Ética Prática | Peter Singer

Peter Singer é filósofo e professor em Princeton e Melbourne, seu livro, Ética Prática, é considerado um clássico no assunto. A primeira edição é de 1993 e desde então vem causando muita comoção devido às suas opiniões polêmicas. Para a quarta edição, o autor revisou todos os capítulos e adicionou um sobre as mudanças climáticas. Segundo o próprio Singer (2018, p. 38), “este livro pode ser entendido como uma tentativa de indicar de que maneira um utilitarista preferencial coerente lidaria com uma série de problemas polêmicos”. O objetivo, portanto, é o de ponderar filosoficamente desde questões cotidianas até assuntos mais polêmicos, como aborto, eutanásia, igualdade, estatuto moral dos animais, responsabilidade com os pobres e o meio ambiente, etc.

É importante entender a posição defendida pelo autor, que é a do utilitarismo preferencial, apesar de levar em consideração outras posições ao longo de suas argumentações. O utilitarismo é um tipo de consequencialismo, ou seja, “não partem de regras morais, mas de objetivos. Avaliam a qualidade das ações mediante uma verificação do quanto elas favorecem esses objetivos” (Ibid, p.21). A visão ainda se difere do utilitarismo clássico hedonista de Bentham e Mill, pois leva em conta uma igual consideração das preferências e interesses dos que são afetados por uma ação. O autor ressalta a distinção feita por R.M. Hare entre os planos de raciocínio moral (crítico) e o intuitivo, melhor adequado no uso cotidiano, onde “é melhor adotarmos alguns princípios éticos amplos e não nos desviarmos deles” (Ibid, p.128), princípios assegurados por experiências passadas, clássicos. Seguindo um conjunto de princípios intuitivos bem escolhidos, não é preciso tentar calcular consequências a cada decisão que fazemos. Leia Mais

O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna | Jacques Rancière

No início dos anos 1970, Hayden White causara grande agitação entre os historiadores ao demonstrar o recurso destes aos procedimentos e elementos poéticos na construção da narrativa e da interpretação histórica (WHITE, 1992). Trinta anos depois, François Hartog evidenciava, a partir de seus regimes de historicidade, não somente outra faceta da historiografia oitocentista, como também, de modo mais geral, da relação da sociedade ocidental com o tempo histórico. De acordo com Hartog (2013), o regime historicista moderno, marcado por uma concepção de tempo futurista, não se limitava às narrativas historiográficas – ia além, perpassando diversas formas de relação social com a temporalidade, inclusive a literatura.

Contemporâneo de White e Hartog, Jacques Rancière, filósofo francês, foi gradativamente afastando-se do marxismo althusseriano [2] – que marcou o início de seu trabalho – até se aproximar, sobretudo nos anos 1990, das discussões em torno da relação entre estética e política, e mesmo entre a ficção e a historiografia. No âmago dessas reflexões, Rancière (2005) identificou a existência, no Ocidente, de três regimes na produção das artes: um regime ético, cuja base é a filosofia platônica; um regime representativo, orientado pela poética aristotélica; e, finalmente, um terceiro regime, o estético, que é propriamente moderno, e cuja origem encontra-se no questionamento e na subversão da poética representativa. Esses regimes implicam não somente concepções e relações poéticas, mas igualmente políticas, uma vez que o filósofo identifica certa indissociabilidade entre essas esferas. Desse modo, esses regimes são fundamentais na compreensão, tanto da composição poética quanto dos seus desdobramentos críticos em sua recepção. As implicações de sua reflexão, no entanto, não se limitam à ficção e à política, permitindo recolocar em questão a relação entre estas e a história, compreendendo sua articulação, especialmente, no momento da constituição da disciplina ou ciência histórica no século XIX.

Em O fio perdido, um conjunto de ensaios sobre a ficção moderna, Rancière percorre, ao longo de três capítulos, diversos nomes consagrados do romance, da poesia e do drama com o intuito de identificar mecanismos e indícios específicos que demarcam em cada obra e em cada segmento a decadência do regime representativo, centrado no modelo orgânico e na lógica da ação, e a emergência do regime estético que caracteriza propriamente essas ficções como modernas.

O primeiro capítulo da obra, O fio perdido do romance, é aberto por um texto sobre Gustave Flaubert, O barômetro da Sra. Aubain. Nele, Rancière tenta dar conta da novidade contida na obra flaubertiana, identificando-a, primeiramente, a partir das críticas tecidas ao romancista. Logo no início do prólogo do livro, o filósofo recorre à sentença de Barbey d’Aurevilly sobre a Educação sentimental: “não há livro ali dentro; não há essa coisa, essa criação, essa obra de arte de um livro, organizado e desenvolvido, que vai em direção a um desfecho” (1869 apud RANCIÈRE, 2017, p.7). A crítica é sintomática, ela evidencia a cisão que o filósofo identifica na obra do romancista. Conforme afirmava Michel de Certeau (1998, p.91-106; p. 266-268), a crítica pertence ao terreno das táticas, consiste em um instrumento de controle, no caso, não somente das leituras, mas também das práticas de escrita literária. Ela demarca, segundo a própria reflexão rancieriana, uma concepção de ficção literária vigente. Nesse caso, trata-se do regime representativo, presente na poética aristotélica, que define a ficção, positivamente, como uma “intriga de saber” que implica na construção poética o estabelecimento de uma ordem temporal (começo, meio e fim), de uma ordem causal regida pela verossimilhança, pela necessidade, pela subordinação dos detalhes e das partes ao conjunto da obra e também por certa proporcionalidade e correspondência entre a descrição, o pensamento e a ação.

Desse modo, para o crítico de Flaubert, sua obra transgredia esses princípios, logo ela era carente de elementos necessários para qualificá-la enquanto ficção. No entanto, para Rancière, não se trata de uma carência, mas sim do efeito da emergência de um novo “paradigma estético”, que não deixa de ser um “novo paradigma da vida”. Nesse sentido, o excesso descritivo presente no romancista – encarnado na presença do barômetro da sra. Aubain, em Um coração simples –, demarcaria não a deficiência de um elemento destoante e desnecessário, muito menos um efeito de real pelo qual Roland Barthes e a crítica estruturalista estipulavam o lugar da descrição inútil e demarcavam a tentativa burguesa de petrificação e naturalização da ordem social, mas um aspecto próprio ao regime estético.

Essa descrição inútil é, para Rancière, primeiramente a recusa à progressão do relato, e consequentemente uma recusa à ação, à submissão das partes – inclusive do detalhe – ao todo, ou seja, ao desfecho, que marca a poética representativa e seu modelo orgânico. A multiplicidade desses detalhes que antecedem ao ato, à ação, também são sintomas da ampliação e da complexificação das relações causais.

No entanto, segundo o autor, a poética aristotélica não é somente uma estrutura de racionalidade, mas “uma categoria organizadora de uma divisão hierárquica do sensível” (RANCIÈRE, 2017, p.21). Em outras palavras, a ordem representativa, na qual a ficção constrói-se como um corpo no qual os membros se submetem a um centro e as ações se ordenam pela necessidade ou pela verossimilhança, é também a metáfora de uma concepção do ordenamento social, segundo a qual os homens dividem-se hierarquicamente entre ativos e passivos. Nessa ordem, os aristocratas são ativos, pois podem conceber grandes fins ou outros fins e buscar sua realização, enquanto os demais – a grande maioria, o povo – são considerados passivos, não por sua inação, mas porque sua ação não pode conceber outro fim senão a mera reprodução da vida cotidiana (RANCIÈRE, 2017. p. 21). Essa distinção limitava, portanto, o acesso dos passivos à ficção, da qual não eram dignos devido às suas supostas capacidades sensíveis inferiores. É como contraponto a essa “política representativa” que o filósofo propõe sua leitura da obra flaubertiana. Desse modo, não somente o barômetro da sra. Aubain, mas principalmente Emma Bovary, são anunciadores de uma democracia ficcional própria ao regime estético. A presença do barômetro produz um “efeito de igualdade” entre os elementos da ficção, ele não está a serviço do real, nem da ação e muito menos do todo, enquanto Emma marca a igualdade sensível de todos: “a descoberta de uma capacidade inédita dos homens e das mulheres do povo de obter formas de experiência que lhes eram, até então, recusadas” (RANCIÈRE, 2017, p.19). Essa afirmação da capacidade sensível dos anônimos proporciona, de acordo com Rancière, um poder de desidentificação em relação à velha ordem representativa que articulava posições sociais, identidades e capacidades sensíveis. No entanto, esse poder dos anônimos é deles afastado para forjar o “poder impessoal da escrita” (RANCIÈRE, 2017, p.33). Dessa forma, segundo o autor, Flaubert incorpora em sua escrita o poder da “igualdade sensível dos anônimos” e dos “estados sensíveis coexistentes”, mas acaba por submetê-los à “velha lógica da ação” (RANCIÈRE, 2017, p.37).

No texto seguinte, A mentira de Marlow, dedicado à obra de Joseph Conrad, Rancière observa a radicalização desse novo regime da ficção. Se a obra flaubertiana evidenciava a debilidade dos encadeamentos causais orientados pelo necessário e pelo verossímil, próprios a uma concepção orgânica de totalidade (ta katholou), mas também subordinava a ordem das sucessões (kath’hekaston) e das coexistências ao curso de uma intriga ainda causal, os romances de Conrad recusam totalmente qualquer controle que tente se impor à verdade da ficção – que é também a verdade da vida –, ou seja, à ausência de qualquer ordem ou qualquer sentido.

Consequentemente, na obra de Conrad, a ordem que orienta a composição das ficções advém do kath’hekaston, não tomado como mera sucessão de fatos da vida cotidiana, mas como uma ordem das coexistências que não pode ser reduzida a qualquer ordenamento. Uma temporalidade das coexistências substitui, portanto, os encadeamentos possíveis. Mas não somente isso, para Rancière, o ceticismo do romancista inglês conduz a uma indistinção entre a ficção e o real, de modo que este real passa a englobar tudo, inclusive a ficção e o sonho. Dessa concepção ampliada do real decorre a destruição da verossimilhança, e toda a lógica da ação tradicional torna-se o indício de uma mentira. Mentira não somente sobre a ficção, mas principalmente sobre a própria vida.

Por conseguinte, de acordo com o filósofo francês, a narrativa de Conrad compõe-se, contrariamente à escrita de Flaubert, de modo a ampliar os círculos das coexistências, revelando-as e evidenciando a tirania mentirosa das intrigas bem construídas. Portanto, a ficção não deve mostrar a progressão rumo a um desfecho, mas tão somente esse “meio sensível” que é a própria vida, cuja única temporalidade é o presente, um presente que engloba tanto resquícios do passado quanto antecipações do futuro. Ela torna-se, desse modo, palco “de um encontro aleatório e inevitável entre um ser de desejo e de quimera, e uma realidade cuja síntese escapa a qualquer cálculo das causas e dos efeitos” (RANCIÈRE, 2017, p.54).

Contudo, Rancière indica que essa temporalidade das coexistências que recusa qualquer sentido, controle ou finalidade encontra certos limites impostos pela ficção. Um deles é o “fim”. Desse modo, se a mentira dos inícios é contornada por Conrad ao iniciar suas ficções com algum equívoco ou acaso desdobrando-o, a necessidade do ponto final, sempre mentiroso, não faz o romancista recuar em sua convicção. Pelo contrário, para o filósofo, os fins das ficções do capitão Conrad sempre reafirmam sua concepção mesmo quando mentirosos. Esses artifícios para encerrar o livro são basicamente dois: o recurso a um deus ex machina ou à mentira necessária (como no caso de O coração das trevas) que deixam transparecer, no entanto, a verdade da ficção.

O último texto do primeiro capítulo do livro aqui resenhado, A morte de Prue Ramsay, analisa a obra de Virginia Woolf. A romancista partiria, segundo a leitura rancieriana, dos mesmos pressupostos de Conrad. Dessa forma, a imagem que lhe traduz a verdade da vida e, conseguintemente da própria ficção, é a da “chuva sempre cambiante de acontecimentos sensíveis” e impessoais (RANCIÈRE, 2017, p.39). A verossimilhança e a necessidade não podem, portanto, regular a ficção, pois tanto a vida quanto a ficção pertencem à ordem do kath’hekaston (entendido como coexistência). Consequentemente, a intriga torna-se, para Woolf, uma tirania, que pode ser: paterna, em sua forma clássica; ou materna, em sua forma contemporânea, aquela que “ordena a grande rede das coexistências” e reduz a “chuva anárquica dos átomos às pequenas coisas e aos pequenos milagres da vida cotidiana” (RANCIÈRE, 2017, p.60).

Entretanto, o autor observa que a forma desta “chuva anárquica de átomos” é incompatível com a forma narrativa da ficção que precisa de uma mínima organização de ações. Nesse caso, a saída encontrada nos romances de Woolf consiste na prática de instaurar no próprio romance a “tensão entre várias maneiras de inscrever a chuva de átomos” (RANCIÈRE, 2017, p.64). Nessa prática, o filósofo distingue dois procedimentos complementares: por um lado, a multiplicação, pela qual se ampliam as redes das coexistências que conservam sua autonomia escapando a tirania de uma intriga que busca apropriar-se dessa multiplicidade; por outro lado, opera-se uma divisão, pela qual se separa a multiplicidade que evidencia o amor e a vida universais dos “prazeres conhecidos e das virtudes familiares” (RANCIÈRE, 2017, p.69) que compõem a tirania materna da intriga, mas também do equívoco dos que confundem toda multiplicidade da vida impessoal com mensagem individual, apropriando-se dela e submetendo-a a qualquer pessoalidade. Septimus Warren Smith, personagem de Mrs. Dalloway, vítima dessa segunda indistinção que se torna loucura, é também, aos olhos do filósofo, uma figura essencial da nova ficção, pois seu sacrifício resolve a “relação entre a verdade da chuva de átomos e a lógica mentirosa das intrigas” (RANCIÈRE, 2017, p.72), e impede igualmente que “o halo luminoso da vida universal” seja confundido com as “aspirações pessoais dos filhos do povo semieducados” (RANCIÈRE, 2017, p.74).

O segundo capítulo do livro, A República dos poetas, é composto por dois textos. O primeiro deles, O trabalho da aranha, é dedicado à obra de John Keats. Keats encarna, aos olhos de Rancière, uma das novidades do regime estético, pois ele é antes de tudo, como Emma e Septimus, um “filho do povo” que, no entanto, recusa a posição e a identidade que, de acordo com a ordem clássica, o nascimento lhe impunha. Contudo, a política de sua poesia, conforme assinala o filósofo, não se encontra na articulação do poema com as agitações sociais, os posicionamentos políticos, ou em seu sentido, mas em uma “identidade dos contrários” (RANCIÈRE, 2017, p.81).

