Comemorações 2022: memória, historiografia e novas perspectivas /Revista Maracanan/2022

Caros Leitores,

Neste ano de 2022 que ora termina, registraram-se os aniversários de vários acontecimentos históricos, abrangendo o Bicentenário da Independência do Brasil, os centenários da Semana de Arte Moderna, do movimento tenentista, da fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), entre outras datas relevantes, como a entrada do Brasil na Grande Guerra, a crise dos mísseis em Cuba, o atentado nas Olimpíadas de Munique, o impeachment do presidente Fernando Collor, o massacre do Carandiru, o atual Código Civil Brasileiro, o evento Rio+20, para mencionarmos apenas alguns. Leia Mais

80 anos da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial: aspectos políticos, econômicos, culturais e regionais | Revista Maracanan | 2022

Destrocos de baleeira no litoral de Estancia SE proximo ao local do ataque ao Baependi pelos submarinos alemaes 1942 Imagem Agencia O Globo
Destroços de baleeira no litoral de Estância (SE), próximo ao local do ataque ao Baependi pelos submarinos alemães (1942) | Imagem: Agência O Globo

O ano de 2022 demarca oito décadas de uma importante efeméride da história do Brasil contemporâneo: a entrada do país na Segunda Guerra Mundial, em 22 de agosto de 1942, com a declaração de guerra aos países do Eixo. Embora tal participação tenha sido modesta quando comparada à empreendida pelas potências beligerantes daquele conflito mundial, ela foi, sem dúvida, relevante. A princípio, a política externa brasileira, durante os anos 1930, caracterizouse por uma “equidistância pragmática”, conforme definida por Gerson Moura. Significava que o governo Vargas havia evitado estabelecer alianças comerciais rígidas com qualquer uma das potências internacionais, em busca de, com isso, obter vantagens comerciais. Assim, poderia explorar as oportunidades econômicas trazidas pela disputa entre Alemanha e Estados Unidos por influência na América do Sul (MOURA, 1986, p. 28).

Esse direcionamento foi seguido mesmo após o início da Segunda Guerra Mundial, em setembro de 1939, quando a nação brasileira optou pela neutralidade em relação a tal conflito. Contudo, o ataque japonês à base de Pearl Harbor, em dezembro de 1941, e a consequente declaração de guerra dos Estados Unidos ao Eixo provocaram uma pressão norte-americana para que o Brasil estreitasse mais as relações com tal país e alterasse a linha de política externa que vinha então adotando. A partir daí, estabeleceram-se negociações entre as duas nações, que não foram fáceis, pois muitos dos integrantes do governo Vargas simpatizavam com o Eixo, como Góis Monteiro, chefe do Estado Maior, e Eurico Gaspar Dutra, ministro da Guerra. Leia Mais

Saberes e poderes no universo ibérico: discursos da cultura escrita na modernidade (Séculos XVI-XIX) |  Revista Maracanan | 2021

Nova typis transacta navigatio Novi orbis Indiae Occidentalis
[PLAUTIUS, Caspar (fl. 1621)]. Nova typis transacta navigatio Novi orbis Indiae Occidentalis… nunc primum e variis scriptoribus in unum collecta… Authore… Honorio Philophono. [Linz], 1621 | Imagem: Christie’s

A partir da década de 1990 houve um significativo crescimento de pesquisas no âmbito da historiografia nacional e internacional voltadas à compreensão da cultura escrita na modernidade. Essas investigações têm abarcado o período compreendido entre os séculos XVI e as independências americanas, no raiar do século XIX, e problematizado a produção, a circulação, o uso e a conservação de manuscritos e impressos vinculados aos seus usos políticos, sociais, religiosos, pedagógicos, culturais tanto na metrópole quanto no território colonial. Intelectuais como Roger Chartier, Robert Darnton, Antonio Castillo Goméz, Fernando Bouza e Diogo Ramada Curto têm contribuído, sobremaneira, para o avanço do conhecimento e da compreensão acerca da circulação de ideias através de seus trabalhos sobre a história do livro e da leitura e da história da cultura escrita global, que interligam manuscritos, impressos e oralidade. Leia Mais

Raça, Ciência e Saúde no contexto da escravidão e do pós-Abolição | Revista Maracanan | 2021

Maconha
Maconha | Foto: Notícias Chapecó

Durante as últimas duas décadas tem crescido o interesse historiográfico por temas como saúde, doença e ciência e, em especial, a saúde da população negra. A ampliação do debate sobre as múltiplas intersecções entre esses campos de análise e sociedade é de extrema relevância para reflexões acerca do Pensamento Social Brasileiro. Além disso, tem contribuído para a construção de novos campos de estudo, trazendo à tona pesquisas inovadoras tanto para o campo da História das Ciências e da Saúde como para a História do Negro no Brasil.

A Revista Maracanan publica o Dossiê Temático “Raça, Ciência e Saúde no contexto da escravidão e do pós-Abolição” em um momento crucial para os estudos em Saúde no Brasil e, também, para a História do Brasil. A relação entre saúde, doença e ciência tem sido posta em evidência, por exemplo, com pesquisas que apontam que a população negra tem sido a mais afetada pela pandemia da Covid-19 no Brasil, tanto em número de mortos como também em termos socioeconômicos.[1] Leia Mais

História Regional: novas perspectivas / Revista Maracanan / 2021

A historiografia recente interpreta “região” como um conceito polissêmico, não apenas ligado a recortes espaciais, construídos por entidades político-administrativas, tais como os Estados-nacionais, como também a questões de identidade e de representação. O presente número da Revista Maracanan traz o dossiê “História Regional: novas perspectivas”, aqui vislumbrada como um campo de pesquisa em franco desenvolvimento, partindo de problemáticas concernentes às relações entre espaço físico e espaço social, referendando que toda divisão regional parte de uma definição política. Os estudos aqui apresentados ressaltam a importância de estudos sobre o Brasil em suas múltiplas diversidades e abordagens, que vão além das esferas de poder mais tradicionais. A região também é percebida em sentido ampliado, evocando o campo das lutas simbólicas, a partir do qual, portanto, tornar-se-ia possível investigar aspectos relativos aos debates sobre identidade(s) e memória social.

Diante disso, o dossiê “História Regional: novas perspectivas” reúne trabalhos que partem da perspectiva da história regional aqui explicitada, sem restrições temporais ou epistemológicas, permitindo um diálogo polissêmico e original. Inicialmente apresentamos duas entrevistas sobre História Regional como campo de estudos. As professoras Alessandra Izabel de Carvalho e Maria Silva Leoni falam de suas trajetórias, de como entendem e trabalham com História Regional e analisam as potencialidades e dificuldades da área no Brasil e na Argentina, respectivamente.

Essas entrevistas apresentam o debate que segue com o primeiro artigo de Maria Alice Ribeiro Gabriel intitulado “‘A doçura que envolve’: a culinária brasileira do Nordeste em Baú de Ossos”. Nele a autora faz uma análise da obra do médico e memorialista brasileiro Pedro da Silva Nava, destacando o valor histórico das referências do autor sobre alimentos, em especial a cozinha regional nordestina no século XIX e princípios do século XX. O artigo apresenta uma análise histórico-comparativa para examinar os temas relativos à alimentação e à culinária que emergem de episódios biográficos sobre a família Nava, além de aspectos culturais e sociais de pratos populares e tradicionais do Nordeste brasileiro.

O segundo artigo, de autoria de Clovis Antonio Brighenti & Osmarina de Oliveira, intitulado “Conflitos territoriais como espaço de disputas entre memória e história: Análise de processos judiciais da Itaipu Binacional contra os Guarani no Oeste do Paraná” desloca o debate sobre região para o sul do Brasil e, através da análise de algumas ações judiciais envolvendo a disputa por terra entre o povo Guarani e o Estado, os autores analisam um discurso construído em torno de elementos que confluem para desconsiderar a história Guarani e desconstruir a memória da ocupação territorial regional, apresentando o estado atual do debate sobre o tema.

O artigo de Fernando Vojniak, “Cultura escrita na Fronteira Sul: Uso políticos da escrita entre os Kaingang” dá continuidade ao debate envolvendo indígenas e questões regionais ao analisar os temas da cultura escrita e das práticas intelectuais indígenas, campos ainda pouco explorados pela historiografia. O foco está na apresentação panorâmica das possibilidades de análise em perspectiva histórica das práticas intelectuais e dos usos políticos da escrita entre os indígenas, especialmente os Kaingang.

