóteles no capítulo IX do De Interpretatione) conclui que “tudo o que é possível é atualmente ou será”, isto é, estabelece um determinismo universal, Lisboa trata de apresentar a defesa hobbesiana dessa conclusão a partir das premissas do próprio sistema do filósofo. Num primeiro momento, faz uma “reconstrução ontológica” do argumento hobbesiano, estabelecendo a necessidade do passado, bem como a dicotomia necessidade e impossibilidade – sendo a noção de possibilidade reduzida à primeira. Assim, para Hobbes, todo evento futuro terá uma causa necessária. Noutro momento, o autor faz uma reconstrução “lógico-metafísica” do argumento hobbesiano. Assim como possibilidade e necessidade, também há a identificação entre causas suficientes e causas necessárias no determinismo de Hobbes. Ademais, no que toca à determinação do valor de verdade dos enunciados, o instante de tempo em que se realiza o que diz a proposição é indiferente à determinação do seu valor de verdade – sendo um problema da temporalidade e limitação do conhecimento humano e não da constituição das coisas.

Na última temática do livro, O Legado de Hobbes na Contemporaneidade, temos Leviatã secreto: Hobbes e o Serviço de Inteligência (p. 143-152), de C.R.C. Leivas. Fazendo justiça à temática em que se enquadra, o artigo de Leivas é muito original ao fazer de Hobbes um pensador de uma questão típica das relações políticas contemporâneas: o Serviço de Inteligência. Hobbes seria um dos filósofos que veriam na espionagem e no Serviço de Inteligência uma necessidade para a segurança pública; porém, a concepção hobbesiana não se esgotaria nessa necessidade imediata de subsistência do Estado moderno: ela seria, com efeito, ensejada por uma fundamentação moral estruturada pelo imperativo de segurança a saúde do povo é lei suprema (salus populi suprema Lex). Ora, a boa visão política dos Estados modernos depende de um bom êxito de seus espiões na coleta de informações sigilosas. Assim, o Leviatã possui um Sistema de Inteligência para decifrar o poder invisível de inimigos do Estado através da coleta de informações e decodificação de códigos secretos, tudo em prol do imperativo de segurança salus populi. O artigo de N. Souki, Da guerra civil de Hobbes às guerras nossas de cada dia (p. 153-167), realiza uma daquelas tarefas que se nos parecem mais pertinentes ao compreendermos a filosofia política hobbesiana: uma vez que se trata de um clássico, seu estudo só ganha sentido se fizermos dos problemas e das respostas de Hobbes nossos problemas e, por que não, nossas respostas. Apesar da pertinente advertência que nos diz que o estudo de Hobbes deve circunscrevê-lo ao seu tempo (um período de guerra civil confessional), não estamos eximidos da tarefa de ler Hobbes como um “barulho de fundo” frente às condições da realidade política atual, partindo do seu conceito de guerra civil: eis a proposta da autora. Se considerarmos, tal como faz Hobbes, a guerra não como um confronto efetivo, mas como uma disposição de entrar em confronto, seremos então, tal como admite Souki, obrigados a reconhecer esse fenômeno na atualidade.

Em suma, Hobbes: Natureza, história e política apresenta ao leitor – desde aquele imerso em pesquisas especializadas sobre o autor àquele que tem dele um conhecimento mínimo – as diversas facetas da filosofia hobbesiana iluminadas por pesquisadores argentinos e brasileiros ao longo dos últimos anos. Desse modo, esse livro não somente representa o diálogo entre as diferentes pesquisas, mas a verdadeira originalidade, complexidade, profundidade exegética e atualidade da filosofia de Thomas Hobbes.

Michael de Souza Cruz – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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Estudios de filosofía contemporânea – NAVIA (FU)

NAVIA, R. Estudios de filosofía contemporânea. Montevideo: CSIC-Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación, 2010. Resenha: MELOGNO, Pablo. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.12, n.2, p.187-191, mai./ago., 2011.

Estudios de filosofía contemporánea lleva por título este volumen que reúne varios trabajos del Prof. Ricardo Navia, algunos publicados previamente en revistas especializadas de Brasil y Perú, otros que se editan por primera vez. No obstante tratarse de artículos independientes, la obra presenta continuidad temática en torno a problemas de teoría del conocimiento, filosofía del lenguaje y metafilosofía, especialmente centrados en la filosofía de la segunda mitad del siglo XX.

El libro se abre con “Max Horkheimer: Una forma alternativa de hacer filosofía”, un trabajo que destaca la visión de Horkheimer como una perspectiva novedosa frente a problemas clásicos, como los asociados al relativismo y la falsación de teorías. Parte central de esta forma alternativa de hacer filosofía es el materialismo, que en el marco de la teoría crítica puede entenderse como la asunción de que el conocimiento es el producto dialéctico del condicionamiento que el desarrollo histórico de los grupos sociales ejerce sobre los sujetos que los constituyen.

Una vez que el conocimiento es una parte integrante del devenir histórico, los criterios de verdad resultan dependientes de las realidades sociales que les han dado condiciones de surgimiento, siendo por tanto indisociables de los enfrentamientos de clase específicos de cada configuración histórica. De esta manera, Horkheimer desemboca en un enfoque dialéctico, dentro del cual Navia busca identificar tanto las afinidades como las distancias respecto de la dialéctica hegeliana. En primer término, la verdad es contextual a las teorías, por lo que la dialéctica no conduce a un absoluto identificado con una forma trascendente de verdad última, por lo que, a diferencia de Hegel, Horkheimer no se propone ofrecer algo como una imagen total y acabada de la realidad. Por otro lado, la raíz hegeliana es notoria en cuanto el enfoque dialéctico implica que “la realidad es multifacética, aloja tensiones y contradicciones internas y está en permanente cambio. Todo concepto que se atiene a un solo aspecto encierra un elemento de verdad y uno de falsedad que sólo una concepción superior puede superar” (p. 20).

En otro orden, el cuestionamiento de Horkheimer al irracionalismo muestra por un lado la forma en la que filosofías como la de Bergson surgen una vez que el desarrollo de la técnica y la ciencia capitalistas había dejado de resultar un elemento de emancipación para convertirse en una fuerza opresiva, incluso para sectores de la burguesía, y por otro como en su crítica al racionalismo, la filosofía de la vida termina formulando categorías tan abstractas y atemporales como aquellas contra las que había reaccionado. En este sentido, por más que en el enfrentamiento entre racionalismo e irracionalismo el materialismo aparezca como un tercer elemento de superación dialéctica, Navia señala una definida impronta de Horkheimer a favor del propósito racionalista de fondo, y en correlativa oposición al irracionalismo.

A modo de cierre, el artículo destaca que la forma de hacer filosofía de Horkheimer permite superar algunas antinomias, como ser: todo-parte, colectivoindividuo, impotencia-omnipotencia del pensamiento, y algunos dualismos, como: conocimiento-valores, análisis externo-interno, que una vez inscriptos en la dinámica de la producción social del conocimiento se resignifican a la luz de la consideración de sus condiciones históricas de surgimiento.

Prosigue el volumen con “La historicidad de la comprensión como principio hermenéutico en Hans-George Gadamer”, un análisis del capítulo de Verdad y método que da título al artículo. Navia rastrea el derrotero de la hermenéutica de Gadamer a través de sus explicitadas influencias: Schleiermacher, Dilthey y Heidegger, para desembocar en el concepto de círculo hermenéutico. Este nos muestra por un lado que toda interpretación está sujeta a prejuicios, y por otro que en los procesos interpretativos es necesario mantener vigilancia frente a hábitos de pensamiento arbitrarios o perniciosos para la comprensión. Queda así abierto el problema de cómo delimitar los prejuicios hermenéuticamente fértiles de aquellos que no lo son.

En este marco, el texto se detiene con especial énfasis en la crítica de Gadamer al concepto ilustrado de prejuicio. La hermenéutica propone una reivindicación del valor del prejuicio frente a su depreciación por la Ilustración, en cuanto el carácter intrínsecamente histórico de la razón impide postular un conocimiento racional puro desprovisto de todo prejuicio, conforme al proyecto ilustrado; al tiempo que permite pensar al prejuicio como un elemento positivamente dotado de valor cognoscitivo. Sin embargo, Navia insiste en señalar que “[…] la crítica gadameriana contra tal valoración de la ilustración parece no tener en cuenta el contexto histórico-cultural en que esta se produjo, en el que esa actitud antiprejuiciosa cumplió un papel progresista al menos en determinado momento del desarrollo histórico del pensamiento europeo” (p. 40).

En consonancia con lo anterior, el artículo busca establecer líneas de cuestionamiento definidas a la reivindicación gadameriana del prejuicio, reconociendo sus potencialidades y sus límites. El que un prejuicio sea hermenéuticamente productivo no es de por sí un motivo para legitimarlo, del mismo modo que el valor de una institución dentro de una tradición no conlleva su justificación política, por lo que Gadamer debería proporcionar razones independientes cuando presenta la aceptación de la autoridad y las tradiciones como actos de conocimiento no necesariamente incompatibles con la razón.

Esto resulta más objetable en la medida en que “[l]o transmitido tiene más bien una fuerza y una obviedad que en principio lo sustraen de la razón y de la libre determinación. Es sólo en lo innovador que en general debe haber un respaldo racional (y libre) para poder oponerlo a la fuerza de lo transmitido, lo consagrado por el tiempo y por la autoridad de las generaciones anteriores” (p. 45). Retornado finalmente al problema de la autoconciencia de los prejuicios en el proceso de comprensión, el artículo se cuestiona si es la distancia histórica la que hace concientes los prejuicios, provocando movimientos de reelaboración en los contenidos de la tradición, o si es la propia tradición la que debe generar el desarrollo de la conciencia histórica haciendo concientes los prejuicios.

“Ludwig Wittgenstein: imposibilidad de un lenguaje privado; argumento e implicaciones” es un trabajo en donde se recorre la formulación del argumento del lenguaje privado presentada por Wittgenstein en las Investigaciones filosóficas. El trabajo discute al argumento apoyándose en la interpretación de A. Kenny, y en polémica con las aproximaciones de P. Strawson, G. Pitcher, H.N. Castañeda y J.J. Thomson. La argumentación wittgensteiniana muestra que tanto el empirismo como el racionalismo cartesiano suponen la existencia de un lenguaje privado, al defender una imagen del conocimiento que se asienta en las ideas o experiencias internas, de las que se derivaría el resto de lo que puede conocerse.

A partir de esto, Navia se detiene en los dos errores a los que Wittgenstein atribuye la creencia en un lenguaje privado: la creencia en que la adquisición de significados se produce exclusivamente por ostensión y la creencia en el carácter privado de la experiencia. En cuanto al primero revisa las vinculaciones entre aprendizaje por ostensión y lenguaje público. En cuanto al segundo, analiza la distinción wittgensteiniana entre privacidad del conocimiento y privacidad de la posesión de una sensación, que desemboca en la negación de que las sensaciones sean privadas en ambos sentidos. Como corolario, el artículo hace foco en la no-independencia de las proferencias sobre sensaciones y estados internos respecto de los referentes, punto definitorio de la argumentación de Wittgenstein, y que Navia destaca como un fuerte elemento de crítica al paradigma cartesiano de los contenidos de conciencia dotados de infalibilidad.

“Karl-Otto Apel: Sobre la posibilidad de una fundamentación filosófica última” presenta un análisis de “El problema de la fundamentación última filosófica a la luz de una pragmática trascendental del lenguaje”, texto donde Apel desarrolla su postura en debate con las expresiones del racionalismo crítico de W.N. Bartley y H. Albert. Frente al principio falibilista propuesto por Albert, Apel propone una pragmática trascendental del lenguaje, que se nutre tanto del pragmatismo de Peirce como del método trascendental de Kant. El artículo resalta que el enfoque pragmáticotrascendental permite concebir el proceso de derivación de proposiciones a partir de proposiciones no como un decurso al infinito, en el que cada nueva proposición necesita ser fundamentada por otra, sino como un proceso de fundamentación que se interrumpe en los enunciados que proporcionan la evidencia a priori intersubjetiva necesaria para dar cuenta de las condiciones de conocimiento de los sujetos en el plano discursivo-argumentativo.

Esto se complementa con un ataque directo de Apel al principio del falibilismo, mostrando la imposibilidad de poner en duda toda proposición de conocimiento, en cuanto una duda razonable requiere inevitablemente la aceptación de parámetros -no puestos en duda- desde los que se formulan las dudas y se evalúan las eventuales respuestas. El balance de Navia en función de este derrotero conduce a que “Apel descarta tanto la tesis del racionalismo pancrítico de la asimilación de la fundamentación por recurso a la evidencia con la apelación a un dogma como la idea de la prioridad del principio del falibilismo sobre la idea de la fundamentación” (p. 75).

Ahondando en el sentido trascendental de la filosofía del Apel, Navia destaca igualmente que su propuesta, a diferencia de la crítica kantiana, no pretende establecer de modo definitivo los contenidos del sistema trascendental del conocimiento. Más bien presenta un marco de condiciones pragmáticas desde las cuáles someter a revisión lo que se considera conocimiento, sin que esto implique renunciar a la posibilidad de una fundamentación última. En suma, Navia destaca en Apel una socialización del sujeto trascendental, tramitada a través de la introducción de la hipótesis -al modo de una idea regulativa kantiana- de la comunidad ideal, en la que Navia ve un enfoque que logra flexibilizar las tesis universalistas de la crítica kantiana sin desembocar en el relativismo.

Le sigue “Analiticidad: impugnación y defensa”. El texto parte de la crítica de Quine a la distinción analítico-sintético, habilitando un frente de controversia desde la postura de H. Grice y P. Strawson. En “Dos dogmas del empirismo”, Quine critica tanto la distinción analítico-sintético como el reductivismo de los términos referidos a la experiencia. La revisión quineana del concepto de sinonimia -fuertemente ligado al de analiticidad- muestra por un lado que el uso de la sinonimia está subordinado a criterios de utilidad, y por otro que no existe un orden de sinonimias ontológicamente estable, sino varias interconexiones resultantes de los interjuegos lingüísticos. De aquí que al contrario de lo que pensaba Carnap, no es posible para lenguajes artificiales precisar el concepto de analiticidad sin presuponerlo en alguna medida, ya que la analiticidad resulta irreductible a una serie de reglas semánticas especificadas para lenguajes artificiales.

En este marco, el artículo destaca la forma en que el holismo de Quine funciona como base de su crítica al reductivismo, en cuanto pone de manifiesto que si bien el empirismo ha abandonado las pretensiones reductivistas defendidas por Carnap en La construcción lógica del mundo, en distintas variantes de la filosofía empirista se sigue insistiendo de modo solapado en la posibilidad de confirmación individual de los enunciados. Es por esto que “[l]a estrategia de explicar la analiticidad a partir de la teoría verificacionista del significado fracasa en cuanto supone una concepción atomista de la verificación, que está siendo sustituida por una teoría holista” (p. 96). En función de esta nueva concepción, Quine proyecta una imagen del conocimiento en general y del sistema de la ciencia en particular, en función de la que no puede hablarse del contenido empírico de un enunciado, en cuanto no es posible ligar de forma directa las experiencias relevantes para un sistema con cada uno de los enunciados contenidos en él. Así, la eficacia y la economía predictiva devienen criterios rectores de evaluación de enunciados, por lo que no hay enunciados analíticos irrevocables más allá de estos criterios.

Luego de repasar algunas respuestas de J. Harris, M. Dummett y H. Putnam, el texto concluye revisando las críticas efectuadas a Quine en “In Defense of a Dogma”, de Grice y Strawson. Se destaca cómo el análisis de la noción de “clarificación adecuada” muestra que Quine impone a una eventual explicación de nociones como analiticidad, definición y sinonimia, requisitos que difícilmente pueda cumplir explicación alguna, como el de evadir toda circularidad. Asimismo, y a diferencia de lo sostenido por Quine, la concepción holista de la verificación llevaría a reformular la noción de sinonimia, y no a abandonarla. Por último, la tesis del carácter revisable de todos los enunciados de un sistema también sería compatible con la distinción analítico-sintético, siempre que se distinga cuando estamos abandonando un enunciado por razones de orden fáctico y cuando lo estamos haciendo porque los términos que los componen han cambiado de significado.

Continúa el libro con cuatro artículos dedicados a Putnam: “Por qué es importante la obra de Hilary Putnam”, “Concepción de la racionalidad en Hilary Putnam”, “Hilary Putnam: Posibilidad de fundamentación racional de los juicios éticos” y “Immanuel Kant e Hilary Putnam: rumo à construção de um realismo crítico”. Versan especialmente sobre la concepción putnamiana de la racionalidad y de las relaciones entre hechos y valores, así como de su defensa del realismo y su concepción de la verdad como aceptabilidad racional.

Los trabajos pasan revista a la crítica de Putnam al realismo metafísico, en el marco de su abandono de las teorías clásicas de la referencia y de las concepciones correspondentistas de la verdad. “Según Putnam, el externalismo vive acosado por el problema de la referencia que no consigue resolver. En cambio, para el internalista el problema se resuelve dado que los objetos no existen independientemente de los esquemas conceptuales” (p. 114). También se destaca el carácter innovador de la concepción putnamiana de la racionalidad informal, que tiene como antesala la crítica tanto a las concepciones criteriales representadas por el Neopositivismo como a las concepciones relativistas e inconmensurabilistas.

En cuanto a la idea de verdad, una vez que ésta sólo se especifica en base a criterios de aceptabilidad racional, los procesos cognitivos aparecen estrechamente ligados a componentes valorativos, quedando así puesta en tela de juicio la clásica distinción entre juicios fácticos y juicios de valor, y en este sentido “Putnam establece una fuerte relación entre racionalidad y moralidad. La racionalidad aparece condicionada por valores, dado que los esquemas cognitivos reflejan propósitos e intereses; y la moralidad está vinculada a una determinada forma de ver el mundo y de manejarse con él” (p. 145). Navia insiste en que todos estos conceptos de la obra de Putnam no debilitan ni diluyen el concepto de racionalidad, sino que lo flexibilizan para volverlo más resistente en el contexto del debate con el relativismo: “La idea de una racionalidad informal, como una capacidad o modalidad -aún no reglada- de resolver problemas por la inteligencia y el sentido común, permite flexibilizar productivamente el concepto de racionalidad. Permite explicar […] su permeabilidad a criterios culturales de relevancia” (p. 129).

Cierra el volumen “El argumento antiescéptico de Davidson como punto de convergencia de innovaciones radicales”, donde se analiza el impacto de la filosofía de Davidson en la crítica tanto al escepticismo epistemológico como a la tradición de matriz cartesiana asentada en la noción de lo subjetivo como instancia nuclear del conocimiento. Una vez que Davidson abandona la pretensión de justificar las creencias en intermediarios epistémicos no proposicionales, como las sensaciones o los inputs, el escenario en el cual tomaban forma los cuestionamientos escépticos comienza a desmontarse, en cuanto el escepticismo sólo tiene pleno alcance como combate a una concepción de la verdad que pretenda fundamentar nuestras afirmaciones acerca del mundo en algo que se encuentra más allá de ellas mismas.

En este marco, la interpretación radical aparece como dispositivo metodológico destinado a mostrar que, dado un conjunto de creencias coherentes defendidas por un hablante, la comprensión del conjunto por parte de un intérprete exige presumir que la mayoría de las creencias del hablante son verdaderas; como condición de la comunicación y a la vez como característica constitutiva de la naturaleza de la creencia. Navia enfatiza la impronta kantiana de la argumentación de Davidson -en método, ya que no en contenido- en cuanto busca cancelar el escepticismo y asentar el carácter verídico de la creencia en base a las condiciones de posibilidad de la formación y tenencia de creencias. En estos términos, puede verse la relación entre la teoría de la verdad y la concepción externalista del significado: “La interpretación radical nos muestra que la creencia es intrínsecamente verdadera -esto es, la mayor parte de las creencias sobre el entorno deben ser verdaderas- porque el significado no es nada natural, sino solo el resultado de la triangulación entre interlocutores y cosas, que en sus formas básicas solo puede funcionar comunicativamente si mayoritariamente responde a una relación causal entre los interlocutores y su entorno” (p. 178).

A modo de balance, y ampliando en algunos aspectos el cuadro trazado a lo largo del trabajo, Navia señala algunas de las principales implicaciones de la filosofía de Davidson, organizadas en los siguientes apartados: (a) abandono del “mito de lo subjetivo; (b) lenguaje como fenómeno esencialmente social; (c) carácter esencialmente intersubjetivo del pensamiento; (d) rescate de una normatividad no metafísica; (e) irreductibilidad e interdependencia: subjetivo, objetivo, intersubjetivo; y (f) abandono del fundacionismo metafísico (p. 183-186).

En una obra que recorre tradiciones y filósofos de diverso origen y estilo, algunos de los cuales no pocas veces han sido tenidos por antagónicos, puede decirse a modo de balance general que el autor parece cumplir con su “no desmentido interés simultáneo por la filosofía analítica, por la filosofía trascendental y por los componentes sociohistóricos del conocimiento”.

Pablo Melogno – Universidad de la Republica. Escuela Universitaria de Bibliotecología y Ciencias Afines Emilio Frugoni. Montevideo, Uruguay. E-mail: [email protected]

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O fetiche dos Direitos Humanos e outros temas – BARRETO (FU)

BARRETTO, V. de P. O fetiche dos Direitos Humanos e outros temas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. Resenha de: SUBTIL, Leonardo de Camargo. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.12, n.1, p.94-96, jan./abr., 2011.

Et si le poète était tellement capable d’être expliqué dans tout ce qu’il veut dire, je crois qu’il serait très superfl u (Gadamer, 1982, p.44).