Essa identidade dos contrários não os relaciona como “antípodas”, mas como “equivalentes”. Ela subverte a lógica da ação tradicional ao equiparar a atividade com a passividade, mais precisamente, ao fazer perceber na ação o seu contrário, a passividade, e nesta última um caráter ativo, liberto, no entanto, da necessidade dos fins ou da função utilitária que caracteriza a ação na ordem clássica. Essa subversão é observada por Rancière na “negative capability” forjada por Keats, a qual consiste em uma “‘capacidade de não’: não buscar uma razão […], não concluir, não decidir, não impor” (RANCIÈRE, 2017, p.85). Tal recusa à determinação é uma marca da própria estética e sua disponibilidade a todos destrói a “diferença sensível entre duas humanidades”, aquelas que orientavam o regime representativo e a “distribuição dos corpos em comunidade” (RANCIÈRE, 2017, p.86).

Na leitura rancieriana, essa identidade é produzida pelo estabelecimento de três formas de comunidade: a primeira é aquela estabelecida “entre os elementos tecidos pelos poemas: as palavras e a presenças que elas suscitam”; a segunda comunidade se constitui “entre os poemas e outros poemas: os que o poeta escreve e os que ele não escreveu”; a terceira forma de comunidade é “aquela que o modo de comunicação sensível próprio do poema projeta como possível comunicação entre os humanos”. A política do poema consiste, portanto, na “configuração de um sensorium específico que mantém juntas essas três comunidades” (RANCIÈRE, 2017, p.81-82).

Desse modo, a imagem que define, em grande medida, a interpretação que Rancière faz de Keats é da teia de aranha, pois ela pressupõe uma igualdade horizontal, a qual desconhecia qualquer superioridade, e que se opunha, a seu tempo, à igualdade vertical ou cristã, proclamada por Willian Wordsworth, que a reconhecia como concessão ou presença divina comum, o que evidenciaria, segundo Rancière, uma superioridade do poeta que a proclama. A igualdade da teia liberta, dessa forma, as sensações de qualquer identificação pessoal e faz da obra poética uma disponibilidade acessível a cada um, pela igualdade sensível, para integrar suas teias.

O outro texto desse segundo capítulo, O gosto infinito pela República, é dedicado a Baudelaire. A expressão que dá título ao ensaio, tomada do próprio poeta que a utiliza para caracterizar a obra de Pierre Dupont, serve igualmente a Rancière para caracterizar uma categoria estética ou uma política estética presente na obra baudelairiana, que marca a participação de todos na Vida Universal, esta compreendida como um poder que perpassa e iguala a todos.

Entretanto, para compreender esse “republicanismo estético” é preciso, afirma o filósofo, distanciar-se da “interpretação benjaminiana”, demasiadamente centrada no “dado antropológico constitutivo da modernidade: o da perda da experiência, produzida pela reificação mercantil e pelo encontro da cidade grande e da multidão” (RANCIÈRE, 2017, p.103). Desse modo, essa interpretação que percebia nos escritos do poeta a substituição do modelo orgânico por um modelo inorgânico é incapaz de perceber a novidade contida em sua obra ou, mais precisamente, o “tecido estético” dentro do qual esse republicanismo ganha sentido.

Para apresentar esse “paradigma poético” da época, Rancière analisa os temas do heroísmo e da beleza modernos. O que ambos evidenciam e que permeia toda a época romântica é a falência da ação, da ação como modo de pensamento e racionalidade que normatiza os “comportamentos sociais legítimos” e a “composição das ficções” (RANCIÈRE, 2017, p.108). Essa falência é, para o filósofo, fruto do excesso, da ampliação e complexificação do mundo e do conhecimento, pois a ação demandaria “um mundo finito”, “um saber circunscrito”, “causalidades calculáveis” e “atores selecionados” (RANCIÈRE, 2017, p.108). A leitura rancieriana de Baudelaire é, consequentemente, tributária de Balzac, pois seria dele que o poeta teria tomado não somente a característica da beleza moderna, ou seja, o “flutuante”, a fugacidade, mas, sobretudo, a percepção do divórcio entre o saber e a ação. Em outras palavras, desde Balzac o mundo social perdera-se gradativamente em “infinitas ramificações”, e o tema perdera-se, igualmente, em uma “rede infinita de sensações” (RANCIÈRE, 2017, p.111-112), tornando o tecido sensível incompatível com a ação clássica. Essa ampliação também produziria um efeito de desidentificação, positivado pelo filósofo. A multidão, portanto, não igualaria a todos, mas, pelo contrário, o olhar sobre ela abrir-se-ia para a sua multiplicidade.

No último capítulo de O fio perdido, O teatro dos pensamentos, Rancière analisa a relação entre “o pensamento, a palavra e a ação no teatro moderno” (RANCIÈRE, 2017, p.123) ou, mais precisamente, no chamado teatro popular. Sua análise parte do diagnóstico, dado por Barthes, de “aburguesamento” do Théâtre National Populaire (TNP), de Jean Villar, sobretudo pela atuação de Gérard Philippe, seu maior astro nos anos 1950, para retomar a longa história do teatro moderno.

O primeiro protótipo do teatro popular é encontrado por Rancière no princípio do “palco aberto”, formulado por Victor Hugo. Este consistiria não somente na destruição das convenções ligadas aos gêneros, mas na “mistura de tudo” como na vida, “um igualitarismo radical” (RANCIÈRE, 2017, p.126). Esse palco aberto ao povo celebrava, no entanto, algo maior que ele. Celebrava, segundo tal leitura, a vida universal que ultrapassa todas as individualidades, constituindo uma dramaturgia da coexistência.

Porém, a reflexão de Hugo detém-se aí. O teatro representa, contudo, não apenas uma metáfora do ordenamento social, mas é também uma metáfora do pensamento, afirma o filósofo. Nesse sentido, duas imagens governaram historicamente a relação entre pensamento e teatro: uma negativa ou platônica opõe um ao outro, fazendo do teatro o reino da imagem, da mentira do poeta e do ator, da ilusão e da passividade, do excesso e da paixão, o contrário do pensamento; e há uma imagem positiva, a aristotélica, que faz do teatro uma “intriga de saber”, um “modelo de racionalidade”, ou do “pensamento em ato”, no qual “o espaço visível da representação é dado como o lugar de efetuação de um esquema” e a palavra adere e expressa o pensamento, controlado por uma vontade, anunciando o ato (RANCIÈRE, 2017, p.128-29). A subversão da segunda imagem dessa relação é encontrada por Rancière nos trabalhos de George Büchner. Em sua obra o modelo orgânico é substituído por um modelo vivo, resultado de uma nova concepção do meio da ficção, não mais entendido como intervalo entre um início e um fim, mas como uma rede infinita que ultrapassa qualquer forma de unidade, seja a do organismo seja a da ação.

O pensamento torna-se desse modo, sinônimo do excesso, afirma o filósofo. Suas operações infinitas excedem o corpo, a palavra, o gesto e o ato, e a sua origem e fim imprecisos impedem que qualquer vontade possa controlá-lo. Isso não significa que ele não age, mas que o modelo de sua ação verdadeira, aquele que desconhece suas origens e fins, opõe-se à forma da ação racional controlada do modelo aristotélico, e a sua nova forma será, pelo contrário, a do sonho ou do sonambulismo. Essa nova imagem do pensamento faz da imagem aristotélica do teatro como “intriga de saber” uma mentira, um equívoco sobre a natureza, a forma e a origem do pensamento, bem como sobre o modo como ele ganha corpo e age.

Como consequência dessa nova concepção do pensamento no palco, Rancière observa o surgimento de uma “arte da direção” que compreende duas modalidades: a primeira, presente nas reflexões de Maurice Maeterlinck, faz da direção a “arte da disposição das palavras no espaço” (RANCIÈRE, 2017, p.142), atribuindo à palavra não uma função de anunciar o pensamento ou o ato, mas de evidenciar o meio sensível, o “fora-do-espaço”, que é o lugar desse pensamento tomado como excesso. Ela demarca, dessa forma, a distância entre o verdadeiro pensamento e as pretensões da intriga clássica. Asegunda modalidade é proveniente, entre outros trabalhos, das atuações de Jean-Gaspard Deburau no Théâtre dês Funambules, e “consiste em bordar na trama ficcional das causas e efeitos um cenário de pura atuação”, uma atuação que consiste não na representação, mas na pura ação dos corpos (RANCIÈRE, 2017, p.144-45).

O teatro moderno que culmina no TNP é, portanto, marcado por essa disjunção entre o pensamento, caracterizado pelo excesso, a palavra, cuja função é evidenciar a distância que marca o meio seio sensível do palco, e o ato, tomado como pura atuação dos corpos. Para Rancière, essa longa história é ignorada no juízo de Barthes, que toma por base a oposição brechtiana entre um teatro da identificação e um teatro do distanciamento, pela qual Brecht buscava restabelecer o vínculo entre o prazer estético e o saber necessário para a ação revolucionária. Essa oposição omite essa história, pois, como concepção “revolucionária”, ela busca restabelecer a velha lógica da ação em crise desde o século XVIII. Desse modo, a “questão pela qual a política está ligada ao teatro não é saber como sair do sonho para agir na vida real; é a de decidir o que é o sonho e o que é a vida real” (RANCIÈRE, 2017, p.149).

Embora O fio perdido de Rancière consista em um livro dedicado à ficção, sua leitura inquietante não se limita aos interesses do crítico literário ou do ficcionista, indo além desses limites. Ao reconhecer, como White, que a constituição da História, e mesmo, das Ciências Sociais, enquanto saberes e disciplinas modernas ou ciências é tributária do modelo da poética tradicional, centrado na lógica da ação e da intriga causal, e que a própria poética representativa é igualmente uma concepção de comunidade ou de um ordenamento social, Rancière fornece novos elementos para a compreensão de aspectos que permeiam a constituição do campo de trabalho e das práticas dos historiadores. Desse modo, cabe também questionar, a partir desses indícios da falência da ação e desses deslocamentos nas práticas da escrita ficcional, suas possíveis consequências no campo da historiografia e das ciências da sociedade.

É intrigante, igualmente, refletirmos acerca dos contrastes entre, de um lado, essa emergência de um regime estético na ficção desde o final do século XVIII, identificada nesse conjunto de ensaios de Rancière, cuja marca fundamental consiste em uma crescente abertura, pluralização ou multiplicação heterogênea do social, da noção de acontecimento e de pensamento, e do próprio vínculo entre pensamento, palavra e ação. Por outro lado, no que tange à historiografia, mas também à ampla parcela do pensamento filosófico, sociológico e antropológico, observamos, nesse mesmo período, um crescente processo de unificação, homogeneização e hierarquização da temporalidade histórica e do conjunto dos recursos conceituais de análise histórica, sociológica e antropológica. Portanto, trata-se de uma leitura fundamental, pois implica um conjunto de problemas cruciais às ciências humanas tanto em sua origem quanto na contemporaneidade.

Nota

2 Rancière participou inclusive do primeiro volume da obra Ler O capital, coordenada por Louis Althusser (1979).

Referências

ALTHUSSER, Louis; RANCIÈRE, Jacques; MACHEREY, Pierre. Ler O Capital. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. 1v.

CERTEAU, Michel de. Fazer com: usos e táticas. In: ______. A invenção do cotidiano: Artes do fazer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 91-106

. ______. Ler uma operação de caça. In: ______. A invenção do cotidiano: Artes do fazer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 259-276.

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

RANCIÈRE, Jacques. O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2017.

______. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.

______. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon (Org.). História, verdade e tempo. Chapecó: Argos, 2011. p. 21-49.

WHITE, Hayden. Meta-História: a imaginação histórica no século XIX. São Paulo: Editora da USP, 1992.

Cássio Guilherme Barbieri – Mestrando no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humana da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus Erechim. Graduado em História pela UFFS – Campus Chapecó. É membro do Laboratório Escrita, Memória e Arte (LEMA) e do Grupo de Estudos Teoria da História, ambos vinculados ao Curso de História da UFFS. E-mail: [email protected]


RANCIÈRE, Jacques. O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2017. Resenha de: BARBIERI, Cássio Guilherme. Estética, política e historiografia: indícios da emergência do regime estético na ficção moderna. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.25, p.627-636, dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

Descobrir | Tzvetan Todorov

Tzvetan Todorov foi um filósofo e linguista búlgaro, com formação acadêmica na Universidade de Sofia, Bulgária. Influenciado pelo seu instrutor Roland Barthes, um dos mais respeitados teóricos do estruturalismo (método no qual elementos da cultura humana devem ser entendidos em face de sua relação com um sistema ou estrutura mais abrangente), o pensamento de Todorov direciona-se para a filosofia da linguagem, numa visão estruturalista que a concebe como parte da semiótica (saussuriana).

Todorov foi professor da École Pratique Des Hautes Etudes, da Universidade de Yale, diretor do Centro Nacional de Pesquisa Científica de Paris (CNRS) e dirigiu o Centro de Pesquisa sobre as Artes e a Linguagem da mesma cidade. Ele produziu vastas obras na área de pesquisa linguística e teoria literária e que estão hoje traduzidas em vinte e cinco idiomas. Em sua obra: “A conquista da América: A questão do outro”, Tzvetan Todorov analisa a conquista da América sob a questão do outro, a qual ele estabelece como unidade de ação a percepção que os espanhóis têm dos índios nesse contexto de conquista, além de expor suas pesquisas a respeito do conceito de alteridade, existentes na relação de indivíduos pertencentes a grupos sociais diversos, cujo objeto central justifica-se na própria situação do autor, que é imigrante na França, um país onde supostamente a relação entre nacionais e estrangeiros é historicamente marcada por um xenofobismo não declarado. Leia Mais

O Príncipe – MAQUIAVEL (MB-P)

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 4ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Resenha de: OLIVEIRA JÚNIOR, Airton Antônio de. Um Príncipe não tão maquiavélico. Marinha do Brasil/Proleitura, 2016/2017.

