A democracia na América: sentimentos e opiniões. De uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos – TOCQUEVILLE (CTP)

TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. De uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. Resenha de: SOUZA, Clotildes Farias de. Associativismo voluntário, uma categoria central no pensamento de  Alexis de Tocqueville. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 17, p. 79-82, set./out. 2014.

A noção de associativismo voluntário foi apresentada por Alexis de Tocqueville2 na célebre obra “A Democracia na América”, escrita no ano de 1832, quando o autor retornara à França, depois de nove meses de estadia nos Estados Unidos da América em busca de informações sobre o sistema prisional e sobre a realidade política e cultural daquele país.3 Em que pese a importância da totalidade da obra para compreensão das idéias tocquevilianas sobre a democracia e os princípios de igualdade e liberdade inerentes que determinam o desenvolvimento sócio-político dos países europeus em comparação com os Estados Unidos da América, salienta-se aqui as idéias acerca do associativismo voluntário a partir do segundo volume da clássica obra.

Membro da nobreza francesa, Alexis de Tocqueville nasceu em Paris em 1805 e tinha menos de trinta anos quando escreveu o texto que marcaria a sua trajetória intelectual, ainda profundamente focado nas observações realizadas sobre a vida americana. O primeiro volume da sua principal obra foi publicado em 1835, com o subtítulo “leis e costumes”, contendo muitas impressões e interpretações acerca das diferenças constatadas entre o modelo norte-americano de sociedade e os padrões aristocráticos europeus.4 O segundo volume de “A Democracia na América” é de 1840 e tem como subtítulo “sentimentos e opiniões”; nele o autor reflete mais a própria natureza da democracia como modelo político, tratando do associativismo voluntário especificamente.

O associativismo voluntário ocupa lugar especial no segundo volume do livro que se apresenta dividido em quatro partes. A primeira parte trata da “Influência da democracia no movimento intelectual dos Estados Unidos” e a segunda parte é dedicada ao estudo de “A influência da democracia sobre os sentimentos dos americanos”. A terceira parte do livro aborda a “Influência da democracia sobre os costumes propriamente ditos” e a quarta parte trata “Da influência que as ideias e os sentimentos democráticos exercem sobre a sociedade política”. Encontra-se na segunda parte do livro o tema do associativismo, desenvolvido em quatro capítulos intitulados: 1. Como os americanos combatem o individualismo por meio de instituições livres; 2. Do uso que os americanos fazem da associação na vida civil; 3. Da relação entre as associações e os jornais; 4. Relações entre associações civis e associações políticas. Na quarta parte do livro ainda é encontrado um capítulo diretamente voltado ao tema, intitulado “A igualdade dá naturalmente aos homens o gosto pelas instituições livres”.

O conteúdo do livro evidencia o fato do associativismo voluntário ser uma noção central em Tocqueville, caracterizada como a força da democracia pelas oportunidades políticas que gera para os cidadãos reunidos em torno de um interesse geral. O espírito do associativismo expressa a liberdade política dos americanos que participam efetivamente do processo de elaboração das leis e da sua aplicação, organizados em instituições livres criadas na sociedade civil e voltadas para tomada de decisão sobre as questões banais do cotidiano e as mais relevantes questões da nação. Trata-se de uma tradição, de um hábito ou simplesmente de uma crença capaz de politizar a sociedade civil, tão importante quanto à legislação e mais importante que as condições geográficas favoráveis a democracia norte-americana.

Os americanos de todas as idades, de todas as condições, de todos os espíritos, se unem sem cessar. Não apenas têm associações comerciais e industriais de que todos participam, mas possuem além dessas mil outras: religiosas, morais, graves, fúteis, muito gerais e muito particulares, imensas e minúsculas; os americanos se associam para dar festas, fundar seminários, construir albergues, erguer igrejas, difundir livros, enviar missionários aos antípodas; criam dessa maneira hospitais, prisões, escolas. Enfim, sempre que se trata de pôr em evidência uma verdade ou desenvolver um sentimento com o apoio de um grande exemplo, eles se associam.5

A força das associações voluntárias no dia a dia da vida americana chega a ser uma lei mais extensiva que a do Estado aos olhos tocquevillianos; é a lei do autogoverno que orienta os americanos no sentido da conquista dos próprios objetivos. É a primeira lei da democracia que faz o povo americano sentir a coisa pública como sua e de todos, assim como a defender a igualdade porque assim os homens permanecem ou se tornam civilizados.