O fetiche dos Direitos Humanos e outros temas apresenta criticamente as reflexões centrais do professor Vicente de Paulo Barretto sobre o tema dos Direitos Humanos, na constituição das relações e das interferências recíprocas entre Direito, Moral e Política na sociedade contemporânea. Marcada por um constante e instigante problematizar teórico, afeito às realidades políticas e sociais que o constitui, a obra surge no contexto de recuperação original da significação moral dos Direitos Humanos através da inédita tese da desfetichização, elaborada pelo autor.

Dividida em 15 capítulos, a obra perpassa importantes temas da cultura jurídico-filosófica contemporânea, guardando, em sua constituição, duas linhas de investigação essenciais à consolidação do Estado Democrático de Direito e à construção de uma sociedade cosmopolita, libertas da mitologia legal, do positivismo jurídico e do fetichismo dogmático. Enquanto que a primeira linha de investigação delineia os fundamentos ético-filosóficos dos Direitos Humanos, a segunda ilumina as necessárias relações entre os Direitos Humanos e a sociedade democrática.

Nesse contexto de libertação dogmática, os Direitos Humanos surgem numa dimensão de recuperação moral dos fundamentos jurídicos, substituindo a até então predominante mitologia legal, inserida na lógica hobbesiana da totalidade normativa e do solipsismo soberano. Ocorre que, ao tentar livrar-se da totalidade normativa por um conjunto libertário e igualitário de direitos originais, os Direitos Humanos assumem uma dimensão fetichista e de dominação social, repetidora do formalismo positivista no tocante à plenitude de abrangência, descolada da realidade social.

É justamente nesse contexto de desapego à totalidade normativa e de afirmação democrática dos Direitos Humanos como categoria moral, anteriormente à sua consagração jurídica, que reside o desafio central da obra em apreço: a reavaliação do fetichismo dogmático através da compreensão dos Direitos Humanos como núcleo moral do Estado Democrático de Direito. Para tanto, o processo de desfetichização dos Direitos Humanos, na reatribuição de seu sentido moral original, passa por dois eixos essenciais desenvolvidos na estrutura do livro.

Primeiramente, a fundamentação ético-filosófica ressalta um problema paradoxal de constituição dos Direitos Humanos, pois, de um lado, há um crescimento desvirtuado dos textos normativos, o que contribui à imprecisão conceitual e à banalização dos Direitos Humanos. De outro lado, constitui-se uma dimensão utópica (retórica dos direitos), no sentido de um sistemático descumprimento dos pactos nacionais e internacionais de Direitos Humanos por governos e organizações sociais.

É nesse contexto que surge a importância de uma delimitação conceitual, na obra em análise, de algumas categorias essenciais ao estabelecimento de um maior rigor aplicativo dos Direitos Humanos, como, por exemplo, a da complementaridade entre Direito e Moral em Kant, como elemento legitimante do Estado Democrático de Direito.

Igualmente, a problematização do Direito através da moral possibilita visualizar uma separação analítica (não-conceitual) entre esses dois sistemas, observada na esfera de ação pública através da legislação, que limita a liberdade pessoal irrestrita de cada indivíduo. Importante mencionar também, no processo de maior rigor de análise dos Direitos Humanos inscrito na obra, as delimitações feitas sobre a conceituação e a natureza jurídica da dignidade humana, bem como a problemática das relações entre Direitos Humanos e Multiculturalismo, discussão tão afeita ao tema.

No segundo momento de desfetichização dos Direitos Humanos, já delineados os fundamentos ético-filosóficos dos Direitos Humanos, a indagação fundamental reside nos reflexos dessas delimitações conceituais na teoria do Direito, ressaltando a importância legitimante da filosofia na democratização do projeto jurídico através da projeção kantiana da autonomia no espaço público. Além disso, nesse maior democratizar do Direito frente à complementaridade filosófica, emerge o papel central da hermenêutica constitucional, possibilitadora de uma maior integração entre o Direito e as realidades sociais, afastados do fetichismo dogmático e da totalidade normativa.

As problemáticas inter-relacionais da obra referentes à cidadania, aos direitos sociais e à tolerância e, por conseguinte, aos limites da lei, estão inseridas num ambiente globalizatório, não linear, de exclusão social, onde a estabilidade westphaliana há muito deu lugar às instabilidades político-internacionais contemporâneas. O caminho rumo à democracia cosmopolita compreende, portanto, uma dupla via simultânea de ação, tanto no que se refere ao cumprimento compartilhado das funções do Estado, como no que se refere ao deslocamento de seus poderes às organizações internacionais. Esse caminho outorga visibilidade a um novo tipo de regime democrático, baseado em maior legitimidade jurídica e na democratização dos processos político-decisórios.

A teoria do Direito, nesse mar de instabilidades políticas e sociais, passa pelo desafio moral de uma nova teoria da responsabilidade particular e coletiva à construção de uma democracia cosmopolita, que “[…] supere as limitações do sistema político e da ordem jurídica do estado soberano” (Barretto, 2010, p.221). Esses desafios à teoria do Direito compreendem uma reflexão alternativa ao positivismo jurídico, trazendo o foco para o metaconstitucionalismo, na qualidade de dimensão normativa superior às normas constitucionais, como, por exemplo, os tratados internacionais de Direitos Humanos.

Nesse propósito de uma nova roupagem à teoria do Direito, a filosofia kantiana exerce uma importante “intuição diretora” na fundamentação dos Direitos Humanos e na construção da ordem jurídica metaconstitucional, com conteúdo moral e jurídico. Assim, atribui ao direito, por conseguinte, uma função de assegurar a paz justa através de sua força normativa, como reflexo dos valores morais da realidade social. É justamente nesse novo caminho metaconstitucional de abertura e de reconhecimento às instabilidades sociais, liberto do constitucionalismo liberal autorreferencial e da totalidade normativa (não plural), em que se situam os eixos normativos destinados à semantização humanitária do sistema fundado pela globalização e à continuidade do controle político-decisório em nível nacional, regional e internacional.

A riqueza da obra, O fetiche dos Direitos Humanos e outros temas, do professor Vicente de Paulo Barretto, reside na ideia central de não conduzir dogmaticamente os leitores a conclusões lógicas presentes no universo jurídico contemporâneo; assim, a própria estrutura argumentativa e “inacabada” da obra entra em confluência com o objetivo de superação da mitologia legal e da face fetichista dos Direitos Humanos.

Em uma perspectiva humanista de observação e de constituição dos Direitos Humanos pela via de consideração da pessoa humana, que realiza sua liberdade na relação com o “outro”, a obra dá-nos substancial contribuição ao fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Na constante problematização das principais controvérsias do pensamento jusfilosófico contemporâneo, numa dialética produtiva (não reprodutiva) da pergunta e da resposta, toca as feridas do formalismo dogmático, inseridas no totalitarismo de plenitude normativa, traçando as bases para a desfetichização dos Direitos Humanos.

Referências

GADAMER, H.-G. 1982. L’art de comprendre: herméneutique et tradition philosophique. Paris, Editions Aubier Montagne, 295 p.

Leonardo de Camargo Subtil – Mestre em Direito Público pela Unisinos – Bolsista Capes/Prosup. Membro do Grupo de Estudos em Mireille Delmas-Marty (Unisinos). Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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Transformação da teoria crítica – BORGUES (FU)

BORGES, B. Transformação da teoria crítica. Uberlândia: Edufu, 2010. Resenha de: NAVIA, Ricardo Joaquín. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.12, n.1, p.90-93, jan./abr., 2011.

En el siglo pasado hubo en el norte de Europa regímenes políticos nacidos por refinamientos de la inspiración iluminista que lograron una muy satisfactoria distribución del bienestar, que se abstuvieron de las guerras y del fascismo y que bregaron por los derechos humanos en el mundo, y, sin embargo, hoy desandan el camino y tienen populosos partidos xenófobos y reaccionarios. En la inmensa Rusia, hubo una sociedad nacida de una utopía postiluminista que logró eliminar el hambre y el analfabetismo de sus incontables millones, cambió el arado de madera por las centrales nucleares y ayudó a la descolonización del África, pero poco después produjo campos para disidentes, una casta de burócratas con discursos dogmáticos y terminó implosionando ante los ojos incrédulos del mundo. Por su parte, en decenas de países hay millones de ciudadanos explotados y humillados generación tras generación que apoyan entusiastamente a los propios partidos y regímenes que los han colocado sistemáticamente en esa situación.

¿Podría haber tarea más urgente que la renovación de la teoría crítica de la sociedad?

Transformação da teoria crítica de Bento Borges aborda el proceso intelectual de búsquedas y transformaciones protagonizado por Jürgen Habermas desde la teoría crítica como crítica de las ideologías hacia una pragmática universal con argumentos contrafácticos como fundamento para una teoría de lo social que pretende seguir siendo crítica y mantener sus aspiraciones de incidencia en la transformación de las sociedades contemporáneas.

Como es obvio, Borges se impuso un acotamiento temporal bien preciso para su trabajo: llegar hasta los escritos preparatorios de la teoría de la acción comunicativa, pero no aventurarse en los meandros de esa obra gigantesca, lo cual no solo se justifica por razones prácticas si no también porque allí se cierra una etapa en la evolución intelectual de Habermas. La investigación, realizada con encomiable rigor y afán de claridad, virtudes no siempre presentes en escritos de teoría social y filosofía, comienza tratando de captar el sentido fundamental de la idea crítica desde Kant y Hegel hasta las fuentes del marxismo, el propio Marx y luego dos orientaciones básicas de la Teoría Crítica de la primera generación: Horkheimer y Marcuse. Recuerda que el sentido de la “crítica” en la Escuela de Frankfurt pretende combinar la crítica dialéctica materialista de Marx con la motivación moral del criticismo kantiano y el sentido trascendental de este último en la autoevaluación de las propias capacidades racionales humanas. Ese capítulo es especialmente importante porque conecta desde el comienzo la teoría crítica con una sensibilidad ética y social que ha sido fundamental en la tradición filosófica. Es un capítulo donde quedan insinuadas algunas tensiones que han problematizado a la Teoría Crítica y al pensamiento de cambio desde entonces, a saber: tensión entre la urgencia del cambio y la preservación de los valores liberales, entre intereses de clase e intereses universales, entre teoría y práctica, entre intelectuales y militantes, entre lo material y lo moral, entre la eficiencia y la justicia; entre, al fin: la ideología, la ciencia y la filosofía.

Analiza luego el sentido de la crítica en la primera etapa de la obra de Habermas: la crítica del positivismo, la tesis de los intereses del conocimiento, la revalorización del psicoanálisis como modelo de disciplina autorreflexiva y el análisis habermasiano del capitalismo tardío que en ese momento recién comenzaba a despuntar. Precisamente el contexto histórico donde los reclamos ya no apuntan solo a la situación de explotación laboral sino también a los problemas de género, del medio ambiente, de la paz, etc., es el correlato del desplazamiento del eje en el pensamiento social de Habermas desde la centralidad de la categoría del trabajo hacia la centralidad de la acción comunicativa, que marcará su alejamiento de la matriz social marxista.

En suma, la atinada estrategia general de la investigación de Bento Borges consiste en mostrar que había toda una serie de nuevos sentidos y temas de la crítica social y cultural que empezaban a reclamar un punto de convergencia, un eje de sentido. Si bien esta primera parte del libro se completa con un seguimiento de la exploración que Habermas realiza sobre teoría de la argumentación, desde el capítulo 4, el libro nos muestra que Habermas iba a encontrar ese punto de apoyo para su teoría crítica renovada en sus estudios sobre pragmática universal y luego (capítulo 5) especialmente en el argumento contrafáctico. Analiza la construcción de la pragmática universal de Habermas como el resultado de un largo periplo por la filosofía analítica del lenguaje que comienza en las Investigaciones de Wittgenstein, de donde toma especialmente la idea de juegos de lenguaje, sigue con la teoría chomskyana de la competencia comunicativa y finaliza en la teoría de los performativos de los actos de habla de Austin y Searle. Considera la teoría de la competencia lingüística de Chomsky como sistema de reglas basadas en la estructura innata del lenguaje humano, pero muestra que Habermas va a cambiar el enfoque monológico de Chomsky por un enfoque de raíz wittgensteiniano que hace hincapié en la intersubjetividad básica del lenguaje y de la comunicación. Como dice Bento Borges: “A mútua reflexividade das expectativas é a condição para que os dois parceiros possam se ‘encontrar’ na mesma expectativa colocada objetivamente com a regra, ‘partilhar’ seu significado simbólico” (p. 108).

Sin embargo, es la teoría de los actos de habla de Austin la que va a marcar el pasaje de una teoría de la competencia lingüística a una teoría de la competencia comunicativa y con ello el pasaje de la filosofía de la conciencia a un paradigma de la comunicación. Las proferencias que son el objeto de Austin tienen “além do significado de sua parte proposicional, um significado que se liga à situação de fala como tal” (p. 118). Y, así como la competencia linguística remitía a reglas abstractas, la competencia comunicativa captada en la Pragmática Universal (PU) remite para una “situación ideal de habla”. Los Universales Pragmáticos (UP) son para Habermas condición de posibilidad del habla y de la acción comunicativa con lo cual comienza a esbozar su programa de “desenvolver uma teoria da competência comunicativa em termos de uma pragmática universal” (p. 121).

En esta época Habermas intentó varias clasificaciones de los actos de habla acercándose mucho a la clasificación de Searle en actos: comunicativos, constatativos, representativos y regulativos. Los PU son estructuras universales de la situación de habla que operan como condición de posibilidad de los diversos actos de habla. En artículos de 1970 y 1971 deja claro que esos UP implican también ciertas distinciones conceptuales (o categoriales) y ciertas condiciones de simetría sin las cuales no son posibles. Esas condiciones caracterizan idealmente a la intersubjetividad pura pero de algún modo están presupuestas aunque mínimamente en todo acto comunicativo, sin esa presuposición no es posible la comunicación. Con ello queda delineada la idea de la “situación ideal de habla”. Precisamente la SIH ya está presupuesta en los universales pragmáticos que son condición de posibilidad del habla y de la acción comunicativa. Dice Bento Borges: “A condição básica inicial para a comunicação implica numa simetria ligada aos atos comunicativos: todos os falantes-ouvintes potenciais devem ter as mesmas chances de começar, continuar e retomar discursos, através da fala e da contrafala, da pergunta e da resposta, da réplica, etc.” (p. 124). Quien actúa comunicativamente tiene necesidad de asumir ciertos presupuestos contrafácticos sobre significados, sobre pretensiones de validez, sobre la capacidad de sus interlocutores, etc. Las condiciones del habla empírica distan muchas veces de la SIH pero “esa suposición, aún cuando se haga contrafácticamente, es una ficción operante en el proceso de comunicación” (Habermas, 1989, p.155).

Para Habermas la SIH tiene un status semitrascendental, status que por cierto ha sido muy discutido durante los 90, pero que él creyó ver en la medida en que: por un lado, la SIH ya está presupuesta en toda comunicación real y efectiva y, por otro, que esa SIH, como ideal, rebasa las comunicaciones cotidianas en tanto ellas siempre encierran un cierto monto de asimetría, de coerción, de ilusión, etc. Precisamente la posible confrontación comparativa entre la SIH y las condiciones empíricas de la interacción y la comunicación reales es la que posibilita la función crítica de la SIH.

Habermas insiste en que la SIH no equivale a un principio regulativo kantiano ni a un concepto existente en el sentido de Hegel, pues si bien no se ha concretado históricamene tampoco es un mero ideal al modo de la metafísica clásica, sino algo ya implícito en las estructuras básicas que posibilitan nuestra comunicación y que de alguna manera proporcionan una imagen de la vida buena. Una “forma de vida inspirada na antecipação formal do diálogo idealizado” (p. 136), con lo cual pretende estar alcanzando un fundamento para la teoría crítica que, como él ansiaba, no sea ni contextual ni relativista.

Borges señala con acierto dos problemas pendientes en este tema de la SIH y su rol crítico-transformador. Por un lado, que no es claro de qué modo tal anticipación podría favorecer nuestro acercamiento hacia una forma mejor de vida. Y, por otro lado, que “é obscuro o status da antecipação da situação ideal de fala” (p. 136) y dedicará el resto del capítulo 5 a una investigación sobre este último aspecto a partir de los enunciados contrafácticos. Para ello, revisa extensamente – mucho más allá de Habermas por cierto – el tratamiento de los mismos especialmente en la tradición de la filosofía analítica desde Toulmin y Quine, pasando por Bunge, David Lewis, Jaegwon Kim, Nicholas Rescher, hasta los artículos canónicos de Nelson Goodman, Wilfred Sellars, Robert Stalnacker, Ernest Nagel y Saul Kripke. El centro de esa ardua exploración es la interpretación pragmática de los argumentos contrafácticos tal como sobretodo aparece en la polémica entre N. Goodman y W. Sellars. Como es sabido, se trata de un problema arduo que no está para nada resuelto. La exploración de Bento Borges es por demás seria y meritoria aunque quizás se le puede reclamar la ausencia de una síntesis final del capítulo que concretara los resultados obtenidos y su posible conexión con la propuesta habermasiana.

En términos generales un argumento contrafáctico es un razonamiento que pretende sacar conclusiones a partir de una premisa condicional que sabemos que no es verdadera (o de la negación de una premisa verdadera). En este sentido, para Habermas la SIH opera como una suposición contrafáctica con relación a la cual se puede evaluar la racionalidad comunicativa de los consensos, de las acciones cooperativas, e incluso de las instituciones y normas. De modo que provee de un criterio de evaluación crítico que apunta a un mejoramiento de las condiciones de interacción basado no en una mera norma abstracta sino en las potencialidades racionales implícitas en la estructura de nuestra intersubjetividad tal como esta se muestra en las estructuras básicas de nuestra competencia comunicativa. Como Habermas lo explicitará más adelante, consigue con ello esbozar los lineamientos para un pensamiento postmetafísico en la medida en que encuentra una pauta normativa capaz de guiar nuestras evaluaciones críticas que no es una hipóstasis metafísica ni un mero consenso contextual. Una pauta a la altura de una teoría crítica que pretenda superar el contextualismo relativista sin recaer en la metafísica clásica.

En las conclusiones, Bento Borges se asoma a las relaciones de los contrafactuales con el pensamiento trascendental y a la estructura lógica del pensamiento contrafactual. Ambos temas han tenido desde entonces desarrollos técnicos interesantes, por ejemplo en relación a los “mundos posibles” y la lógica modal; más allá de ellos, creo, con el autor, que la insistencia habermasiana en la SIH y en los contrafactuales apunta a explicar un potencial de racionalidad que la evolución sociocultural va generando y que explica la posibilidad de crítica y de proyecto más allá de las limitaciones reales o de estructuras con claros déficits de racionalidad, de justicia y de diálogo. Un anuncio realmente bienvenido en un ambiente sociocultural – el de los 80 y 90 – invadido por el pensamiento único y coartado por la tesis postmoderna del “fin de las utopías”. En esa insistencia de algún modo se sintetiza el propósito habermasiano de refundamentar una normatividad que apoye los proyectos de cambio y una epistemología que refunde esa propia teoría.

Referências

HABERMAS, J. 1989. Teorías de la verdad. In: J. HABERMAS, Teoría de la acción comunicativa: complementos y estudios previos. Madrid, Cátedra.

Ricardo Joaquín Navia – Universidad de la República. Montevideo, Uruguay. E-mail: [email protected]

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De Hitchcock a Greenaway, pela história da filosofia. Novas reflexões sobre cinema e filosofia – CABRERA (FU)

CABRERA, J. De Hitchcock a Greenaway, pela história da filosofia. Novas reflexões sobre cinema e filosofia. São Paulo: Nankin Editorial, 2007. Resenha de: KUSSLER, Leonardo Marques. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.12, n.1, p.87-89, jan./abr., 2011

Nesta segunda obra que aborda a temática de cinema e filosofia, Cabrera retoma alguns pontos de seu livro anterior (Cabrera, 2006) que geraram muitas dúvidas e mal-entendimentos, pressupondo que não se faz necessário demonstrar novamente o cinema em seu enlace com a filosofia, e sim, mostrar as repercussões acerca do que o cinema mostrou da natureza filosófica, diz o autor. Para tanto, Cabrera distingue dois momentos do livro: um primeiro, mais teórico com esclarecimentos e definições mais específicas dos conceitos de seu primeiro livro, e um segundo, que trata de novas reflexões do autor com análises e reflexões sobre novos filmes.

O autor retoma o conceito de páthos e sua presença no âmbito filosófico — sua importância ante os sistemas tradicionais (intelectualistas nas palavras do autor) de filosofia na tentativa de justificar a afetividade como parte de um modo de compreensão — e, especialmente, sua participação no momento filosófico do cinema. A grande crítica refere-se às tradicionais vertentes intelectualistas filosóficas, que entendem a compreensão somente como algo proposicional e apático, conforme Cabrera, totalmente desligada do páthos, da afetividade. A ideia de Cabrera parte do crédito que ele dá à possibilidade de conceber ideias não necessariamente nessa redoma intelectualista, que reduz a capacidade de composições de ideias ao meramente racional, duro, sem a dimensão da afetividade. O autor quer mostrar que, com a afetividade, é possível uma nova raiz de concepções ideáticas composta não só pela razão hard, mas também pela companhia do caráter afetivo, numa logopatia, diz Cabrera, onde esta carga afetiva seria um meio pelo qual seria possível conceber conceitos. Alguns filósofos, segundo ele, arriscaram-se a trazer o elemento pático na formulação de sua filosofia, tais como Hegel, Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche e Heidegger. Tais pensadores levaram a linguagem ao extremo de sua capacidade expressiva, buscando um movimento que fugisse da construção argumentativa linear. Por meio da escrita em aforismos e de poesias, diz Cabrera, tais autores fizeram críticas ao momento de expressão máxima — e também de limite — da linguagem, ao se darem conta que não conseguiam dizer tudo através dos referenciais da linguagem tradicional.