Entre as diversas traduções e edições deste livro, o escolhido para este trabalho foi o da Editora WMF Martins Fontes, 4ª edição, de 2010, São Paulo, contém 197 páginas, traduzido por Maria Júlia Goldwasser, inclui Vida e Obra do autor, apêndice com paralelo entre Maquiavel e Marx, Notas Explicativas e Vocabulário de termos-chave de Maquiavel.  Um dos maiores livros da literatura política mundial, “O Príncipe” foi escrito em 1513 e publicado, pela primeira vez, em 1527. Maquiavel compreendia a tendência das coisas humanas, a inconstância das massas e a fragilidade das nações. Sem se prender a conceitos estabelecidos, estuda os diversos tipos de Estados, classifica-os por gêneros e estabelece leis, segundo as quais cada principado deve ser conquistado ou governado. Descreve, de maneira genérica, como o governante deve portar-se, de acordo com o cenário estabelecido.

Nos primeiros quatorze capítulos, Maquiavel classifica os principados em gêneros bem definidos, dividindo-os em hereditários e novos, explicitando como se dá a conquista em cada um: com exército próprio ou de outros, pelo fluxo de acontecimentos ou pelo conjunto de qualidades do governante. O autor procura não construir um Estado ideal, e sim ver os problemas reais, a realidade concreta das coisas. O livro é repleto de exemplos da Antiguidade e Idade Média, por exemplo, Moisés, Ciro, Rômulo, Teseu, Aníbal, porém, a maioria deles é contemporânea, como César Bórgia, Francesco Sforza e o Papa Júlio II. Tudo para comprovar seu ponto de vista.

Nos capítulos posteriores, o autor discorre sobre diversos aspectos relacionados a um príncipe. Comenta sobre as qualidades que um governante precisa ter e outras a evitar, o cuidado devido às finanças, à cobrança de impostos e à utilização desses recursos. Trata, também, da dicotomia “se é melhor ser amado  que temido ou melhor ser temido que amado”, afirmando que “os homens têm menos receio de ofender quem se faz amar, do que a quem se faz temer”. Para Maquiavel, é mais importante aparentar ser piedoso, fiel, humano, íntegro e religioso, a de fato possuir tais qualidades. Sua teoria é baseada no fato de que “… todos veem o que se aparenta, poucos sentem aquilo que realmente é; e esses poucos não se atrevem a contrariar a opinião dos muitos.” Um príncipe deve evitar o desprezo e o ódio dos homens, manter o povo feliz, afastar-se de bajuladores e controlar seus secretários.

Nos três últimos capítulos, Maquiavel aborda a invasão da França na Itália, os motivos que levaram a perda de alguns estados. Defende a tese de que um governo novo tem suas ações mais observadas que um hereditário, e que os homens se interessam mais pelas coisas do presente do que pelas do passado. Para o autor, o fluxo dos acontecimentos não está predefinido, devendo-se preparar para tempos difíceis nos momentos calmos que os antecedem e coloca que é melhor ser impetuoso do que cauteloso. Tenta persuadir a retomada da Itália dos franceses apelando para o sentimento nacionalista e religioso.

Em “O Príncipe”, portanto, Maquiavel demostra que o fato de a Itália estar dividida em diversos governos tornou-a suscetível a constantes batalhas e que poderiam ser evitadas com sua unificação, sob um único soberano, naquele momento por Lorenzo II de Medici, neto de Lorenzo, o Magnífico. Para o autor, um príncipe que tenha uma visão que se afaste de um realismo estrito, que deixe de buscar a verdade efetiva das coisas, está fadado a conceber conclusões equivocadas, perigosas para sua nação. Em seu livro, ele cita que “sendo meu interesse escrever uma coisa útil para quem a escuta, parece-me conveniente seguir a verdade efetiva da coisa do que a imaginação sobre ela.” Quando um príncipe age, assim o faz para conservar o Estado. Se, ao analisarmos as ações dos governantes, entendermos que estamos diante de uma ação praticada não por escolha, mas por necessidade, fica sem sentido qualquer tentativa de impor limites éticos ou morais a tal conduta.

Airton Antônio de Oliveira Júnior – 2º Tenente da Marinha Brasileira.

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Tratado de ateologia | Michel Onfray

O fenômeno é cotidiano. Acontece conosco, com cada um de nós, acontece com todos os que estão à nossa volta. Na medida em que a realidade se torna insuportável demais, nos refugiamos em fantasias diversas que nos apaziguem ou pelo menos dotem de sentido o nosso sofrimento. Mas não condenamos sumariamente ao suplício, ao ostracismo ou à morte aqueles que não compartilham com os nossos próprios mecanismos psicológicos de fuga. Como, então, surgem e se estabelecem as religiões monoteístas, que fazem exatamente esse mesmo movimento, elevar à alucinação universal e obrigatória aquilo que foi um dia delírio de um só ou de um pequeno grupo? Quais são as consequências devastadoras desse modelo de pensamento, desse civilizacional procedimento agressivo, “evangelizador”? São essas justamente as questões abordadas em Traité d’athéologie pelo filósofo francês Michel Onfray,1 autor de diversos outros livros de sucesso tanto no cenário filosófico atual quanto fora dele, em função, certamente, tanto da maneira eloquente e contemporânea de expressão escrita quanto da temática prevalente de seus escritos, que abordam questões filosóficas atuais mantendo tanto a rigorosidade conceitual quanto a pertinência temática. Seus mais de cinquenta textos, que versam sobre uma grande gama de temas diversos, embora o leitor atento possa perceber uma ligação simpática entre eles, passando por assuntos como materialismo hedonista, afetividade e erotismo, subjetivação, tragicidade da existência, gastronomia filosófica, estão sempre retomando a necessidade da filosofia de se fazer presente na existência cotidiana dos seres humanos em vez de constituir uma linguagem técnica acessível exclusivamente a iniciados e eruditos. Com leituras e interpretações de Nietzsche, conserva desse a combatividade filosófica e a beleza de estilo. Por vezes seu desenvolvimento argumentativo leva a conclusões que podem escandalizar aos mais sensíveis, pois esta é a tarefa da (sua?) filosofia. Com seu Tratado de ateologia, com sua defesa de um ateísmo radical e sem concessões, não será diferente. Leia Mais

Introdução à Tragédia de Sófocles – NIETZSCHE (C-FA)

NIETZSCHE, Friedrich. Introdução à Tragédia de Sófocles. Tradução de Marcos Sinésio Pereira Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 2014. Resenha de: SOUZA, Ronaldo Tadeu de Souza. A Estrutura Filológica da Tragédia Grega: a propósito da “ Introdução à tragédia de Sófocles ”de Nietzsche. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v.21, n.2 jul./dez., 2016.

Karl Marx escreveu um dos pontos mais significativos de sua Introdução para a crítica da economia política que:

a dificuldade não está em compreender que a arte grega e a epopéia estão ligadas a certas formas do desenvolvimento social. A dificuldade reside no fato de nos proporcionarem ainda prazer estético e de terem ainda para nós, em certos aspectos, o valor de normas e de modelos inacessíveis (Marx, [1857] 1974, p.131).

É certo que devemos aceitar na sua completude a afirmação de Marx acerca do “prazer estético” que a arte grega nos oferece ainda em nossos dias, mas é certo também que devemos nos esforçar para negar Marx ao dizer-nos que a arte grega porta “modelos inacessíveis”. A questão aqui envolve a possibilidade ou não de compreendermos aquela que talvez tenha sido a principal expressão artística do mundo grego antigo, a saber: a tragédia. Quanto mais compreensíveis forem as obras de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, mais estaremos em condições de acessarmos o estatuto da cultura grega clássica para a história das sociedades humanas.

Introdução à tragédia de Sófocles, de Nietzsche, recentemente publicado pela editora Martins Fontes (fim de 2014 / início de 2015), nos apresenta esta possibilidade. Assim, quais são os pontos a serem destacados no escrito introdutório de Nietzsche sobre o drama antigo? Uma observação inicial que é preciso ser feita sobre Introdução à tragédia de Sófocles é a respeito da edição do livro. É um trabalho cioso e esmerado que a erudição de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e André Luis Muniz Garcia apresenta aos leitores brasileiros – sobretudo na organização das notas explicativas que percorrem todo o texto de Nietzsche. André Luiz Muniz Garcia, referindo-se ao seu companheiro de tradução e preparação do texto, diz que o trabalho de Marcos Sinésio “é resultado de (…) profundo trabalho de tradução, mas também de pesquisa filosófica e filológica” (Garcia, [Apresentação] 2014, p.XV) que o erudito da Universidade Federal do Maranhão oferece ao nosso público. Em tempo de especialização e profissionalização empobrecedora da universidade, Marcos Sinésio desejou ofertar “tradução e comentários [que] chegassem às mãos não apenas do público acadêmico, mas, principalmente, do leitor não especializado, daquele [não iniciado em] pensamentoschave de nossa cultura” (idem, ibidem). Ao estilo de Fichte: a erudição, aqui, serve à humanidade 1.

Se o esforço de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e de André Luis Muniz Garcia foi o de empreender rigorosa pesquisa filológica na tradução de Introdução à tragédia de Sófocles, é porque o próprio estudo de Nietzsche emoldura-se pela filologia. Assim, mais do que um estudo introdutório sobre o sentido da tragédia no mundo grego antigo, e, mais especificamente, sobre a obra de Sófocles, o trabalho de Nietzsche nos apresenta a estruturação filológica da arte trágica. Resultado de um curso proferido por Nietzsche na Universidade da Basileia em 1870, Introdução à tragédia de Sófocles é composta por 20 lições nas quais o filósofo alemão expõe detalhadamente cada composição estética e narrativa que forma a estrutura filológica da tragédia na Grécia clássica. Ao longo das lições, Nietzsche analisa a configuração de significados que a tragédia procura representar na cultura grega antiga. Esta é uma das virtudes do estudo: posicionar os lineamentos narrativos de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes com os momentos constitutivos do mundo da Grécia clássica. É claro que Nietzsche não faz trabalho de historiador arranjando linearmente os trágicos nos pontos mais sensíveis e de maior relevância daquela sociedade. Com efeito, a arte esquiliana, sofocleana e euripideana são perscrutadas como documentos literários que expressam as tensões sobre o sentido da vida e da existência de toda uma civilização. Não é ocasional e de menor importância o fato de Nietzsche iniciar seu curso comparando “a antiga forma da tragédia [com] a moderna” (Nietzsche, 2014, p.3), pois, para esta última, Édipo Rei “é pura e simplesmente uma má tragédia, porque nela a antinomia entre destino absoluto e culpa fica insolúvel” (idem, ibidem). O núcleo substantivo da tragédia antiga na leitura de Nietzsche é a oposição de ânimos que conformam o significado estético da narrativa; vale dizer, é aquilo sobre o que o homem grego procurou se equilibrar: “o sentimento de triunfo do homem justo, comedido e isento de paixão” (idem, p.5) com o “instinto [ hybris ] (…), o enigma no destino do indivíduo, a culpa sem consciência, o sofrimento imerecido [e] sua musa trágica [que leva à] idealidade da infelicidade” (idem, pp.7-8). É este núcleo que Nietzsche procura emoldurar com a estrutura filológica de suas lições. Quais são os aspectos mais significativos destas lições que compõem a Introdução à tragédia de Sófocles ?

Se hoje nós compreendemos todas as artes dramáticas como artes da visibilidade, do ver a performance de grupo de indivíduos inseridos em espaços construídos especialmente para isto, na sua origem a arte dramática, que emerge da tragédia grega, é a arte do ouvir. É a arte da palavra que se apresenta como característica primeva de Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Assim, a “intuição íntima através da palavra induzindo à fantasia é o que vem primeiro, a visibilidade do quadro da fantasia na ação é algo mais tardio” (Nietzsche, 2014, p.10). Podemos perceber, deste modo, que um dos esforços de Nietzsche em seu curso é entender a tragédia antiga como símbolo do humor: da disposição de ânimo que tensiona a existência dos homens. Não é mero exercício de retórica a afirmação de Nietzsche acerca do fato de que a beleza da lírica, seus componentes filológicos sublimes, seja também a “expressão da dor diante da desarmonia entre mundo desejado e o real” (idem, ibidem). Ele procurou representar em suas lições sobre Sófocles na Basileia o sentimento existencial da cultura grega antiga. Mas vamos acompanhar o estudo introdutório nietzschiano um pouco mais nesta abordagem sobre a tragédia como arte do ânimo musicalizado.

O significado da tragédia concernente à linguagem da cultura grega surpreende àqueles educados na estética do idealismo pós-kantiano – aqui é o belo, a formação mesma da educação sentimental pela beleza que estrutura o entendimento da arte 2 ; em Nietzsche, é a filologia do instinto que deve ser compreendida na tragédia como um dos documentos constitutivos da cultura dos gregos. O que estes enfrentavam, e que a arte de Ésquilo, Sófocles e Eurípides procurou dramatizar pela lírica musical, era o sentir da vida como “elemento (…) perigoso (…) dos poderes mais perigosos da natureza” (Nietzsche, 2014, p.13) que fornece o suporte necessário para os gregos entenderem e, também apreciarem, que a transcendência se faz igualmente na existência terrificante (idem, ibidem). Diz Nietzsche:

Culpa e destino são apenas tais meios, (…) tais [ mekhanaí ]: o grego queria absoluta fuga para fora desse mundo da culpa e do mundo do destino: sua tragédia não consolava, algo como um mundo após a morte. Mas, momentaneamente, abriu-se ao grego a intuição de uma ordem das coisas inteiramente transfigurada (…) os atenienses fizeram isso abertamente quando não coroaram o Oedipus rex : eles ouviram tão somente os golpes de timbale, o selvagem circulozinho das Mênades, mas queriam também que Sófocles lhes dissesse que tinha visto Dioniso. O velho Sófocles exprimiu-se em Édipo em Colono (como Eurípides nas Bacantes ) sobre o elemento libertador-do-mundo da tragédia: Eurípides, com uma espécie de palinódia, na medida em que se deixou despedaçar como Penteu, como o sensato e racionalista opositor do culto de Dioniso (Nietzsche, 2014, pp.13-4).

Mas Nietzsche ainda insiste na musicalidade como elemento distintivo da tragédia grega. Esta é uma das contribuições de Introdução à tragédia de Sófocles para o entendimento desta arte tão particular – e da cultura que organizava o universo simbólico e filológico da Grécia antiga. Com efeito, “a tragédia [nasceu] da lírica musical das Dionisíacas” (idem, p.21), de sorte a estabelecer os lineamentos sentimentais de toda a subjetividade do povo grego. A tragédia como arte dionisíaca despertava nos populares um profundo sentimento de embriaguez musical possibilitando aos que a ouvissem a percepção plácida da transcendência. Importa dizer acerca das lições de Nietzsche sobre Ésquilo, Sófocles e Eurípides o caráter inteiramente popular da tragédia. Assim, a extensão da linguagem da lírica dramática “abrange a vida social” (idem, p.23) dos Gregos. E a “música popular subjetiva (…), a poesia popular da massa, nas fascinantes e demoníacas Dionisíacas (…), [a] impetuosa lírica das massas” (idem, p.24) irrompia na cena cultural como expressão do ímpeto de ânimo do homem grego na existência. Não foi fortuito que no “predomínio da reflexão e do socratismo, começa uma degeneração do dionisíaco na tragédia” 3 (idem, p.27).