O quarto artigo é de Marcelo Ferreira Lobo & Aline de Kassia Malcher Lima, intitulado “Jacobinos da Amazônia: Nacionalismo, trabalho e violência no Pará (1890-1920)”. Nele os autores analisam as tensões entre nacionais e estrangeiros em Belém do Pará nas primeiras décadas da República. Para os autores, a presença significativa de imigrantes, em grande parte portugueses, na cidade de Belém, proporcionou o acirramento de tensões étnicas, onde nacionalismo transfigurou-se em antilusitanismo e servem que gancho para o estudo da difusão de ideias nacionalistas entre os anos de 1890 a 1920 no Pará e as implicações no mundo do trabalho amazônico.

O quinto artigo é “Sobre os Dízimos e os Direitos de Saída na São Paulo Provincial” de Camila Scacchetti & Luciana Suarez Galvão e busca quantificar a trajetória ascendente do dízimo, posteriormente denominado direitos de saída, nas finanças públicas paulistas durante o século XIX. Para as autoras, com essa análise documental é possível traçar um paralelo entre a evolução cafeeira e as expectativas arrecadatórias provenientes do imposto incidente sobre a exportação na região de São Paulo.

Na sequência, “História regional sob a perspectiva dos processos civilizadores: possibilidades de pesquisa a partir do caso de Monte Alegre – PR”, artigo de Ana Flávia Braun Vieira & Miguel Archanjo de Freitas Junior, traz o debate sobre a cidade-empresa de Monte Alegre (atual município de Telêmaco Borba, Paraná), de propriedade das Indústrias Klabin. Os autores buscam compreender como a região conhecida como sertões do Tibagi se tornou uma referência para a industrialização e urbanização nacional de meados do século XX e o fazem analisando o conteúdo das crônicas de Hellê Vellozo Fernandes, publicadas no jornal O Tibagi entre 1948 e 1964. A partir desses textos são identificadas e apresentadas as sensibilidades que orientaram o processo de civilização naquela formação social, as esferas da vida às quais as publicações eram dirigidas e os processos de adequação comportamental e as ações de resistência.

Em “De Straßburg a Strasbourg: Marc Bloch, Lucien Febvre e o nascimento dos Annales” Jougi Guimarães Yamashita nos apresenta uma discussão bastante interessante sobre a importância da Universidade de Estrasburgo no processo de criação da revista Annales d`Histoire Économique et Sociale, liderado por Marc Bloch e Lucien Febvre. Estabelecendo uma relação alvissareira com a proposta do dossiê, o autor estabelece diálogos entre as estratégias políticas de reconhecimento da Alsácia como região francesa a partir de 1919, após o domínio alemão de quase quarenta anos. A partir da pesquisa realizada em algumas revistas históricas, Yamashita propõe uma análise dos esforços dos renomados editores em afirmar a região em questão como francesa, bem como a relação desse processo com a editoração dos Annales.

A seguir, Samira Peruchi Moretto, em seu artigo intitulado “O desmatamento e reflorestamento no Oeste de Santa Catarina nas décadas de 1960 e 1970”, propõe um estudo sobre o desmatamento do estado de Santa Catarina e as práticas empreendidas, sem preocupações ambientais, durante as décadas de 60 e 70 do século XX, de projetos considerados pela autora como “de cunho imediatistas”. A historiografia mais recente tem se aprofundado nas relações entre a História Ambiental e a História Regional e a pesquisa apresentada pela autora em seu artigo demonstra com êxito esses debates, a partir de uma base documental bastante diversificada.

O décimo artigo que compõe o dossiê se intitula “Os indesejados da seca: a imagem do sertanejo desde as narrativas da Revista Instituto do Ceará ao Campo de Concentração do Alagadiço (1877-1915)”, de autoria de Leda Agnes Simões de Melo & Camila de Sousa Freire, é um estudo sertanejo. Seu mote é a criação do primeiro campo de concentração do estado, o campo do Alagadiço, na seca do ano de 1915. Sua intenção é propor uma análise do discurso construído, na época, pelo Instituto do Ceará e por uma elite em torno dessa instituição, sobre a região, o pioneirismo cearense e a abolição da escravatura.

O próximo artigo que apresentamos é intitulado “No Asilo e no orfanato: crianças pobres e doentes em Goiás na primeira metade do século XX”, de autoria de Rildo Bento de Souza & Lara Alexandra Tavares da Costa. O trabalho toma como foco duas instituições de caridade leigas para crianças pobres e doentes com o objetivo de realizar um estudo sobre as relações de poder na cidade de Goiás, relacionando as estruturas políticas regionais com as formas de caridade assistencial adotadas pelas elites da cidade.

A seguir temos um artigo de autoria de Raimundo Hélio Lopes, “O general do Norte: Juarez Távora e o movimento pelo seu generalato no imediato pós-30”. O autor, através de pesquisas realizadas na documentação do arquivo pessoal de Juarez Távora e no acervo de imprensa da região norte, analisa as estratégias adotadas por Juarez Távora e seu grupo para tomar e demarcar a região, na conjuntura política do pós Revolução de 1930.

“Os agentes não humanos na construção da paisagem da Cidade-Parque: História da Arborização de Brasília-DF (1960-1980)”, assinado por Marina Salgado Pinto & José Luiz de Andrade Franco é mais um estudo que se vale das relações estabelecidas pela historiografia recente entre História Regional e História Ambiental. É apresentada uma análise feita sobre o processo de arborização de Brasília nas décadas de 1960 e 70. Considerando uma “visão utilitarista da natureza”, os autores problematizam a influência da mídia, dos agentes políticos e dos especialistas envolvidos no projeto na formação de um espaço urbano que controlasse a paisagem nativa e atendesse às demandas de controle dos poderes constituídos, harmonizando-as.

Fechando o nosso dossiê temos o artigo intitulado “O papel do Instituto Histórico na construção de memórias sobre a Baixada Fluminense (1971-1985)” de Eliana Santos Laurentino & Rui Aniceto Fernandes, analisa como o Instituto Histórico da Câmara de Duque de Caxias (RJ), foi útil para edificar uma memória de “Progresso” para o município, nos anos 1970. Explorando os usos do espaço físico do próprio Instituto em comemorações oficiais os autores sustentam que a memória não se constrói livremente, mas é alimentada por arquivos, aniversários e celebrações que foram usadas, nesse caso, para favorecer o diálogo com o regime político vigente.

Priscila Gomes Correa & Aline Farias de Souza são as autoras de “Política e Região: a Bahia da Modernização Conservadora e o primeiro governo estadual de Antonio Carlos Magalhães”. A nota de pesquisa, adjunta ao dossiê, apresenta um estudo baseado nos diálogos possíveis entre a História Regional e a História Política. Para tal, é feito uma análise do processo de construção do que as autoras chamaram de “região da Bahia da Modernização Conservadora”, durante o primeiro governo de Antônio Carlos Magalhães no estado (1971- 1975) e das mudanças provocadas no território baiano.

Na seção de artigos livres os trabalhos estão publicados “Quando os súditos se convertem em soldados: O pacto político ao Norte e ao Sul da América Portuguesa” de Christiane Figueiredo Pagano de Mello; “A narrativa poética de Joaquim Alves da Silva: polícia versus jagunços no oeste; e, sudoeste do Paraná” de Claércio Ivan Schneider; e, “A administração dos bens confiscados dos Jesuítas na Capitânia de São Paulo, 1760-1782” de Ilana Peliciari Rocha.

Por fim, este número é fechado com a tradução de um texto seminal de Martin Jay, professor Emérito da University of California-Berkeley. “‘Ei! Qual é a grande ideia?’: ruminações sobre a questão da escala na História Intelectual” discute sobre este ramo da historiografia a partir de uma proposta metódica que reconhece a ambiguidade semântica dos conceitos, por meio de uma leitura que considera a longa duração. O exercício de crítica do autor surge como uma resposta e alternativa à chamada História das Ideias tradicional.

Basta agora convidar o leitor a navegar no sumário do número 26 da Revista Maracanan. Desde já, desejamos boas leituras!