O cinema, na visão de Cabrera, seria um novo meio de se passar conceitos através de imagens. Tais conceitos não seriam simples imagens, visto que fariam tremer o espectador justamente por portarem o elemento afetivo. Da imagem “[…] não interessa somente sua eventual função de ‘auxiliares’ das ideias, mas a capacidade de interagir com elas modificando seu sentido, intensificando sua compreensão” (Cabrera, 2007, p.16). As imagens do cinema, ou cinematográficas, não se compõem pela simples representação gráfica em movimento, mas também por tudo que não aparece, ou seja, pelos sons, pelos ruídos, por todos os efeitos de câmera que em conjunto com as ideias podem representar ou descrever a realidade de uma forma mais rica. Na visão apática, própria dos filósofos intelectualistas, é omitida a dimensão afetiva, impactante da imagem, bem como sua carga de referência potencial, diz o autor. O cinema tem esta capacidade de moldar a imagem e potencializá-la no momento de impacto. O filme pode apresentar asserções de verdade, ou pretensões de verdade ou falsidade, pois, ao se pôr na função de provedor de conceitos, obviamente pode ter algum tipo de assertividade, embora não no sentido proposicional, mas situacional. Os conceitos-imagem, por meio de outros dispositivos, ligam-se a uma assertividade de tipo situacional que, no cinema, são “[…] algo semelhante às proposições para a filosofia escrita: um lugar onde os conceitos interagem e se desdobram” (Cabrera, 2007, p.19). O cinema, à medida que mostra alguns elementos, oculta outros, sendo por isso “[…] tão bipolar quanto a proposição, arriscando-se à falsidade e à inadequação” (Cabrera, 2007, p.21). O autor defende que a imagem não é facilmente saturada, pelo contrário, sua riqueza consiste em uma inquietante incompletude, um lado de sombra que deixa de mostrar. O cinema tem sua própria capacidade de comunicar-se de acordo com sua linguagem particular, “ele é uma linguagem porque dispõe de recursos para fazer afirmações, ou seja, para predicar algo acerca de algo” (Cabrera, 2007, p.22). O autor ainda ressalta que a assertividade das imagens não exclui o fictício, o fantástico, pois, os conceitos-imagem, ao contrário dos conceitos-ideia, não temem trazer sua própria verdade por intermédio do extraordinário, do implausível. Os impactos emocionais que os filmes causam nos espectadores fazem-nos perceber mais claramente a temática que o filme apresenta. Ao observar os conceitos-imagem de um filme, podemos compará-los com os de um outro filme que trata do mesmo assunto e filtrar de acordo com a melhor compreensão e gosto pessoal. Podemos simplesmente gostar do conteúdo do filme e rejeitar a tese imagética que ele carrega consigo. “Existem realidades às quais temos melhor acesso pelo auxílio de algum impacto emocional, mas uma vez que se teve o acesso e se compreende do que se trata, pode perfeitamente rejeitar-se” (Cabrera, 2007, p.27). O interessante a ressaltar nesta última parte descrita é o caráter filosófico do não enterrar a ideia refutada, pois, tal como na filosofia não se pode enterrar uma ideia refutada, o mesmo se dá no âmbito cinematográfico, pois parece atrelado à análise de conceitos, que são reformuláveis, como na filosofia. Uma nota de Cabrera explica que não necessariamente temos que explicar filosoficamente as coisas de um modo duro, apático, senão por um caráter mais aberto que leve de volta à essência reflexiva e inconclusiva filosófica, diz o autor, pois dispomos de inúmeros tipos de linguagens que expõem conceitos.

A segunda parte do livro apresenta alguns exercícios filosóficos e analíticos de filmes, tal como no primeiro livro, carregando títulos no mínimo provocativos, como por exemplo: “Kant na lista de Schindler?”, ou “Schelling, Amadeus e o pior diretor de cinema de todos os tempos”, ou então “Schopenhauer e Roberto Benigni. A vida é bela: análise de uma frase absurda e de um filme deplorável”. Aqui, Cabrera tenta colocar em prática suas teses desenvolvidas anteriormente e demonstrar a importância do caráter filosófico, de fato, nos filmes, no momento em que as problemáticas do cinema se tocam com as da filosofia — não necessariamente confluindo-se.

Por último, o autor destaca, de forma bem-humorada, o problema da tradução de títulos do cinema para a língua portuguesa, dividindo os tipos de tradução e comparando o nível de alteração do original para o traduzido. É importante ressaltar a defesa do autor ante os ataques críticos que recebeu em seu primeiro livro, o que mostra que sua pretensão se dá pela simples exposição de suas concepções, sem “pontos finais”, mas como alternativas somente. Enfim, sem dúvida, apesar das críticas, trata-se de um ótimo livro, que traz questões antigas sob uma nova perspectiva de pensar, com caráter transdisciplinar e contemporâneo.

Referências

CABRERA, J. 2006. O cinema pensa. Rio de Janeiro, Rocco, 399 p.

Leonardo Marques Kussler – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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Deleuze, a arte e a filosofia – MACHADO

MACHADO, R. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2009. Resenha de: AMARANTE, Ana Helena. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.11, n.3, p.351-352, set./dez., 2010.

O livro de Roberto Machado aborda, a partir de distintas dimensões da obra deleuziana, aquilo que, conforme o autor, é a grande singularidade deste pensamento – a diferença em detrimento da identidade.

Ele mostra como este é o fio que conduz esta filosofia, perseguindo em seu estudo a heterogeneidade própria deste pensamento em seus encontros com a arte, com a ciência, com a própria filosofia. Em seu livro, Machado persegue essa heterogeneidade, pois acredita que explicitá-la é evocar a própria questão que Deleuze não cessa de fazer acerca do “que é pensar”, retirando a filosofia do seu habitual papel de reflexão sobre outros domínios, sejam eles a história da filosofia, a literatura, o cinema, a ciência; para pensar com eles e não mais sobre eles.

Deleuze crê na filosofia como aliança e não como um pensamento reflexivo, o que Machado explora no desenvolvimento de seu trabalho, mostrando a maneira como estas alianças vão sendo constituídas, os encontros de Deleuze com outras filosofias e o modo como elas vão sendo utilizadas, seus conceitos modificados ao receberem outros elementos, outros contextos. Em relação à arte não é diferente, e a prioridade está nas ressonâncias entre cada domínio e não em uma suposta prioridade de um sobre o outro.

Mas Machado observa que, embora Deleuze conceda à exterioridade da filosofia uma importância evidente, o seu exercício é filosófico, já que o pensamento, quando exposto às forças que o fazem pensar, cria conceitos, e esta é, conforme o próprio Deleuze, a especificidade filosófica. A arte e a ciência não precisam da filosofia para o exercício do pensamento; fazem-no a partir de suas especificidades, criando sensações e funções, respectivamente. Mas a criação de conceitos é a prioridade filosófica, o que Machado destaca na obra deleuziana, afirmando que as questões dessa filosofia vêm prioritariamente da tradição filosófica e se colocaram a partir da filosofia e chegando mesmo a afirmar que Deleuze “é um historiador da filosofia que ousou pensar filosoficamente” (Machado, 2009, p.19).

Mas, simultaneamente, Machado quer mostrar o quanto o título de “historiador da filosofia” não cabe a Deleuze, já que sua obra jamais consiste em buscar uma identidade na leitura que faz dos filósofos, mas afirmar sua diferença. Esta operação Machado examina detalhadamente nas leituras deleuzianas de Foucault e Nietzsche, ressaltando as torções, os deslocamentos ou interferências que essa leitura instaura, destacando o processo de colagem de Deleuze.

Esse processo, já trabalhado em Deleuze e a filosofia, obra de Machado de 1990, agora é ampliado, já que inclui a filosofia de Deleuze ao encontro da arte e literatura (Machado, 2009, cf. capítulos 6, 7 e 8). É o próprio Deleuze que nomeia dessa maneira o procedimento de, sobre a história da filosofia, produzir as torções necessárias para que os conceitos respondam a outros problemas; para tanto é necessário que recebam outros elementos, sendo remanejados para outros contextos.

O autor estabelece uma analogia com as técnicas da colagem na pintura, onde a obra é o encontro com materiais distintos numa mesma tela, e refere-se também ao movimento dadaísta.

Machado quer tornar evidente essa operação de colagem na obra de Deleuze, objetivo que parece mesmo conduzi-lo na leitura dessa filosofia, pois privilegia as íntimas relações entre a colagem deleuziana e a instauração da diferença em detrimento da identidade. Isto porque esse encontro de “materiais diversos numa mesma tela” não faz referência a nenhuma identidade ou totalidade, mas busca justamente as diferenças entre os elementos, as diferenças de diferenças, sem nenhuma sujeição a uma suposta identidade.

Daí a geografia do pensamento e não uma história, característica que Machado desenvolve desde a introdução do seu livro. Deleuze quer a constituição de espaços onde seja possível colocar distintos pensadores em ressonância, sem nenhuma obediência a uma história progressiva e linear do pensamento. Nesse espaço o privilégio é dado ao pensamento sem imagem, isto é, o pensamento que não sabe de antemão o que pensa, sem pressupostos, o “espaço da diferença”.

Machado, ao tornar evidente a singularidade da filosofia de Deleuze, persegue o que em cada encontro, com pensadores da filosofia ou não, faz vibrar essa singularidade. Isto é, ele quer apanhar o próprio exercício deleuziano ao encontro de seus intercessores, observando também como esses encontros constituem a construção da filosofia de Deleuze.

Nesses encontros, Machado ressalta a importância de Nietzsche como inspiração fundamental na construção de uma filosofia da diferença, e parece-nos igualmente ser o momento em que Machado apresenta as suas leituras de um modo mais ousado, arriscando-se a uma colagem própria com os conceitos de vontade de potência e eterno retorno, diferença e repetição.

Poderíamos dizer que, ao mesmo tempo em que Machado percebe a inspiração nietzscheana de Deleuze, é também contagiado por ela, já que procura, em certa medida, a vontade que anima a filosofia deleuziana. E esta certamente é a singularidade de seu estudo.

Referências

MACHADO, R. 1990. Deleuze e a Filosofia. Rio de Janeiro, Graal, 242 p.

Ana Helena Amarante – Centro Universitário Metodista IPA. Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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The sins of the nation and the ritual of apologies – CELERMAJER (FU)

CELERMAJER, D. The sins of the nation and the ritual of apologies. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. Resenha de: SANTOS, César Schirmer dos. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.11, n.3, p.340-342, set./dez., 2010.

Qual o lugar e o papel da desculpa coletiva nas práticas das democracias liberais modernas? Uma primeira resposta, mais clássica, diria que tal prática não tem lugar ou papel algum. Não teria lugar algum, dado que pedidos de desculpas precisariam ser feitos por indivíduos, e não teria papel algum, dado que os erros do passado seriam assunto do judiciário.

No entanto, têm se visto democracias liberais pedindo desculpas coletivas por crimes e atrocidades cometidos no passado contra indivíduos com identidades sociais bem marcadas. Por exemplo, nações europeias pediram desculpas aos judeus pelo Holocausto, e às nações dos novos mundos pelas violações contra populações locais nos passados colonial e pós-colonial. Essas demonstrações de arrependimento não são bem explicadas pela concepção clássica de democracia liberal. Mas, para Celermajer, isso não é motivo para rejeitá-las, e sim para se repensar a democracia liberal moderna e descrever de maneira acurada suas atuais bases normativas.

A tese fundamental de Celermajer é que a normatividade das democracias liberais é constituída por duas camadas, por assim dizer. Há uma camada mais superficial e manifesta, a qual é composta por indivíduos que são responsabilizáveis pelos seus atos individuais, de acordo com leis positivas ou normas socialmente aceitas. E há uma camada mais profunda, composta pelo regramento de base da coletividade. Para Celermajer, a desculpa coletiva passou a ter lugar nas democracias liberais, a partir dos anos 1970s e 1980s, porque passou a haver reconhecimento de que indivíduos de minorias sofreram genocídio ou segregação por causa do regramento de base, o qual possibilitou as práticas legitimadas de genocídio ou segregação por indivíduos da maioria.

Apesar de serem um fato, as desculpas não são suficientes, para Celermajer, para redimir as coletividades pelos seus erros passados. Seria ofensivo às vítimas e aos seus descendentes tomar uma mera performance verbal como o suficiente para se fazer justiça. No entanto, o pedido de desculpas coletivas, na medida em que é um reconhecimento da falha das bases normativas anteriores, abre espaço para a justiça e se mostra como um importante indicador de modificação normativa positiva da sociedade.

Os pedidos coletivos de desculpas fazem parte de um kit de modos de lidar com os abusos cometidos no passado, nas democracias liberais modernas. Outras modalidades são as comissões da verdade e as reparações. Enquanto as comissões da verdade buscam trazer à luz os abusos cometidos no passado, e as reparações buscam trazer equidade aos descendentes de injustiçados, as desculpas coletivas são performances que manifestam o arrependimento daquele que fala. No caso, o que temos é um representante reconhecido de uma coletividade, como um presidente ou ministro, falando pela instituição que representa, e o arrependimento em questão é o da instituição, através da manifestação de arrependimento do representante. Para Celermajer, no caso usando as ferramentas conceituais de John Austin contra ele mesmo, um pedido de desculpas não é a mera expressão de um sentimento, mas sim o comprometimento daquele que se desculpa com um certo modo de ser, com certa identidade. Ou seja, usando o jargão técnico, no caso o ato de fala “Por favor, nos desculpe” é comissivo, não comportamental. Aquele que pede desculpas está manifestando que se comprometeu com uma maneira de ser diferente daquela que tinha antes, o que quer dizer que quem se desculpa está manifestando remissão, mudança na identidade, autoaperfeiçoamento e a esperança de um futuro distinto do passado.

Uma boa parte do livro de Celermajer responde à crítica de que a desculpa não tem lugar nas democracias seculares por ser uma figura da pré-modernidade teológica e teocêntrica. Essa crítica tem dois elementos. Primeiro, diz que toda responsabilidade é individual, nenhuma responsabilidade é coletiva. Segundo, diz que em democracias seculares tudo o que há é justiça enquanto prática judiciária apoiada em leis estabelecidas pelo legislativo, não havendo lugar para o arrependimento. Celermajer apresenta uma resposta única para essas duas críticas: as democracias seculares modernas são capazes de reconhecer que seus arcabouços seculares passados levaram a injustiças praticadas por indivíduos contra membros de minorias, e tal reconhecimento é a base para que a própria instituição lamente ter sido como foi e busque ser e agir de outra forma no futuro, através da modificação do seu arcabouço normativo. Tal lamento e arrependimento têm lugar na democracia secular liberal moderna, porque faz parte da identidade da mesma a busca das melhores bases normativas, de modo que o reconhecimento da falha nas bases normativas do passado, e das suas graves consequências, é um modo por excelência de satisfazer tal busca. A desculpa coletiva, enquanto modo de lidar com o passado, é um comprometimento com uma base normativa mais sólida e justa, no presente e no futuro.

Assim, o papel da desculpa coletiva é a demonstração do comprometimento, da parte de uma coletividade ou instituição, com um futuro mais sólido, do ponto de vista normativo, do que o passado. De modo que a desculpa coletiva não está aí para condenar e punir a sociedade passada como um todo, o que seria absurdo. Tudo o que segue da desculpa coletiva é um compromisso com a mudança normativa.

A entrada da desculpa coletiva como modalidade de ato de fala típico das democracias liberais modernas é o retorno de uma prática linguística religiosa e pré-moderna, visto que tal tipo de performance não era um elemento da concepção clássica de democracia e era, nas modalidades do perdão e do arrependimento, típica do judaico-cristianismo. Mas, para Celermajer, o mero fato do tipo de performance ser pré-moderno não é suficiente para rejeitá-lo como elemento da democracia moderna. Assim como houve mudança entre o mundo heterônomo e feudal e o mundo autônomo e moderno, há mudança entre o mundo moderno da responsabilidade meramente individual e o mundo moderno da responsabilidade individual e coletiva, sendo que elementos religiosos e pré-modernos explicam, em larga medida, a moderna responsabilidade coletiva, ao menos no que diz respeito aos pedidos de desculpa coletivos.

Poderíamos perguntar de que vale uma desculpa, isto é, uma mera voz, ante atrocidades e discriminações. De maneira incisiva, Celermajer mostra que vale muito, visto que um pedido de desculpas é uma nova ação, no presente. A desculpa insere algo novo na coletividade e, no caso, insere algo que não era típico do passado coletivo, visto que se trata, justamente, de um arrependimento ante as injustiças cometidas e mesmo estimuladas pelas bases normativas do passado. Assim sendo, a desculpa amplia o leque de ações típicas das democracias liberais, as quais passam a ter o ato de fala performativo como uma das suas possibilidades, além das intervenções legais e institucionais.

O questionamento do papel da desculpa nas democracias liberais modernas poderia ir adiante, questionando as bases e apoios do pedido de desculpas. É fácil estabelecer as bases normativas do pedido de desculpas do fiel, na tradição judaico-cristã, pois esse se apoia em Deus, o absoluto. No entanto, dado que as democracias modernas se apoiam apenas nas regras que os homens de fato deram para si mesmos, esse caminho está fechado. A solução de Celermajer a tal problema é pôr em evidência que as democracias modernas se apoiam em diversos substitutos do absoluto teológico, como, por exemplo, os direitos universais e cláusulas pétreas constitucionais. Aqui divirjo de Celermajer, pois me parece que a democracia liberal não precisa desses procuradores seculares do absoluto, dado que está nas suas bases, ao menos desde o Contrato social de Rousseau, a distinção entre fato e direito. A solução clássica para tal tipo de problema é apoiar o arrependimento nas bases normativas com as quais a sociedade se compromete, as quais são reconhecidas como as normas de direito legítimas, ao mesmo tempo em que se reconhecem e se denunciam as normas de fato do passado como ilegítimas. Assim, não me parece que seja preciso usar o recurso de preservar a forma da desculpa no mundo teocrático, abandonando sua substância, visto que há mudança na forma da desculpa: sua base já não é o absoluto, mas sim o direito, em oposição ao fato. Imagino que alguns diriam que o direito é outra modalidade secular do absoluto, mas eu espero pelo argumento.

César Schirmer dos Santos – Instituto de Desenvolvimento Cultural. Porto Alegre, RS, Brasil E-mail: [email protected]

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Freedom, determinism, and causality – SOBER (FU)

SOBER, E. Freedom, determinism, and causality. In: E. SOBER, Core. Question in Philosophy: A Text with Readings. 5ª ed. New Jersey: Prentice Hall, p.293-302, 2008. Disponível em: http://criticanarede.com/eti_livrearbitrio.html. Acessado em: 06/03/2009. Resenha de: CID, Rodrigo. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.11, n.3, p.348-350, set./dez., 2010.

A primeira tese de Sober é que não podemos agir livremente, a não ser que o Argumento da Causalidade ou o Argumento da Inevitabilidade tenham alguma falha. O Argumento da Causalidade é o seguinte: nossos estados mentais causam movimentos corporais; mas nossos estados mentais são causados por fatores do mundo físico. Nossa personalidade pode ser reconduzida à nossa experiência e à nossa genética. E tanto a experiência quanto a genética foram causados por itens do mundo físico. Assim, o meio ambiente e os genes são os causadores de nossas crenças e desejos. E estes, por sua vez, causam o nosso comportamento. Como, em última instância, não escolhemos nem os nossos genes e nem o meio ambiente no qual adquirimos as nossas experiências, também não escolhemos o nosso comportamento: ele é causado por fatores além do nosso controle; isso nos faz não ser livres. E o Argumento da Inevitabilidade é exposto por Sober assim: se uma ação foi praticada livremente, então deve ter sido possível ao agente agir de outra forma. Mas, dado que as causas de nossas ações são as nossas crenças e desejos, não poderíamos ter agido diferentemente de como elas nos determinam a agir.

A primeira objeção apresentada no artigo é a de que há categorias de ações não livres, como as causadas por lavagem cerebral e por força da compulsão, e que essas diferem substantivamente das ações que são consideradas livres. A resposta de Sober é dizer que não há essa diferença substantiva, e que, por exemplo, a lavagem cerebral é, assim como a educação, apenas mais um tipo de doutrinação. Logo, se a lavagem cerebral nos priva da liberdade, a educação também o fará. E, no caso da compulsão, a única diferença entre as atitudes de compulsivos e não compulsivos seria no conteúdo do que cada um quer: os compulsivos querem coisas que normalmente não queremos – como, por exemplo, lavar as mãos 50 vezes por dia. Mas isso não é motivo para falarmos que eles são menos livres que os não compulsivos.

Depois de responder a objeção acima, Sober se pergunta se pensar as nossas ações como parte de uma rede causal é inconsistente com pensar que pelo menos algumas ações são livres. Sua resposta começa com uma explicação sobre causalidade, determinismo e indeterminismo e depois mostra que esses conceitos se conectam ao problema do livre-arbítrio. Sober vê a causa de um acontecimento como o conjunto de causas que permitem que um acontecimento ocorra. E ele se pergunta se essas causas, mais que permitem, determinam um acontecimento. Se aceitamos que, ao considerarmos todos os fatores causais relevantes para a ocorrência de um certo fenômeno, só um futuro é possível, estaríamos aceitando o determinismo; e se aceitássemos que uma descrição completa desses fatores causais permite a possibilidade de ocorrência de mais de um futuro, então estaríamos aceitando o indeterminismo.

A discussão entre determinismo e indeterminismo acaba se direcionando para a discussão sobre as partículas fundamentais da realidade: se elas forem determinísticas, então tudo que for composto dessas partículas será determinístico, e se elas forem indeterminísticas, assim também o será tudo que for composto dessas partículas. Assim, se as partículas fundamentais forem determinísticas, então os genes, o meio ambiente, as crenças, os desejos e o comportamento das pessoas serão determinísticos. Se tais partículas forem indeterminísticas, então os genes, o meio ambiente, as crenças, os desejos e o comportamento das pessoas não serão determinísticos, ou seja, esses fatores não determinam o comportamento, apenas tornam a sua ocorrência mais provável. Tal probabilidade, no indeterminismo, representa um aspecto genuíno do mundo, e, assim, o acaso é visto como parte da natureza do mundo. Enquanto, no determinismo, tais possibilidades apenas representam a nossa ignorância com relação à descrição completa do mundo ou de certo fenômeno.