Na sequência de seu curso na Universidade da Basileia, Nietzsche estuda com seus alunos (e nos oferece) dois elementos fundamentais na estrutura filológica da tragédia: “a construção do drama” e o “coro”. No que consiste a construção do drama na tragédia antiga? Pode-se dizer que, para a Introdução à tragédia de Sófocles, o edifício estético posto de pé por Sófocles e seus iguais objetivava à realização de “um ato” (idem, p.32); isto é, o drama grego potencializava o “ pathos [da] cena” (idem, ibidem), de modo que a construção daquele tinha como exigência a figuração do ato mesmo no curso da temporalidade existencial de quem a assistisse. Isto fica mais claro quando Nietzsche propõe em suas lições uma comparação entre a construção do drama moderno de Shakespeare e a tragédia de Ésquilo e Sófocles. O encadeamento da sequência no drama shakespeariano foi forjado para intensificar o movimento da fantasia; o que significa dizer que a linguagem da “tragédia” moderna necessitava para sua melhor exploração artística de espaço adequado no qual aquela pudesse ser representada. Por isso a configuração da cena “contém um palco mais elevado e menor; diante dele, degraus; ao lado, pilares; em cima, um balcão cujas escadas descem até o proscênio” (Nietzsche, 2014, p.33). Esta construção tensionava a fantasia (idem, p.34) de quem a assistisse como fatura do jogo entre o “palco” e seus “degraus”, entre as “escadas” e o “proscênio”, a “pausa” temporal (obrigando à atividade da fantasia) e os personagens que surgem dos “pilares” – é que tudo no drama de Shakespeare era para ser visto e depois imaginado. Em Ésquilo e Sófocles, a construção do drama buscava outros fins: aquela fantasia impulsionada pelas imagens “o grego não conhecia em sua tragédia” (idem, ibidem). Era a interiorização do pathos musical que o drama antigo objetivava; o que importava era (e é) o “ Tá apóskenês ” 4, o a partir da cena… Daí que a construção do drama antigo e, sobretudo, o sofocleano, estruturou-se pela disposição filológica do coro. De sorte que o efeito do cântico na tragédia conformava o “antagonismo” entre “o espectador idealizado (…) representante dos pontos de vista gerais” (idem, ibidem) e o coro dramáticolírico enquanto tal. Diz Nietzsche a esse respeito:

as canções do coro tinham que assumir um pathos interior: para não tornar a representação do coro inconsequente. Eurípides conduzia com consciência o coro em regiões sentimentais mais brandas e empregava também uma música mais suave em correspondência (…) Em Ésquilo e Sófocles, há por vezes incongruência entre o coro dos grandes cantica e os dos diálogos. A situação dos cantica é deslocada (…) o coro e a música coral já são (…) [ hedýsmata ] (Nietzsche, 2014, pp.34-5).

Assim, é no coro que podemos encontrar o real sentido da tragédia como documento cultural do mundo grego antigo. Nietzsche deixa entrever isto nos quatro pontos que estruturam a articulação interna da linguagem do coro. Ele, então, afirma que os pesquisadores devem atentar para os seguintes elementos: (1) o coro representa a construção filológica do novo momento do mundo antigo, ele é a expressão artística da apropriação pelo povo sensível dos negócios do palácio, ou seja, é como se o ânimo musical dos deuses se voltasse agora para o peito dos homens (Nietzsche, 2014, p.41) na intervenção do coro na estrutura da tragédia; (2) pode-se dizer com isto que com o coro a tragédia adquire aspectos reflexivos acerca dos conflitos da vida e do pensamento, de modo que a “liberdade lírica [com] todo o poder sensível do ritmo e da música” (idem, ibidem) presente no coro conduz à ação refletida, mas com “força poética” (idem, ibidem); (3) isto, inevitavelmente, de acordo com Nietzsche, faz do coro na arquitetura filológico-narrativa da tragédia o ponto de inflexão entre a simples exposição organizada de diálogos existenciais e a grandeza trágica; (4) quer dizer, o coro é a possibilidade de alcançar a exuberância dos afetos, é a capacidade que a arte de Ésquilo, Sófocles e Eurípides tem de transformar o “ânimo do espectador” (idem, ibidem) em um ensaio para a liberdade de e na ação existencial. Com efeito, “o coro é o idealizante da tragédia: sem ele, temos uma imitação naturalística da realidade [n]a tragédia, sem coro, (…) os homens falam e andam” (idem, p.42).

Nietzsche chega assim ao fim de sua Introdução à tragédia de Sófocles, e nós, deste breve ensaio. As leituras e hipóteses dele se voltam agora diretamente para a obra de Sófocles – o ponto mais elevado da tragédia antiga. Como Nietzsche procede aqui? A comparação no espaço mesmo da tragédia grega foi o procedimento utilizado por ele: o que Nietzsche pretende com isto é ressaltar os elementos distintivos das peças sofocleanas. Sendo a tragédia de Sófocles o ápice da arte dramática antiga, ela se posiciona a meio caminho entre o puro instinto esquiliano e a construção racionalizada – a destruição do instinto – de Eurípides. De sorte que em Sófocles “o pensamento é acrescido”, só que aqui “o pensamento está em harmonia com o instinto” (Nietzsche, 2014, p.63). Mas é na estruturação filológica que Sófocles se põe em patamar superior ao do drama de Ésquilo e Eurípedes. Assim, a obra do autor de Édipo Rei preconiza não certas unilateralidades que atravessam as peças de Ésquilo e de Eurípides, sobretudo acerca da interpretação (e utilização) da forma e do pensamento na fatura da tragédia – a grandeza artística de Sófocles foi dada pela unidade da forma com o pensamento, da fusão tensa e motivada pelo existencial e seu significado na cultura grega entre a feição exterior (a disposição enquanto tal das partes constitutivas da tragédia) e os momentos de reflexão do ser pela linguagem do drama (a irrupção decisiva, de acordo com Nietzsche, do coro…). A ocorrência deste posicionamento superior de Sófocles em face a Ésquilo e Eurípides se dá porque ele “ressuscita o ponto de vista do povo” (idem, p.68). Enquanto a tragédia esquiliana é épica e a euripideana socrática, o drama antigo em Sófocles representa a massa trágica, “o enigma na vida do homem”, quer dizer, o sentido da tragédia sofocleana é a transformação do sofrimento humano em algo “santificante” e virtuoso – é a busca do entendimento de que, uma vez o povo lançado na existência incerta e incomensurável, o sentido da vida frente ao destino, “o abismo infinito” (idem, ibidem), não resulta em culpa passiva, mas na musicalidade lírica da humanidade heroica. Terminemos com as próprias lições de Nietzsche:

agora, sabemos certamente que Sófocles no primeiro período imitava Ésquilo (…) A tragédia de Eurípides é a medida do pensamento ético-político-estético daquele tempo: em oposição ao instintivo desenvolvimento da arte mais antiga, que, com Sófocles nele, chega ao seu fim. Sófocles é a figura de transição; o pensamento movese ainda no caminho do impulso [ Trieb ], por isso ele é continuador de Ésquilo (…) [Pois] Sófocles havia comprimido a reflexão no coro, para purificar o poema dramático, (…) [para] distribuir felicidade e infelicidade [a]os povos, ou [a] humanidade [e as] pessoas individuais (Nietzsche, 2014, pp.74,76,79).

Por isso Sócrates não preferiu esta construção e estruturação filológica sofocleana. Sócrates como sábio de si mesmo e dos poucos: ele “assiste à tragédia de Eurípides.Sócrates o mais sábio junto com Eurípides” (idem, ibidem) preferiu a arte racionalizada e filosófica. É que com Eurípides, ao contrário de Sófocles, o autor trágico de Nietzsche por excelência, que a tragédia deixa de ser elemento “bombástico” (idem, p.80) na cultura grega antiga e passa a ser componente da ordem filosofante. Resta-nos aqui investigarmos (talvez na trilha de Marx), em que medida esta disputa trágicofilológica entre Ésquilo, Sófocles e Eurípides ainda guarda beleza – e possibilidade de deleite e reflexão de nossa existência. Introdução à tragédia de Sófocles ora recebido pela nossa cultura pode ser a primeira lição sobre isto.

Notas

1 Sobre a relação entre a erudição (e os eruditos) e a humanidade, ver: Fichte, 2014.

2 Ver sobre o idealismo alemão e a arte: Werle, 2005 e Videira, 2009.

3 Gostaria de chamar a atenção do leitor para as páginas 27, 28, 29, 30 e 31 do livro que ora estamos estudando. As passagens que constam nestas páginas são de importância seminal para a compreensão ofertada por Nietzsche sobre a relação da arte trágica antiga com os cidadãos atenienses – entendendo estes como os populares da cidade.

4 Ver nota 79 em que consta a tradução da expressão e seu significado filosófico e filológico

Referências

FICHTE, J. G. (2014).O Destino do Erudito. São Paulo: Hedra.

MARX, K. (1974). Introdução à Crítica da Economia Política. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural.

Nietzsche, F. (2014). Introdução à Tragédia de Sófocles. São Paulo: Martins Fontes.

Videira, M. (2009). Resenha de Arte e Filosofia no Idealismo Alemão, organizado por Marco Aurélio Werle e Pedro Fernandes Galé. São Paulo: Barcarolla, 2009.Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, 14, pp.147-151

Werle, M. A. (2005). O Lugar de Kant na Fundamentação da Estética como Disciplina Filosófica. Revista Dois Pontos, 2 (2), pp.129-143.

Ronaldo Tadeu de Souza – Universidade de São Paulo. [email protected]

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Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades – NUSSBAUM (C)

NUSSBAUM, Martha. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. São Paulo: M. Fontes, 2015. Resenha de: CESCON, Everaldo. Conjectura, Caxias do Sul, v. 21, n. 2, p. 461-466, maio/ago, 2016.

Ensinar a ser homens de negócios ou cidadãos responsáveis? Treinar para obter lucros ou educar à cultura do respeito e da igualdade? É preciso saber interpretar o mundo no qual se vive ou bastam técnicos e cientistas capazes de fazê-lo funcionar? Essas são algumas das questões enfrentadas por Nussbaum, filósofa liberal de tendência reformista e progressista com ascendência aristotélica.

A autora aborda a crise do ensino humanista que, vista em escala mundial, parece prejudicial para o futuro da democracia e das novas gerações. A corrida ao lucro no mercado mundial está dissolvendo a capacidade de pensar criticamente, de transcender os localismos e de enfrentar os problemas mundiais como “cidadãos do mundo”. Leia Mais

Econômicos – ARISTÓTELES (RA)

ARISTÓTELES. Econômicos. Coleção. Obras Completas de Aristóteles, Volume  VII – Tomo 2. Introdução, notas e tradução do original grego e latino de Delfim F. Leão. São Paulo: Martins Fontes, 2011. Resenha de: COITINHO, Denis. Revista Archai, Brasília, n.14, p. 155-158, jan., 2015

Qual a relação adequada que deve haver  entre a ética e a economia? Uma relação de subordinação da economia à ética e, assim, os valores  morais serviriam de fundamentação para os valores econômicos ou, alternativamente, economia e  ética não teriam nada em comum, uma vez que  os juízos morais seriam puramente prescritivos  e, por isso, subjetivos e arbitrários, enquanto os  juízos econômicos seriam objetivos por descreverem um certo estado de coisas? Mas, dessa forma, não teríamos um empobrecimento da ciência  econômica? Dados os problemas atuais de crise  financeira global, pobreza, desemprego, impacto  da globalização econômica e crise ambiental, por  exemplo, não seria reducionista tomar a economia apenas como um saber técnico na determinação dos meios necessários ao enriquecimento, tais como os relacionados à produção, distribuição e consumo  dos bens e serviços? Levando em consideração uma visão de economia mais atenta a esses problemas, a relação mais adequada entre as duas disciplinas parece ser a de complementaridade, uma vez que a ética poderia auxiliar à economia na determinação do fim bom para o ser humano, enquanto que a  economia poderia auxiliar na identificação dos meios mais eficientes para a realização desse fim (Ver A. Sen, On Ethics and Economics, Blackwell, 1988, p. 2-7). Esse contexto parece evidenciar a atualidade e urgência do pensamento de Aristóteles, uma vez que ele vincula o saber econômico à ética e à política, com a especificação da vida virtuosa como àquela que deve ser vivida e a eudaimonía como o bem a ser perseguido. Mas qual é a posição aristotélica  a respeito dos meios adequados para a realização desse fim? A obra Econômicos pode nos auxiliar a responder a essa questão. E, mais ainda, penso que ela pode nos ajudar a compreender que a relação  que está sendo proposta é a de complementaridade entre a ética e a economia e não uma relação de total subordinação.

Dito isso, é com enorme satisfação que recebemos a publicação no Brasil dos Econômicos em língua portuguesa. Esta obra pertence ao  corpus aristotelicum e sua datação provável é do último  quarto do Séc. IV e o primeiro do Séc. III AC e,  provavelmente, foi escrita por algum discípulo do Liceu. Importante frisar que, até o presente, só se contava com uma tradução para o vernáculo feita por Moses Bensabat Amzalak, em 1945. Essa publicação faz parte da coleção Obras Completas de Aristóteles, que é organizada pelo Prof. António Pedro Mesquita. Obra originalmente editada pela Imprensa  Nacional – Casa da Moeda em 2004, no quadro do projeto de tradução anotada das Obras Completas de Aristóteles, promovido e coordenado pelo Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e subsidiado pela Fundação para Ciência e a Tecnologia. A coleção está sendo adaptada para publicação no Brasil pela Editora Martins Fontes. A edição em questão conta com a tradução, introdução e notas de Delfim F.  Leão, além de apresentar um eficiente glossário dos termos gregos e latinos e índice onomástico no final.

