Trabalhadores livres e escravizados no Mundo Atlântico / Revista Maracanan / 2019

O presente número da Revista Maracanan traz, primeiramente, o dossiê “Trabalhadores livres e escravizados no Mundo Atlântico”. Os estudos sobre os mundos do trabalho, produzidos no Brasil, têm passado por significativas transformações nos últimos anos.[1] Uma das mais significativas diz respeito às investigações incluírem, a partir principalmente dos anos 2000, os escravizados como parte fundamental da história do trabalho brasileira. Nesse sentido, as pesquisas ressaltaram a importância de questionar a formação da classe trabalhadora no nosso país como sendo composta unicamente por operários livres, homens, brancos, em sua maioria de origem europeia e apontam à necessidade de também serem analisadas as relações entre trabalhadores livres e escravizados, bem como as formas de organização e manifestação destes. Busca-se, assim, o diálogo necessário entre os historiadores da escravidão e os estudiosos das práticas políticas e culturais dos trabalhadores urbanos pobres e do movimento operário.[2]

Aliada a essa transformação na historiografia nacional, ressalta-se também uma mudança no cenário internacional, com a introdução da perspectiva da história global do trabalho. Essa propõe um conceito mais amplo de trabalhador, e expõe que o trabalho livre assalariado era apenas uma das formas de trabalho, que incluía ainda a escravidão. Outro ponto fundamental é apontar que os trabalhadores assalariados eram bem menos livres do que se supõe, e que as barreiras entre servidão e liberdade eram muito fluidas. A história global do trabalho busca ainda investigar a interação e conexão entre diferentes localidades.[3]

A ampliação do conceito de trabalhador possibilitou incluir aqueles e aquelas que labutavam fora das fábricas e haviam sido invisibilizados até então. Nesse sentido, o primeiro artigo deste dossiê trata das trabalhadoras ligadas ao serviço doméstico carioca na virada do século XIX para o XX, que, apesar da sua intensa participação no mercado de trabalho da cidade, não receberam atenção dos estudiosos até muito pouco tempo. O texto de Natália Peçanha apresenta uma multiplicidade de agentes – tais como libertos, livres, nacionais e imigrantes –, e aponta como as experiências deles se entrelaçavam no serviço doméstico em um momento histórico em que as noções de liberdade e de trabalho livre e assalariado ainda se conformavam.

Os debates em torno das relações entre trabalho livre e escravo também estiveram no cerne do surgimento da Escola Agrícola da Bahia, inaugurada em 1877, em São Bento das Lages, no interior da Bahia. Idalina Freitas, em seu artigo, promove um diálogo entre os estudos da escravidão, do pós-abolição e dos mundos do trabalho ao tratar do espaço da escola como o resultado de um projeto de instrução pública para o pós-abolição. A construção da escola e do seu projeto político envolveu a mão de obra livre e escravizada e a preocupação com a instrução pública voltada para o trabalho, principalmente no seu aprimoramento agrícola, visando a formação de um operariado agrícola modernizado e mais competente, contrapondo-se ao que seria a agricultura praticada por escravos e ex-escravos, entendida naquele momento como exercida de forma menos “profissional”.

Os dois últimos artigos têm a escravidão como ponto de partida para pensar os mundos do trabalho na sociedade do século XIX em dois locais: Alagoas e Rio de Janeiro. No texto de Fábio Castilho, a condenação à morte de um escravo é o ponto de partida para relacionar a representatividade da escravidão n’O jornal do Pilar, de Alagoas, em um contexto de avanço das ações abolicionistas, mas ainda marcado por violências e por leis que reforçavam o castigo físico e a pena de morte para os crimes cometidos por escravos. A condenação à morte ou penas mais violentas contra os escravizados que cometessem crimes ou revoltas foi resultado de ações escravas da década de 1830 e que marcaram a sociedade escravista. Na década de 1870, período estudado por Castilho, a unanimidade por esse tipo de execução já não existia e por isso o debate ocorreu no principal jornal da cidade, e analisado pelo autor, possibilitando uma visão sobre as relações escravistas de uma província distante da Corte. Castilho finaliza com a análise do Censo de 1872, e apresenta que os dados para a região possibilitam verificar que os escravos majoritariamente trabalhavam na agricultura e no serviço doméstico, tendo alguns poucos cativos realizado algum trabalho manual mais especializado.