Sober, quanto à relação entre determinismo e indeterminismo com a liberdade, nos diz que, se o determinismo nos tolhe a liberdade, o indeterminismo também o faz. Pois inserir o acaso como algo relevante na formação de pensamentos e desejos não nos tornará mais livres; afinal, o acaso também está fora de nosso controle. E o mesmo ocorreria para as nossas crenças e desejos: adicionar o acaso a eles não fará com que o nosso comportamento seja mais livre. O ponto principal da discussão, diz Sober, é o fato de coisas fora do nosso controle causarem o nosso comportamento, e não se somos ou não sistemas determinísticos.

De qualquer forma, para falarmos de sistemas indeterminísticos, teríamos que asserir que é possível haver causalidade num tal sistema. O exemplo que Sober nos dá de causalidade num sistema indeterminístico é assim: há uma roda de roleta, a qual supomos que é um sistema indeterminístico – rodar a roleta não determinará onde a bola irá cair – e que está conectada a uma pistola, de modo que, se sair zero na roleta, a pistola disparará e matará o gato que estava preso em frente à pistola. Suponhamos também que a roleta foi girada e saiu zero. Neste caso, fazer a roleta girar causou a morte do gato; no entanto, “fazer a roleta girar” é um sistema indeterminístico. Logo, é possível haver causalidade num sistema indeterminístico. Dessa forma, a causalidade não requereria o determinismo; ela seria um fato do mundo, mesmo que o determinismo fosse falso. Com isso, Sober quer mostrar que, embora não seja impossível haver um sistema indeterminístico com causalidade, isso não nos daria liberdade, tal como ser um sistema determinístico não daria. O ponto principal, como já foi dito, é a relação entre a liberdade e o fato dos comportamentos serem causados por coisas fora de nosso controle, e não a questão sobre se somos ou não sistemas indeterminísticos.

Sober termina seu artigo falando um pouco da distinção entre determinismo e fatalismo: o primeiro assere que as pessoas têm destinos que não podem ser modificados, independentemente do que elas façam no presente; e o segundo nos diz que é o presente que determina o futuro, ou seja, ele diz que dado o conjunto de crenças e desejos de um agente, seu comportamento será determinado por eles, mas, ao mesmo tempo, permite que, se o conjunto de desejos e crenças fosse diferente, o comportamento seja diferente. O fatalismo nega que nossos desejos e crenças sejam relevantes para o nosso comportamento e que o nosso comportamento seja relevante para o que ocorre. Aceitar que podemos influenciar o que ocorre, diz-nos Sober, é negar o fatalismo, e não o determinismo.

O problema da tese de Sober é que (i) não é tão clara a diferença entre determinismo e fatalismo, se aceitamos o naturalismo, e que (ii) seus argumentos não provam que seja possível haver causalidade num sistema indeterminístico. Penso que (i), pois se um determinismo completo da realidade for verdadeiro ou se o fatalismo for verdadeiro, então desde o início de todas as coisas – ou desde sempre – o destino de cada objeto já estava traçado. E sobre (ii), penso que não é possível supor que a roleta do exemplo de Sober seja um sistema indeterminístico sem cair num regresso ao infinito ou em petição de princípio. Pois, se queremos provar que há causalidade num sistema indeterminístico, não podemos de início pressupor que um sistema determinístico, tal como uma roleta, seria um sistema indeterminístico, pois é a possibilidade de existência de um sistema indeterminístico que deve ser provada antes de falarmos de causalidade num tal sistema. E sobre o regresso, a pressuposição de que precisamos de uma roleta para indeterminar a situação mostra que, para pensarmos que a própria roleta é indeterminística, devemos pensar que há outra coisa a tornando indeterminística – coisa que nos faria ter de pressupor a existência de outra roleta. Mas, para fazer dessa última roleta um sistema indeterminístico, precisaríamos ainda de outra roleta, e assim por diante.

Entretanto, concordo com Sober que o ponto principal na discussão sobre a liberdade é a causalidade, e não a luta entre determinismo e indeterminismo, pois ambos – se um sistema indeterminístico for possível – nos removem igualmente a liberdade. O que me parece que devemos debater – e que também parece a Sober – é se é verdade que “se causas fora de nosso controle determinam nossas ações, então não somos livres” e “se é possível que as escolhas estejam fora dos processos causais”, ou seja, se o argumento da causalidade é inválido.

Rodrigo Cid – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica Largo de S. Francisco de Paula. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

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A constitution of many minds: Why the founding document doesn’t mean what it meant before – SUNSTEIN (FU)

SUNSTEIN, C.R. A constitution of many minds: Why the founding document doesn’t mean what it meant before. New Jersey: Princeton University Press, 2009. Resenha de: CONSANI, Cristina Foroni. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.11, n.3, p.343-347, set./dez., 2010.

Uma boa forma de começar a ler um dos mais recentes trabalhos do renomado constitucionalista norte-americano Cass Sunstein é compreendendo o que o autor entende por A Constitution of Many Minds, conceito esclarecido logo no prefácio de seu livro, a saber: quando muitas pessoas pensam algo, seu ponto de vista deve ser levado em consideração nos momentos de interpretação da Constituição, interpretação esta que, segundo seu entendimento, não se restringe ao Poder Judiciário, mas, ao contrário, envolve as opiniões da sociedade democrática como um todo. É exatamente a necessidade de incorporar as considerações públicas relevantes às decisões referentes à legislação constitucional que fundamenta o many minds argument, princípio norteador desse livro que analisa a interpretação constitucional a partir de três enfoques distintos, quais sejam: o tradicionalismo, o populismo e o cosmopolitismo, e que tem como meta principal mostrar o quanto e por que o many minds argument pode ou não ter grande valor.

A estrutura da obra é definida pela possibilidade de encontrar, em cada uma das correntes interpretativas analisadas, um apelo ao many minds argument. O livro é composto por quatro partes. A primeira delas contém apenas um capítulo e está dedicada a discutir e problematizar questões de interpretação constitucional em geral. O autor deixa claro o quão complexa a interpretação pode ser ao apresentar distintas correntes que disputam o modo pelo qual a hermenêutica constitucional pode se dar a fim de aprimorar a Constituição vigente, entre elas são destacadas o originalismo, o perfeccionismo, o tradicionalismo, o populismo e o cosmopolitismo, sendo que a estas três últimas são dedicadas as outras partes da obra. A segunda parte, contendo os capítulos 2, 3 e 4, explora o tradicionalismo, dando principal atenção ao que o autor chama de minimalismo burkeano. A terceira parte, que inclui os capítulos 5, 6 e 7, analisa o Populismo e a forma pela qual o judiciário e outras instituições governamentais devem lidar com a opinião pública nos momentos de decisão de questões controversas, sempre tendo em vista a manutenção da ordem social e o aperfeiçoamento do sistema legal. A quarta e última parte do livro contém somente o capítulo 8 e trata do cosmopolitismo. A principal questão analisada é se e quando as cortes constitucionais devem fazer uso da jurisprudência estrangeira para orientar e fundamentar seus julgamentos.

O debate acerca da influência do many minds argument é introduzido por Sunstein recorrendo à consagrada divergência entre James Madison e Thomas Jefferson, ocorrida nos primórdios da aprovação da Constituição americana, acerca do processo de alteração desse documento. Enquanto para o primeiro as mudanças constitucionais poderiam ocorrer apenas em situações extraordinárias, para o segundo uma constituição deveria ser repensada pelas muitas opiniões de cada geração e, dessa forma, estar sempre aberta a reformas. Sunstein relembra que parece haver um entendimento padrão na sociedade americana: Madison estava certo, Jefferson estava errado, e os Estados Unidos da America têm sido governado pela mais antiga constituição existente, a qual sofreu poucas modificações ao longo de mais de 200 anos.1 Para Sunstein, entretanto, a estabilidade constitucional é um mito e, na prática, ocorre aquilo que o ele chama de “ a vingança de Jefferson”, ou seja, a Constituição americana tem sofrido frequentes reformulações, não por meio de emendas formais, mas sim por meio de práticas sociais e interpretações que tornam o documento atual diferente daquele erigido pelos pais fundadores. A mudança constitucional, assegura Sunstein, “tem ocorrido por meio de julgamentos de muitas opiniões e de gerações sucessivas, de tal forma que captura algumas das esperanças de Jefferson” (Sunstein, 2009, p.3). O ponto central defendido pelo autor é que as mudanças constitucionais “têm sido um produto de processos democráticos ordinários, produzindo ajustes na compreensão constitucional ao longo do tempo” mais do que fruto da interpretação judicial.2 Nesse sentido, sempre que a Suprema Corte estabelece um novo princípio constitucional ou um novo entendimento de um velho princípio, isso nunca se dá em um vácuo social, mas, ao contrário, frequentemente endossa retroativamente um julgamento que encontra amplo suporte social.

A fim de corroborar sua tese a respeito da influência do many minds argument no processo de interpretação constitucional, Sunstein recorre ao Teorema do Júri de Condorcet, segundo o qual grupos agirão melhor do que indivíduos e grandes grupos melhor do que pequenos, desde que duas condições sejam encontradas: (a) a regra da maioria seja utilizada; (b) quando for mais provável que cada pessoa não esteja certa. O autor acredita que o Teorema do Júri possa servir de parâmetro para a lei constitucional uma vez que, enfatizada “a aritmética por trás da teoria pode-se ter pistas de quando many minds argument faz sentido e quando falha” (Sunstein, 2009, p.9).

As possibilidades de sucesso ou de fracasso do many minds argument são então analisadas dentro de cada um dos enfoques eleitos por Sunstein. O primeiro deles é o tradicionalismo. Os defensores desta corrente interpretativa entendem que, no momento da decisão de questões controversas, tradições estabelecidas há longo tempo devem ser levadas em consideração. O autor confere especial atenção, nesta parte de seu trabalho, ao que chamou de minimalismo burkeano, que encontra fundamento nas teses de Edmund Burke, as quais enfatizaram a necessidade de confiar na experiência e especialmente na experiência de gerações, demonstrando grande respeito pelas tradições. Inicialmente Sunstein adverte que existem muitas formas de minimalismos e que o burkeano é apenas uma delas. As interpretações minimalistas caracterizam-se por se realizarem de modo superficial e limitado, considerando poder evitar, desta forma, grandes equívocos e, por outro lado, mostrando um alto grau de respeito com aqueles que discordam em grandes questões. O que chama a atenção de Sunstein nessa corrente interpretativa é exatamente o fato de que as regulações minimalistas deixam amplo espaço para o debate e a discussão democrática.

Além disso, Susntein relaciona o entusiasmo de Burke a respeito das tradições com o Teorema do Júri de Condorcet. Burke considera que as tradições incorporam o julgamento de muitas pessoas operando ao longo do tempo. Se incontáveis pessoas tiverem comprometido a si mesmas com certas práticas, então isso é de fato possível; de acordo com o fundamento de Condorcet, “a ‘sabedoria latente’ permanecerá com eles, principalmente se a maior parte das pessoas estiver certa e não errada. O fato da tradição persistir proporciona uma salvaguarda adicional aqui: a persistência atesta sua sabedoria e funcionalidade, pelo menos como regra geral” (Sunstein, 2009, p.51).

Embora encontre um apelo ao many minds argument nas interpretações tradicionalistas, Sunstein não nega que decisões apoiadas em tradições podem ser problemáticas, pois “algumas tradições não são produzidas pela sabedoria, mas por uma espécie de cascata social, em que práticas persistem não porque diversas pessoas decidem independentemente em seu favor, mas porque as pessoas simplesmente imitam outras” (Sunstein, 2009, p.52). Nesse caso, segundo ele, o tradicionalismo é bastante atrativo quando se trata de temas como separação de poderes, federalismo e direitos de possuir armas, mas, quando se fala em igualdade, esse enfoque tem menos força. Há um grande temor de que as tradições sejam injustas ou arbitrárias, haja vista a sociedade frequentemente progredir submetendo-as a sérias mudanças (como, por exemplo, quando a Suprema Corte considerou inconstitucional a discriminação sexual contra as mulheres, a qual estava pautada no hábito e na tradição, mas não encontrava suporte racional, ou ainda, a decisão que derrubou a proibição da sodomia homossexual). Por fim, o autor considera que uma posição mais adequada seria aceitar a tradição como “o local para começar, mas não para terminar”, uma vez que as cortes poderiam fazer uso de um enfoque mais racionalista, “testando se a tradição é sensata em princípio” (Sunstein, 2009, p.120).

Sunstein definitivamente não é um simpatizante de uma supremacia judicial na interpretação constitucional e também encontra pouca legitimidade nas interpretações originalistas, haja vista não verificar a possibilidade de decisões serem tomadas de forma abstrata, sem considerar o contexto social e o conjunto institucional existente em cada país em uma determinada época. Segundo ele:

Se nós acreditamos que o significado da Constituição é estabelecido pelo entendimento original de seus ratificadores, então o próprio povo está provavelmente pouco equipado para descobrir esse significado, e juízes prestariam pouco ou nenhuma atenção ao desejo do povo. Mas se nós acreditamos que o significado da Constituição é legitimamente estabelecido pela referência a julgamentos morais e políticos, e se as cortes não são especialmente boas para fazer esses julgamentos, então o constitucionalismo popular […] tem uma apelo maior (Sunstein, 2009, p.126).

Assim, o constitucionalismo popular, contrapondo-se ao Originalismo, considera que a interpretação constitucional requer julgamentos de princípios básicos, os quais são mais confiáveis se feitos pelo público do que pelo judiciário. Sunstein analisa essa corrente interpretativa levando em consideração principalmente três aspectos: public backlash (definido como a intensa e sustentada desaprovação pública de uma regulação judicial, acompanhada de passos agressivos de resistência à decisão para retirar sua força legal); as consequências que podem advir de se ignorar o public backlash; e, por fim, a adoção de uma espécie de humildade judicial (judicial humility), que deveria ser encampada pelos juízes diante de casos pouco comuns e de grande relevância, para os quais não houvesse aprovação popular para o seu posicionamento inicial. Sunstein reconhece que, para as visões mais convencionais sobre a interpretação constitucional, a opinião pública é considerada irrelevante, uma vez que a meta central da lei constitucional, ou pelo menos da revisão judicial, é impor supervisão e controle aos julgamentos públicos e, às vezes, até mesmo anular esses julgamentos. Questionando essa visão, o autor apresenta duas razões pelas quais as convicções públicas intensamente asseguradas poderiam importar. A primeira é consequencialista; a segunda é epistêmica.

O consequencialismo é um modo de interpretação segundo o qual o juiz leva em consideração a repercussão de sua decisão, a qual pode implicar o ultraje (outrage) à população. O ultraje é o caso extremo de conflito entre a Corte e a nação, podendo causar até mesmo o não cumprimento da determinação judicial pelos oficiais do governo – Poderes Executivo e Legislativo. Um diferente modo de lidar com o public backlash seria o julgamento kantiano, que consiste em julgar de acordo com a lei, não importando de forma alguma as consequências do julgamento. De acordo com este enfoque, o papel da Corte é dizer o que a lei é, e suas conclusões sobre esse ponto não deveriam ser afetadas pela vontade pública. De fato, uma aguda separação entre lei e política poderia ser pensada para contar com um compromisso com o julgamento kantiano. No contexto de potenciais invalidações, o argumento para o julgamento kantiano parece até mesmo mais forte. Por que deveriam os juízes apoiar medidas inconstitucionais (por exemplo, discriminação racial ou detenções sem o devido processo legal ou restrições à liberdade de expressão) meramente porque o público seria ultrajado se eles se recusassem a fazer isso? A deferência ao ultraje (do) público parece inconsistente com o papel dos juízes em um sistema constitucional. Considerando o ultraje e seus efeitos, restam duas opções: talvez o julgamento kantiano seja realmente a melhor, porque a cegueira em relação às consequências provavelmente produzirá melhores resultados. Contudo, Sunstein considera que, em alguns casos, os juízes têm como obter informações suficientes para saber se o ultraje ocorrerá ou não. Assim, o autor aposta em um uso equilibrado do julgamento kantiano com o julgamento consequencialista.

A razão epistêmica, por outro lado, considera quem teria melhores condições de tomar a decisão correta. Trata-se então de um teste para a força do many minds argument. Para que esse princípio seja realmente levado em consideração, Sunstein acredita que o público deve ter uma visão clara a respeito de fatos e valores capazes de sustentar um posicionamento jurídico. Neste ponto surgem também os problemas relacionados à formação da opinião pública tais como a influência de preconceitos, preferências sistemáticas, efeito cascata e polarização. Entretanto, considerando que o Constitucionalismo Popular, cujas raízes podem ser encontradas no período fundacional, concede amplo papel de interpretação da Constituição ao We the People, mais que ao judiciário, o autor defende que, em circunstâncias raras, mas de grande relevância, os juízes deveriam levar em consideração as convicções públicas não apenas em razão das consequências que podem advir de um julgamento contrário, mas também porque elas podem trazer informações importantes sobre a melhor interpretação da Constituição. Essa atenção dispensada às convicções populares enquadra-se no que Sunstein chama de judicial humility (humildade judicial), que coloca o judiciário numa posição de questionamento a respeito de sua própria capacidade de tomar a decisão correta (se é que a respeito de questões morais e políticas pode-se falar em decisão correta).

A última parte da obra, bastante sucinta, é dedicada à análise do Cosmopolitismo constitucional e, especificamente, se e quando as cortes constitucionais devem levar em conta a jurisprudência estrangeira no momento de interpretar a Constituição. Considerando o many minds argument, o autor acredita que poderia ser interessante para nações cujos sistemas democráticos são bastante jovens buscar informações nos julgamentos de democracias mais antigas.3 Por outro lado, ele entende que nações com longa prática democrática, como os Estados Unidos, possuem um grande número de precedentes e a consulta à jurisprudência estrangeira apenas tornaria mais difícil a decisão ao acrescentar mais elementos para análise. Claro que, fora do campo especificamente judiciário, Sunstein reconhece que os oficiais do governo – dos Poderes Executivo ou Legislativo – não podem ignorar como outros países têm decidido em questões como segurança nacional, mudanças climáticas, legislação trabalhista, entre outras.

Enfim, o many minds argument é invocado para demonstrar que, ao longo do tempo, diversas correntes interpretativas têm atuado, incorporando anseios populares, de forma que o próprio texto da Constituição Americana, no entendimento de Sunstein, não significa atualmente aquilo que significou na época em que foi aprovado. Contrastando com o entendimento de Ackerman4 a respeito dos momentos constitucionais em que o povo se manifesta, Sunstein considera que

[…] mudança constitucional não é meramente um produto de ‘momentos’ em que cidadãos mobilizados suportam reformas em grande escala. Há uma continuidade de pequenas mudanças, produzidas em períodos de relativa estabilidade, para as principais, produzidas quando crises ou movimentos sociais clamam por mudanças (Sunstein, 2009, p.5-6).

Sunstein reconhece que o apelo de Jefferson por mudanças constitucionais dirigidas popularmente não é abarcado por essa compreensão de alteração constitucional, haja vista que os mecanismos de mudança raramente invocam procedimentos formais, como Jefferson defendeu. Ao final, a compreensão de Constituição e do processo de alterações delineada nessa obra por Sunstein parece ter um viés mais hegeliano do que jeffersoniano, haja vista ressaltar, assim como Hegel, que as mudanças constitucionais fazem parte de processos contínuos de autointerpretação popular do texto original.5

Por fim, trata-se de um texto bastante didático, o qual aborda e explica alguns dos principais enfoques da interpretação constitucional desenvolvidos no contexto americano e, neste aspecto, é bastante interessante para aqueles que querem iniciar o estudo do tema. Mas também apresenta uma tese, a qual segue na esteira de um antigo debate que se iniciou junto com a própria constituição americana, tendo como interlocutores James Madison e Thomas Jefferson, a respeito das formas de interpretação e das alterações constitucionais. Para Sunstein, a Constituição deve ser mantida como um documento vivo, atual e atualizável pelos anseios da sociedade.

Notas

1 Sunstein enumera as mudanças significativas sofridas pelo texto constitucional de 1787: o Bill of rights – 1789; emendas que ocorreram após a guerra civil – abolição da escravidão, concessão do direito de voto aos afroamericanos, aumento do poder do governo nacional sobre os estados; emendas posteriores que instituíram eleições diretas para senadores e presidente e garantiram às mulheres o direito de voto (Cf. Sustein, 2009, p.2-3).

2 O autor cita como exemplo de mudança que não envolve um julgamento por tribunais a grande autoridade que o presidente tem sobre a segurança nacional, autoridade esta muito maior do que aquela dada originalmente pela constituição; segundo o autor, essa autoridade não é produto de um julgamento da suprema corte, mas sim de julgamentos de uma variedade de pessoas e instituições e, em última análise, do “We the people” (Sustein, 2009, p.4).

3 Dentre essas nações, Sunstein cita Canadá, África do Sul, Hungria e Polônia.

4 De acordo com Bruce Ackerman, existem duas formas de se compreender o processo político: a partir da política constitucional – que consiste nos momentos raros em que o povo é chamado a decidir questões políticas consideradas fundamentais, como ocorreu na elaboração das emendas constitucionais após a guerra civil norte-americana ou no New Deal; e a partir da política normal – aquela feita corriqueiramente pelo Congresso.

5 A compreensão hegeliana a respeito da Constituição pode ser encontrada na obra Linhas fundamentais da filosofia do direito.