Delfim Ferreira Leão é doutor em filologia  clássica e professor catedrático da Faculdade de  Letras, docente do Instituto de Estudos Clássicos e investigador do Centro de Estudos Clássicos e  Humanísticos da Universidade de Coimbra. É uma importante referência na área dos estudos clássicos, com inúmeras traduções do grego e latim para a  língua portuguesa. Sua tradução ao  Econômicos é segura e competente e adota o texto de Van  Groningen-Wartelle (1968), que também serviu  de guia para boa parte de seu comentário feito na introdução. Além disso, a tradução é enriquecida com esclarecedoras notas de rodapé que ora buscam elucidar o significado das palavras em grego e latim e ora contextualizá-las. Na maior parte das vezes, as notas apresentam a palavra em grego (Livros I e II) e latim (Livro III) do original, o que é muito positivo por situar o leitor na complexidade semântica do texto peripatético e mostrar a escolha de tradução que está sendo adotada. Também é  relevante frisar o acerto no uso da transliteração em caracteres latinos dos termos e expressões  gregos, o que possibilita ampliar o alcance da obra para um público não versado na língua grega, mas que pode ter um interesse especial no tema, tais como estudiosos de teoria política e econômica,  direito, história, filosofia etc. Delfim F. Leão procura destacar em sua introdução os motivos do por que a obra, em que pese seu título, não despertou muito interesse no quadro do debate em torno da economia antiga: “(…) em primeiro lugar, porque o trabalho de Xenofonte constitui um exemplo muito mais significativo da abordagem tradicional (…); em segundo, porque as reflexões feitas nos Econômicos são, apesar de tudo, bastante menos fecundas do que as apresentadas no Livro V da Ética nicomaquéia e no Livro I da Política “(p. VIII).

Em que pese a verdade da afirmação acima, sobretudo por não contar com uma teoria do valor como na Ética Nicomaquéia (EN V, 5, 1133 a 7-18), quero destacar três conceitos chaves que parecem estar pressupostos nas teses apresentadas nos  Econômicos  e que são fundamentais no  corpus aristotelicum. Em primeiro lugar, há uma reflexão teleológica, isto é, se partirá da finalidade do ente para se identificar qual é o seu dever. Aqui o conceito de função (ergon) e natureza parecem ser determinantes na administração da casa, que tem como  centro o homem e a propriedade. Em segundo lugar, a pesquisa em economia parece se fundamentar no conceito de virtude (arete), uma vez que a formação do caráter virtuoso do agente será fundamental para a eficiência econômica. Por último, a finalidade buscada na economia é a autárkeia (autossuficiência) e, assim, o parâmetro normativo da casa é o mesmo que o dos agentes e da comunidade política.

Mas, quais as teses mesmas que são apresentadas nos Econômicos ? No Livro I, já há a tentativa de um enquadramento geral da ciência econômica a partir de uma importante distinção feita entre a economia (oikonomike administração da casa) e  a política (politike administração da  pólis) que  revelará uma certa prioridade da casa frente à pólis:

A pólis resulta, por conseguinte, de um agregado  constituído por casas, terras e bens que seja autossuficiente (autarkes) e capaz de garantir o bem-estar (to eu zen). Essa realidade afigura-se evidente, pois, quando as pessoas não se mostram capazes de atingir aquele objetivo, a comunidade (koinonia) acaba por dissolver-se. (1343 a 10-14).

Assim sendo, há um espaço relevante deixado em aberto para o saber específico da administração da oik îa, que será condição de possiblidade da  política e que se concentrará na investigação dos elementos da casa, a saber, o homem e a propriedade. Nesse livro, teremos por destaque os deveres dos homens para com as mulheres e os escravos  (1343 b 8 – 1344 b 21) e, também, se destacará as funções do senhor da casa no tocante aos bens, consistindo na capacidade de adquirir e manter os bens, além da capacidade de organizar e fazer bom uso das posses (1344 b 22 – 1345 b 4). Isso parece revelar a importância da virtude para a economia. Assim, o que parece ser a tese central nesse primeiro livro é que o caráter virtuoso é peça chave da boa administração da casa. Além de um conhecimento específico ser importante para a vida boa, tal como saber as melhores técnicas de produção, armazenamento, compra e venda, o agente econômico deverá ser um agente moral, no sentido de ter um caráter virtuoso, o que lhe propiciará estabelecer as relações adequadas com os indivíduos (esposa, filhos e escravos), com o trabalho e, também, com os bens.

O papel do Livro II parece ser o de buscar  delinear um enquadramento geral da economia de uma forma mais apropriada e, para tal, estabelecerá uma relação de complementaridade entre a esfera econômica e a esfera ética em razão da importância desses dois saberes para a vida boa: “A pessoa que tiver intenção de administrar uma casa da forma  correta terá de estar familiarizada com os lugares de que vai se ocupar, ser dotada, por natureza, de boas qualidades e possuir, por vontade própria, sentido de trabalho e justiça”(1345 b 7-10). Esse livro também distingue quatro formas de economia, a saber, a real (basilike), dos sátrapas (satrapike), política (politike) e individual (idiotike), e trata de alguns dos temas centrais da economia, tais como: cunhagem da moeda, exportação, importação, controle nas despesas, impostos, produção agrícola, comércio, pecuária,  juros, entre outros temas econômicos (1345 b 20 – 1346 a 15). Também, faz uma acurada descrição de casos econômicos bem-sucedidos, apresentando pessoas e cidades que usaram os meios adequados para obter riqueza e administrá-la corretamente  (1346 b 1 – 1353 b 25).

O Livro III reforça a ideia ética já apresentada no Livro I, ressaltando os deveres e sentimentos  necessários do marido para com a esposa e filhos, principalmente, para a obtenção de uma vida bem-sucedida. Em que pese o problema da não conservação do original grego, sendo o texto conhecido por traduções latinas medievais, em especial a translatio Durandi, creio que esse livro tem um importante  papel de reforçar a ideia da necessidade da ética  para a economia. Nele se ressalta a tese da virtude ser necessária tanto para os homens quanto para  as mulheres, uma vez que ambos “são guardiões de interesses comuns”(145 7), além de defender uma divisão de trabalho entre os sexos, sendo a mulher responsável pela administração do interior da casa. Também, a fidelidade aparece como um dever central do marido à esposa em razão dela assegurar a concórdia e a harmonia, isto é, a “sintonia das vontades entre marido e mulher”na maneira de administrar uma casa (146 18).

Creio que a exposição dos principais temas que são tratados nos Econômicos mostra a relevância do pensamento do Estagirita para o atual estágio da  economia, uma vez que está no cerne da discussão contemporânea a tentativa de abordar a ciência  econômica de uma forma menos descritiva e mais prescritiva. Por fim, só resta recomendar vivamente a leitura e esperar que ela possa contribuir com a qualificação do estudo do pensamento aristotélico no Brasil, além de possibilitar o surgimento de  alguma(s) alternativa(s) aos desafios que enfrentamos enquanto coletividade.

Denis Coitinho – Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: [email protected]

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A democracia na América: sentimentos e opiniões. De uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos – TOCQUEVILLE (CTP)

TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. De uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. Resenha de: SOUZA, Clotildes Farias de. Associativismo voluntário, uma categoria central no pensamento de  Alexis de Tocqueville. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 17, p. 79-82, set./out. 2014.

A noção de associativismo voluntário foi apresentada por Alexis de Tocqueville2 na célebre obra “A Democracia na América”, escrita no ano de 1832, quando o autor retornara à França, depois de nove meses de estadia nos Estados Unidos da América em busca de informações sobre o sistema prisional e sobre a realidade política e cultural daquele país.3 Em que pese a importância da totalidade da obra para compreensão das idéias tocquevilianas sobre a democracia e os princípios de igualdade e liberdade inerentes que determinam o desenvolvimento sócio-político dos países europeus em comparação com os Estados Unidos da América, salienta-se aqui as idéias acerca do associativismo voluntário a partir do segundo volume da clássica obra.

Membro da nobreza francesa, Alexis de Tocqueville nasceu em Paris em 1805 e tinha menos de trinta anos quando escreveu o texto que marcaria a sua trajetória intelectual, ainda profundamente focado nas observações realizadas sobre a vida americana. O primeiro volume da sua principal obra foi publicado em 1835, com o subtítulo “leis e costumes”, contendo muitas impressões e interpretações acerca das diferenças constatadas entre o modelo norte-americano de sociedade e os padrões aristocráticos europeus.4 O segundo volume de “A Democracia na América” é de 1840 e tem como subtítulo “sentimentos e opiniões”; nele o autor reflete mais a própria natureza da democracia como modelo político, tratando do associativismo voluntário especificamente.

O associativismo voluntário ocupa lugar especial no segundo volume do livro que se apresenta dividido em quatro partes. A primeira parte trata da “Influência da democracia no movimento intelectual dos Estados Unidos” e a segunda parte é dedicada ao estudo de “A influência da democracia sobre os sentimentos dos americanos”. A terceira parte do livro aborda a “Influência da democracia sobre os costumes propriamente ditos” e a quarta parte trata “Da influência que as ideias e os sentimentos democráticos exercem sobre a sociedade política”. Encontra-se na segunda parte do livro o tema do associativismo, desenvolvido em quatro capítulos intitulados: 1. Como os americanos combatem o individualismo por meio de instituições livres; 2. Do uso que os americanos fazem da associação na vida civil; 3. Da relação entre as associações e os jornais; 4. Relações entre associações civis e associações políticas. Na quarta parte do livro ainda é encontrado um capítulo diretamente voltado ao tema, intitulado “A igualdade dá naturalmente aos homens o gosto pelas instituições livres”.

O conteúdo do livro evidencia o fato do associativismo voluntário ser uma noção central em Tocqueville, caracterizada como a força da democracia pelas oportunidades políticas que gera para os cidadãos reunidos em torno de um interesse geral. O espírito do associativismo expressa a liberdade política dos americanos que participam efetivamente do processo de elaboração das leis e da sua aplicação, organizados em instituições livres criadas na sociedade civil e voltadas para tomada de decisão sobre as questões banais do cotidiano e as mais relevantes questões da nação. Trata-se de uma tradição, de um hábito ou simplesmente de uma crença capaz de politizar a sociedade civil, tão importante quanto à legislação e mais importante que as condições geográficas favoráveis a democracia norte-americana.

Os americanos de todas as idades, de todas as condições, de todos os espíritos, se unem sem cessar. Não apenas têm associações comerciais e industriais de que todos participam, mas possuem além dessas mil outras: religiosas, morais, graves, fúteis, muito gerais e muito particulares, imensas e minúsculas; os americanos se associam para dar festas, fundar seminários, construir albergues, erguer igrejas, difundir livros, enviar missionários aos antípodas; criam dessa maneira hospitais, prisões, escolas. Enfim, sempre que se trata de pôr em evidência uma verdade ou desenvolver um sentimento com o apoio de um grande exemplo, eles se associam.5

A força das associações voluntárias no dia a dia da vida americana chega a ser uma lei mais extensiva que a do Estado aos olhos tocquevillianos; é a lei do autogoverno que orienta os americanos no sentido da conquista dos próprios objetivos. É a primeira lei da democracia que faz o povo americano sentir a coisa pública como sua e de todos, assim como a defender a igualdade porque assim os homens permanecem ou se tornam civilizados.

Quando os cidadãos são forçados a se ocupar dos negócios públicos, são necessariamente tirados do meio de seus interesses individuais e arrancados, de tempo em tempo, à visão de si mesmos. Quando o público governa, não há homem que não sinta o preço da benemerência pública e que não procure cativá-la, atraindo a estima e a afeição daqueles em meio dos quais tem de viver.6

Do movimento associativista fazem parte as associações políticas com a importante função de ensinar os homens a agirem cooperativamente em vista do bem-comum, gratuitamente, sem comprometimento do patrimônio particular. As associações políticas são instituições que cumprem a função de “[…] grandes escolas gratuitas, onde todos os cidadãos aprendem a teoria geral das associações”.7  Às sociedades políticas impõem-se limites para garantia da paz e do respeito às leis, dado o perigo da liberdade à democracia; ao direito dos cidadãos de se reunirem não pode haver restrições. Não há motivos para temer as sociedades políticas porque ao tempo em que exercem controle são também controladas pela própria sociedade civil que está subordinada a centralização governamental do Estado, ainda que livre da burocratização da administração pública. Em geral, nas associações políticas são renovados os sentimentos e as idéias tão necessários ao desenvolvimento humano; a liberdade e a civilização são garantidas em tais instituições porque a união dos membros que se encontravam separados inibe o individualismo ameaçador imposto pela igualdade de condições.

As instituições livres que os habitantes dos Estados Unidos possuem e os direitos políticos de que fazem tanto uso recordam sem cessar, e de mil maneiras, a cada cidadão, que ele vive em sociedade. Trazem a todo instante seu espírito à idéia de que o dever, tanto quanto o interesse dos homens, é tornarem-se úteis a seus semelhantes e como não vê nenhum motivo particular para odiá-los, já que nunca é nem seu escravo nem seu amo, seu coração se inclina facilmente para a benevolência.8  Justamente na capacidade de congregação reside a força de uma associação porque ali se consegue manter a relação de reciprocidade entre os homens tão necessária à democracia. Ali está o potencial de comunicação entre os membros da sociedade porque há instrumentos que representam as instituições e são criados para o exercício da liberdade de expressão; instrumentos como os jornais, por exemplo, os quais proporcionam a fala de uma só vez a todos aqueles que não se vêem ou se juntam diariamente, transmitindo simultaneamente os sentimentos ou ideais que estariam dispersos em cada individuo.

Acerca do associativismo voluntário de Alexis de Tocqueville resta afirmar que é uma categoria de análise bastante profícua para se pensar a cultura norte-americana e também outras formas de organização social e institucional em contextos históricos variados. É uma noção útil aos estudos comparados de modelos internacionais que foram apropriados pelos brasileiros, inclusive de modelos educacionais cujas representações históricas e culturais requerem observações específicas para reconhecimento e compreensão das analogias e diferenças existentes entre os diferentes fenômenos analisados.

Notas

2 TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. De uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

3 BASTOS, M. H. C. ARRIADA, E. A democracia na América, de Alexis de Tocqueville: uma leitura para a história da educação. Revista Educação Unisinos, 11(1), n. 1, p. 5-14, jan.-abr. 2007. Disponível em <http://www.ebah.com.br/content/ABAAAAmWoAI/a-democracia-na-america-alexis-tocqueville-leitura-a-historia-educacao>. Acesso em: 10 de fevereiro de 2012.