Quando os cidadãos são forçados a se ocupar dos negócios públicos, são necessariamente tirados do meio de seus interesses individuais e arrancados, de tempo em tempo, à visão de si mesmos. Quando o público governa, não há homem que não sinta o preço da benemerência pública e que não procure cativá-la, atraindo a estima e a afeição daqueles em meio dos quais tem de viver.6

Do movimento associativista fazem parte as associações políticas com a importante função de ensinar os homens a agirem cooperativamente em vista do bem-comum, gratuitamente, sem comprometimento do patrimônio particular. As associações políticas são instituições que cumprem a função de “[…] grandes escolas gratuitas, onde todos os cidadãos aprendem a teoria geral das associações”.7  Às sociedades políticas impõem-se limites para garantia da paz e do respeito às leis, dado o perigo da liberdade à democracia; ao direito dos cidadãos de se reunirem não pode haver restrições. Não há motivos para temer as sociedades políticas porque ao tempo em que exercem controle são também controladas pela própria sociedade civil que está subordinada a centralização governamental do Estado, ainda que livre da burocratização da administração pública. Em geral, nas associações políticas são renovados os sentimentos e as idéias tão necessários ao desenvolvimento humano; a liberdade e a civilização são garantidas em tais instituições porque a união dos membros que se encontravam separados inibe o individualismo ameaçador imposto pela igualdade de condições.

As instituições livres que os habitantes dos Estados Unidos possuem e os direitos políticos de que fazem tanto uso recordam sem cessar, e de mil maneiras, a cada cidadão, que ele vive em sociedade. Trazem a todo instante seu espírito à idéia de que o dever, tanto quanto o interesse dos homens, é tornarem-se úteis a seus semelhantes e como não vê nenhum motivo particular para odiá-los, já que nunca é nem seu escravo nem seu amo, seu coração se inclina facilmente para a benevolência.8  Justamente na capacidade de congregação reside a força de uma associação porque ali se consegue manter a relação de reciprocidade entre os homens tão necessária à democracia. Ali está o potencial de comunicação entre os membros da sociedade porque há instrumentos que representam as instituições e são criados para o exercício da liberdade de expressão; instrumentos como os jornais, por exemplo, os quais proporcionam a fala de uma só vez a todos aqueles que não se vêem ou se juntam diariamente, transmitindo simultaneamente os sentimentos ou ideais que estariam dispersos em cada individuo.

Acerca do associativismo voluntário de Alexis de Tocqueville resta afirmar que é uma categoria de análise bastante profícua para se pensar a cultura norte-americana e também outras formas de organização social e institucional em contextos históricos variados. É uma noção útil aos estudos comparados de modelos internacionais que foram apropriados pelos brasileiros, inclusive de modelos educacionais cujas representações históricas e culturais requerem observações específicas para reconhecimento e compreensão das analogias e diferenças existentes entre os diferentes fenômenos analisados.

Notas

2 TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. De uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

3 BASTOS, M. H. C. ARRIADA, E. A democracia na América, de Alexis de Tocqueville: uma leitura para a história da educação. Revista Educação Unisinos, 11(1), n. 1, p. 5-14, jan.-abr. 2007. Disponível em <http://www.ebah.com.br/content/ABAAAAmWoAI/a-democracia-na-america-alexis-tocqueville-leitura-a-historia-educacao>. Acesso em: 10 de fevereiro de 2012.

4 BEIRED, J. L. B. Tocqueville, Sarmiento e Alberdi: três visões sobre a democracia nas Américas. Revista História [online], vol.22, n.2, p. 59-78, 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n15/a06n15.pdf. Acesso em: 17 de julho de 2014.

6TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. De uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 131.

6 Idem, p. 124.

7 Idem, p. 143.

8 Idem, p. 129.

Referências

TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. De uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

BASTOS, M. H. C. ARRIADA, E. A democracia na América, de Alexis de Tocqueville: uma leitura para a história da educação. Revista Educação Unisinos, 11(1), n. 1, p. 5-14, jan.-abr. 2007.

BEIRED, J. L. B. Tocqueville, Sarmiento e Alberdi: três visões sobre a democracia nas Américas. Revista História [online], vol.22, n.2, p. 59-78, 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n15/a06n15.pdf. Acesso em: 17 de julho de 2014.

Clotildes Farias de Sousa – Mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe-UFS. Coordenadora Pedagógica do Centro de Educação Superior a Distância – UFS. E-mail: [email protected].

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