Já o artigo de Iamara Viana & Flavio Gomes traz a representatividade do corpo africano diante do mercado de mão de obra escravizada no Rio de Janeiro na primeira metade do XIX. Entre tensões e expectativas sobre o uso dessa mão de obra para o trabalho escravo, os autores usam processos cíveis e outras descrições, principalmente nos jornais, para mostrar a complexidade do corpo africano e seu uso para o trabalho escravizado. Através da análise de uma rica documentação do Arquivo Nacional, referente aos africanos remetidos a casa de correção, eles conseguiram elencar características comuns a esses corpos que somados aos discursos médicos foi possível perceber a construção de uma retórica e outras normas para o uso desses homens e mulheres para o trabalho escravizado. Importante ressaltar que a descrição do corpo africano fez parte do processo de venda e anúncios de homens e mulheres para o trabalho escravo desde o XVIII e se intensifica no Brasil, principalmente nos anúncios de venda e de fugas de algum escravizado africano.

Finalizamos o dossiê com uma entrevista com Fabiane Popinigis, professora da UFRRJ e coordenadora do Grupo de Trabalho – Mundos do Trabalho (GT-MT). Nesta entrevista, debatemos principalmente a trajetória recente da historiografia dedicada aos mundos do trabalho no Brasil, cujo tema do presente dossiê, as relações entre trabalhadores livres e escravos, tem ganhado cada vez mais destaque.

Esse número da Revista também conta com três contribuições na seção de artigos livres. O primeiro, de Daniel Venâncio & Euclides Freitas, diz respeito à fundação do Oliveira Sport Club, do Oeste de Minas em 1916, e a relação entre a elite e os eventos festivos ocorridos no clube. O texto seguinte, de Sandro Gomes, trata das eleições para deputado federal entre os anos de 1915 e 1918 no Estado do Paraná no que se refere às campanhas e ao desempenho eleitoral dos candidatos ao cargo. O terceiro texto, por Francisco Monteiro & Amanda Leal, constitui-se enquanto uma exposição de metodologia da pesquisa e de organização de acervos, a partir do trabalho realizado com os manuscritos eclesiásticos guardados na Paróquia de Nossa Senhora da Vitória, Diocese de Oiras, no Piauí. O último texto da seção, de autoria de Nívia Pombo, é uma interessante análise sobre as nomeações portuguesas para os cargos administrativos nas conquistas portuguesas entre 1796 e 1803, o perfil dos que ocuparam esses postos e o impacto da valorização dos saberes universitários na escolha para o exercício do cargo. Finaliza o presente número a nota de pesquisa de José Lúcio Nascimento Júnior, referente ao Congresso Internacional de História da América realizado pelo Instituo Histórico e Geográfico Brasileiro em 1922.

Notas

1.Para um panorama de quais foram essas mudanças, ver: BATALHA, Cláudio H. M. Os desafios atuais da história do trabalho. Anos 90, Porto Alegre, v. 13, n. 23-24, 2006.

2. A presença de análises sobre as relações entre trabalhadores livres e escravizados na historiografia do trabalho no Brasil recente foi debatida pelos seguintes textos: TERRA, Paulo Cruz; POPINIGIS, Fabiane. Classe e raça na história do trabalho no Brasil (2001-2017). Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 32, n. 66, 2019; NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Trabalhadores negros e o “paradigma da ausência”: contribuições à história social do trabalho no Brasil. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 29, n. 59, 2016.

3. A principal obra a apresentar a proposta da história global do trabalho é: LINDEN, Marcel van der. Trabalhadores do mundo: Ensaios para uma História Global do Trabalho. Campinas, Ed. Unicamp, 2013. No que diz respeito a alguns desdobramentos dessa perspectiva, ver: DE VITO, Christian. New perspectives on global labour history. Introduction. Workers of the World, v. 1, n. 3, 2013

Renata Figueiredo Moraes – Professora Adjunta de História do Brasil, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; Mestre e graduada em História pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected] CV Lattes: http: / / lattes.cnpq.br / 7422043520205798

Paulo Cruz Terra – Professor Adjunto de História do Brasil, do Instituto de História, da Universidade Federal Fluminense. Doutor e Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense; graduado em História pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected] CV Lattes: http: / / lattes.cnpq.br / 3005228142189797


MORAES, Renata Figueiredo; TERRA, Paulo Cruz. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.21, 2019. Acessar publicação original

Acessar dossiê