Isadora Tavares Maleval – Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense, Campos dos Goytacazes, Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional, Departamento de História. Doutora, Mestre e graduada em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0003-4882-7907 http: / / lattes.cnpq.br / 5004479701596418

Cláudia Atallah – Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense, Campos dos Goytacazes, Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional, Departamento de História. Professora do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Formação de Professores. Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense; Mestre e graduada em História e Especialista em História do Brasil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0001-5298-9939 http: / / lattes.cnpq.br / 2918940954094400

Susana Cesco – Professora Adjunta da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Escola de História. Professora do Mestrado Profissional em Ensino de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Mestre e graduada em História pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-1357-3743 http: / / lattes.cnpq.br / 1534977452527340

As organizadoras.


MALEVAL, Isadora Tavares; ATALLAH, Cláudia; CESCO, Susana. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.26, 2021. Acessar publicação original [DR]

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Poderes, trajetórias e administração no Império português (séculos XVI-XVIII) / Revista Maracanan / 2020

O presente dossiê tem como objetivo promover a produção científica e o debate sobre as relações de poder, as trajetórias e os conflitos entre os diversos representantes, oficiais e agentes régios no Império português entre os séculos XVI e XVIII. Relações essas que vão se dar a partir das dinâmicas presentes no âmbito das representações políticas, econômicas e socioculturais das instituições administrativas na América portuguesa.

Os estudos historiográficos acerca do estabelecimento de instituições (administrativas, religiosas, militares, etc.) e as relações de poder constituídas nas mais diversas escalas ganharam, nas últimas décadas, novos olhares a partir do constante diálogo com pesquisas desenvolvidas por historiadores estrangeiros, a incorporação de novas fontes documentais, aportes teórico-metodológicos e a constituição de bases de dados por grupos de pesquisas nas universidades brasileiras.[1] Desta maneira, este dossiê pretende aprofundar o debate sobre os poderes e as instituições constituídas na América portuguesa, enfocando: as redes de alianças políticas e econômicas, os espaços de poder, a fixação de instâncias administrativas, jurídicas e religiosas, regulação legislativa e a dinâmica local, comunicação e correspondência no império português, poder local e hierarquia administrativa, agentes coloniais / metropolitanos e suas trajetórias, poder e distinção social, disputas de jurisdição, fiscalidade e justiça. Estas temáticas estão presentes nas pesquisas que compõem este dossiê e nos permitem a compreensão dos múltiplos poderes constituídos a partir das diversas experiências particulares e coletivas vivenciadas no espaço colonial.

Neste sentido, o primeiro artigo do dossiê de autoria de Hugo André Flores Fernandes Araújo, “Casa, serviço e memória: origens sociais, carreira e estratégias de acrescentamento social dos governadores-gerais do Estado do Brasil (Século XVII)” propõe uma reflexão sobre as trajetórias sociais de sujeitos históricos que serviram a Coroa portuguesa em diversos territórios, problematizando o perfil característico deste grupo por meio das fontes e do diálogo com a historiografia.

As trajetórias sociais e administrativas também compõem o eixo de reflexão proposto por Tânia Maria Pinto de Santana para analisar a administração do Hospital de São João de Deus. A autora de “Império português, poderes locais e a administração do Hospital de São João de Deus da Vila de Cachoeira (Bahia, séc. XVIII)” investiga as práticas administrativas na referida instituição com vistas a perceber a importância deste espaço de poder para as elites locais.

Seguindo o eixo de análise acerca das trajetórias, o artigo intitulado “A trajetória de Pedro Barbosa Leal e as redes de conquistas no sertão da capitania da Bahia, 1690-1730” de Hélida Santos Conceição, evidência a trajetória do coronel e sertanista Pedro Barbosa Leal por meio do arrolamento de seus serviços prestados no processo de conquista dos sertões da Bahia. Ademais, a autora aponta o caso singular deste agente inserido nos espaços da nobreza e na atividade sertanista.

A constituição de um correio mensal entre São Luís e Belém por volta de 1730 é investigada por Romulo Valle Salvino em “Um correio pelo caminho de terra: as comunicações no estado do Maranhão e Grão-Pará nos princípios do século XVIII”. Para o autor, a instituição deste canal de comunicação pelo Governador do Estado do Maranhão e Grão-Pará, Alexandre de Sousa Freire, desenvolveu-se como um pioneirismo. A análise deste caso particular é realizada a partir da historicidade do sistema de correios do período moderno.

O artigo, “A Restauração de A gola e os pedidos de mercês o século XVII”, de Ingrid Silva de Oliveira Leite finaliza a seção de artigos do dossiê. A autora busca analisar o processo de requisição de mercês a Coroa portuguesa no contexto da Restauração de Angola, objetivando compreender a prestação dos serviços no conflito frente aos holandeses, a solicitação das mercês, o mapeamento destes sujeitos e se os mesmos foram agraciados em suas demandas.

As entrevistas realizadas com o professor Dr. George Felix Cabral e com a professora Dra. Laurinda Abreu também compõem o presente dossiê. A primeira delas, realizada pelos organizadores desta edição com o professor de História da Universidade Federal de Pernambuco, procura debater as percepções da História e seus desafios na contemporaneidade. A segunda entrevista, realizada por Thiago Enes com a professora da Universidade de Évora, aborda a “A controversa trajetória de Diogo Inácio de Pina Manique, Intendente-Geral da Polícia da Corte e do ei o”, conforme título.

A seção Notas de Pesquisa é composta por três estudos. A publicação do excelente estudo de Wanderley de Oliveira Menezes sobre “Administrar a justiça d’El ei o ei o e no Ultramar: a trajetória do bacharel José Álvares Ferreira (1772-1810)” abre a seção dialogando com o eixo temático proposto neste dossiê acerca dos poderes, trajetórias e administração no Império português. Em seguida, os trabalhos de Sheila Hempkemeyer sobre “Cidades e corpos – Histórias e movimentos” e o de Amanda Peruchi, intitulado “Abelhas ou Zangões: as primeiras normas para o profissional da farmácia do Brasil o início do século XIX” finalizam as notas de pesquisa.

A seção artigos conta com alguns estudos de temáticas diversas e importantes para contribuir com essa publicação, a saber: “Visitando obras historiográficas do Império Lusitano na Oceania: Um recorte da história de Timor-Leste”, de Hélio José Santos Maia & Urânia Auxiliadora Santos Maia de Oliveira; “Os artífices do poder: mecanismos de ascensão social em Guarapiranga (MG), 1715-1820”, de Débora Cristina Alves; “No fio da navalha: a questão do tráfico internacio al de escravos o Conselho de Estado” de Ricardo Bruno da Silva Ferreira “Tráfico de escravos e escravidão na trajetória do Barão de Nova Friburgo – Século XIX”, de autoria de Rodrigo Marins Marretto “O que a cidade de Ipásia tem a nos dizer sobre pixação? Leituras possíveis de As Cidade Invisíveis, de Ítalo Calvino, e São Paulo / SP ”, de Bianca Siqueira Martins Domingos, Fabiana Felix do Amaral & Silva e Valéria Regina Zanetti; “Imagens em versos e acordes: a represe tação da cidade de Feira de Santana através do seu hino”, de autoria de Aldo José Morais Silva; “A cidade ‘perigosa’ e sua instituição ‘tranquilizadora’: o Recife no contexto da reforma prisional do Oitocentos”, de Aurélio de Moura Britto; e, “As cidades e suas contribuições para o do ativo do dote e paz”, de autoria de Letícia dos Santos Ferreira.

Por fim, a edição conta ainda com a resenha de Igor Lemos Moreira sobre o livro A formação da coleção latino-americana do MoMA: Arte, cultura e política (1931-1943), publicado em 2019 pela Paco Editorial. Boa leitura!

Nota

1. Cf.: FRAGOSO, J.; BICALHO, M. F.; GOUVÊA, M. de F. (orgs.). Antigo Regime nos Trópicos: A Dinâmica Imperial Portuguesa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001; SAMPAIO, A. C. J.; ALMEIDA, C. M. C.; FRAGOSO. J. Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos: América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007; FRAGOSO, J.; GOUVÊA, M. F. (orgs.). Na trama das redes: política e negócio no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010; FRAGOSO, J.; SAMPAIO, A. C. J. (orgs.). Monarquia pluricontinental e a governança da terra no ultramar atlântico luso: Séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012; VENÂNCIO, R. P.; GONÇALVES, A. L.; CHAVES, C. M. D. G. (orgs.). Portugal e Brasil os séculos XVIII e XIX. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012; FRAGOSO, J.; GOUVÊA, M. (orgs.). O Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. 3 vols.; dentre outros

Referências

FRAGOSO, J.; BICALHO, M. F.; GOUVÊA, M. F. (orgs.). Antigo Regime nos Trópicos: A Dinâmica Imperial Portuguesa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

FRAGOSO, J.; GOUVÊA, M. (orgs.). O Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. 3 vols.