4 BEIRED, J. L. B. Tocqueville, Sarmiento e Alberdi: três visões sobre a democracia nas Américas. Revista História [online], vol.22, n.2, p. 59-78, 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n15/a06n15.pdf. Acesso em: 17 de julho de 2014.

6TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. De uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 131.

6 Idem, p. 124.

7 Idem, p. 143.

8 Idem, p. 129.

Referências

TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. De uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

BASTOS, M. H. C. ARRIADA, E. A democracia na América, de Alexis de Tocqueville: uma leitura para a história da educação. Revista Educação Unisinos, 11(1), n. 1, p. 5-14, jan.-abr. 2007.

BEIRED, J. L. B. Tocqueville, Sarmiento e Alberdi: três visões sobre a democracia nas Américas. Revista História [online], vol.22, n.2, p. 59-78, 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n15/a06n15.pdf. Acesso em: 17 de julho de 2014.

Clotildes Farias de Sousa – Mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe-UFS. Coordenadora Pedagógica do Centro de Educação Superior a Distância – UFS. E-mail: [email protected].

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Ética prática – SINGER (C)

SINGER, Peter. Ética prática. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. 3. ed. São Paulo: M. Fontes, 2012. Resenha de: LEITE, William Wiltonn. Conjectura, Caxias do Sul, v. 19, n. 3, p. 229-232, set/dez, 2014.

O livro Ética prática está composto de um prefácio, 12 capítulos e um apêndice. Peter Singer, filósofo utilitarista nascido na Austrália, atualmente professor na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, expõe, inicialmente, em seu livro, o que não considera ética e o que pensa ser ética. Em seguida, conduz a uma exposição argumentativa sobre a aplicação prática de determinadas concepções éticas a alguns temas relevantes e polêmicos do momento histórico que vivemos. Singer confronta a ideia de uma singularidade atribuída à vida humana, principalmente quanto a uma interpretação como algo sagrado, que impeça que essa seja examinada em relação a si mesma, à vida dos outros seres vivos com que o homem compartilha esse momento no Planeta e ao próprio meio ambiente como um todo. Analisando várias concepções de condutas éticas, conclui por defender a ideia de um tipo de utilitarismo preferencial, não clássico, por estar baseado no princípio da igualdade na consideração dos interesses dos agentes envolvidos numa específica conduta ética.

Singer começa o Capítulo 1 referindo que os assuntos relacionados à sexualidade ou uma teoria bem-elaborada em um sistema ideal de grande nobreza na teoria, mas inaproveitável na prática ou que a religiosidade, o relativismo, e u subjetivismo não são questões éticas. Leia Mais

Egocentricidade e mística: um estudo antropológico – TUGENDHAT (C)

TUGENDHAT, Ernst. Egocentricidade e mística: um estudo antropológico. Trad. de Adriano Naves de Brito e Valerio Rohden. São Paulo: WMF M. Fontes, 2013. Resenha de: CESCO, Marcelo Lucas. Conjectura, Caxias do Sul, v. 19, n. 2, p. 204-208, maio/ago, 2014.

Ernest Tugendhat nasceu em 1930, em Brünn. Atualmente, vive em Tübingen. É professor emérito de Filosofia nas Universidades de Berlin e Tübingen. Sua obra, traduzida para o português, é composta por uma grande variedade de livros e artigos, entre eles se destacam Propedêutica lógico-semântica (1996), Lições introdutórias à filosofia da linguagem (2006) e Lições de ética (1997). Vem somar-se a estas obras traduzidas Egocentricidade e mística: um estudo antropológico, texto que será apresentado nesta resenha.

No referido texto, Tugendhat faz uma análise filosóficoantropológica, buscando, se não primeiramente responder, suscitar outras perspectivas de possíveis respostas para perguntas como: O que significa dizer “eu”? Por que os seres humanos buscam a paz de espírito? O que diferencia o homem dos outros animais? Como é que se dá a relação do homem com a vida e com a morte? Qual a diferença entre religião e mística? Este livro é dividido em duas grandes partes, a saber: na primeira, com o título de “Relacionar-se consigo mesmo”, o autor se foca mais em questões antropológicas, especificamente tentando responder o que ele entende por egocentricidade. Na segunda parte, sob o título “Tomar distância de si mesmo”, Tugendhat tem o foco voltado para as questões do que e como ele compreende a mística. Leia Mais

Força de lei: o fundamento místico da autoridade – DERRIDA (C)

DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: M. Fontes, 2010. Resenha de: BELTRAMI, Fábio. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 3, p. 196-199, Set/dez, 2013.

Jaques Derrida foi um filósofo nascido em El-Biar, na Argélia, em 1930. Ensinou na Sorbonne, na École Normale Supérieure e École de Hautes Études. Viveu grande período de tempo na França e alternou docências tanto na França como nos Estados Unidos da América. Faleceu em Paris, em outubro de 2004.

O livro Força de lei: o fundamento místico da autoridade, no original [Force de loi…] (1994), com segunda edição no Brasil pela Editora M. Fontes, no ano de 2010, com 145 páginas e tradução realizada por Leyla Perrone- Moisés, consta de duas exposições realizadas por Derrida. A primeira parte do livro, intitulada “Do direito à justiça”, foi apresentada pelo filósofo em um colóquio organizado por Drucilla Cornell na Cardozo Law School, em outubro de 1989. Já a segunda parte, intitulada “Prenome de Benjamin”, foi apresentada em 26 de abril de 1990, em colóquio organizado por Saul Friedlander, na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, EUA. Leia Mais

Contos e lendas da mitologia celta – LÉOURIER (S-RH)

LÉOURIER, Christian. Contos e lendas da mitologia celta. Tradução de Monica Stahel. São Paulo: Editora WMF/ Martins Fontes, 2008, 224 p. Resenha de: CAMPOSI, Luciana de.  Entre a História e a Memória dos  mitos e lendas celtas. sÆculum REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [23] jul./ dez. 2010.

Mitos, lendas e contos folclóricos sempre foram guardiões da memória e, para algumas culturas que valorizavam sobremaneira a oralidade, essas narrativas também eram as responsáveis por transmitir a história. As narrativas mitológicas celtas2, que, na sua maioria vão apresentar as batalhas travadas entre deuses e monstros, homens e criaturas fantásticas, são narrativas fundamentais para se entender a dinâmica da sociedade celta na Irlanda. Todos esses contos que hoje lemos refletem, por assim dizer, a reverência que os celtas nutriam pela oralidade: conferiam um caráter quase que sagrado às palavras atribuindo a elas um aspecto mágico como é possível constatar em algumas narrativas como, por exemplo, em “A busca dos filhos de Tuireann” em que três jovens empreendem uma viagem pelos mares do mundo em busca de tesouros fantásticos e para se locomoverem apenas dizem: “– Barco de Mananann, já que estás sob nossos pés, leva-nos à Pérsia!” (p.45). São as palavras as responsáveis por conduzir os jovens a incontáveis aventuras, da mesma maneira que as palavras são usadas para transmitir o conhecimento, as tradições e, desta feita, perpetuar pela oralidade as tradições, a história e a memória. Leia Mais

A arte de conhecer a si mesmo – SCHOPENHAUER (FU)

SCHOPENHAUER, A. A arte de conhecer a si mesmo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. Resenha de: ALVES, Bernardo Veiga de Oliveira. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.11, n.1, p.106-107, jan./abr., 2010.

“Querer o menos possível e conhecer o mais possível, eis a máxima que conduziu minha trajetória de vida” (Schopenhauer, 2009, p.3). Assim Schopenhauer começa o seu livro. A obra é dividida em 38 máximas, com anotações autobiográficas, recordações e reflexões do comportamento em geral. Depois, há uma sequência de 17 das suas máximas e citações preferidas. Schopenhauer tinha este texto como uma espécie de manual da arte de conhecer a si mesmo para a orientação do seu ideal. Começou a escrevê-lo em 1821, dois anos após o Mundo como vontade e representação (1819), e continuou por mais duas décadas a construção do texto.

Podem-se destacar três elementos importantes: O seu ideal filosófico de dedicar-se sobretudo à busca da verdade, o seu pessimismo diante do convívio humano, e as suas críticas ao sexo feminino. Segundo o autor, ele mesmo está incumbido de realizar uma ação do espírito que nenhum outro poderia fazer, o que implica alguns sacrifícios, como abdicar de alguns prazeres próprios do homem comum:

As coisas de que necessariamente sou privado em minha vida pessoal me são compensadas de outra maneira, ao longo da vida, pelo pleno gozo do meu espírito e empenho em favor de sua orientação inata; de fato, se as possuísse, não as fruiria, e ser-me-iam até mesmo impedidas. Para um espírito que doa e realiza por si mesmo aquilo que nenhum outro pode da mesma forma doar e realizar, e que justamente por isso subsiste e perdurará – seria ao mesmo tempo cruel e insano querer forçá-lo a fazer outras coisas, ou mesmo atribuir-lhe tarefas obrigatórias, afastando-o do seu dom natural (Schopenhauer, 2009, p.4).

Desta forma, ele diz que o ideal monacal é algo natural nas nações civilizadas, em que algumas pessoas, conscientes de suas faculdades espirituais sobressalentes, defendem o cultivo de tais aptidões sobre qualquer outro bem, cujos frutos se tornariam depois patrimônio da humanidade: “Embora pertençam à classe hierarquicamente mais nobre da humanidade, cujo reconhecimento é uma honra para qualquer um, renunciam à distinção mundana com uma humildade análoga à do monge” (Schopenhauer, 2009, p.32).

Assim, como consequência da sua visão do ideal filósofo, ele defende certa misantropia1, o que evidencia o seu pessimismo sobre a humanidade. Mas repare que o seu desprezo pelas pessoas é antes fruto de uma tendência pessoal do que de uma plena convicção do seu pensamento, isto é, tinha dificuldades para viver conforme uma mente serena e mais social do filósofo, como diz: “A natureza fez mais do que o necessário para isolar o meu coração, na medida em que o dotou de desconfiança, excitação, veemência e orgulho numa proporção quase inconciliável com a mens aequa, mente serena do filósofo” (Schopenhauer, 2009, p.49).

Por fim, encontramos o machismo de Schopenhauer. Mesmo sendo contra a sua visão, não podemos ignorar o destaque do autor ao universo feminino, algo que era raro antes de Schopenhauer e que fortemente influenciará a visão de Nietzsche. Grande parte do seu pensamento é decorrente da sua própria misantropia e de alguns fortes preconceitos do século XIX. Porém, o que mais influenciou a sua visão foram os fortes desentendimentos que, segundo o autor, tinha com a sua mãe, por desprezar o pai e, quando viúva, por acolher amantes dentro de casa (Volpi, 2004).

Mesmo criticando o idealismo de Hegel, podemos dizer que Schopenhauer cai, nesta obra, em certo idealismo existencial, da solidão do filósofo. O que podemos questionar é até que ponto a sua visão é própria da conveniência do agir filosófico, ou de uma forte disposição introspectiva do autor. Se a missão do filósofo é tão nobre que o faz ser diferente do “homem comum”, ele não teria que se esforçar para conviver socialmente, como o homem político aristotélico, ou o transformador social de Marx? Em função da sua missão, ele não teria que fortalecer a sua vontade para poder se doar socialmente? De qualquer forma, conhecer a si mesmo, retomando o princípio grego, mostra-se como uma máxima perene, no comportamento do filósofo, da busca de um aperfeiçoamento pessoal. Portanto, independentemente das conclusões misantrópicas, o grande valor da obra consiste na aplicação desta máxima moral.

Notas

1 “A grande maioria das pessoas assemelha-se às castanhas-da-Índia, aparentemente comestíveis como as demais, todavia intragáveis” (Schopenhauer, 2009, p.51).

Referência

VOLPI, F. 2004. Introdução. In: A. SCHOPENHAUER, A arte de lidar com as mulheres. São Paulo, Martins Fontes, p.XV-XVIII.

Bernardo Veiga de Oliveira Alves – Mestrando da Universidade do Vale dos Sinos. São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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O Antigo Regime e a Revolução – TOCQUEVILLE (FU)

TOCQUEVILLE, A. de. O Antigo Regime e a Revolução. São Paulo: Martins Fontes, 2009. Resenha de: REIS, Helena Esser dos. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.10, n.3, p.348-349, set./dez., 2009.

Em meio a tantas análises acerca da Revolução Francesa, qual o interesse que O Antigo Regime e a Revolução de Alexis de Tocqueville, escrito em 1856, pode ainda despertar nos leitores contemporâneos? Ilumina, de modo original, nossa compreensão daquele evento e das ideias que ali foram forjadas? As respostas não são evidentes, requerem ler o texto e seu contexto, a letra e a intenção do autor.

No início do prefácio onde apresenta seu livro aos leitores, Tocqueville descarta o propósito de escrever uma história da Revolução Francesa. Tendo despendido mais de cinco anos em uma ampla pesquisa nos arquivos da administração pública, nos cadernos de queixas escritos pelas três ordens em 1798, nos textos dos filósofos consagrados e até na leitura de inúmeras correspondências íntimas e confidenciais que estavam arquivadas no Ministério do Interior, seu propósito, afirma, é desvendar as causas pelas quais a revolução social e política contra o Antigo Regime – que estava em curso em toda Europa – eclodiu na França. Trata-se, portanto, de um texto que busca, por meio da narrativa e da análise dos acontecimentos, conhecer os sentimentos, os costumes, as ideias que prepararam a grande revolução.

Focando a capacidade de inovar do povo francês (de romper com seu passado de submissão para construir uma nova forma social e política baseada na igualdade e na liberdade entre os homens) nos primeiros anos da revolução, Tocqueville aponta cuidadosamente as circunstâncias, os erros e as decepções que fi zeram os revolucionários abandonarem seu objetivo inicial e esquecerem-se da liberdade. Ao comparar a sociedade do Antigo Regime com a sociedade democrática originada pela Revolução, argumenta que a perda da liberdade não decorre de um problema inerente aos homens deste tempo, nem de um problema característico do novo regime, mas do individualismo e da apatia política que já encontram suas raízes nas instituições políticas e na sociedade francesa do Antigo Regime.

As críticas precisas e vigorosas que Tocqueville dirige à nobreza não contêm excessos ou compromissos com os propósitos revolucionários. Ele mesmo, descendente da antiga aristocracia francesa, não adere à democracia espontaneamente, mas tão só porque reconhece que apenas sob este regime a liberdade (entendida como capacidade de cada um pensar e agir por si mesmo e, ao mesmo tempo, participar junto com cada um dos demais no exercício do poder) pode estender-se a todos os homens. Considerando-se independente, Tocqueville traz à luz o longo processo de esfacelamento dos corpos administrativos secundários e de centralização do poder nas mãos do rei. Ele denuncia, em primeiro lugar, que o exercício independente e participativo da liberdade, pouco a pouco, é substituído por privilégios privados que isolam os nobres e os afastam de seus deveres públicos. Em segundo lugar, destaca que a contrapartida dos privilégios de uns é a opressão e a exploração desmedida de quase todos os demais, o surgimento de ódios, rancores e rupturas no tecido social.