Cristina Foroni Consani – Doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista CAPES no PDEE (Columbia University/USA-2010). Florianópolis, SC, Brasil. E-mail: [email protected]

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Oposicionalidade: o elemento hermenêutico e a filosofia – FIGAL (FU)

FIGAL, G. Oposicionalidade: o elemento hermenêutico e a filosofia. Petrópolis: Vozes, 2007. Resenha de: FERREIRA, Iarle. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.11, n.2, p.200-202, mai./ago., 2010.

A filosofia não existe como um sistema de ideias fechado, ou como um campo teórico voltado à resolução de algum problema na vida das pessoas. Ela existe como construção do pensamento através do diálogo. Se todo diálogo implica tomada de posição dos dialogantes, então, nele há uma “oposicionalidade” constitutiva do elemento hermenêutico, que faculta o filosofar. Uma filosofia assim entendida é fenomenológica.

Essa é a compreensão a partir da qual o alemão Günter Figal nos apresenta o livro Oposicionalidade – o elemento hermenêutico da filosofia. Nele, o autor, ao mesmo tempo em que trava um diálogo com a tradição, nos convida a participar da discussão, bem ao estilo da tradição hermenêutico-fenomenológica. Entre os variados pensadores cuja presença se faz notar destacam-se Parmênides, Descartes, Schleiermacher, Dilthey, Husserl, Merleau-Ponty, Heidegger e Hans-Georg Gadamer. Especialmente esses dois últimos, o que se justifica pela proximidade entre o pensamento de Figal e o desses filósofos – como o próprio subtítulo do livro, sugestivamente, indica. Entretanto, essa proximidade nem sempre é de identidade, mas de confronto.

A proposta do autor é apresentar a Oposicionalidade (Gegenständliche) como “princípio” hermenêutico e o mundo como espaço onde ela acontece. Deste modo, com o fito de perseguir o seu objetivo, o autor delineia paulatinamente sua argumentação, tendo como fio condutor a “interpretação”, conforme concebida pela tradição e por ele próprio. Isto é feito em uma estrutura na qual a argumentação se complexifica à medida que se avança na leitura, de modo que um capítulo vai conduzindo ao outro.

No primeiro capítulo, deparamo-nos com uma discussão do autor com Heidegger e Gadamer, cujo cerne é a concepção de hermenêutica. Nela, Figal se contrapõe a ambos. Acusa Heidegger de ontologizar a hermenêutica e Gadamer de ligá-la à coisa. Em ambos, afirma o autor, o que permanece em aberto é a relação entre a filosofia prática e a filosofia teórica.

O que está em questão para a filosofia é aquilo que lhe é próprio, ou seja, a busca pela compreensão do que está presente no contexto originário da filosofia, de modo a conquistá-lo (Figal, 2007, p.44). Somente assim é possível dizer a cada vez, em relação àquilo que eclode, que, nesse caso, trata-se de filosofia. Precisamos perguntar: a filosofia possui uma essência hermenêutica? Se a resposta for sim, um pensamento hermenêutico poderá se mostrar como uma possibilidade da filosofia tradicional, em oposição a uma visão retrospectiva ou destrutiva de tal filosofia.

Günter Figal apresenta diversos modelos de filosofia, apontando, a partir das conexões entre eles, o que têm de originário. Por exemplo, o que Descartes compreende como retirada para o interior de forma metódica, Heidegger entende como totalidade afetiva fundamental (Figal, 2007, p.58). Esses momentos originários da filosofia são dependentes um do outro sem que um se reduza ao outro. As duas atitudes reflexivas estão em “oposicionalidade”, ou seja, elas são duas posições opostas em diálogo uma com a outra. Nessa circunstância, para que haja interação, é necessário mediação. Em Platão, essa mediação tem o nome de Eros, através da qual há uma totalidade ligada entre si: o espaço entre homens e deuses. Eros leva aos deuses o que dizem os homens, e aos homens o que dizem os deuses.

A originalidade da filosofia é, em sua essência, mediatizada (Figal, 2007, p.65) pela linguagem, cujo movimento fornece o encontro e, ao mesmo tempo, o distanciamento ou a abertura que a deixa ser filosofia. Assim, a filosofia revela-se como uma coisa tão diferenciada quanto una (Figal, 2007, p.55). Nesse ponto, é possível responder a pergunta acima, dizendo: sim, a filosofia se faz em sua originalidade hermenêutica.

Certamente a afirmação de que a filosofia, em sua originalidade, é hermenêutica leva o autor a contornar o elemento hermenêutico. Paulatinamente, à medida que esse elemento vai aparecendo, a compreensão de uma filosofia hermenêutica vem à tona. Desta perspectiva, no primeiro momento vemos que a essência do hermenêutico é o “mediado”, sendo a forma de mediação mais conhecida a interpretação (Figal, 2007, p.66).

Interpretar é apresentar e clarificar, os dois procedimentos se copertencem. Ao apresentar, já de antemão, fala-se, isto é, comunica-se e estabelecese diálogo. Por exemplo, no diálogo com o texto, o pensamento é posto em ligação, de modo a permitir que prestemos atenção em suas possibilidades de compreensão. Por outro lado, o texto precisa ganhar validade, o que acontece se ele for desvendado, ou seja, é preciso trazê-lo à linguagem (Figal, 2007, p.84), pois, sem a interpretação, a obra não se faz presente. Nesse ponto, o que entra em questão é a compreensão.

A compreensão é um círculo que envolve os que se contrapõem, ela ocorre no encontro. Logo, o que vem ao encontro é o que se contrapõe. O que dessa forma se apresenta pede apresentação. Entretanto, o traço principal desta apresentação não é um “saber de” ou um “saber sobre”, pois o que se contrapõe tem o caráter de coisa que permanece sempre defronte.

No que diz respeito aos textos filosóficos, o que importa é partir sempre do elemento que é próprio às coisas contrapostas, ou seja, da mediação, a fim de apreendê-lo por meio de uma apresentação, isto é, daquilo que é originário em cada encontro e que possibilita o filosofar. Nesse ponto, o que acontece é a abertura do espaço hermenêutico. Por isso, o autor afirma que a “forma linguística da filosofia é uma abertura peculiar” (Figal, 2007, p.64).

O espaço hermenêutico é esse que se mostra como abertura para aquilo que está-aí-defronte. Por conseguinte, tal espaço é o mundo ao qual pertence a apresentação. O que está em questão, deste modo, é uma fenomenologia do espaço hermenêutico (p. 149). Por essa razão, o autor articula a compreensão desse espaço considerando três dimensões da sua constituição: liberdade, linguagem e tempo.

A liberdade é a condição de possibilidades de concretização da filosofia, no sentido da efetivação da apresentação do que se contrapõe. Trata-se de uma apresentação somente possível por meio da linguagem, a qual não funciona como uma chave interpretativa, mas, sim, como acessibilidade ao próprio mundo, tendo este a sua legibilidade confirmada nas coisas contrapostas. Assim, um texto filosófico, no modo como ele se dá à linguagem, coloca a linguagem à prova uma vez mais, de modo a repetir tal provação a cada vez que se der encontro. Assim, somos levados a considerar o tempo como constitutivo do mundo.

Oposicionalidade – o elemento hermenêutico da filosofia é um livro denso, rico e inovador. Nele encontramos uma concepção de hermenêutica própria, que, por si só, nos garante o prazer da leitura. Ademais, tal concepção, além de tornar mais compreensíveis pontos de vista clássicos sobre o tema discutido, estimula as discussões sobre o sentido da própria filosofia. Nesse contexto, tal filosofia, que se pratica no diálogo aberto e sempre em construção, jamais poderá preconizar sua própria morte como diz o autor quando afirma que “de uma maneira muito melhor do que muitos conceitos modernos, os conceitos clássicos ainda nos suportam com solidez, quando sabemos empregá-los de maneira livre e em relação às coisas mesmas” (Figal, 2007, p.14).

No livro aqui resenhado, a fertilidade advinda do confrontar-se com a tradição é tanto mais abundante quanto mais contornos o autor confere aos seus parceiros de diálogo, o que é feito através de uma apresentação livre, cuja liberdade confere à linguagem um bailar sutil e denso, que particulariza sua posição de “apresentador” dos conceitos, concepções e categorias que lhe interessam, e, por conseguinte, demarcando sua própria perspectiva filosófica no debate.

Além do mais, se em toda atividade hermenêutica nós mesmos estamos em jogo, conforme um clássico preceito dessa filosofia, segundo o qual há um círculo (hermenêutico) que envolve o todo dessa atividade, então é possível afirmar que Oposicionalidade: o elemento hermenêutico e a filosofia é um livro que se oferece como possibilidade de recuperação ou reatualização de pressupostos. Pois, na aproximação com a temática e com os argumentos que o autor oferece, somos convidados a cotejar nossos próprios pressupostos. Neste ponto somos nós mesmos em nossa liberdade e temporalidade que estamos em jogo, na medida em que essa aproximação deriva de um passado e nos lança em um futuro. Afinal, compreendemos a partir de pressupostos, razão pela qual o diálogo com a tradição é fundamental, não como submissão, mas como ligação, significação ou mesmo ressignificação desses pressupostos. Estamos em jogo, também, na medida em que a atividade hermenêutica ocorre como possibilidade, como poder-ser, urdido pela compreensão e pelo que dela decorre (Figal, 2007, p.114).

Portanto, fazendo jus à proposta do livro, de que a filosofia é um campo dialógico destinado a construção do pensamento, o texto de Güntel Figal tem o mérito de nos proporcionar, ele mesmo, uma dessas oportunidades de encontro que somente um texto maduro pode fazer, ou seja, ofertar-se ao diálogo e não apenas aos especialistas da área, a qualquer um que tenha interesse em filosofia, pois temos aqui uma articulação de linguagem que não transporta uma férrea estrutura argumentativa, mas deixa-se ser na relação com o leitor, sem, contudo perder a identidade.

Iarle Ferreira – UNISINOS. São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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Introdução à teoria da predicação em Aristóteles – ANGIONI (FU)

ANGIONI, L. Introdução à teoria da predicação em Aristóteles. Campinas, Editora da Unicamp, 2006. Resenha de: FERREIRA, Mateus R.F. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.11, n.2, p.196-199, mai./ago., 2010.

Introdução à teoria da predicação em Aristóteles consiste em um resultado mais acabado do trabalho que Lucas Angioni iniciou com uma publicação interna ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP sob o título de Ontologia e predicação em Aristóteles. Em termos editoriais, o livro não se constitui predominantemente de um texto em corpo único. Ao contrário, ele é composto por um estudo introdutório acrescido de tradução e comentários de textos de Aristóteles, selecionados por Angioni com vistas ao tema principal desse seu trabalho: a teoria aristotélica da predicação. Não obstante ocupar uma pequena parte do livro, o estudo introdutório consegue cumprir muito bem o propósito que lhe reservou o autor, o de sistematizar alguns aspectos centrais da teoria aristotélica da predicação (p. 9). Nesse estudo, Angioni se atém aos aspectos filosóficos principais de suas teses, deixando para a seção de tradução a apresentação dos textos em que se baseia e para a seção de comentários a análise filológica e argumentativa mais minuciosa, bem como a avaliação da bibliografia secundária pertinente.

Esse formato adotado pelo autor se mostra muito útil na análise de escritos como os de Aristóteles, nos quais os elementos para se reconstruir o pensamento do filósofo geralmente precisam ser recolhidos em fontes esparsas. Aliado a um estilo claro de escrita e domínio do tema, tal formato também confere ao livro utilidade a um público bastante diverso. Ele fornece subsídios para pesquisadores e professores experientes, uma vez que, além de analisar com detalhes os textos selecionados e seus argumentos, também apresenta e avalia competentemente a literatura especializada. Não deixa de ser, todavia, um precioso material didático para iniciantes e alunos de graduação. Não é uma tarefa pouco árdua se familiarizar com textos tão elípticos e terminologicamente não unificados como os de Aristóteles. O livro tem a vantagem de facilitar a consulta e manuseio deles, reunindo em língua portuguesa os mais relevantes ao tema proposto.

Visando a delimitar a estrutura de uma predicação, Angioni ressalta que Aristóteles tem especial interesse em um tipo de enunciado: as declarações. Todo enunciado ou frase possui um significado, mas apenas as declarações possuem uma pretensão de verdade, isto é, apenas esse tipo de enunciado tem a pretensão de que o mundo se comporte como ele o descreve. Aristóteles deixa de lado enunciados com função de exprimir desejos, preces, ordens, etc., e se atém apenas às declarações porque somente elas são capazes de carregar informações e conhecimento de como as coisas são (Angioni, 2006, p.93, 180). Nessa direção, Angioni defende que, apesar de existirem na língua grega ordinária estruturas gramaticais mais comuns, Aristóteles concebe a estrutura predicativa “S é P” (ou “S não é P”) como a forma lógica da declaração (Angioni, 2006, p.18-19). Essa forma estabelece uma relação entre dois itens. Se tem a pretensão de que eles estejam unidos no mundo, a declaração é uma afirmação. Estando de fato unidos, a afirmação é verdadeira; estando, ao contrário, separados, a afirmação é falsa. Se tem a pretensão de que eles estejam separados no mundo, a declaração é uma negação. Estando de fato separados, a negação é verdadeira; estando, ao contrário, unidos, a negação é falsa.

A análise que Angioni desenvolve tem como seu ponto forte o fato de ele distinguir, a partir dos textos de Aristóteles, dois aspectos de uma predicação. Em primeiro lugar, uma predicação pode ser classificada através de critérios, por assim dizer, lógicos (Angioni, 2006, p.25, 27). Tais critérios envolvem basicamente relações extensionais e definicionais (ou de essência) entre o predicado e seu sujeito. Dada uma sentença “S é P”, (i) “se x é S, então x é P” e (ii) “se x é P, então x é S” são critérios que delimitam a relação entre a extensão de S e a extensão de P; além disso, P pode ou não estar contido na essência de S. Essa análise lógica resulta em uma lista de tipos de predicados (Angioni, 2006, p.28, 38) ou, em outros termos, uma lista de predicáveis (p. 144). Estes são alguns exemplos. Um gênero é um predicado que satisfaz (i), mas não (ii), e está contido na definição do sujeito (e.g. homem é animal). Certos atributos necessários também satisfazem (i) e não satisfazem (ii), mas se diferenciam do gênero pelo fato de não compor a definição do sujeito (e.g. homem é mortal). O segundo tipo de atributo per se enunciado em Seg. An. I 4 – atributo cujo sujeito faz parte de sua essência – satisfaz (ii), mas não (i), e não está contido na definição do sujeito (e.g. número é par). As definições e os atributos próprios satisfazem (i) e (ii), de sorte que S e P são coextensivos, mas um atributo próprio (e.g. homem é capaz de aprender a ler) não expressa a essência de S, diferentemente de uma definição (e.g. homem é animal bípede racional). Por sua vez, um atributo contingente não satisfaz nem (i) nem (ii), nem compõe a essência do sujeito a que pertence (e.g. homem é branco).

Observando a lista de predicáveis do autor, cumpre ressaltar uma escolha sua de tradução. Por motivos deveras procedentes, ele abandona a opção tradicional que verte o termo “συμβεβηκὸς” por “acidente”. De fato, dos predicáveis que Aristóteles designa por συμβεβηκότα nem todos são propriamente acidentais. O predicável acima chamado contingente o é, mas há alguns que, ao contrário, são necessários, ou pelo menos concebidos como tais. Para verificar isso, basta considerar os atributos formados a partir da disjunção de atributos per se (e.g. número é par ou ímpar, animal é macho ou fêmeo) ou aqueles que Aristóteles chama de concomitantes per se (καθ’αυτὰ συμβεβηκότα) (e.g. o triângulo possui a soma de seus ângulos internos igual à soma de dois ângulos retos). Na verdade, tanto esses dois predicáveis como o contingente não são denominados συμβεβηκότα por serem acidentais ou contingentes, mas, dentre outros motivos, por não fazerem parte da essência do sujeito a que pertencem. É claro que encontrar uma tradução que dê conta disso e que seja perfeitamente equivalente ao termo grego pode ser considerada uma tarefa inexequível, e talvez “concomitante” não seja a melhor escolha. Entretanto, é certo que termos como “acidente” e “acidental”, apesar da tradição, são por demais enganadores para serem aceitáveis.

Angioni ainda apresenta outra ordem de critérios para classificar os termos de uma predicação quando tomados em si mesmos, independentemente de suas relações com outro termo (Angioni, 2006, p.146). O autor defende que tais critérios fundamentam a tradicional classificação das categorias e que, sendo semânticos e ontológicos, de modo algum se reduzem aos critérios lógicos acima mencionados (Angioni, 2006, p.34-35). Os entes designados por um termo possuem uma de duas características. Alguns deles são tais que suas propriedades são homogêneas entre si e podem todas ser reduzidas, em última instância, a algo único; outros são tais que pelo menos algumas de suas propriedades são heterogêneas em relação às demais, de modo que elas não formam, em conjunto, algo único. Os entes do primeiro tipo, Aristóteles os denomina substâncias (οὐσίαι); os do segundo tipo – os quais podem ser qualidades, quantidades, relações ou outras categorias –, Aristóteles os agrupa sob o título de concomitantes (συμβεβηκότα). Ele assim procede porque os concomitantes apresentam algo em comum: aquilo a que eles pertencem precisa também ser algo diverso, isto é, precisa ser essencialmente uma outra coisa que o próprio concomitante (Angioni, 2006, p.33-34). Por exemplo: um x que é branco é sempre algo branco ou um objeto branco. “Algo” ou “um objeto” denota uma lacuna a ser preenchida por uma entidade que, ao contrário do próprio branco, existe sem depender de uma outra essencialmente especificada por propriedades diversas das suas. Essa dependência faz de um concomitante uma entidade deficitária cujo contraponto está na entidade à qual pertencem suas propriedades heterogêneas: a substância.

Essa relação de dependência ontológica se articula com uma dependência semântica: o concomitante também não é definido sem referência à categoria da substância (Met. VII 1, 1028a 34-36). A brancura, por exemplo, é definida como uma qualidade (“uma cor de tal e tal tipo”); e toda qualidade é uma qualidade de uma substância. É verdade que essa última não está delimitada. O branco não é uma qualidade exclusivamente de um homem ou dos homens, ou de um cavalo ou dos cavalos, e assim por diante. Há, entretanto, uma lacuna na sua definição a qual pode ser preenchida apenas por uma substância. Se for um homem, branco será uma qualidade sua; se for um cavalo, uma qualidade sua. Essa é a razão pela qual a referência de um termo que denota um concomitante pressupõe algo de natureza extrínseca. Quando “branco” é capaz de denotar um objeto, este já está previamente identificado por um conjunto mínimo de propriedades diversas das especificadas na definição de branco. Essas propriedades pertencem à substância que nessa ocasião preenche a lacuna da definição desse concomitante. Uma substância, por outro lado, não possui tal lacuna, por isso o termo que a designa é capaz de desempenhar um papel que o termo que designa aquele concomitante não é, qual seja, referir-se por si só a um objeto no mundo.

Angioni interessantemente observa que essa natureza do concomitante explica o desinteresse de Aristóteles em fornecer listas exaustivas das categorias (p. 31-32, 34). A despeito de quantas sejam as classes de concomitantes, todas envolvem entes deficitários que pressupõem a existência de uma substância. Assim, qualquer uma das listas de categorias que o filósofo apresenta pode ser reagrupada primordialmente em apenas dois conjuntos: a categoria da substância e as demais categorias.

A discriminação dos critérios semântico-ontológicos relatados tem interesse filosófico, mas sobretudo interpretativo, porque confere a Angioni a capacidade de unificar de modo efetivamente convincente os textos coligidos. Seja qual for o interesse preciso de Aristóteles em cada um deles, a distinção entre dois grupos de categorias exerce em todos um papel fundamental. Pois essa distinção exibe a natureza de uma predicação. Em última instância, sujeitos lógicos (e não meramente gramaticais) são entidades capazes de denotar um objeto por si só. São, portanto, substâncias. Predicados lógicos, por sua vez, são entidades que formam com o sujeito uma composição, decorrendo daí as características peculiares a uma declaração relatadas acima. Nessa composição, ou o predicado não acrescenta ao sujeito nada diferente do que este já é em si mesmo ou lhe acrescenta algo diverso. Nesse último caso, o predicado constitui algo extrínseco ao sujeito e dele dependente; ele é, portanto, um concomitante (Angioni, 2006, p.30). Pois bem: essas características explicam por que Aristóteles considera uma sentença como “(o) branco é musical (i.e. é capaz de produzir música)” pragmaticamente eficaz, mas não uma predicação no sentido estrito do termo. Angioni mostra que essa sentença precisa ser decomposta em duas predicações: há um mesmo item (e.g. um homem) que recebe os atributos “branco” e “musical” e ao qual eles são extrínsecos (Angioni, 2006, p.120). Esse item, por sua vez, não pode se comportar do mesmo modo em relação a outro, sob pena de a predicação retroceder ao infinito e nunca se enunciar aquilo ao qual os dois atributos são, em última instância, extrínsecos. Por isso, tal item deve ser, em si próprio, uma substância. Também se explica, por exemplo, por que para Aristóteles compostos de concomitantes ou mesmo de uma substância e um concomitante não são dotados de unidade interna (Angioni, 2006, p.99, 181). A sentença pragmaticamente eficaz acima, por exemplo, expressa, de uma mesma substância, dois atributos independentes entre si; sinal disso é que ela não constitui uma única pretensão de verdade nem duas pretensões de verdade vinculadas uma à outra. Por sua vez, uma determinada sentença que possui uma única pretensão de verdade, mas não se limita a descrever o sentido de um termo, é uma composição gerada pela união de uma substância e de um concomitante. Isso significa que algo extrínseco – o concomitante – já foi acrescentado a uma unidade prévia e independentemente constituída – a substância.