FRAGOSO, J.; GOUVÊA, M. F. (orgs.). Na trama das redes: política e negócio no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

FRAGOSO, J.; SAMPAIO, A. C. J. (orgs.). Monarquia pluricontinental e a governança da terra no ultramar atlântico luso: Séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.

SAMPAIO, A. C. J.; ALMEIDA, C. M. C.; FRAGOSO. J. Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos: América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

VENÂNCIO, R.P.; GONÇALVES, A. L.; CHAVES, C. M. D. G. (orgs.). Portugal e Brasil nos séculos XVIII e XIX. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012.

Rafael Ricarte da Silva – Professor Adjunto do curso de História da Universidade Federal do Piauí, Campus Senador Helvídio Nunes de Barros. Doutor e Mestre em História Social e licenciado em História pela Universidade Federal do Ceará; Especialista em Planejamento, Implementação e Gestão da Educação a Distância pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected] https: / / orcid.org / 0000-0003-4085-5401 http: / / lattes.cnpq.br / 1472762122361574

Reinaldo Forte Carvalho – Professor Adjunto do curso de História da Universidade de Pernambuco, Campus Petrolina. Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco; Mestre em História e Culturas pela Universidade Estadual do Ceará; Licenciado em História pela Universidade Federal do Ceará. E-mail: [email protected] https: / / orcid.org / 0000-0001-7930-8670 http: / / lattes.cnpq.br / 4435223781591585


SILVA, Rafael Ricarte da; CARVALHO, Reinaldo Forte. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.25, 2020. Acessar publicação original [DR]

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A cidade e suas imagens / Revista Maracanan / 2020

A definição de “cidade” e “imagem” não é tarefa epistemológica simples e o cruzamento das apreensões já propostas pode levar a um labirinto tão desafiador quanto atraente. São duas coordenadas complexas, cujas relações desenham planos intrincados, exigindo uma abordagem multidisciplinar. O que define uma cidade? Seu tamanho, suas formas, suas funções, seu contingente populacional? Suas redes de cultura? O que é uma imagem e quanta informação ou material sensível cabe numa tela, num quadro, num muro?

Os coordenadores deste dossiê, pesquisando diferentes temas, se formaram a partir dessas miradas sobre a cidade e suas imagens, expressas nas suas teses de doutoramento. Amanda Danelli Costa investigou as reformas urbanas e a modernidade carioca a partir das obras, literária e fotográfica, de João do Rio e Augusto Malta. Enquanto o cronista elaborava interpretações e representações do Rio de Janeiro, disputando a narrativa moderna da cidade nos periódicos; Augusto Malta inventariava as transformações da urbes, assentado em uma tradição ilustrada, tanto do ponto de vista técnico quanto pela referência civilizadora vinculada ao urgente progresso material urbano.1

Carlos Eduardo Pinto de Pinto abordou a representação da cidade do Rio de Janeiro pelo Cinema Novo entre 1955 e 1970, abarcando o surgimento das ideias que embasariam o movimento nos anos 1960, bem como suas mutações ao longo da década. A vinculação do Cinema Novo à vivência urbana carioca define um de seus perfis e fornece elementos para a elaboração de imaginários sociais na e sobre a cidade. Capital federal até 1960, o Rio começou a década sendo transformado em Estado da Guanabara, depois de perder o posto de cabeça do país para Brasília. Ainda assim, a capitalidade foi o eixo norteador das obras analisadas, que mobilizam duas estratégias de representação: a oposição da modernidade urbana às mazelas sociais, caso de Rio, 40 graus, Cinco vezes favela e A grande cidade; ou a evocação da capitalidade em sua relação com os traços identitários da jovem classe média, como Os cafajestes, O desafio, Garota de Ipanema e Todas as mulheres do mundo. Através de agenciamentos diversos, os atores sociais abordados pela pesquisa – profissionais envolvidos nas produções dos filmes, críticos, teóricos, políticos e outros – se apropriaram das obras, pondo em disputa os imaginários urbanos e as práticas sociais.[2]

Viviane da Silva Araujo investigou como as transformações urbanas ocorridas em Buenos Aires e no Rio de Janeiro na passagem do século XIX para o XX tornaram-se temas para fotógrafos locais e estrangeiros. Analisando as duas cidades comparativamente, a tese identifica na produção fotográfica algumas das tensões próprias à experiência da modernidade urbana latino-americana, onde o desejo de adequar-se a um modelo ideal de civilização não foi capaz de produzir uma sociedade ordenada segundo os preceitos do almejado progresso material e moral, mas experimentou uma realidade imprevista, original e complexa. Realidade esta que a fotografia não só captou, mas contribuiu para criar maneiras de imaginar, ver e sentir ambas as cidades em acelerado processo de transformação naquele período.[3]

Frequentemente, e desde há muito tempo, as urbes vêm sendo tematizadas por diferentes imagens [4] – dos registros cartográficos às mídias digitais, passando pelas artes plásticas, fotografia, cinema, TV, vídeo, grafite e pichação – produzindo representações que alargaram as possibilidades de interpretação e produção de sentidos sobre as cidades, vistas em perspectiva histórica. Desse modo, as cidades em ampliação e transformação foram largamente fixadas em imagens cada vez mais várias e complexas, um processo que não ficou de fora do conjunto de interesses dos historiadores.

Observadas a partir da modernidade, cidade e imagem também ensejaram reflexões sobre a subjetividade moderna e as novas formas de estar no mundo, interpretá-lo e representá-lo. [5] A invenção da fotografia, na primeira metade do século XIX, facilmente associada à consequente mudança do padrão de visualidade, só se efetivou como um invento possível em razão de uma transformação da própria subjetividade moderna na passagem do século XVIII para o XIX. [6] As grandes cidades, que enfrentaram o frenesi da revolução urbana oitocentista, foram os palcos principais para esse novo “observador de segunda ordem”. [7] Sujeitos e cidades eram, enfim, atravessados e traduzidos pelo registro da reprodutibilidade técnica.[8]

Movimento semelhante pode ser observado nas relações entre cidades e cinema, que tem interessado, sobretudo, à historiografia norte-americana e francesa. De modo geral, os americanos focam a importância simultânea da cidade e do cinema para a conformação da modernidade, enquanto os franceses privilegiam a representação do urbano pelos filmes.[9] Entre a produção francesa, cabe destacar, além das obras homônimas La ville au cinéma, também Visions urbaines, Cités-cinés, Ville et cinéma e Un nouvel art de voir la ville et de faire du cinéma. [10] Nessas obras, a maioria formada por reunião de artigos, é flagrante o recurso à interdisciplinaridade, havendo contribuição de historiadores, cineastas, críticos, cenógrafos, antropólogos, sociólogos, linguistas, comunicólogos, arquitetos e urbanistas. Por mais que sejam variadas as abordagens, todas confluem na crença de que os filmes urbanos não oferecem um acesso direto às cidades, sendo, ao contrário, considerados reinvenções destas, ao mesmo tempo em que constituem suas realidades.

Se por um lado observamos a multiplicação de pesquisas que tomavam os registros imagéticos, especialmente depois da criação da fotografia – e, mais tarde, do cinema – como fontes para a análise das transformações urbanas, dos códigos sociais e das sociabilidades, mais recentemente se tornaram frequentes os trabalhos que vão às cidades para compreenderem como diferentes grupos produzem registros variados no próprio corpo da urbes, criando imagens (pichações, grafites, estênceis) que revelam distintas urbanidades, relações de poder e apropriação possíveis.