A análise tocquevilleana acerca das causas profundas que engendraram a Revolução permite-nos compreender que os desdobramentos despóticos da Revolução Francesa não se deram ao acaso, pelo calor do momento, mas se enraízam em uma longa cadeia de benefícios e violências que favoreceram o despotismo do rei e prepararam o despotismo democrático. Por mais que as palavras despotismo e democracia pareçam estar em campos opostos, Tocqueville – já em A Democracia na América – mostrou que instituições democráticas podem ser coniventes com formas opressivas do exercício do poder político, sempre que a busca por condições sociais igualitárias se sobrepuser à participação política.

O Antigo Regime e a Revolução, publicado vinte anos após A democracia na América, renova o esforço tocquevilleano de conhecer os problemas e buscar remédios adequados ao processo de democratização do estado francês. Se nessa obra ele destacou a grandeza do estado democrático constituído pelos anglo-americanos, foi também extremamente severo, criticando, de um lado, a desigualdade a que estavam sujeitados negros e índios, assim como todo aquele que divergia da maioria por qualquer razão; e, de outro lado, a opressão consentida que surgia do individualismo e da apatia política em vista da qual voluntariamente os homens abriam mãos de seus direitos políticos. É o mesmo espírito de investigação ampla e de crítica certeira que norteia a escrita de O Antigo Regime e a Revolução.

Reconhecendo semelhanças entre as formas despóticas que ocorreram na França e os germes de despotismo que viu nos Estados Unidos, Tocqueville contribui para uma concepção madura e crítica da democracia. Pois, se apenas sob este regime a igual liberdade pode estender-se a todos os cidadãos, suas análises evidenciam que liberdade e igualdade não estão garantidas por qualquer procedimento ou instituição. A sorte da democracia não está dada a priori, posto que a mesma condição social de igualdade entre os homens pode ter como consequência ou um estado político despótico, no qual pouco importa se o déspota é apenas um ou a maioria de um povo, ou um estado político de liberdade, no qual cada cidadão reconhece a si e aos demais como membro do poder soberano.

Ainda que a igualdade social e a liberdade política sejam inseparáveis como qualificativos do Estado democrático, Tocqueville incita-nos a pensar que as diferentes expressões políticas da forma social são consequências que derivam da vontade, da sabedoria e da ação dos homens. Assim, o esforço tocquevilleano para buscar as causas profundas da Revolução assemelha-se, como ele mesmo afirma, ao esforço dos médicos que buscam descobrir, nos órgãos de um corpo já morto, as leis da vida. Ainda acreditando no ideal que inspirou os revolucionários de 1798, por meio da análise dos fatos descritos em O Antigo Regime e a Revolução, Tocqueville busca, mais uma vez, instigar os homens a participarem do processo de construção de um estado social e político democrático, no qual liberdade e igualdade estendam-se a todos.

Esta obra, publicada em 1856, foi, no mesmo ano, traduzida e publicada na Inglaterra, nos Estados Unidos e na Alemanha e, ainda antes da morte de Tocqueville, em 1859, alcançou sua quarta edição na França. Desde então, inúmeras são as publicações desse livro. No Brasil, duas edições anteriores encontram-se esgotadas há alguns anos. A edição da Martins Fontes valoriza o texto tocquevilleano, ao incluí-lo em sua coleção de clássicos, assim como pela tradução cuidada do texto. Lastimo apenas que não tenha incluído a totalidade das notas feitas pelo autor, que apresentam aos leitores situações particulares de países da Europa e discutem seus costumes.

Helena Esser dos Reis – Universidade Federal de Goiás. Goiânia, GO, Brasil. E-mail: [email protected]

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Tratado de ateologia: física da metafísica – ONFRAY (RFA)

ONFRAY, Michel. Tratado de ateologia: física da metafísica. Tradução de Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Resenha de: PIVA, Paulo Jonas de Lima. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.21, n.28, p.249-254, jan./jun., 2009.

Já era hora. Com o desmoronamento do stalinismo no leste europeu e do ateísmo de Estado nos países sufocados pelo seu domínio, muita coisa mudou no mundo. Hoje, a burguesia protestante, a plutocracia judaica, os sheiks do petróleo, as oligarquias católicas da América Latina e o alto clero do Vaticano respiram mais aliviados, além de sorrirem triunfantes, afinal, o comunismo ateu como projeto histórico não assusta mais ninguém. Todavia, se por um lado o comunismo parece inofensivo na atual conjuntura histórica, por outro, o ateísmo, agora não mais um monopólio do marxismo, continua incomodando muita gente. Dentre os incomodados seguramente não está mais o capital. Ocorre que os autores ateus resolveram – ou conseguiram – finalmente sair dos guetos nos quais estiveram por muito tempo confinados. Dissociado da foice e do martelo, o ateísmo desponta nesta primeira década de século como uma mercadoria promissora para o megamercado editorial, o qual decidiu apostar alto nessa novidade de consumo para o grande público.

Mas nem tudo neste planeta globalizado parece ser business. A reação ao despertar dos autores ateus via mídia foi imediata e implacável. Carolas de todas as estirpes e meios, das faculdades de teologia aos cadernos de cultura e às revistas semanais, entraram em histeria, colocando a fé religiosa mais uma vez como vítima de perseguição. O lançamento quase simultâneo dos livros Tratado de ateologia: física da metafísica, de Michel Onfray, Deus, um delírio, de Richard Dawkins, Deus não é grande, de Christopher Hitchens, e Quebrando o encanto, de Daniel Dennet – todos traduzidos para o português –, levou muitos religiosos assumidos ou travestidos de laicos a conclusões precipitadas e previsões alarmistas, a principal delas, a do surgimento de um temerário e antidemocrático “fundamentalismo ateu”.

Quanto exagero e leviandade! Sendo o ateísmo uma doutrina como outra qualquer, ela pode, dependendo do ateísmo em questão, exprimir-se como uma crença dogmática, portanto, resvalar eventualmente num fundamentalismo intolerante e antidemocrático. Contudo, não se trata de uma regra, pois há vários modos de ser ateu. Trata-se, no fundo, da projeção sobre os autores ateus de um comportamento que é típico e histórico das instituições, dos asseclas e dos ideólogos das religiões. A propósito, quanta intolerância por parte desses cães de guarda da fé! Quanta suscetibilidade à crítica! Quanto medo da divergência e sobretudo do confronto de ideias! E ainda mais numa época em que a democracia liberal, com os seus valores de liberdade de pensamento e expressão, de defesa do pluralismo e de abertura e incentivo ao debate, consolidase como o regime politicamente correto por excelência!

Ao que parece, estamos diante de dois pesos e duas medidas. Intoxicar a mente e o coração das pessoas com os contos fantasiosos dos evangelhos é permitido; captar dízimos junto a pessoas humildes e aflitas não é crime; difundir os dogmas morais misóginos e homofóbicos de Alá não é discriminação; mutilar arbitrariamente, por motivo de fé, indefesos recém-nascidos com a circuncisão não é um ato de barbárie; fomentar o estereótipo de que toda pessoa sem religião seria louca ou imoral não é injúria ou difamação. Em contrapartida, escrever e teorizar sobre as religiões interpretando-as como mitologias sem consciência de si ou como ficções que relutam em não se admitir como tais, e demonstrar que a ideia de divindade é uma fábula alienante ou um subterfúgio infantil, isto, no entender dos nossos religiosos democratas, não convém se alastrar; é perigoso, advertem tensos e preocupados os fiéis mais ardorosos; tratar-se-ia, repetem em uníssono os cães de guarda da fé, de um inaceitável desrespeito contra o sentimento religioso de um povo e de uma odiosa intolerância contra Deus e a fé.

Michel Onfray é um dos principais alvos dessa reação intolerante e alarmista por parte dos nossos religiosos democratas. O seu Tratado de Ateologia é sem dúvida um dos mais contundentes escritos ateus dessa leva. Estima-se que mais de duzentos mil exemplares da obra tenham sido vendidos só na França. Reivindicando o espólio crítico da esquerda das Luzes francesas, isto é, da radicalidade, do vigor e da militância anti-religiosa de filósofos materialistas e ateus como o padre Jean Meslier, o médico La Mettrie, o Barão de Holbach e o autor do Dicionário dos Ateus, Sylvain Marechal, Onfray faz do seu livro um libelo tão demolidor quanto sedutor contra os três monoteísmos preponderantes no planeta, a saber, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. A finalidade do seu empreendimento? “Aumentar as Luzes”. Em outras palavras, contribuir para que o homem finalmente saia da sua condição de menoridade e alcance a sua maioridade, na trilha do Alfklarung de Kant.

O ponto de partida da sua “ateologia” – termo emprestado de George Bataille – surpreende. Ao invés de endossar o anúncio deicida do louco do mercado que aparece no aforismo 125 de A gaia ciência, de Nietzsche, Onfray, um entusiasta divulgador de um “nietzschianismo de esquerda”, afirma exatamente o contrário: embora a morte de Deus seja uma boa notícia, ela é falsa e ilusória. De acordo com o seu diagnóstico, “Deus ainda respira”, e com muito mais fôlego do que alguns imaginam, pois “uma ficção não morre, uma ilusão não expira nunca, não se refuta um conto infantil”. E arremata: “Estamos a anos-luz de um tal progresso ontológico […]”.

Na verdade, quem mata é Deus. Para Onfray, Deus mata tudo o que lhe resiste. Ou seja, Deus assassina a razão, a inteligência, o espírito crítico, a liberdade, o prazer, o instinto, a felicidade. Assim sendo, o niilismo impera crônico sobre a nossa cultura e sobre a nossa relação com a vida. É contra esse culto e essa paixão pelo Nada, contra esse olhar impotente e ressentido que despreza e calunia a vida, que tece subterfúgios para aqueles que não têm estrutura psicológica para encarar o real, que a ateologia de Onfray se posiciona. Sua perspectiva é a do amor fati, do dizer um Sim incondicional e trágico à vida.

No Tratado de Ateologia, Onfray também vira pelo avesso outra tese clichê: a de que sem Deus tudo é permitido, isto é, a tese de que nenhuma moral subsiste sem a fé num deus que remunera com o paraíso e pune com o inferno. No seu entender, além do ateísmo desanuviar um horizonte ético bastante alvissareiro, o contrário do clichê dostoievskiano é que seria verdadeiro: com Deus é que tudo se torna permitido. Basta lembrar que as maiores calamidades históricas, da Inquisição ao 11 de setembro, passando pelo massacre físico e cultural dos índios da América Latina, foram feitas em nome de Deus. É por esta e outras razões similares que, para Onfray, a crença numa divindade consiste numa infantilidade mental, mais precisamente num sintoma de uma doença psicológica. Fazendo uso da psicanálise, Onfray não titubeia em suas afirmações. O deus judaico-cristão aparece no Tratado como a mais absurda de todas as divindades, uma vez que se trata de uma abstração repleta de contradições, as quais o iluminismo francês soube explorar com maestria.

Investigando mais a fundo a patologia da fé religiosa, Onfray mostra que na história da humanidade encontramos divindades para todos os gostos, necessidades, conveniências e fantasias. Encontramos, por exemplo, a escatológica deificação da merda na figura do deus Stercorius; o culto ao lixo, por meio da veneração à divindade Cloacine; e até o culto ao peido, este representado pelo deus Crepitus. Já no caso do deus judaico-cristão, cuja representação é extremamente obscura e contraditória, teríamos o culto ao nada.

Quanto à figura de Jesus Cristo, Onfray não é menos contundente e taxativo no seu livro. Nenhum documento, nenhum vestígio confiável, nada de concreto sobre a sua existência física e histórica. De onde se segue que Cristo nunca existiu. Em nenhum instante da história da humanidade esse “redentor”, esse “filho de Deus”, passou pela Terra. Tudo não passaria de fábula, de um construto do imaginário humano e da astúcia política. Cristo teria existido como Zaratustra, Ulisses, Sísifo, ou como qualquer outro personagem lendário ou literário. Na verdade, sustenta Onfray, quem criou Jesus Cristo foi Marcos, um dos quatro evangelistas, no ano 70. Vale assinalar que nenhum dos quatro autores dos evangelhos conheceu o Cristo pessoalmente. Marcos foi acompanhante de Paulo de Tarso, o “São Paulo”, em sua peregrinação, de onde é possível inferir que este tenha sido uma das fontes de Marcos. Cabe ainda dizer que os evangelhos só foram escritos após a morte de Paulo, que também não conheceu Cristo pessoalmente. No fundo, a lenda de Jesus Cristo – e de tantas outras lendas religiosas – teria sido fruto das aspirações de homens e mulheres desesperados, num momento histórico em que o obscurantismo, a superstição, a fome e o sofrimento eram intensos, numa época em que não faltavam beatos, arautos do apocalipse e fanáticos religiosos prometendo redenções e paraísos.

E como o cristianismo teria se proliferado e se consolidado? Onfray atribui tal feito fundamentalmente à sagacidade política do imperador Constantino. Aproveitando-se da adesão em massa dos seus súditos ao cristianismo e em especial da máxima de São Paulo de que toda autoridade provinha de Deus, portanto, que caberia a todo cristão subordinar-se a essa vontade, Constantino não apenas se converteu ao cristianismo como ainda soube conquistar os cristãos com inúmeros agrados. Construiu templos, promoveu isenções de impostos a um clero em formação e capitaneou uma perseguição implacável ao paganismo, levando à destruição uma infinidade de bibliotecas e de insubstituíveis obras de arte greco-romanas. O resultado disso? Obediência cega por parte do povo e estabilidade política. Nas palavras de Onfray, um “golpe de Estado magistral” de Constantino.

Motivada por esse casamento perfeito entre ambição e fanatismo, a mãe de Constantino inventou o túmulo de Cristo. Mais tarde, a Igreja Católica, já na condição de potência imbatível, sobretudo pela transformação do cristianismo em religião de Estado pelo imperador Teodósio, em 380, forjou o “santo sudário”, este, desmascarado inúmeras vezes pela ciência.