A análise semântico-ontológica de Angioni tem ainda o mérito de captar precisamente as preocupações filosóficas de Aristóteles quando este propõe, como forma lógica de uma proposição, a estrutura “S é P”, em vez de, por exemplo, algo similar à estrutura corrente na literatura filosófica “P(a)”. Nesta, a é um indivíduo que permite tornar o predicado – uma expressão insaturada “P(x)” – uma sentença com valor de verdade determinado. Essa capacidade só é dada aos indivíduos, os verdadeiros sujeitos lógicos, e nenhuma expressão insaturada pode ocupar esse papel. Sem dúvida, também na estrutura “S é P” S deve ser substituído por um indivíduo, como Sócrates, para que ela apresente um valor de verdade determinado, mas não é aí que reside, aos olhos de Aristóteles, a diferença fundamental entre S e P. Embora “homem” seja universal, ele não é um atributo de Sócrates tal qual “branco” ou “musical”; estes são-lhe atribuídos extrinsecamente, mas não aquele (Angioni, 2006, p.122-123). Pois ser homem é a condição pela qual Sócrates é identificado como um legítimo sujeito de predicação. Em suma, o interesse primordial de Aristóteles com a estrutura “S é P”, pelo menos na maior parte de seus textos, não está em contrapor particulares e universais, mas antes em contrapor entes similarmente designados por termos universais, porém, de naturezas distintas.

É por todos esses motivos que, com Introdução à teoria da predicação em Aristóteles, Angioni dá importante contribuição aos estudos aristotélicos atuais e deixa à disposição dos estudantes de filosofia um excelente material.

Referências

ROSS, D. 1924. Aristotle’s Metaphysics. Vol. II. Oxford, Clarendon Press, 528 p.

Mateus R.F. Ferreira – Doutorando da Universidade Estadual de Campinas. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, SP, Brasil. E-mail: [email protected]

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Fragilidad humana y ley natural: cuestiones disputadas en el Siglo de Oro – CRUZ (FU)

 

CRUZ, J.C. Fragilidad humana y ley natural: cuestiones disputadas en el Siglo de Oro. Pamplona: Ediciones de la Universidad de Navarra, 2009. (Colección de Pensamiento Medieval y Renacentista). Resenha de: CULLETON, Alfredo. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.11, n.1, p.108-110, jan./abr., 2010.

Este é o volume 111 da coleção Pensamiento medieval y renascentista que as Ediciones de la Universidad de Navarra, S.A., nos oferecem desde 1999, sob a direção do próprio Juan Cruz Cruz. Em um formato econômico, mas de excelente qualidade editorial, é-nos oferecido o resgate de uma importante parte da história da filosofia ocidental dos clássicos do pensamento medieval e renascentista, sobretudo da Escolástica Ibérica. Dificilmente encontraremos na história da filosofia um período de tamanha sinergia entre história, teologia, filosofia e direito. Foi um tempo em que as melhores respostas políticas exigiram referências a sofisticados conceitos filosóficos, que, por definição, aspiram à eternidade, no sentido de transcender tempo e circunstâncias.

No chamado Século de Ouro (XVII), destacados teólogos e juristas de diversas nacionalidades teriam o desafio de escrever comentários sobre os aspectos teológicos, metafísicos, lógicos, jurídicos, legais e políticos da obra do Aquinate e de outros importantes pensadores antigos, medievais e renascentistas. Nesse empreendimento não somente atualizaram as idéias do seu mestre Tomás, como introduziram uma nova filosofia política e do direito, que influenciou significativamente a história da América.

Para alguns investigadores, esse movimento representa um episódio isolado na história intelectual europeia; para outros, o debate acerca da sua filosofia política e jurídica é fundamental por razões históricas e sistemáticas. De um lado, estão aqueles que sustentam que essa segunda Escolástica representa um retorno à mais genuína teoria aristotélico-tomista, dependentes de suas noções de lei natural e direito, considerados como objetos da justiça e afirmando um direito objetivo. De outro lado, estão aqueles que asseguram que, embora esses teólogos-juristas aparentemente se mostrem fiéis seguidores de Aristóteles e Tomás, efetivamente consideram o direito como uma faculdade ou liberdade individual, isto é, como um direito subjetivo. Assim, podemos entender esses escolásticos como fortemente influenciados pela tradição franciscana, eventualmente precursora de um contratualismo político.

A maneira como esse vivo diálogo teológico-político-jurídico se desenvolveu entre Suarez, Vitória, Las Casas, Soto, Bañez, Luis de León, Bartolomé de Medina, a maneira como teve continuidade no continente americano, a maneira como os conflitos políticos e sociais das Américas encontraram um eco teórico na Espanha, bem como a significativa influência desses pensadores – e dos conceitos desenvolvidos por eles – sobre os movimentos revolucionários que levaram à independência dos diferentes países são novos tópicos não apenas de interesse histórico, mas de extrema importância filosófica.

Os conceitos de fragilidade humana e de lei natural são conceitos-chave nessa discussão; em cada um desses conceitos os autores trarão as suas maneiras peculiares de interpretar Aristóteles, Tomás e as suas respectivas antropologias, que redundarão em formulações políticas e morais da maior relevância.

Juan Cruz Cruz, catedrático da universidade de Navarra, é erudito na matéria que se permite, com toda a naturalidade, fazer uma retrospectiva introdutória aos mais elementares conceitos como os de razão, natureza e lei, que irá facilitar àqueles que estão pouco familiarizados com a temática o trânsito com fluidez pelos capítulos seguintes, mais densos e detalhados nas disputas conceituais entre os autores.

Os autores do Século de Ouro se valem de um rico instrumental lógico, antropológico e ético para encontrar na lei natural o sentido da atuação moral. A razão prática que objetiva tal lei natural é afetada, segundo a tradição medieval, por três tipos de contingências: a da finitude (fragilidade entitativa), a da liberdade e a da sensualidade (fragilidade operativa). Os capítulos desse livro estão configurados à luz dessa tríplice contingência.

A obra conta com duas partes compostas de cinco capítulos cada uma. Na primeira delas, o autor analisa os conceitos básicos da lei natural assim como são tratadas pelos autores, suas peculiaridades, o seu fundamento formal, o resgate da ideia aristotélica de epiqueia, sua relação com o discernimento, a lei e a justiça; as exceções à lei natural, em que casos e desde que perspectiva; valendo-se de Domingo Soto, Cruz apresenta brilhantemente o paradoxo da mentira, segundo o qual a verdade se constitui em um direito do ouvinte ao qual estão submetidos igualmente os governantes.

Ainda na primeira parte, o quinto capítulo é dedicado à tensão dialética entre vontade e liberdade, entre o voluntário necessário e o voluntário livre, em que o conhecimento e a teleologia vão exercer um papel preponderante, e no qual a necessidade natural não é incompatível com a dignidade da vontade, mas a esta só se opõe a necessidade de coação.

A segunda parte trata das projeções da lei natural, especialmente o direito das gentes. O autor vai usar as próprias palavras de Vitória para distinguir este conceito daquele de direito natural. Dirá ele que a clássica definição de direito natural como aquilo que é adequado a outro pela própria natureza pode ser entendido de duas maneiras. A primeira, quando de por si (de se) corresponde a certa equidade ou justiça, como no caso de devolver o que foi emprestado ou de não querer para o outro aquilo que não se quer para si; a segunda, quando é considerado adequado a outro não em si, mas de acordo com outra coisa (ad aliud), como no caso da divisão da propriedade que não é uma exigência de justiça em si, mas se ordena a outros valores que podem ser a paz ou a concórdia, que não podem existir ou ser preservadas se as pessoas não possuem certos bens básicos, e é por isso que a distribuição de renda corresponde ao direito das gentes. O que é adequado e absolutamente justo no primeiro modo é de direito natural, dirá Cruz (p. 143-144), e o que é adequado e justo do segundo modo, enquanto ordenado a outra coisa, será chamado de direito das gentes. Esse direito das gentes desenvolvido pelo direito romano é retomado e amplamente estudado por Suarez, Vitória e Soto e será de grande importância na política e na relação com os povos não cristãos, especialmente nas Américas.

Cabe destacar um excelente comentário exegético e hermenêutico de Cruz a uma carta de 1534, escrita por Francisco de Vitória e endereçada ao padre Arcos – tratando sobre negócios das Índias, referindo-se especialmente ao tratamento que certos conquistadores do México e do Peru davam aos indígenas –, valendo-se de conceitos como os de direitos humanos e de dignidade, dificilmente atribuídos aos autores desse período.

Outra riqueza dessa obra que deve ser registrada é a minuciosa referência aos textos clássicos de Aristóteles e Tomás de Aquino, bem como de cada um dos autores estudados, sendo sempre mencionadas as edições mais atualizadas.

Alfredo Culleton – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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A arte de conhecer a si mesmo – SCHOPENHAUER (FU)

SCHOPENHAUER, A. A arte de conhecer a si mesmo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. Resenha de: ALVES, Bernardo Veiga de Oliveira. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.11, n.1, p.106-107, jan./abr., 2010.

“Querer o menos possível e conhecer o mais possível, eis a máxima que conduziu minha trajetória de vida” (Schopenhauer, 2009, p.3). Assim Schopenhauer começa o seu livro. A obra é dividida em 38 máximas, com anotações autobiográficas, recordações e reflexões do comportamento em geral. Depois, há uma sequência de 17 das suas máximas e citações preferidas. Schopenhauer tinha este texto como uma espécie de manual da arte de conhecer a si mesmo para a orientação do seu ideal. Começou a escrevê-lo em 1821, dois anos após o Mundo como vontade e representação (1819), e continuou por mais duas décadas a construção do texto.

Podem-se destacar três elementos importantes: O seu ideal filosófico de dedicar-se sobretudo à busca da verdade, o seu pessimismo diante do convívio humano, e as suas críticas ao sexo feminino. Segundo o autor, ele mesmo está incumbido de realizar uma ação do espírito que nenhum outro poderia fazer, o que implica alguns sacrifícios, como abdicar de alguns prazeres próprios do homem comum:

As coisas de que necessariamente sou privado em minha vida pessoal me são compensadas de outra maneira, ao longo da vida, pelo pleno gozo do meu espírito e empenho em favor de sua orientação inata; de fato, se as possuísse, não as fruiria, e ser-me-iam até mesmo impedidas. Para um espírito que doa e realiza por si mesmo aquilo que nenhum outro pode da mesma forma doar e realizar, e que justamente por isso subsiste e perdurará – seria ao mesmo tempo cruel e insano querer forçá-lo a fazer outras coisas, ou mesmo atribuir-lhe tarefas obrigatórias, afastando-o do seu dom natural (Schopenhauer, 2009, p.4).

Desta forma, ele diz que o ideal monacal é algo natural nas nações civilizadas, em que algumas pessoas, conscientes de suas faculdades espirituais sobressalentes, defendem o cultivo de tais aptidões sobre qualquer outro bem, cujos frutos se tornariam depois patrimônio da humanidade: “Embora pertençam à classe hierarquicamente mais nobre da humanidade, cujo reconhecimento é uma honra para qualquer um, renunciam à distinção mundana com uma humildade análoga à do monge” (Schopenhauer, 2009, p.32).

Assim, como consequência da sua visão do ideal filósofo, ele defende certa misantropia1, o que evidencia o seu pessimismo sobre a humanidade. Mas repare que o seu desprezo pelas pessoas é antes fruto de uma tendência pessoal do que de uma plena convicção do seu pensamento, isto é, tinha dificuldades para viver conforme uma mente serena e mais social do filósofo, como diz: “A natureza fez mais do que o necessário para isolar o meu coração, na medida em que o dotou de desconfiança, excitação, veemência e orgulho numa proporção quase inconciliável com a mens aequa, mente serena do filósofo” (Schopenhauer, 2009, p.49).

Por fim, encontramos o machismo de Schopenhauer. Mesmo sendo contra a sua visão, não podemos ignorar o destaque do autor ao universo feminino, algo que era raro antes de Schopenhauer e que fortemente influenciará a visão de Nietzsche. Grande parte do seu pensamento é decorrente da sua própria misantropia e de alguns fortes preconceitos do século XIX. Porém, o que mais influenciou a sua visão foram os fortes desentendimentos que, segundo o autor, tinha com a sua mãe, por desprezar o pai e, quando viúva, por acolher amantes dentro de casa (Volpi, 2004).

Mesmo criticando o idealismo de Hegel, podemos dizer que Schopenhauer cai, nesta obra, em certo idealismo existencial, da solidão do filósofo. O que podemos questionar é até que ponto a sua visão é própria da conveniência do agir filosófico, ou de uma forte disposição introspectiva do autor. Se a missão do filósofo é tão nobre que o faz ser diferente do “homem comum”, ele não teria que se esforçar para conviver socialmente, como o homem político aristotélico, ou o transformador social de Marx? Em função da sua missão, ele não teria que fortalecer a sua vontade para poder se doar socialmente? De qualquer forma, conhecer a si mesmo, retomando o princípio grego, mostra-se como uma máxima perene, no comportamento do filósofo, da busca de um aperfeiçoamento pessoal. Portanto, independentemente das conclusões misantrópicas, o grande valor da obra consiste na aplicação desta máxima moral.

Notas

1 “A grande maioria das pessoas assemelha-se às castanhas-da-Índia, aparentemente comestíveis como as demais, todavia intragáveis” (Schopenhauer, 2009, p.51).

Referência

VOLPI, F. 2004. Introdução. In: A. SCHOPENHAUER, A arte de lidar com as mulheres. São Paulo, Martins Fontes, p.XV-XVIII.

Bernardo Veiga de Oliveira Alves – Mestrando da Universidade do Vale dos Sinos. São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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O nascimento do Direito Internacional – MACEDO (FU)

MACEDO, P.E.V.B. de. O nascimento do Direito Internacional. São Leopoldo: Unisinos, 2009. (Coleção Díke). Resenha de: PÊCEGO, Daniel Nunes. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.10, n.3, p.350-351, set./dez., 2009.

O nascimento do Direito Internacional é a publicação da tese de doutoramento de Paulo Emílio Borges de Macedo, no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Defendida em 2008 e qualificada com o grau máximo, em boa hora, a Unisinos, em sua coleção Díke, dirigida por Vicente Barretto (um dos membros da banca avaliadora da tese, inclusive), dedicada a temas essenciais do pensamento jurídico, edita a obra, já adaptada às recentes modificações ortográficas.

O livro trata da origem do Direito Internacional, sob a perspectiva da História do Pensamento Jurídico, comparando e relacionando as obras de dois importantes autores da Modernidade: o jesuíta espanhol e professor de Coimbra Francisco Suárez e o jurista holandês Hugo Grócio. A tese central a ser provada pelo autor é acerca da influência do jesuíta sobre a obra do holandês e do grau de profundidade em que ela se deu.

Topograficamente, o livro é dividido em cinco capítulos, além da introdução e conclusão. No primeiro deles, trata de uma genealogia do jus gentium e das relações entre o Direito das Gentes e o Direito Internacional. Ali são analisadas as concepções romana, medieval e vitoriana (de Francisco de Vitória) de jus gentium. O autor analisa a evolução do conceito, de uma posição ainda insegura entre os romanos, passando pelos fundamentais aportes de Tomás de Aquino. Finalmente, conclui pelo ineditismo da solução suareziana e grotiana que, fugindo dos perigos de um relativismo ético, concebem um direito das gentes positivo, ainda que não voluntarista.

Nos dois capítulos seguintes, Borges de Macedo passa a tratar do fundamento do direito em Suárez e Grócio. Pela leitura ficam claras as diferenças bem mais do que pontuais entre o pensamento de Suárez e de Santo Tomás, apesar de o primeiro autor ser tradicionalmente enquadrado como tomista. Na realidade, os fundamentos metafísicos e gnosiológicos de ambos são bem diversos, e a rotulação “tomista” tem se mostrado problemática (daí porque, como se sabe, alguns optem pela expressão “tomasiano”, quando se referem propriamente ao pensamento do Aquinate). De fato, Suárez possui certa visão imanentista do Direito, identificando lei e direito. Grócio, ainda que ecleticamente se fundamente nos autores estóicos, assemelha a sua doutrina àquela dos escolásticos espanhóis.

Os quarto e quinto capítulos são dedicados ao direito das gentes em Suárez e Grócio. Para o jesuíta, o jus gentium seria uma transição entre o divino e o humano, estabelecendo um mínimo ético entre povos civilizados. Segundo Borges de Macedo, a proposta suareziana, ainda que individualista, não recairia em um relativismo. No entanto, se Hugo Grócio não chegou a produzir uma teoria autônoma do jus gentium, em sua doutrina sobre a guerra justa, podem ser encontradas informações acerca do tema.

O que poderia ser dito em uma breve apreciação crítica da obra? Dentre diversos outros fatores, o livro é notável por sua erudição. Neste ponto, uma observação deve ser feita. Normalmente, quando se escreve uma obra com referências cultas há o perigo de resumi-las a meras citações vazias de conteúdo, que possuem apenas o intuito de afagar a vaidade do autor. Felizmente, não é esse o caso. As citações, inúmeras e ricas, servem para embasar a tese fundamental do livro, além das demais que vão sendo paralelamente propostas.

Com efeito, todas as citações diretas encontradas no corpo do texto em vernáculo são referenciadas na língua original nas notas de rodapé. Corretamente, o autor considerou tal procedimento de suma importância, uma vez que uma das atividades essenciais de sua pesquisa consistiu em pacientemente cotejar os originais latinos das obras de Suárez e Grócio em bibliotecas europeias. Aí está a origem da profusão das citações em latim que não chegam a dificultar a leitura do livro, seja porque constam nas notas, seja porque no corpo do texto estão devidamente traduzidas para o português.

Foram tomadas outras decisões academicamente relevantes que facilitam os estudos posteriores do leitor. Uma delas é a divisão da bibliografia em suareziana, grotiana, geral e periódicos. Dessa forma, o estudioso poderá, com maior facilidade, acessar não apenas a literatura geral sobre o tema, como também as edições de ambos os autores tratados no livro. Há também a inclusão de sínteses ao final de cada um dos capítulos, que permite ao leitor situar-se rapidamente em relação aos tópicos abordados.

Trata-se, enfim, de uma obra destinada não apenas aos especialistas em Direito Internacional e Relações Internacionais, mas também aos estudiosos da Filosofia, Teologia e da História do Pensamento. Ela comprova que tanto a Ciência quanto a Filosofia do Direito não se construíram e nem podem ser construídas isoladamente em relação aos demais conhecimentos, inclusive e, sobretudo, aos de ordem metafísica e teológica. Embora discorra sobre uma controvérsia ocorrida no passado, Paulo Emílio Borges de Macedo, ao criticar a má resolução que a matéria tem tido até os dias de hoje por parte dos especialistas, mostra a necessidade premente de se valorizar a interdisciplinariedade radical requerida pelo Direito, emudecendo aqueles que desejam tratá-lo como um ente isolado, relacionando-se, no máximo, com as ciências sociais descritivas.

Daniel Nunes Pêcego – UFRRJ – Departamento de Ciências Administrativas e Contábeis. RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

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O Antigo Regime e a Revolução – TOCQUEVILLE (FU)

TOCQUEVILLE, A. de. O Antigo Regime e a Revolução. São Paulo: Martins Fontes, 2009. Resenha de: REIS, Helena Esser dos. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.10, n.3, p.348-349, set./dez., 2009.

Em meio a tantas análises acerca da Revolução Francesa, qual o interesse que O Antigo Regime e a Revolução de Alexis de Tocqueville, escrito em 1856, pode ainda despertar nos leitores contemporâneos? Ilumina, de modo original, nossa compreensão daquele evento e das ideias que ali foram forjadas? As respostas não são evidentes, requerem ler o texto e seu contexto, a letra e a intenção do autor.

No início do prefácio onde apresenta seu livro aos leitores, Tocqueville descarta o propósito de escrever uma história da Revolução Francesa. Tendo despendido mais de cinco anos em uma ampla pesquisa nos arquivos da administração pública, nos cadernos de queixas escritos pelas três ordens em 1798, nos textos dos filósofos consagrados e até na leitura de inúmeras correspondências íntimas e confidenciais que estavam arquivadas no Ministério do Interior, seu propósito, afirma, é desvendar as causas pelas quais a revolução social e política contra o Antigo Regime – que estava em curso em toda Europa – eclodiu na França. Trata-se, portanto, de um texto que busca, por meio da narrativa e da análise dos acontecimentos, conhecer os sentimentos, os costumes, as ideias que prepararam a grande revolução.

Focando a capacidade de inovar do povo francês (de romper com seu passado de submissão para construir uma nova forma social e política baseada na igualdade e na liberdade entre os homens) nos primeiros anos da revolução, Tocqueville aponta cuidadosamente as circunstâncias, os erros e as decepções que fi zeram os revolucionários abandonarem seu objetivo inicial e esquecerem-se da liberdade. Ao comparar a sociedade do Antigo Regime com a sociedade democrática originada pela Revolução, argumenta que a perda da liberdade não decorre de um problema inerente aos homens deste tempo, nem de um problema característico do novo regime, mas do individualismo e da apatia política que já encontram suas raízes nas instituições políticas e na sociedade francesa do Antigo Regime.

As críticas precisas e vigorosas que Tocqueville dirige à nobreza não contêm excessos ou compromissos com os propósitos revolucionários. Ele mesmo, descendente da antiga aristocracia francesa, não adere à democracia espontaneamente, mas tão só porque reconhece que apenas sob este regime a liberdade (entendida como capacidade de cada um pensar e agir por si mesmo e, ao mesmo tempo, participar junto com cada um dos demais no exercício do poder) pode estender-se a todos os homens. Considerando-se independente, Tocqueville traz à luz o longo processo de esfacelamento dos corpos administrativos secundários e de centralização do poder nas mãos do rei. Ele denuncia, em primeiro lugar, que o exercício independente e participativo da liberdade, pouco a pouco, é substituído por privilégios privados que isolam os nobres e os afastam de seus deveres públicos. Em segundo lugar, destaca que a contrapartida dos privilégios de uns é a opressão e a exploração desmedida de quase todos os demais, o surgimento de ódios, rancores e rupturas no tecido social.