A fotografia e o cinema também assumem relação forte e estreita com a memória, seja de indivíduos, grupos sociais ou de cidades. [11] Suas dinâmicas de recorte de um tempo e espaço, que sobrevive para além do momento do clique e da filmagem, contribuiu vivamente para que frequentemente assumam papel de gatilho ou ponto de partida para a memória. Aquilo que aqui chamamos de dinâmica própria da fotografia e o específico fílmico também se aproximam da maneira como a memória se organiza: seja em uma foto, em um filme, ou seja, com a memória, é impossível lembrar tudo ou colocar tudo dentro do quadrado. [12] Os três implicam seleção, esquecimento e tomadas de pontos de vista. [13]

Na Europa, abordagens dessa natureza foram iniciadas nos anos 1960, pela Nova História Urbana, tendo Richard Sennett como figura mais proeminente, e pela História da Arte, com destaque para Giulio Carlo Argan.[14] Como alternativa a abordagens que equacionam o objeto “cidade” a processos de urbanização (dimensões, formas, funcionalidades), tais enfoques privilegiam as cidades como objetos singulares, atuando como centro geradores de identidades. [15] Argan, por exemplo, defende que a cidade seja um acúmulo de bens culturais (incluindo-se as imagens) e não apenas “o produto das técnicas de construção [que] também concorrem para determinar a [sua] realidade visível”. [16]

O papel da cidade como o locus a partir do qual se imagina, projeta e se representa a experiência moderna e sua realidade visível também esteve no cerne da reflexão de estudiosos latino-americanos neste mesmo período. Em 1976, o historiador argentino José Luis Romero publica sua mais importante obra, cujo subtítulo, “as cidades e as ideias”, já expõe a permanente tensão entre a cidade real e a cidade imaginada. Tal argumento é desenvolvido mais tarde por pesquisadores como Adrián Gorelik, que adverte que a modernidade urbana experimentada na América Latina foi original e complexa e, se comparada às seculares cidades europeias, a cidade latino-americana não decorre dos processos de modernização, mas antecipa a eles, como um instrumento capaz de “criar” uma sociedade moderna.[17]

No Brasil, pesquisas que relacionam cidade, modernidade e imagem ganharam força a partir dos anos 1980, convivendo com uma produção – naquele momento, mais vasta – a respeito das relações entre cidade e literatura. Eram, na sua maioria, reflexões sobre registros fotográficos realizados nas primeiras décadas do século XX nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, resultados das pesquisas de mestrado e doutorado de Ana Maria Mauad, Maria Inez Turazzi, Vânia Carneiro de Carvalho e de Charles Monteiro. Desde então, multiplicaram-se os enfoques, com uma seleção variegada de urbes, tipos de imagens e recortes cronológicos.[18]

O encontro entre o urbano e o imagético por meio da análise de uma variedade de cidades, reais e imaginárias, e de imagens dos mais diferentes suportes, está presente nos 18 artigos e na entrevista que compõem a presente edição da Revista Maracanan. O número expressivo de submissões que atenderam à chamada nos alegrou, ao demonstrar a potencialidade do tema. Esperamos que a publicação deste dossiê contribua para o reconhecimento e a ampliação das abordagens e significados teórico-metodológicos a respeito das interfaces entre cidade e imagem.

A entrevista que abre o dossiê foi realizada ao longo de uma noite muito agradável na companhia (virtual) de Ana Maria Mauad. A pesquisadora e professora nos apresentou um vasto panorama a respeito das relações entre as cidades e suas imagens, centrando-se nos trabalhos sobre fotografia, tema da maioria de suas pesquisas, mas alcançando também outros suportes. O registro dessa conversa dá acesso a um vislumbre dos caminhos percorridos por uma das primeiras historiadoras, no Brasil, a se dedicar às relações entre história e imagem.

Entre os artigos que compõem o dossiê, a estereoscopia e o seu desenvolvimento no Brasil, entre 1850 e 1950, são apresentados por Maria Isabela Mendonça dos Santos a partir dos acervos de fotógrafos profissionais e amadores que produziram uma variedade de vistas de cidades brasileiras, contribuindo para a formação e divulgação de uma imagem do Brasil, exótica e civilizada, enquanto redimensionava a própria subjetividade moderna pelo olhar. A produção amadora de estereoscopias de Guilherme Antonio dos Santos por mais de cinquenta anos, resultando em um acervo particularmente extenso, é objeto de análise neste artigo que observa a produção de imagens sobre a cidade do Rio de Janeiro como artifícios da construção de uma paisagem ideal.

Em diálogo com o campo da história pública, Michel Kobelinski analisa pinturas, gravuras, fotografias e narrativas – entendidas aqui como lugares de memória – produzidas por Estanislau Schaette, Hermann Schiefelbein, Arthur Wischral e Hugo Hegenberg sobre a identidade teuto-brasileira e seus efeitos na sociedade paranaense na primeira metade do século XX. Essas obras são tomadas por seu caráter pedagógico que, além de educar sobre o passado, contribuiu para a aproximação com histórias plurais e ainda para a produção de vínculos coletivos.

O artigo de Samuel Oliveira aborda fotorreportagens que tematizam a favela publicadas na revista O Observador Econômico e Financeiro – especializada em análises econômicas e sociais e articulada ao projeto desenvolvimentista das décadas de 1940 e 1950. Em sua análise, demonstra como tais matérias reiteraram os estigmas da pobreza urbana e sua racialização por meio dos registros fotográficos das favelas cariocas e dos contrastes estabelecidos com o padrão de vida da classe média.

Em artigo que analisa a Primeira Exposição Fotográfica de Motivos Belorizontinos, ocorrida em 1953, fruto de uma parceria entre o Foto Clube de Minas Gerais e a Prefeitura de Belo Horizonte, Lucas Mendes Menezes investiga relações entre fotografia amadora e poder público. Além da análise da composição visual de fotografias reproduzidas no catálogo desta exposição, o autor explora o olhar que os fotógrafos lançaram sobre a cidade – especialmente sobre os seus elementos arquitetônicos – assim como seus condicionamentos e espaços de atuação, entendendo a fotografia no conjunto das iniciativas culturais do período e suas interseções com o poder público.

Débora Bueno, Ricardo Freitas & Vania Fortuna investigam as fotografias de César Barreto, tomando-as como elementos constitutivos da memória urbanística da cidade do Rio de Janeiro. Fotógrafo oficial da “cidade olímpica”, coube a César Barreto documentar, entre 2011 e 2013, as reformas que a cidade enfrentava para abrigar os Jogos Olímpicos de 2016. As fotografias publicadas em um portal institucional eram peças imagéticas centrais no processo de valorização da marca-cidade, a fim de torná-la mais competitiva no concorrido mercado internacional de cidades globais. Mais do que registrar o processo de revitalização da zona portuária, como quem guarda as lembranças do que fora a cidade, as fotografias de César Barreto apontavam para o futuro olímpico do Rio de Janeiro, como destino incontornável da cidade maravilhosa.

Utilizando a metodologia de leitura da imagem da cidade de Kevin Lynch, Paulo Barata identifica o acúmulo de tempos desiguais presentes no centro comercial de Campo Grande, bairro do subúrbio do Rio de Janeiro, no século XXI. O autor nos convida a observar com detalhes como esta localidade outrora rural apresenta hoje uma paisagem tipicamente urbana.

A cultura midiática da Belle Époque carioca é desnudada por Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo Souza, que analisa como as crônicas literárias registraram novos modos de ver e narrar a cidade no contato com os novos aparatos e imagens – produzidas pelo cinema, pela imprensa e expostas em vitrines –, afetando a constituição e a percepção dos sujeitos modernos, expressas nas transformações das sociabilidades e sensibilidades das primeiras décadas do século XX. As crônicas de João do Rio, Olavo Bilac, Benjamin Costallat e Lima Barreto são, neste artigo, exemplos da renovação representativa e da alteração na estrutura de percepção dos sujeitos modernos, revelando a tensão entre o imaginário literário e o imaginário técnico.

Wolney Vianna Malafaia aborda o Rio de Janeiro a partir da oferta de condições materiais e intelectuais para a formação do Cinema Novo brasileiro. Embora aponte alguns traços de representação da cidade em dada filmografia cinemanovista, a proposta principal do autor é pensar a cidade como catalisadora do movimento cinematográfico, ao longo dos anos 1960. Por meio do levantamento de instituições e redes de sociabilidade, o trabalho demonstra o quanto aquela, que até há pouco tinha sido capital do Brasil, seguiu exercendo funções associadas à capitalidade.

Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior analisa o filme Notas para uma Oréstia Africana (Appunti per un’Orestiade Africana, Pier Paolo Pasolini, 1969), com vistas a compreender a construção visual das paisagens urbanas e naturais de alguns países africanos no documentário do diretor italiano. Para o enfrentamento do específico fílmico, o autor mobiliza a iconologia, a narratologia histórica e a abordagem filmológica, problematizando o estatuto sócio-histórico das imagens, evidenciando os mecanismos empregados na construção do filme e cruzando os resultados com os escritos sobre cinema.