De Cristo e Constantino a Adolf Hitler. Contrariando uma certa classificação, Onfray exclui Hitler do rol dos ateus. Na verdade, Hitler teria sido um cristão, mais exatamente um católico. As relações entre o Partido Nacional-Socialista e o papa Pio XII mostram muito bem essa filiação religiosa do ditador alemão e também a simpatia política e ideológica do pontífice. O ponto de confluência ideológica e política entre a Igreja Católica e o nazismo foi o combate impiedoso aos judeus e aos comunistas. Uma consequência prática dessa aliança tácita pode ser verificada nas excomunhões do Vaticano no período da ascensão de Hitler ao final da Segunda Guerra. Dentre os excomungados, vários pensadores comunistas e escritores judeus, nenhum ideólogo nazista. Livros de Jean-Paul Sartre, André Gide e de Simone de Beauvoir foram todos para o Index. Já o Minha Luta, o testamento político de Hitler, não. Onfray relata ainda que quando Hitler morreu uma missa foi realizada em sua homenagem e vários mosteiros foram utilizados para acobertar os líderes nazistas em fuga. Mais: no auge do nazismo na Alemanha, enquanto comunistas, homossexuais, judeus, testemunhas de Jeová e ciganos eram perseguidos e barbarizados, a Igreja Católica alemã manteve-se ilesa, para não dizer protegida.

O cristianismo de Hitler tinha como fonte ideológica a passagem bíblica dos mercadores do templo, quando o personagem Jesus Cristo, enfurecido, expulsa os judeus que faziam negócios dentro de um espaço sagrado. Tal passagem foi interpretada por Hitler e pelos ideólogos nazistas como uma declaração explícita de anti-semitismo proferida pelo próprio Cristo. Portanto, o Jesus do nazismo era bastante diferente daquele Jesus compassivo e pacífico que oferece a outra face ao inimigo. Ao que parece, esse Cristo anti-semita e neurastênico era também o Cristo do papa Pio XII e da cúpula da Igreja. Para evidenciar ainda mais essa aproximação entre o nazismo e a Igreja Católica, Onfray ressalta que ressuscitar o império cristão de Constantino foi o sonho fracassado de Hitler e de Pio XII, bem como fazer valer rigorosamente as máximas de Paulo de Tarso, dentre elas, a de queimar livros e a de obedecer cegamente às autoridades políticas.

Nem mesmo o próprio ateísmo escapou da retórica afiada e iconoclástica de Onfray. Ele chama a atenção no seu Tratado para a indigência bibliográfica a respeito do tema e denuncia o esforço da história da filosofia oficial para marginalizar as obras dos autores ateus em benefício de correntes e doutrinas de índole e raiz teológicas. Do mesmo modo critica os equívocos e a leviandade de livros como História do Ateísmo, de George Minois, e L’Atheísme, de Henri Arvon, dentre outros, os quais empregam o conceito de ateísmo indiscriminadamente, sem nenhum rigor, chegando a classificar de ateus filósofos como Epicuro, Lucrécio, Hobbes, Espinosa e até Pierre Bayle. Onfray afirma com veemência que o primeiro pensador declaradamente ateu foi Jean Meslier, uma vez que ninguém antes dele sustentou textualmente a inexistência de Deus. Embora atomistas, Epicuro e Lucrécio fazem referência a deuses de átomos. Quanto a Hobbes, seus textos sugerem uma profissão de fé numa divindade, não necessariamente cristã. O mesmo poderíamos dizer de Espinosa, para o qual Deus sive natura. Já no caso de Bayle, mesmo mostrando simpatia por uma sociedade ateia, seus textos estão longe de permitir defini-lo como um ateu.

Com o intuito de produzir o ateísmo como uma etapa necessária rumo à superação definitiva do niilismo, a ateologia de Onfray propõe a possibilidade de se edificar “uma verdadeira moral pós-cristã”, ou seja, uma visão de mundo dionisíaca, absolutamente laica e fundamentada nas ciências, nas artes e nas filosofias lúcidas. Para isso é essencial o debate, substituindo assim as fogueiras, as perseguições e as censuras, e um diálogo pautado pelo respeito à diversidade e aos pontos de vista antagônicos, por mais contundentes e veementes que eles sejam. Que as teses e os argumentos, sejam eles ateus, religiosos ou céticos, possam se enfrentar sob um céu de total liberdade e tolerância, possibilitando aos espectadores do conflito decidirem-se sobre eles conforme o juízo de cada um. Nisso consistiria o “fundamentalismo ateu” da ateologia de Michel Onfray.

Paulo Jonas de Lima Piva – Doutor em Filosofia pela USP. Pesquisador de pós-doutorado pela FAPESP. Professor da Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, SP – Brasil, e-mail: [email protected]

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O Homem, o Estado e a Guerra: uma análise teórica | Kenneth N. Waltz

Um dos desafios que põe à prova acadêmicos de Relações Internacionais desde o término da II Guerra Mundial é a elaboração de teorias que combinem alcance explicativo, coerência e parcimônia. Kenneth Waltz, um dos mais destacados pensadores de Relações Internacionais ainda vivo, é lembrado por ter tentado superar esse desafio – especialmente com Theory of International Politics. Com essa obra, Waltz tentou formular uma teoria sistêmica das Relações Internacionais, ficando reconhecido por ser fundador da corrente de pensamento que se convencionou chamar neo-realismo. Prova do valor de seu trabalho é o fato de o Professor Emérito da Universidade de Califórnia, Berkeley, ter sido agraciado com o prêmio James Madison – concedido pela American Political Science Association – por sua contribuição à ciência política.

O Homem, o Estado e a Guerra, cuja primeira edição data de 1959, é a publicação da dissertação de doutorado, Man, the State and the State System in Theories of the Causes of War, defendida em 1954 na Universidade de Columbia. Segundo o próprio Waltz, esse livro não apresentou uma teoria das Relações Internacionais, mas assentou as fundações para que uma fosse elaborada. A intenção não foi construir modelos a partir dos quais fosse possível a dedução de políticas em prol da paz, mas a de fazer um exame dos pressupostos em que modelos existentes estão baseados. Partiu-se do princípio de que, para se explicar como alcançar a paz, deve-se compreender as causas da guerra. Essas causas são explicadas em três níveis de análise. Leia Mais

Navegantes/ bandeirantes/ diplomatas: um ensaio sobre a formação das fronteiras do Brasil | Synesio Sampaio Goes Filho

O livro de Synesio Sampaio aborda um tema relevante para um campo de experiências particularmente férteis no Continente Americano, a saber o processo de formação de fronteiras. Neste livro o autor apresenta a formação das fronteiras brasileiras dentro de um contexto complexo, marcado pelas especificidades de um processo histórico de descoberta e colonização européias. Os assuntos desenvolvidos são: descobrimento, ocupação e fronteira, respectivamente relacionados aos navegantes, bandeirantes e diplomatas, assinalando o papel desses três agentes sociais, dotando-os de singularidade à medida que o livro seleciona alguns e salienta seus nomes e histórias particulares, apresentando seus feitos e obras.

O livro está estruturalmente divido em três partes. A primeira designada “A descoberta do Continente”, a segunda, “A ocupação do território brasileiro”, a terceira, “As negociações dos limites terrestres”. Leia Mais

O limpo e o sujo, uma história da higiene corporal – VIGARELLO (HE)

VIGARELLO, Georges O limpo e o sujo, uma história da higiene corporal. São Paulo: Martíns Fontes, 1996. Resenha de: JOANILHO, André Luiz. O limpo e o sujo: anotações sobre um livro. História & Ensino, Londrina, v.4, p. 173-176, out. 1998.

Um texto límpido. Não é bom começar uma resenha sobre um livro fazendo trocadilho com o título e objeto, porém é irresistível. A objetividade traçada desde o princípio, a clareza da linguagem, cria uma imagem muito precisa sobre o que Georges Vigarello propõe no seu livro O limpo e o sujo, uma história da higiene corporal, da Martins Fontes, 1996. Dividido em quatro partes que ganharam títulos apropriados: “Da água festiva à água inquietante”, “A roupa branca que lava”, “Da água que penetra o corpo àquela que o reforça” e “A água que protege”. A propriedade dos títulos está no texto que segue cada um, pois apresenta justamente o que foi anunciado.

Viajando no tempo desde o século XIV, chega até meados do nosso século, tratando de um único assunto, a higiene corporal. Mas, surpresa, não se trata de como os homens evoluíram no trato com o seu próprio corpo, e sim de uma linha sinuosa ao longo dos séculos que parte do banho medieval e chega no banho moderno.

Insuspeitamente acreditamos que os banhos medievais tinham o mesmo caráter dos banhos contemporâneos: limpar. Ledo engano, eles não visam a higiene, e sim a lubricidade (desculpem a palavra). A umidade dos banhos é prenúncio dos prazeres da cama. Os banhos são tomados em estabelecimentos específicos, porém, como contíguos à bordéis, tavernas, e eles visam a excitação e não ahigiene.

Tudo muda. Estamos em plena Renascença. O temor das epidemias se associa ao temor das águas. Água que enlanguesce os músculos, os orgãos, abre os poros aos miasmas com as suas doenças. O conselho é evitar de toda forma os banhos e muito mais a imersão completa. O ideal é manter o corpo limpo através de uma segunda pele: a roupa branca justa, limpa e, de preferência feita de finos tecidos -é claro que isto se aplica à nobreza. Ela absorveria as impurezas naturais expelidas pelo próprio corpo e manteria uma certa proteção dos ares malsãos. No entanto, por mais contraditório que seja, a fuga dos banhos não significa que o período barroco foi mais descuidado da higiene corporal, muito pelo contrário, é nesse momento que surge a idéia de limpeza mais íntima, pois o que está além do olhar é que deve ser cuidado, ou melhor “o íntimo é gradualmente incluído no visível” (p. 251).

É o espetáculo do que é visível dentro do processo civilizatório, isto é, o processo de recalcamento das pulsões na sociedade (podemos lembrar do consagrado estudo de Norbert Elias, O processo civilizatório, da Jorge Zahar, sobre a etiqueta no Antigo Regime, associando-a ao desejo de distinção de classe por parte da nobreza). Aquilo que é vergonhoso e não deve ser visto, e ao contrário, o que é valorizado e todos devem ver.

De novo tudo muda. Insinua-se novas idéias sobre o corpo e as correspondentes práticas de limpeza. O vigor do organismo deve ser estimulado agora pela água. Assim passamos da água lúbrica, para aquela que é veículo de doenças e no século XVIII, para água que revigora. Representações de classe no trato do corpo e a limpeza. Para uma burguesia que quer conquistar é preciso corpos rígidos, fortalecidos, longe do enlanguecimento corporal provocado pelas representações que a nobreza “ociosa e devassa” tem de si mesma. A ciência do final do século XVIII corrobora a imagem que a burguesia tem de si ao legitimar que a limpeza protege e reforça o corpo. O banho frio enrijece, revigora o organismo, enquanto que o banho quente enlanguesce.

Durante o século XIX vamos assistir o reforço dessa idéia de vigor proporcionado pela limpeza, e mais ainda, a limpeza íntima é fundamental nesse novo processo. O asseio corporal passa a ser a salvaguarda contra as doenças, mas ao mesmo tempo há um avanço inexorável do pudor. Nos séculos XVII e XVIII a roupa branca íntima representava o ideal de limpeza e delicadamente deveria ser notada pelos outrosrendas saindo nos punhos, ou visíveis através de decotes ousados, sendo comum os camareiros pessoais participarem da higiene do patrão. Já no século XIX se torna impensável a presença de alguém estranho nos momentos de higiene pessoal, muitas vezes se estendendo aos familiares.

Esse novo pudor, inventado pela burguesia, mostra as práticas que envolvem o corpo nas sociedades capitalistas, e com o avanço da ciência, essa higiene se personaliza cada vez mais. Mas, de novo a surpresa. A paranóia em relação aos micróbios, desvelados como agentes patológicos, leva a idéia de higiene ao paroxismo. Médicos, higienistas propõem, na passagem do século, a lavagem das paredes, a desinfecção das casas, rígidas quarentenas, uma perseguição sem tréguas à sujidade e à falta de asseio. E com isso triunfa a idéia do banho diário e a higiene íntima. Porém, é demonstrável que a essa nova concepção de higiene é muito mais uma representação que a sociedade ocidental criou sobre o corpo.

As cidades, a arquitetura, os fluxos de água, ar, esgotos, fazem parte desse imaginário sobre o corpo e sobre o indivíduo. É antes uma psicologia, sensações que se traduzem em práticas cotidianas. O bem-estar, o consumo, o temor do que não é visível. Assim, a higiene não é simples imperativo com bases científicas, é antes de mais nada, uma imagem que a sociedade produz sobre si mesma, sobre os indivíduos, sobre os cuidados de si.

Pode-se afirmar que na realidade o trabalho de Geoges Vigarello trata de parte da história da idéia de intimidade. Entretanto, além dessa viagem surpreendente, uma outra questão chama a atenção do leitor mais atento, e que é uma vantagem para os desatentos: não há enunciações teóricas, ou melhor, o autor prescinde da citação de autoridade, o que lhe dá um ganho, pois não precisa enunciar métodos e nem complicadas fórmulas para compreender o objeto, e não que o autor não tenha reflexão. Atentamente transparece vários conceitos teóricos, mas que, pelo menos é o que transparece, não são citados pela segurança que o autor demonstra nas suas discussões, dispensando o recurso à autoridade. É desnecessário citar este ou aquele teórico para corroborar com as conclusões da pesquisa. Dispensável porque antes de serem aqueles que conformaram o objeto sem o saber, eles aparecem como inspiradores da análise e conclusão.

Ele bebe em vários filósofos e historiadores. Alguns aparecem claramente, outros nem tanto. Foucault, para começar, mas também Norbert Elias -já destacado acima. Além destes cabe lembrar Jacques Le Goff, Georges Duby e Roger Chartier, não por estarem citados, mas por trabalharem com o que se convencionou chamar de mentalidades. Há também que lembrar de Pierre Bordieu, este sociológo, e que trabalhou com a noção de hábito. Isso para não apontar outros mais clássicos, como Freud, para questões da psicologia, e Marx para as questões de classe. Porém, apesar de toda essa inspiração, o autor não faz referências diretas a elas, e por isso que os leitores mais desatentos, ou melhor, o leitor não especialista em história pode ter o prazer de ler um grande livro, e ainda por cima refletir um pouco sobre si mesmo.

André Luiz Joanilho – Professor do Departamento de História -Universidade Estadual de Londrina -PR.

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