A análise tocquevilleana acerca das causas profundas que engendraram a Revolução permite-nos compreender que os desdobramentos despóticos da Revolução Francesa não se deram ao acaso, pelo calor do momento, mas se enraízam em uma longa cadeia de benefícios e violências que favoreceram o despotismo do rei e prepararam o despotismo democrático. Por mais que as palavras despotismo e democracia pareçam estar em campos opostos, Tocqueville – já em A Democracia na América – mostrou que instituições democráticas podem ser coniventes com formas opressivas do exercício do poder político, sempre que a busca por condições sociais igualitárias se sobrepuser à participação política.

O Antigo Regime e a Revolução, publicado vinte anos após A democracia na América, renova o esforço tocquevilleano de conhecer os problemas e buscar remédios adequados ao processo de democratização do estado francês. Se nessa obra ele destacou a grandeza do estado democrático constituído pelos anglo-americanos, foi também extremamente severo, criticando, de um lado, a desigualdade a que estavam sujeitados negros e índios, assim como todo aquele que divergia da maioria por qualquer razão; e, de outro lado, a opressão consentida que surgia do individualismo e da apatia política em vista da qual voluntariamente os homens abriam mãos de seus direitos políticos. É o mesmo espírito de investigação ampla e de crítica certeira que norteia a escrita de O Antigo Regime e a Revolução.

Reconhecendo semelhanças entre as formas despóticas que ocorreram na França e os germes de despotismo que viu nos Estados Unidos, Tocqueville contribui para uma concepção madura e crítica da democracia. Pois, se apenas sob este regime a igual liberdade pode estender-se a todos os cidadãos, suas análises evidenciam que liberdade e igualdade não estão garantidas por qualquer procedimento ou instituição. A sorte da democracia não está dada a priori, posto que a mesma condição social de igualdade entre os homens pode ter como consequência ou um estado político despótico, no qual pouco importa se o déspota é apenas um ou a maioria de um povo, ou um estado político de liberdade, no qual cada cidadão reconhece a si e aos demais como membro do poder soberano.

Ainda que a igualdade social e a liberdade política sejam inseparáveis como qualificativos do Estado democrático, Tocqueville incita-nos a pensar que as diferentes expressões políticas da forma social são consequências que derivam da vontade, da sabedoria e da ação dos homens. Assim, o esforço tocquevilleano para buscar as causas profundas da Revolução assemelha-se, como ele mesmo afirma, ao esforço dos médicos que buscam descobrir, nos órgãos de um corpo já morto, as leis da vida. Ainda acreditando no ideal que inspirou os revolucionários de 1798, por meio da análise dos fatos descritos em O Antigo Regime e a Revolução, Tocqueville busca, mais uma vez, instigar os homens a participarem do processo de construção de um estado social e político democrático, no qual liberdade e igualdade estendam-se a todos.

Esta obra, publicada em 1856, foi, no mesmo ano, traduzida e publicada na Inglaterra, nos Estados Unidos e na Alemanha e, ainda antes da morte de Tocqueville, em 1859, alcançou sua quarta edição na França. Desde então, inúmeras são as publicações desse livro. No Brasil, duas edições anteriores encontram-se esgotadas há alguns anos. A edição da Martins Fontes valoriza o texto tocquevilleano, ao incluí-lo em sua coleção de clássicos, assim como pela tradução cuidada do texto. Lastimo apenas que não tenha incluído a totalidade das notas feitas pelo autor, que apresentam aos leitores situações particulares de países da Europa e discutem seus costumes.

Helena Esser dos Reis – Universidade Federal de Goiás. Goiânia, GO, Brasil. E-mail: [email protected]

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Cinismo e Falência da Crítica – SAFATLE (FU)

SAFATLE, V. Cinismo e Falência da Crítica. São Paulo: Boitempo, 2008. Resenha de: ROCHA, Rubens José da. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.10, n.3, p.345-347, set./dez., 2009.

Dialética Cínica

Hegel, Weber, Adorno, Lacan, Lyotard, Deleuze, Searle, Sloterdijk, Agamben e Zizek são alguns contrapontos teóricos que permitem a Vladimir Safatle compor, no livro Cinismo e Falência da Crítica, um vasto campo de coordenadas históricas para validar a tese sobre o cinismo como “categoria adequada” para análise de “formas hegemônicas de vida na fase atual do capitalismo”. A passagem abaixo exprime claramente a estratégia de argumentação presente nos seis ensaios que compõem o livro:

Partindo da noção de forma de vida como conjunto de sistemas de ordenamento e justificação de processos de interação social nas esferas do trabalho, do desejo e da linguagem, este livro procura insistir na convergência de mutações profundas que ocorrem nos modos de socialização do desejo, assim como nos modos de reprodução material da vida e de constituição de critérios de funcionamento e crítica da linguagem (Safatle, 2008, p.201).

O primeiro ensaio, Dialética, Ironia, Cinismo, propõe um recenseamento da crítica de Hegel à ironia romântica e aos modos de interversão cínica da lei, sugerindo um encaminhamento dialético para a tese central sobre o cinismo. De acordo com Vladimir, a racionalidade cínica deixa transparecer uma estrutura pautada pela estabilização da passagem incessante da norma para a infração, criando um estado de anomia que Hegel define como interversão da lei social (Umschlagen).1 A estabilização desse estado de anomia permite aos agentes sociais legitimar a ação cínica de maneira explicitamente contraditória com o seu fim, como se a norma que a regula portasse em si mesma, no momento de sua aplicação, o elemento transgressivo que a nega. Uma contradição que dá origem à flexibilidade identitária das formas de vida hegemônicas nas sociedades de consumo, capaz de dissolver perversamente os conflitos gerados pela lógica capitalista.

Em virtude desta contradição, o segundo ensaio, Was Ist Zynismus, mostra a pertinência da fórmula cínica de Sloterdijk “eles sabem o que fazem, e continuam a fazê-lo” (Safatle, 2008, p.69). Invertendo a fórmula de Marx, “eles não sabem, mas o fazem”, a fórmula cínica aponta para a obsolescência de categorias como reificação e alienação da falsa consciência, quando se trata de compreender os processos de racionalização nas sociedades de consumo. Esta obsolescência se deve ao fato de a contradição legitimada do comportamento cínico já não implicar, como supõe a fórmula de Marx, o desconhecimento do princípio objetivo que orienta a ação social. Tanto o princípio objetivo quanto o sentido da ação são transparentes à racionalidade cínica, embora esta negue voluntariamente o princípio que a orienta. Esta consciência da contradição é o que permite definir a ideologia cínica, não imediatamente pelo que se pensa, mas antes pelo o que se faz:

Poderíamos aqui concordar com Slavoj Zizek e afirmar que tudo isso só demonstra como a fórmula cínica ignora que o desconhecimento ideológico não está na dimensão do “saber” da consciência, mas na estruturação das condições de significação da práxis, ou seja, na dimensão do “fazer” (Safatle, 2008, p.83).

No terceiro ensaio, Sobre um Riso que não reconcilia, o cinismo aparece sob a forma da identificação irônica ou do humor, isto é, como figura da ação social que constrói seus padrões de racionalidade com base em um pretenso poder de aniquilamento da lei. Observa-se aqui um esforço de articular as formas de identificação social, os modos de ironização do sentido no ato de enunciação e a torção performativa do sentido pela ação. A articulação entre estas três esferas, que refletem a relação entre trabalho, linguagem e desejo, será retomada ao longo de todo o livro até o clímax do penúltimo ensaio, Sexo, Simulacro e Políticas da Paródia. Assim como as identificações irônicas, a ironização do sentido é um sintoma específico do que, numa dimensão social mais ampla, aparece como polimorfismo da crítica, transformada em falsos atos de perversão da lei social.

Analogamente à racionalidade cínica, o modelo clássico de crítica é considerado um exemplo de “ideologia que pode funcionar exatamente por não se tomar a sério” (Safatle, 2008, p.100). A crítica não conseguiria escapar à lógica performativa da contradição cínica pelo fato de esta já supor, como dispositivo interno de legitimação, a transparência da inadequação entre a práxis e o princípio que a fundamenta. Portanto, ao integrar o dispositivo de legitimação da racionalidade cínica, a busca da crítica pela transparência da totalidade dos mecanismos de produção do sentido, que tem por objetivo apontar para o erro, a ilusão ou a insinceridade da intenção, confrontando-a com a ação ou com os atos de fala que supostamente a enunciam, deixaria de cumprir a promessa de transformar as estruturas sociais, impedindo seus agentes de formular uma saída para o impasse criado pelo estado de anomia social.

Dialética, Weber e Lacan

No primeiro ensaio da segunda parte, Por Uma Crítica da Economia Libidinal, Vladimir propõe um novo recenseamento, desta vez a fi m de ressignificar a dimensão social de alguns conceitos-chave da teoria das pulsões de Freud. Em linhas gerais, o autor apresenta aqui uma teoria social de dupla orientação, Adorno e Lacan, que procura mostrar como a validação material do consumo desarticula tanto os dispositivos ideológicos da ética do trabalho (Weber), como os imperativos repressivos fundamentados na figura do supereu paterno (Freud), cedendo lugar a uma nova figura da ação social, que Lacan define como supereu materno. Ao conjugar-se com a plasticidade da forma mercadoria, o supereu materno regula, através de uma ética do gozo, as expectativas de satisfação do desejo nas sociedades de consumo, determinando as formas de racionalidade que se colocam a serviço de uma lógica de administração do desejo. O autor defende, a partir daí, que, aliada à ética do gozo, a interversão cínica transformou-se “na verdadeira mola propulsora da economia libidinal da sociedade de consumo” (Safatle, 2008, p.128). Este passo teórico permite-lhe descrever as principais mudanças estruturais que, a partir da década de 1920, desencadearam a transformação dos padrões de racionalidade que orientam os modos de socialização do desejo.

Assim, essa ironização absoluta dos modos de vida com sua lógica de autonomização da aparência nada mais é do que a posição subjetiva que internalizou a desvinculação geral entre imperativo de gozo e conteúdos normativos privilegiados a essa nova figura social do supereu (Safatle, 2008, p.134).

No último ensaio, o cinismo aparece como sintoma do esgotamento da autoprodução crítica da cultura. Ao ignorar que a natureza contraditória da racionalidade cínica já não supõe a adequação da intenção ao valor ou à norma, mas se alimenta da própria impossibilidade de adequação, como modo de legitimação de suas práticas discursivas, o modelo clássico de crítica esgotaria também seu poder de orientar as exigências de racionalidade no campo da produção estética. Aplicada às formas de fetichização do desejo, a crítica camufla a contradição legitimada da racionalidade cínica que, mesmo nos momentos mais sublimes de transgressão, como na música de Arnold Schoenberg, não é capaz de abandonar completamente os valores supostamente aniquilados, como o demonstrará mais tarde a reincidência do sistema tonal na flexibilidade paródica de John Adams e Thomas Adès.

Notas

1 “Action itself is this inversion (Verkehrung) of what was known into its contrary, into what is; it turns the law of character and knowledge into the law of their opposite [Umschlagen], with which the former is bound up in the essence of the substance” (Hegel, 2008, p.667).

Referências

HEGEL, G.W. 2008. The Phenomenology of Spirit. Disponível em: http://web.mac. com/titpaul/Site/Phenomenology_of_Spirit_page.html, acesso em: 09/12/2009.

Rubens José da Rocha – IFAC-UFOP. Ouro Preto, MG, Brasil. E-mail: [email protected]

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Interfaces da hermenêutica – ROHDEN (FU)

ROHDEN, L. Interfaces da hermenêutica. Caxias do Sul: EDUCS, 2008. Resenha de: STEFANI, Jaqueline. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.10, n.2, p.226-227, Mai./ago., 2009.

Rohden apresenta, nesta obra de extrema relevância filosófica contemporânea, a reunião de nove textos sobre hermenêutica, especialmente a hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer. Tais textos são agrupados em três grandes eixos que fazem interlocução com a hermenêutica: método, ética e linguagem.

No tocante ao método, a distinção entre hermenêutica metodológica (teológica, jurídica, epistemológica) e hermenêutica filosófica se inscreve em uma diferença basilar: enquanto a primeira foi proposta ao longo da história como um instrumento de uso para melhor interpretar ou interpretar corretamente, a segunda revela um modo de ser. Em tempos em que o Cogito cartesiano e os sistemas totalizantes da modernidade não mais consideram a pluralidade que é o ser humano, dotado não só de razão, mas também de imaginação e de um intrínseco poder criador, pode-se perceber a hermenêutica como possibilidade originária de conhecer, de pensar, de interpretar e de ser.

A interlocução com a ética, no sentido da filosofia prática aristotélica, aponta o diálogo como o lugar por excelência da efetivação de uma postura hermenêutica autêntica, postura que só pode ser instaurada partindo de uma escolha preferencial. O diálogo pressupõe a abertura ao discurso do outro, pressupõe que se escute o outro com a disposição interna de quem crê que esse outro realmente pode ter razão, ou seja, de quem crê na possibilidade de aprender com o outro ou de rever suas compreensões prévias a partir da palavra do outro. A consciência hermenêutica é a disposição constante para a abertura, para o imprevisível, para o novo que sempre surge no processo de compreensão, seja na interpretação de um texto, seja no encontro com a alteridade presente no diálogo. A abertura é essa disposição de acolhimento ao outro, disposição essa que é inerente ao dialogar, pois, do contrário, o próprio conceito de diálogo perde sua essência. Desse modo, aquele que não escuta o outro, entendida essa escuta na profundidade e na dimensão que Gadamer lhe atribui e que Rohden reitera, não dialoga, mas monologa.

Na terceira parte do livro, o autor aborda a linguagem literária e filosófica em contraponto à linguagem científico-analítica e apresenta os componentes metafóricos, ficcionais e verossímeis da linguagem literária e filosófica como instâncias produtivas da autocompreensão. O texto literário e o texto filosófico surgem como lugares privilegiados onde o leitor se constrói como sujeito. No movimento hermenêutico joga-se com projeções e memórias, lembranças passadas e expectativas futuras, estranhamentos e reconhecimentos, e, desse modo, vai-se construindo a própria identidade do leitor. Por intermédio da leitura traz-se à superfície o que, talvez, de outro modo, teria permanecido submerso e obscuro. O leitor se conhece, se desenvolve, se reinventa quando se entrega à experiência da leitura. Compreender-se perante a obra significa deixar acontecer esse encontro (entre leitor e obra) instaurado pelo próprio texto.

Contrariamente à transparência do Cogito cartesiano, o desvio pela opacidade do signo sugere que a compreensão do sujeito por si mesmo não acontece diretamente, mas reflexivamente, obliquamente. A perspectiva técnico-científica, por outro lado, toma a linguagem como instrumento da ciência, sistema de sinais que a técnica e a lógica constroem e que, desse modo, servem para designar as coisas reais. A linguagem, nessa acepção, surge como um meio, um utensílio, de forma que, quanto maior sua exatidão e rigor conceitual e quanto menor sua ambiguidade, tanto mais perfeita será a adequação à coisa que se pretende designar. Tal modelo de concepção da linguagem buscou a idealidade, a universalidade, a própria essência da linguagem livre de toda ambiguidade.

A obra de Gadamer contribui de forma original e se inscreve na história da filosofia de várias formas: (i) propõe a hermenêutica filosófica, na qual a compreensão é o próprio modo de ser do sujeito; (ii) critica a pretensão de transferir o método das ciências, ditas objetivas, para a filosofi a; (iii) aprimora o conceito de experiência atribuindo-lhe o caráter de irrepetibilidade; (iv) aborda a pré-compreensão e o pré-conceito não mais como entraves para um acesso puro e objetivo às verdades do mundo, mas como constatação de que pretender uma apreensão das coisas de forma neutra, absoluta, objetiva é ingenuidade ou soberba.

A proposta gadameriana apresentada por Rohden é, diferente de outras elaborações conceituais acerca da hermenêutica ao longo da história, a constatação daquilo que ocorre no momento do encontro entre leitor e obra. Tal constatação se abstém tanto de uma proposta descritiva, quanto de uma proposta prescritiva, “[…] o que está em questão não é o que nós fazemos, o que nós deveríamos fazer, mas o que, ultrapassando nosso querer e fazer, nos sobrevém, ou nos acontece” (Gadamer in Rohden, 2008, p.35). Esse acontecimento entre leitor e obra (ou falante e ouvinte) faz emergir uma forma diferenciada de ver a relação entre sujeito e objeto, ou, dito de outro modo, de conceber o movimento inerente ao processo de conhecimento. Há um rompimento dessa dualidade clássica apresentada ao longo da história da filosofia, seja dando primazia ao sujeito, seja enaltecendo o objeto como determinante na relação. Assim, reunindo com criatividade e de forma interdisciplinar autores como Gadamer, Paul Ricoeur e João Guimarães Rosa, Rohden propõe, àquele que quiser entrar no jogo hermenêutico filosófico, uma terceira esfera. Com isso, não mais dois, mas três são os âmbitos compreendidos no movimento de compreensão: o do sujeito (leitor, proponente etc.), o do objeto (livro, autor, oponente etc.) e uma “terceira margem” advinda do encontro entre os primeiros, cujo resultado é sempre imprevisível.

A noção de jogo, central para a compreensão hermenêutica, abarca simultaneamente regras prévias e liberdade, o apodíctico e o verossímil, necessidade e contingência. É exatamente da interação entre essas oposições que surge a riqueza de tal metáfora quando aplicada ao fazer filosófico e à própria condição do ser humano no mundo. O jogador não tem total domínio do jogo, pois determinadas coisas ocorrem e são totalmente imprevisíveis. Apesar de haver um conjunto de regras, que são mais ou menos fixas, dependendo do tipo de jogo, há sempre elementos que não podem ser previstos.

O jogo é uma das propostas de Rohden como forma de atualização da hermenêutica gadameriana e, em última instância, é um convite filosófico dirigido ao leitor, pois “o autoritarismo não joga, impõe. Os sistemas absolutos não jogam, induzem e deduzem. O dogmatismo não joga, crê. O ceticismo não joga, silencia. […] somente quem ainda não sabe [o que é o bem, o que é o belo, o que é a verdade], propõe-se, sempre de novo, a jogar o jogo filosófico” (Rohden, 2008, p.87).

Jaqueline Stefani – Centro de Filosofia e Educação da UCS. Caxias do Sul, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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O percurso do reconhecimento – RICOEUR (FU)

RICOEUR Paul. O percurso do reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2006. Resenha de: KUSSLER, Leonardo Marques. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.10, n.2, p.223-225, mai./ago., 2009.

Em um mundo de diversas discussões, de inúmeras teorias filosóficas, de conceitos, Ricoeur destaca a importância que há em discutir a temática do reconhecimento tal como se discute a do conhecimento. Este foi o impulso final para que Ricoeur compusesse esta belíssima obra: O percurso do reconhecimento. O livro se constitui em um compêndio de conferências proferidas pelo autor, em Viena e em Friburgo, as quais foram cuidadosamente trabalhadas posteriormente. A proposta inicial do autor surge provocando surpresa e perplexidade por não se ter visto um livro filosófico que tratasse diretamente do assunto reconhecimento, como tratam, em inúmeros livros, as muitas teorias e discussões do tema conhecimento. Contudo, a obra lançada anteriormente, A memória, a história, o esquecimento (Ricoeur, 2007), já tratava do tema do reconhecimento de um modo mais abrangente, na última parte do livro ao abordar o tema do o perdão.

O percurso do reconhecimento divide-se em três grandes estudos, para seguir a lógica do autor adotada em suas obras. Primeiramente, o estudo parte de uma análise linguística e lexicográfica da palavra reconhecimento, com base em dois grandes dicionários franceses – o Dictionaire de la langue française, de 1859, e o Grand Robert de la langue française, de 1985 (in Ricoeur, 2006 p. 15 e ss.). Esse primeiro estudo elucida a ideia de reconhecimento enquanto identificação, contando com análises de Descartes e Kant. Em instância primária, o verbo reconhecer comporta o eu que reconhece, enquanto está ativo. Tal identificação parte do identificar-se algo em geral para, posteriormente, chegar a identificar-se alguém. No segundo grande estudo, surge o agente (agency, diz Ricoeur) que revela a capacidade do homem enquanto ser capaz da ação de reconhecer. Nesse ponto, o autor liga essa capacidade à noção de narratividade daquele que pode reconhecer, à qual liga também as noções de memória e de promessa – mais bem explicitadas na obra A memória, a história, o esquecimento. Ricoeur fala do agir e do agente no mundo grego, aos quais relaciona o reconhecimento de si por outra pessoa que não o si mesmo. Nesta ocasião, existe uma bela, porém pequena, análise do reconhecimento de Ulisses na grande obra Odisséia, de Homero (in Ricoeur, 2006, p.90-91), nos dois momentos: o primeiro, em que Ulisses é reconhecido, e o segundo, o momento em que se faz reconhecer. Ricoeur também analisa as distinções de Aristóteles, no início da obra Ética a Nicômaco (in Ricoeur, 2006, p.97). A narrativa é trabalhada nesse segundo estudo com mais clareza, em que se marca o poder dizer, atrelando-o ao poder fazer e ao poder narrar-se – e também o poder ouvir-se, pois sempre se pressupõe o ser ouvido ao narrar-se. Estes temas são ligados à noção jurídica de memória enquanto promessa – a visão do falar de testemunhas, por exemplo, ou simplesmente a da promessa de um indivíduo ao outro, um simples pacto. Posteriormente, ainda no segundo estudo, é levantada pelo autor a ideia de esquecimento dos dados memoriais, da lembrança – a famosa anamnésis grega –, temas desenvolvidos mormente em sua obra, a qual trata diretamente do esquecimento.