Mauro Amoroso & Gustavo Romano propõem uma abordagem heurística do modo como o Jornal do Brasil (JB) e o filme Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002) narraram eventos relacionados à “guerra” da Cidade de Deus, conflitos entre traficantes ocorridos na virada da década de 1970 para a de 1980. Em suas análises, os autores levam em consideração a especificidade da linguagem de cada veículo, bem como os diferentes contextos históricos, elencando os elementos constitutivos de cada modo de “ler” ou “ver” os eventos.

Fabio Allan Mendes Ramalho assume perspectiva benjaminiana ao analisar os corpos em perambulação por espaços urbanos, tomados como lugares de encontro afetivo e desejo (homo)erótico. Por meio da análise de três filmes de Marcelo Caetano – Bailão (2009), Na sua companhia (2011) e Corpo elétrico (2017) –, o autor demonstra como a linguagem cinematográfica é capaz de reelaborar, mais do que registrar, a materialidade urbana em consonância com a vivência sexual e afetiva das personagens.

Leonardo Perdigão Leite & Pedro Jorge Lo Duca Vasconcelos investigam novas práticas museais e museológicas na cidade do Rio de Janeiro – o Museu de Favela Pavão-Pavãozinho Cantagalo, a Galeria Providência e o Museu Nami – observando como essas iniciativas se baseiam em visões não ortodoxas de patrimônio, memória e museu. Tais experiências produzem alternativas aos modelos tradicionais e consagrados, apoiadas em uma museologia social, comunitária, popular, informal ou progressista, contribuindo para a construção de outros modos de expressão a partir da subjetivação (reveladas através de grafites, estênceis, murais, painéis) de grupos subalternizados, no lugar de promover a cristalização de identidades.

O grafite é tematizado por Ivânia dos Santos Neves que toma o aniversário de 400 anos de Belém como um período favorável para a reflexão sobre os discursos que forjaram a história oficial da cidade, uma história escrita pelo colonizador, como de tantas cidades latino-americanas, mas que exibe suas fraturas quando movimentos indígenas e outros enunciadores artístico-culturais conquistam espaço na dinâmica de contar a história. Ao contrapor o frontal da Basílica de Nazaré e a escultura de bronze de um indígena de um bairro nobre de Belém e os grafites de artistas locais que retomam a memória indígena em suas produções e visibilizam a pluralidade étnica da cidade, a autora mostra como o grafite visibiliza a presença indígena silenciada no patrimônio oficial.

Ana Paula Alves Ribeiro propõe uma abordagem etnográfica da peça teatral In_Trânsito, encenada pela Cia. Marginal e com direção de Isabel Penoni e Joana Levi, entre 2013 e 2014. Trata-se de uma performance site-specific, partindo da Central do Brasil e estendendo-se por paisagens urbanas fruídas ao longo do percurso ferroviário. O registro da vivência dos múltiplos estímulos propiciados pela experiência, com ênfase nos elementos visuais, permite à autora pensar o Rio de Janeiro em um biênio marcado pelas lutas urbanas manifestadas, entre outras possibilidades, no artivismo (ativismo político executado por meio de ações artísticas).

A sessão de artigos livres também traz trabalhos que abordam o tema da cidade e de suas representações. Propostos para além da análise de suportes imagéticos propriamente ditos, são estudos que igualmente colaboram para ampliar o conhecimento sobre a elaboração de imaginários urbanos e de imagens ideais das cidades em distintos espaços e momentos históricos.

Nesse bojo, o Rio de Janeiro, cidade a partir da qual a Revista Maracanan se comunica com o mundo acadêmico, teve sua gênese marcada por uma disputa de ideais de cidade, o que resultou em tensões em torno da sua dupla fundação, francesa e portuguesa. Apesar da crise que o Estado moderno impôs às individualidades e às cidades-republicanas, a projeção das utopias levadas a frente significava uma resistência do próprio ideal de cidade moderna, de modo que “a noção de utopia qualificava criticamente o desempenho dos homens na cidade projetando-a para fora do espaço real”. [19]

Assim, chegamos ao entendimento de que a cidade, além de recorrentemente aparecer como tema de interesse dos homens de letras desde as fundações das primeiras cidades latino-americanas, significava para eles o lugar primordial – e também inescapável – no qual viveriam a experiência da modernidade, de tal forma que era a partir dessa dupla referência (cidade / modernidade) que eles se constituíram como sujeitos no mundo e, por conseguinte, refletiram sobre a modernidade na cidade. [20] Nesse sentido, como já apontado acima, a experiência moderna nas cidades latino-americanas foi o trampolim para que se produzissem as condições de modernização desses espaços, de suas relações sociais e políticas, bem como de suas representações, de modo que “a modernidade se impôs como parte de uma política deliberada para conduzir à modernização, e nessa política a cidade foi o objeto privilegiado”. [21]

Fabrina Magalhães Pinto apresenta uma leitura da Laudatio de Leonardo Bruni no quattrocento, observando em particular os debates acerca dos ideais republicanos de liberdade, autogoverno e cidadania, neste que é um dos principais elogios da cidade de Florença no período. Entre os séculos XII e XV, Florença, como lócus privilegiado da ação do homem renascentista, experimentou a construção paulatina de um ideal de cidade, fosse no âmbito arquitetônico, político ou das instituições. Nesse momento se conjugaram ambições republicanas com a construção de uma imagem ideal de cidade, onde justiça, racionalidade e liberdade estariam em destaque.

Andréa Cristina de Barros Queiroz nos apresenta o panorama da construção da “República de Ipanema”, como um lugar de vanguarda no Rio de Janeiro, durante os anos 1960. A imagem de cidade maravilhosa fora atualizada por uma boemia-literária a partir das sociabilidades vividas em diferentes espaços de encontro no bairro de Ipanema, como os bares e a praia. Além disso, atribuiu-se ao bairro a condição de polo difusor de uma série de movimentos políticos, sociais e culturais que ocuparam a cena de oposição aos anos de ditadura civil-militar.

A imagem da cidade de Brasília lida como cidade utópica e ícone do desenvolvimentismo brasileiro nos anos 1950 e 1960 ainda se apresenta como a imagem hegemônica da capital federal. No entanto, Lucía Tennina revela-nos a construção de novas miradas sobre a cidade e a partir dela nos saraus das periferias. Espaços contra-hegemônicos, os saraus exploram temas e tensões que transbordam das margens dos enquadramentos apaziguados do Plano Piloto. O cartão postal, expressão da imagem desejável, é a metáfora escolhida para nos falar das pluralidades que não cabem em uma história única.

Hércules da Silva Xavier Ferreira, Luana Campos & Pedro Clerot analisam uma série de grafites e uma escultura que evocam as imagens de três jovens assassinados no Rio de Janeiro em 1998, 2005 e 2017 nas proximidades do túnel Santa Bárbara, que conformaram o que os autores definem como “polígono da violência” ou “circuito da dor”. A criação desses memoriais permite que os transeuntes, moradores ou não da cidade, vejam e sejam afetados pelo conhecimento dessas histórias, ao mesmo tempo em que ressignificam o sofrimento e conformam espaços de resiliência.

Esperamos que a leitura dos artigos deste número da Revista Maracanan contribua para a ampliação de debates e pesquisas interessadas no cruzamento das cidades e suas imagens. Fazemos votos de que o contato com esses textos seja tão instigante e prazeroso para os leitores da revista quanto foi para nós.

Notas

  1. COSTA, Amanda Danelli. Cidade, reformas urbanas e modernidade: o Rio de Janeiro em diálogo com João do Rio e Augusto Malta. 2011. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
  2. PINTO, Carlos Eduardo Pinto de. Imaginar a cidade real: o Cinema Novo e a representação da modernidade urbana carioca (1955-1970). 2013. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense, Niterói (RJ).
  3. ARAUJO, Viviane da Silva. Fragmentos urbanos da modernidade: a fotografia em Buenos Aires e no Rio de Janeiro na passagem do século XIX para o XX. 2013. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
  4. SONTAG, Susan. Sobre a fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
  5. CRARY, Richard. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
  6. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
  7. GUMBRECHT, Han Ulrich. Modernização dos sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998.
  8. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: L&PM, 2013.
  9. CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa R. (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
  10. JOUSSE, Thierry; PAQUOT, Thierry (dir.). La ville au cinéma: encyclopédie. Paris: Cahiers du Cinéma, 2005; BARILLET, Julie; et al. La ville au cinéma. Arras: Artois Presses Université, 2005; NINEY, François (dir.). Visions urbaines: villes d’Europe a l’ecran. Paris: Éd. Centre Pompidou, 1994; Cités-cinés. Paris: Éd. Ramsay et La Grande Halle; La Villete, 1997. [édité à l’occasion de l’exposition Cités-Cinés]; Espaces et Societes, Paris, L’Harmattan, 86 – “Ville et cinéma”, 1996.
  11. PINTO, Carlos Eduardo Pinto de. Câmera-arma: a representação das funções sociais da fotografia em Os cafajestes (Ruy Guerra, 1962). Revista Brasileira de História da Mídia, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 151- 158, jul.-dez. 2013.
  12. PINTO, Carlos Eduardo Pinto de. Relatos fantasmas: os filmes históricos cinemanovistas e a política cultural da ditadura civil-militar nos anos 1970. REBECA – Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, São Paulo, v. 2, n. 1, jan.-jun. 2013.
  13. COSTA, Amanda Danelli. Augusto Malta e a fotografia da alma dos kiosques cariocas. Acervo, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, v. 32, n. 2, p. 117-132, maio-ago. 2019.
  14. SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 1999; ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
  15. SILVA, Luís Octávio da. História urbana: uma revisão da literatura epistemológica em inglês. EURE, Santiago, v. 28, n. 83, maio 2002.
  16. ARGAN, Giulio Carlo. História da arte… Op. cit., p. 75
  17. ROMERO, José Luís. América Latina: as cidades e as ideias. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009; GORELIK, Adrián. Ciudad, modernidad, modernización. Universitas Humanística, Bogotá, Pontificia Universidad Javeriana, n. 56, jun. 2003.
  18. MAUAD, Ana Maria. Sob o signo da imagem: a produção da fotografia e o controle dos códigos de representação social, na cidade do Rio de Janeiro na primeira metade do século XX. 1990. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói (RJ); TURAZZI, Maria Inez. As artes do ofício: fotografia e memória da engenharia no século XIX. 1998. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de São Paulo, São Paulo; CARVALHO, Vânia Carneiro de. Do indivíduo ao tipo: as imagens da (des)igualdade nos álbuns fotográficos da cidade de São Paulo na década de 1950. 1995. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo; MONTEIRO, Charles. A inscrição da modernidade no espaço urbano de Porto Alegre. 1992. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
  19. RODRIGUES, Antonio Edmilson Martins. América Renascentista- um ensaio: as experiências modernas no espaço da Baía de Guanabara – a dupla fundação da cidade do Rio de Janeiro: entre utopias e ideais. MORUS, Campinas (SP), UNICAMP, v. 3, p. 213-242, 2006.
  20. COSTA, Amanda Danelli. A produção de guias de viagem por intelectuais brasileiros: um ensaio. In: MARAFON, Glaucio; FACCIOLI, Marina; SÁNCHEZ, Meylin Alvarado. Patrimônio, território e turismo no Brasil, Costa Rica e Itália. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2020.
  21. GORELIK, Adrián. Ciudad, modernidad, modernización. Op. cit., p. 13. Tradução nossa. No original: “la modernidad se impuso como parte de una política deliberada para conducir a la modernización, y en esa política la ciudad fue el objeto privilegiado”.

Referências

ARAUJO, Viviane da Silva. Fragmentos urbanos da modernidade: a fotografia em Buenos Aires e no Rio de Janeiro na passagem do século XIX para o XX. 2013. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.

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TURAZZI, Maria Inez. As artes do ofício: fotografia e memória da engenharia no século XIX. 1998. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de São Paulo, São Paulo.

Amanda Danelli Costa – Professora Adjunta do Instituto de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Campus Teresópolis. Doutora e Mestre em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; graduada em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] Orcid iD: https: / / orcid.org / 0000-0002-6845-4733  Lattes: http: / / lattes.cnpq.br / 1855259803755979

Carlos Eduardo Pinto de Pinto – Professor Adjunto do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, atuando na graduação e no Programa de Pós-graduação em História. Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense; Mestre em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] Orcid iD: https: / / orcid.org / 0000-0001-7448-2565 Lattes: http: / / lattes.cnpq.br / 2703751377441692

Viviane da Silva Araujo – Professora Adjunta do Instituto Latino-Americano de Arte, Cultura e História da Universidade Federal da Integração Latino-Americana. Doutora e Mestre em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; graduada em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] Orcid iD: https: / / orcid.org / 0000-0001-7378-0210 Lattes: http: / / lattes.cnpq.br / 5388549060655237


COSTA, Amanda Danelli; PINTO, Carlos Eduardo Pinto de; ARAUJO, Viviane da Silva. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.24, 2020. Acessar publicação original [DR]

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História das Propriedades e Direitos de Acesso / Revista Maracanan / 2020

A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo oficio é lembrar o que outros esquecem, tornam-se mais importantes do que nunca no fim do segundo milênio.1

Com essas linhas, logo na apresentação, o historiador britânico Eric Hobsbawm enumera suas angústias ao apresentar ao leitor A Era dos Extremos, obra publicada ao final dos anos 1990 propondo-se a discutir o próprio século XX. Pouco tempo se passou, algumas décadas apenas, e ao alvorecer do ano 2020 esta questão se apresenta ainda mais aguda. Em uma conjuntura na qual pesquisadores e temas de pesquisa são questionados (quando não perseguidos), revisitar o passado e construir interpretações segue como desafio aos historiadores e às historiadoras que se propõem a trazer aos leitores versões sobre um passado que se reflete na época que vivemos, em um variado grupo de temas de pesquisa.

O presente dossiê tem como propósito recuperar um conjunto de estudos voltados para uma temática tão antiga quanto atual. Tomando como fio condutor a história das propriedades e o direito de acesso, pretende-se contemplar uma variedade de trabalhos com recortes regionais e temporais distintos, apresentando perspectivas e análises com ênfase nos séculos XVII-XIX. Desta feita, o dossiê que por ora apresentamos reúne estudos que pretendem iluminar debates e reflexões acerca da propriedade de forma plural, expressando assim a multiplicidade dos estudos, sem jamais pretender esgotar as possibilidades de análises.

A propriedade é um termo tão naturalizado que muitas vezes, ao ser utilizado, o receptor logo se remete a um pedaço de terra, algo material ou, em outras palavras, a uma coisa ou bem tangível. O dossiê, entretanto, pretende inovar ao pensar em propriedade como um termo mais amplo, incluindo uma reflexão acerca da propriedade intelectual. A reflexão é relativamente recente, sobretudo no direito brasileiro, mas a discussão sobre o registro de patentes no Brasil remonta ao início do século XIX.

Entende-se como História Social das Propriedades a discussão realizada com base na dimensão histórica da noção de propriedade pelos diversos agentes da História. Neste debate estão envolvidas lutas por direitos ao acesso à propriedade em geral, incluindo reconhecimento não somente da posse de coisas materiais, mas também direitos relativos às obras literárias, artísticas e científicas, às interpretações dos artistas intérpretes e às execuções dos artistas executantes, aos fonogramas e às emissões de radiodifusão, às invenções em todos os domínios da atividade humana, às descobertas científicas, aos desenhos e modelos industriais, às marcas industriais, comerciais e de serviço, bem como às firmas comerciais e denominações comerciais, à proteção contra a concorrência desleal e todos os outros direitos inerentes à atividade intelectual nos domínios industrial, científico, literário e artístico.2

A pluralidade das questões se expressa também quando o recorte está centrado na propriedade ou nas propriedades de terra, tema que acabou por ser foco das pesquisas incluídas no dossiê, sem se favorecer, entretanto, na predominância de uma única visão. Há reflexões sobre as relações de propriedade por meio da luta de roceiros, como forma de riqueza de setores mais abastados, como instrumento de ilegalidades para aumento de patrimônio, entre outras. A gama de estudos reunidos intenta servir como amostra do quanto o debate sobre a História Social das Propriedades no Brasil tem crescido e amadurecido. Reconhecemos que tais estudos procuram rumo próprio, sem ter que se ater ao provincianismo de acreditar que apenas os teóricos europeus servem como condutores e fiadores da temática para uma realidade específica (aliás, várias realidades) do gigante e diverso Brasil. A troca, cada vez mais proveitosa, entre os intelectuais nacionais nos vários encontros acadêmicos reforça a nossa capacidade de produzir conceitos e noções próprias com base nos fatos inerentes a nossa história, bem como da experiência deste vasto território.