No terceiro grande estudo, o autor procura mostrar a relação do eu que reconhece ou se faz reconhecer com o tema do reconhecimento mútuo. Nele são discutidas as teorias de Hobbes, por exemplo, em sua temática da organização social que, indiretamente, parece relacionar-se com o reconhecimento de si, pois se trata, como explica Ricoeur, no estado de natureza, de todos contra todos, de uma busca de reconhecimento de cada indivíduo pelo outro. Nesse estudo, também é reservado um grande espaço para as análises de Hegel sobre o reconhecimento. Existe uma boa relação, nos escritos hegelianos da época do livro Fenomenologia do espírito (in Ricoeur, 2006, p.178), por exemplo, entre servo e senhor, que, explica, na mesma linha, paralela ao reconhecimento de cada indivíduo em Hobbes, de forma diferente, a relação dialógica, por assim dizer, do servo com o senhor – também assinalada por Ricoeur como a luta de classes sociais e econômicas, embasadas em Thévonot e Boltanski (in Ricoeur, 2006, p.237-238). Vale ressaltar que, nessa relação, como se sabe, um deles se faz reconhecer, e o outro se submete a sua posição por não ter se arriscado tanto quanto o outro; oprimido, portanto, e tem seu reconhecimento comprometido. Partindo desse reconhecimento em Hegel, no período de Iena, Ricoeur relaciona o reconhecimento com o sentimento de amor, por exemplo, nessa temática de reconhecimento mútuo, em que se busca a reciprocidade, a alteridade nesse reconhecer. Nesse terceiro estudo, trabalha-se, junto à temática do amor propriamente dita, o conceito de agápe na tentativa de reconciliação, de mutualização desse reconhecimento. Também se discute o tema da relação de equidade ou equivalência no plano jurídico que, de certa forma, trata de uma igualdade, de uma mutualidade, de uma respeitabilidade. Nessa tentativa de se mutualizar o reconhecimento é importante ressaltar o papel da discussão do desconhecimento, caro à Ricoeur, pois mostra a dificuldade de se reconhecerem mutuamente os indivíduos, sem que ninguém seja desconhecido, esquecido, transpassado. A parte final do livro reserva a temática de dom, entendido como a possibilidade de se reconhecer alguém e trocar dons. Com isso, surge a ideia de gratidão, trabalhada de acordo com a tendência de retribuir o reconhecimento que se recebe, reconhecendo de volta o outro indivíduo. Essa mutualidade, equidade, respeitabilidade, alteridade são possíveis em um dito estado de paz, diz Ricoeur. Para o pensador francês, é somente esse estado de paz que pode, de fato, possibilitar essa troca de reconhecimentos enquanto dons, que têm sua expressão mais forte na troca sem compromisso, ou seja, no doar-se sem esperar o reconhecimento de gratidão de volta – algo um tanto cristão, como bem aponta o autor. Ricoeur também desenvolve, em parte, as teses de Lévinas (in Ricoeur, 2006, p.74 e ss.) sobre o reconhecimento do outro, que retratam a dissimetria entre o eu e o outro para um reconhecimento recíproco, de uma ética primordial que assegure esse tratamento mútuo.

Por fim, é de suma importância ressaltar que, por se tratar de um livro recente, e uma das últimas obras de Ricoeur, alguns temas estão aí indexados com pressuposições de leituras anteriores, algo mais refinado, por assim dizer, posto que o livro traz temas de algumas de suas obras anteriores. A obra apresenta-se, portanto, como uma síntese de determinadas teses, compactadas nesse belo volume. Entretanto, isso não reduz a importância, a novidade e o compromisso do autor ao trabalhar um tema de especulação constante como é o reconhecimento que, como ele mesmo diz em sua análise, não foi tomado com a devida seriedade até o presente momento. A leitura do livro é altamente válida, uma vez que se mostra como uma tendência forte na atualidade e, por ser um livro composto sistematicamente por Paul Ricoeur, prima pela qualidade das análises desenvolvidas, resultando em um ótimo referencial teórico nesse âmbito pouco discutido.

Referências

RICOEUR, Paul. 2007. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, Editora da UNICAMP, 535p.

Leonardo Marques Kussler – Unisinos, São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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Institutions of Law: An essay in legal theory – MACCORMICK (FU)

MACCORMICK, Neil. Institutions of Law: An essay in legal theory. Oxford: Oxford University Press, 2007. Resenha de: SOUSA, Felipe Oliveira de. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.10, n.2, p.221-222, mai./ago., 2009.

Sir Donald Neil MacCormick (1941-2009), em Institutions of Law, apresenta a versão final de sua Teoria Institucional do Direito. O presente livro é a terceira obra de uma quadrilogia editada pela Oxford University Press, sob a rubrica Law, State and Practical Reason, e pode ser lido como um resultado da destacada biografia do professor MacCormick, tanto no meio acadêmico (como Professor Régio de Direito Público e Direito das Nações na Faculdade de Direito da Universidade de Edimburgo e como um dos maiores filósofos contemporâneos do Direito) quanto em sua experiência política como representante escocês no Parlamento Europeu. Trata-se de um texto introdutório que estabelece, em linhas gerais, um projeto a ser realizado com maior profundidade por alguém que esteja na posição de pensar o Direito a partir de um ponto de vista mais abstrato, sem descuidar do complexo aspecto sociológico de como os diversos sistemas jurídicos se manifestam nas realidades sociais de suas respectivas comunidades (locais, nacionais e/ou internacionais). O professor MacCormick, já na Introdução do livro, propõe uma definição para o conceito de Direito, a saber: o Direito é uma ordem normativa institucional. É uma definição, ressalta-se, explanatória, e não ostensiva, isto é, uma definição útil na medida em que serve como um ponto de partida adequado para saber o que o Direito é. Assim, dizer que o Direito é uma ordem normativa institucional é apenas dizer que, para saber o que o Direito é, é necessário (mas não suficiente) explicar o que é uma ordem normativa e o que significa dizer que uma ordem normativa é uma ordem normativa institucional. Em linhas gerais, o Direito, entendido como “ordem normativa institucional”, deve estar relacionado aos costumes humanos e a decisões autoritativas. Neste sentido, portanto, o Direito deve ser entendido como um fenômeno “posto”, “positivo”. MacCormick abre o Prefácio de sua obra afirmando que a sua Teoria Institucional é uma versão do pós-positivismo.

A leitura do Direito como uma ordem normativa institucional é uma atualização (e não necessariamente uma superação) das correntes positivistas mais tradicionais que tiveram seu auge nas obras de Hans Kelsen (Reine Rechtslehre, 1960) e de Herbert Hart (The Concept of Law, 1961), influências explícitas no desenvolvimento intelectual de Neil MacCormick. Ressalta-se que esta leitura é uma atualização, porque o aparato teórico fornecido em Institutions of Law pretende ser mais adequado para elucidar as diversas relações (complexas) que existem no mundo contemporâneo entre os conceitos jurídicos e as instituições jurídicas, ou, em outras palavras, almeja um modo mais compreensivo de explicar a função mediadora que as instituições jurídicas exercem no processo de concretização do Direito enquanto fenômeno social.

Na presente obra, encontram-se explicações sobre o modo como o Direito está relacionado ao Estado e à sociedade civil, estabelecendo condições de paz social e de uma economia funcional. Tudo isso é colocado a partir de um ponto de vista sistêmico, sob marcada influência de recentes contribuições em Sociologia do Direito da chamada “teoria dos sistemas”. Na sequência, é apresentada uma tentativa de rebater objeções que questionam a possibilidade de se ter um conhecimento jurídico (ou um conhecimento do (acerca do) Direito), e, assim, uma tentativa de defender o caráter genuinamente científi co dos estudos jurídicos. Um dos pontos centrais da obra reside na tese insistente de MacCormick, que defende que toda e qualquer tentativa de elaborar uma ciência do Direito não deve (nem pode) prescindir de ser uma atividade orientada a determinados valores, e, com isso, apresenta uma séria objeção às pretensões avalorativas de alguns dos estudos mais duros em sede de Jurisprudência Analítica (Analytical Jurisprudence). É também sob esse quadro teórico que o autor se posiciona frente ao tema altamente controverso das relações entre o Direito e a Moral. Para ele, Direito e Moral devem ser tomados como conceitualmente distintos (mas não como mutuamente independentes), sem que isso implique a posição de que não há limites morais ao Direito assumido como uma “ordem normativa institucional” (a injustiça extrema, para o autor, não é Direito). Tal distinção se dá, sobretudo, pelo fato de o Direito possuir um caráter positivo (posto) que deve ser contrastado com a autonomia, que é típica e que fornece a base da Moral (e, assim, dos juízos morais).

Referências

HART, H.L.A. 1961. The Concept of Law. Oxford, Oxford University Press, 328 p.

KELSEN, H. 1960. Reine Rechtslehre. 2ª ed., Wien, Leipzig und Wien, 236 p.

Felipe Oliveira de Sousa – UFRGS. Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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O cinema pensa – CABRERA (FU)

CABRERA, J. O cinema pensa. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. Resenha de: PORTELLA, Sergio; KUSSLER, Leonardo. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.10, n.1, p.118-120, Jan./abr., 2009.

Seria critério de afirmação de um bom texto filosófico a estrita aceitação por uma comunidade especializada, logo, seu igual distanciamento ao público “leigo”, incapaz e indiferente às reflexões do filósofo? O ensaio intitulado O cinema pensa do professor Julio Cabrera, argentino radicado no Brasil e “apátrida” confesso, poria em xeque este critério. Seja pela linguagem complacente ao leitor ou pela tomada de objetos que fariam qualquer um desejar conhecer mais Platão, Hegel, etc., quais sejam, bons e inteligentes filmes, Cabrera não por isso relega em sua obra o delineamento de figuras conceituais e teorias filosóficas.

Tão reais quanto o rei, estas teorias mesmo brotariam da vivacidade cabível à filosofia do renomado filósofo analítico cujo pensamento “sempre oscilou entre análise e existência”. A filosofia não careceu da invenção do cinematógrafo para se constituir, isso é fato, mas também não deve se considerar uma prática cultural avessa às demais produções humanas. Esse alargamento da definição de filosofia, aliás, nem sequer esperou o cinema para se afirmar. O livro inicia com uma introdução teórica intitulada Cinema e filosofia: para uma crítica da razão logopática, onde Cabrera identifica no itinerário do pensamento ocidental, de Platão a Deleuze, duas posturas opostas acerca do otimismo reservado à linguagem escrita na exposição do problema filosófico. Seriam, primeiramente, os chamados filósofos apáticos aqueles que privilegiam a exposição proposicional linear da filosofia. Aristóteles, Kant e Wittgenstein seriam exemplares para esta filosofia que se caracteriza pela pretensão de exaurir lógico-analiticamente a compreensão racional do mundo. Contrariamente, os então chamados filósofos páticos, Platão, Hegel, Nietzsche e Heidegger, p.ex., admitiriam a pertinência de um elemento afetivo no “acesso [filosófico] ao mundo”. Este componente seria responsável pela capacidade de “desalojar” o ponto em análise de suas bases habituais de sustentação, sem, contudo, findar relações com o caráter cognitivo originariamente pretendido pela filosofia. “O emocional não desaloja o racional: redefine-o” bem expressa a “razão logopática”. O elemento afetivo comporia um “impacto emocional” que, proporcionando a emersão daquilo que até então se manteve velado na compreensão racional do mundo, facilitaria a empresa do filósofo de “traduzir” o problema, logo, mantendo seu valor epistêmico mediante os assim chamados “conceitos-ideias”.

Os conceitos-ideias teriam, não obstante seu longo histórico prévio ao surgimento do cinema, encontrado neste sua mais adequada expressão. Suas variadas formas percorreram o aforismo, a frase especulativa, o poema filosófico e a biografia para, ao cabo, encontrarem nos “conceitos-imagem” do cinema a “superpotencialização” dos seus elementos constitutivos. São, num todo, experiências [não experimentos] do caráter “existencial” do pensamento enquanto especulação sobre os limites da linguagem propositiva filosófica acerca do real. Justamente este é o sentido dado por Cabrera à “experiência do filme”, indescritível, somente experienciável. “As imagens parecem vincular conceitos e explorar o humano de maneiras mais perturbadoras que a lógica e ética escritas”. O valor conceitual de um filme reside nas “proposições imagéticas” por ele instauradas, incompatíveis à condição epistêmica prévia à sua experiência dado que nela emerge a sensibilidade condizente ao caso cinematográfico. Pois a “verdade” é então compreendida no horizonte de uma universalidade cuja manifestação não exclui as demais, como “possibilidades” cuja atualização remete ao contexto e ao caso face ao qual o expectador é colocado. Trata-se não do “acontece necessariamente, mas… [do que] poderia acontecer a qualquer um”. A riqueza conceitual de um filme é justamente dada a partir da forma como estas possibilidades são pressupostas e encontram seu desfecho, o que se dá mediante unidades iconográficas expressas ou postas em paralelo ao roteiro (a partida de xadrez do cavaleiro Antonius Block com a Morte em O sétimo selo – Det Sjunde Inseglet, do sueco leitor de Kierkegaard Ingmar Bergman, apresentaria uma tecitura sintática análoga aos episódios como compreendidos e vividos em um primeiro plano do roteiro pelo protagonista, expressando sua insuficiência em articular a realidade conforme seu saber e querer particulares face ao destino inevitável). Por conseguinte, o filme num todo se tornaria um único argumento cujo termo consequente residiria em premissas as quais é impossível isolar num tempo só seu, logo, numa temporalidade que só em seu desfecho reencontra o timer do projetor.

Postos os devidos referenciais teóricos, o autor propõe quatorze exercícios nos quais demonstra a articulação entre “conceitos-ideias” e “conceitos-imagem” e o cinema pensante que daí resulta. Os temas são clara e prazerosamente apresentados, de modo a contentar cinéfilos e filósofos num mesmo discurso. De Heidegger e a serenidade e Antonini e o tédio, somos mesmo convencidos de não compreender a profundidade de Platoon, de Oliver Stone, sem ler Platão por ele mesmo. A emocionalidade da guerra não se presta à tradução conceitual exaustiva pela filosofia política, requer mesmo o choque imagético trazido pela violência do filme, a convicção do testemunho como experiência subjetiva, único aporte às impressões do real. Neste e noutros casos de títulos provocantes (São Tomás e o bebê de Rosimery ou Hegel, Paris Texas), o fio de conduta é sempre a permanência essencial velada da verdade face à abordagem puramente abstrata racional da linguagem escrita.

A sequência da obra, capítulo intitulado O cinema pensa, divide-se em dois momentos. No primeiro, as relações apresentadas no ensaio inicial e desenvolvidas nos exercícios são retomadas numa perspectiva detidamente filosófica, ao passo que, no segundo, são evocadas as teorias de cinema que ocasionam o diálogo cinema e filosofia cujo sentido é justificar a afirmação basilar de que O cinema pensa, dando sentido à obra como um todo. Pois, como proposta de uma “introdução à filosofia através dos filmes”, um cinema pensante e uma filosofia mediante imagens em movimento não dispensariam uma definição de filosofia que propriamente os conjugasse. Contudo, assumidamente, a obra de Cabrera lança maior atenção a esta em detrimento daquele, fazendo um uso filosófico do cinema que dispensa uma maior construção cinematográfica da filosofia. Claro, a “problematicidade intrínseca da imagem” sustenta a metáfora de que O cinema pensa, o “acesso ao mundo” mediante a universalidade e pretensão de verdade da experiência pática comportadas pelo cinema. Mas esta relação unilateral entre cinema e filosofia, “filósofos cinematográficos” mas não “diretores filósofos”, dispensaria de todo o caráter intencional da estrutura de produção dos filmes?

A pergunta seria facilmente respondida pela alegação de tal não ser a finalidade de Cabrera (à filosofia importa o pathos do cinema, seu “componente afetivo”; os conceitos-imagem têm sua definição claramente delimitada na afirmação de que “não são categorias estéticas”). Mas tal resposta não eliminaria a questão de saber se o “impacto” provocado não teria sido intencionalmente causado no expectador (o cinema enquanto “linguagem”), o que, além de devolver o “estético” ao pático, lançaria luz à admissão de um caráter lógico-ordenador pressuposto ao caso apresentado pelo filme. Este decorreria não mais com base na “possibilidade” afirmada, mas mediante a “necessidade” negada. A afirmação do filme como um único conceito-imagem composto inferencialmente a partir de estruturas iconográficas impróprias ao isolamento funcional ao longo do seu desenvolvimento no roteiro ruiria. A unidade obtida se afirmaria a partir de um metassistema [lógico, ordenador] pressuposto à sistematização dos elementos objetivos [manifestos], qual seja, a linguagem utilizada pela direção na estruturação do filme. Um ponto a reforçar este argumento se revela no fato de que nenhum dos exercícios propostos pelo autor incide a um filme distinto da estrutura cinematográfica clássica (mesmo De Sica mantém-se num plano narrativo, sem falar em Quentin Tarantino ou Tim Burton), logo, uma suposta impositividade teórica dada com base numa falácia de generalização na proposta da obra. Ou se veria que somente alguns filmes se prestam à logopatia, dado o silêncio de Cabrera a um maior aprofundamento em teorias do cinema? Ou seja, andaria a logopatia de mãos dadas com roteiristas? Pois, ou dá-se o mero uso didático do cinema pela filosofia, ou admite-se uma delimitação funcional dos elementos iconográficos na unidade da obra cinematográfica como condição ao “impacto emocional”, o que, entendemos, requereria ajustes junto à própria definição de filosofia admitida pelo autor no âmago da sua obra O cinema pensa. A construção teórica de uma “filosofia cinematográfica” estaria, assim, suportada pela afirmação de um “cinema filosófico”, afirmação esta que ainda permanece aguardada pelo leitor.

Sergio Portella – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: [email protected]

Leonardo Kussler – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: [email protected]

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Política o destino: cuestiones estratégicas en tiempos de crisis – DEL PERCIO (FU)

DEL PERCIO, E. Política o destino: cuestiones estratégicas en tiempos de crisis. Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 2009. Resenha de: COLOMBO, Agustín. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.10, n.1, p.116-117, jan./abr., 2009.

En esta oportunidad el profesor Del Percio con su ya característico estilo “indisciplinario” de abordaje nos acerca sus reflexiones sobre los temas que hace tiempo frecuenta en sus análisis. Pero esta vez haciendo especial hincapié en la política. Así Política o destino permite al lector servirse de reflexiones que abarcan temas como la inseguridad hasta la educación pasando por cuestionamientos relacionados con la preservación del medio ambiente, la sociología de las finanzas, como prefi ere denominarla el propio Del Percio, la corrupción y la estética femenina, entre otros.

Pero lo que claramente nos ofrece Política o destino es un planteo que semánticamente no permite la disyunción. De esta manera, el planteo de Del Percio se presenta como optimistamente político.

Como dice el autor en El pensamiento audaz como etapa superior del pensamiento crítico, el primer artículo que compone este libro: “[…] esta crisis que afecta al mundo nos brinda una excelente oportunidad para que la política vuelva por sus fueros con la clara consciencia de que no hay un destino marcado” (Del Percio, 2009, p.23). A su vez, corresponde destacar que Política o destino es un libro escrito desde el mundo académico para el mundo político, según el propio Del Percio.

En ese mismo capítulo el profesor Del Percio plantea el problema de la exacerbación del pensamiento crítico como un fi n en sí mismo. Así expone la necesidad de “marchar hacia un pensamiento audaz como etapa superior del pensamiento crítico” (Del Percio, 2009, p.17

En Seguridad sustentable e inclusión social, Del Percio vuelve a manifestar su optimismo político, considerando justamente a la política como praxis que otorgue las herramientas que permitan tratar de solucionar los temas vinculados con la criminalidad. En este sentido, el profesor Del Percio realiza un abordaje relacionado con la inseguridad como problema vinculado con la inequidad y la desigualdad social. En este capítulo el lector podrá encontrar también un especial tratamiento del problema de la delincuencia vinculado a la “droga”.

En Ética y prevención de la corrupción ensaya un análisis del fenómeno de la corrupción considerando especialmente distintos contextos socioculturales y económico-políticos. Asimismo, ofrece una tipología contemplando distintas manifestaciones de este fenómeno.

En otro de los capítulos que forman parte de Política o destino, intitulado Tributo a la Calidad Institucional, el profesor Del Percio trata de buscar respuestas frente a la aparente carencia de estudios científicos que exploren la potencialidad de la vigencia efectiva que puede tener la normativa tributaria en un medio social determinado. Asimismo, el autor ensaya respuestas contemplando la actualidad de la sociedad de consumo.

Frente a la problemática relacionada con el cuidado del medio ambiente, Del Percio analiza la constitución de la subjetividad, frente a la consumación de la Modernidad a la que estamos asistiendo según el autor, remontándose hasta sus orígenes y plantea la necesidad de “redescubrir al ser como una incontenible fuerza relacional oculta por el ente” (Del Percio, 2009, p.244). Desarrolla así en El Logos del Oikos la noción de “Metafísica de la relación”.

En Pero aún los niños vienen y preguntan, Del Percio aborda tal vez el problema al que ha dedicado la mayoría de sus refl exiones: La Educación. Allí manifi esta la necesidad de concebir a la educación como una praxis liberadora y fundamentalmente trata de diferenciar esta última de la Socialización. En este capítulo y en concordancia con lo que plantea en el capítulo anterior, el autor propone “[…] reformular tanto los contenidos de las asignaturas como el modo de enseñanza de las mismas en función de la relación como categoría fundante” (Del Percio, 2009, p.281).

El libro finalmente está compuesto por un Apéndice que incluye dos trabajos intitulados Del escote a la minifalda y ¿Reemplazan las organizaciones sociales a los partidos políticos?

Fiel a los planteos que acompañan a su autor, Política o Destino está impregnado de las motivaciones que siempre inquietaron a Del Percio: Forjar un pensamiento latinoamericanamente situado.

Agustín Colombo – Instituto de Altos Estudios Sociales Universidad Nacional de San Martín. Campus Migueletes. E-mail: [email protected]

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