Assim, o dossiê é composto por seis artigos, uma nota de pesquisa, uma entrevista e um depoimento. Procurando fugir de uma cronologia óbvia e privilegiando temas mais singulares na discussão sobre a História Social das Propriedades, inauguramos o dossiê com a análise apresentada por Leandro Miranda Malavota, “A Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional e as patentes de invenção: tecnologia e propriedade no Império do Brasil”. Deslocando o foco sobre a ocupação do território e as relações de propriedade para os aspectos da atividade inventiva, o autor analisa o papel da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional no processo de concessões de patentes aos inventores de novos bens e técnicas de produção. Para tanto, examina os fundamentos técnicos, jurídicos e econômicos que sustentavam a atuação da SAIN em meio ao contexto da Segunda Revolução Industrial, trazendo aos leitores uma análise do conceito de propriedade no campo da propriedade intelectual e mostrando os desafios encarados por aqueles que queriam registrar suas invenções já no século XIX.

Trazendo o eixo dos estudos para a propriedade da terra e para o Norte do Brasil, o artigo “Fazendo divisas em terrenos alheios: um estudo preliminar sobre posse, propriedade da terra e conflitos em intendências municipais no Pará entre fins do século XIX e início do XX”, de Carlos Leandro Esteves, apresenta um debate acerca da intensificação dos conflitos por terra no Pará nas primeiras décadas da República. O autor reconhece a sobreposição de títulos de terras como grande problema a ser enfrentado em querelas que envolviam uma variada gama de agentes sociais, de fazendeiros e grandes herdeiros aos pequenos posseiros. Grupos sociais distintos que se enfrentavam em conflitos de forças desiguais.

Em “Um negociante das ‘Terras Frias’: uma análise das estratégias de aquisição fundiária do português Antonio José Mendes (Nova Friburgo, 1860-1914)”, Gabriel Almeida Frazão analisa uma região famosa pela colonização suíça e alemã a partir do protagonismo de colonos lusos. Frazão lança os olhares para a presença portuguesa expressiva na região, bem como o controle das riquezas por parte dessas famílias com base em estratégias matrimoniais.

Perseguindo um famoso personagem da literatura brasileira em sua trajetória como funcionário público, o artigo “A Diretoria da Agricultura sob a chefia de Machado de Assis: os processos de solicitação de compra de propriedade no Amazonas (1887-1889)”, de Pedro Parga Rodrigues, quantifica um conjunto de processos do fundo da Diretoria da Agricultura do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas entre 1887 e 1889. Elenca como a repartição tendeu a valorizar elementos do regime de sesmarias, o fundamento da posse e a capacidade para o cultivo, na aplicação da Lei de 1850, reconhecendo grupos hegemônicos sendo privilegiados em espaços de conflitos e disputas. E, mais importante, mostra uma face pouco conhecida do famoso literário brasileiro na sua profissão mundana.

Privilegiando escravos e homens livres e pobres para o centro de seu estudo, Maria Celma Borges debruça-se sobre as roças encontradas por caminhos e por quilombos em Mato Grosso na passagem da colônia para o império. A autora apresenta o artigo “Escravizados, pobres e livres e povos originários na história rural de Mato Grosso: as roças e a antítese da propriedade pelos caminhos e quilombos (séculos XVIII e XIX)”, trazendo à luz atores políticos menos favorecidos e desnudando nuances na construção das relações de propriedade que possibilitam a concepção do conceito para além do tripé “Latifúndio, Escravidão e Monocultura”, recuperando o debate sobre o abastecimento interno e a importância das roças na economia do Brasil.

Fechando o conjunto de artigos do dossiê, Ronaldo Vainfas & Márcia Motta partem da análise de uma fonte testamental para compreender a estratégia na formação de fortuna e constituição de um morgado como forma de proteger o patrimônio, não necessariamente territorial. Os autores assinam conjuntamente o artigo “Morgadios coloniais entre a nobilitação e o mercado: o testamento de Francisco Barreto de Menezes, restaurador do Recife em 1654”.

Esta edição é enriquecida ainda com mais três textos voltados ao tema do dossiê: uma nota de pesquisa, um depoimento e finalmente uma entrevista. A jovem pesquisadora Flávia Darossi parte da Guerra do Contestado, em Santa Catarina, para compreender a política fundiária nos anos anteriores ao conflito, com base na reconstrução de relações e discursos jurídicos em estudos de caso no município de Lages. Paulo Pinheiro Machado nos brinda com um depoimento que revisita sua trajetória de vida como professor e pesquisador do campesinato no Sul do Brasil. Em “Os camponeses: notas sobre rastros, indícios e experiências de pesquisa”, Pinheiro nos lembra da importância dos estudos sobre o rural, bem como o fato de que grandes momentos da história recente de nosso país tiveram a questão agrária e a propriedade territorial no centro do grande debate político.

Por fim, a professora catedrática de História do Brasil da Universidade de Coimbra, Margarida Sobral Neto, nos presenteia com uma entrevista na qual apresenta sua trajetória pessoal. De sua entrada na graduação, em pleno governo Salazar, até os desafios mais recentes, como o do lugar da mulher na universidade, assim como seu próprio tema de pesquisa, as relações de propriedade na época moderna.

O dossiê, portanto, intenta contribuir para a discussão da História Social das Propriedades e dos direitos de acesso por uma perspectiva mais ampla, reconhecendo a pluralidade e excelência dos estudos hoje desenvolvidos. Longe de avalizar qualquer ideia colocada aqui, o dossiê pretende sim registrar o convite para que sigamos ampliando as reflexões. Sem reducionismos ou dogmatismos, entendemos que os estudos voltados para a História Social das Propriedades no Brasil apresentam-se de forma plural, desenvolvendo perspectivas próprias, inspiradas por estudos consagrados, no Brasil e fora dele.

Esta edição conta ainda com cinco artigos livres, contribuições que somam colaborando para a pluralidade do debate científico. João Vitor Araújo & Marcelo de Souza Neto assinam em conjunto “Jurisdição e subordinação: tentativas de provincialização da Igreja no Piauí (1822-1830)”. Em mais uma proposta a quatro mãos, Monica Piccolo & Werbeth Serejo Belo voltam os olhares para uma reflexão sobre os Anos de Chumbo no artigo “Entre o ‘milagre econômico’ e o ‘quinquênio do ouro’: análise introdutória dos planos econômicos brasileiro e português (1968-1973)”. William Vaz Oliveira nos convida a transitar por dois tipos de discursos para compreender o indígena em “Índio do Brasil: um sujeito entre o discurso jurídico e o discurso médico-psiquiátrico”. Trazendo uma proposta de debate interdisciplinar, Francivaldo Alves Nunes observa o universo rural em “Experiências sociais rurais e as implicações dos silenciamentos: diálogos de história e sociologia”. Para fechar, Márcio Antônio Both da Silva assina “Sob o risco de Mesfisto. História agrária no Brasil: tragédias e esquecimentos”, revelando as angústias do estudo da história agrária nos tempos atuais.

Notas

1. HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 13.

2. Disponível em: https: / / abpi.org.br / blog / o-que-e-propriedade-intelectual / . Acesso em 29 de dezembro de 2019

Marina Monteiro Machado – Professora Adjunta de História Econômica da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, atuando na graduação em Ciências Econômicas e no Programa de Pós-graduação em História. Doutora, Mestre e graduada em História pela Universidade Federal Fluminense. Vice- Coordenadora do INCT – Proprietas, “História Social das Propriedades e Direitos de Acesso”. E-mail: [email protected] ORCID iD: https: / / orcid.org / 0000-0001-7093-3904 Lattes: http: / / lattes.cnpq.br / 5955676567988660

Carmen Alveal – Professora Associada de História do Brasil Colônia e História Agrária da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, atuando na graduação e no Programa de Pós-graduação em História. Philosophiae Doctor in History pela Johns Hopkins University; Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; graduada em História pela Universidade Federal Fluminense. É coordenadora do LEHSUFRN (Laboratório de Experimentação em História Social) e da Plataforma SILB (Sesmarias do Império Luso-Brasileiro). ORCID iD: https: / / orcid.org / 0000-0002-1202-0231 Lattes: http: / / lattes.cnpq.br / 1118391491224309


MACHADO, Marina Monteiro; ALVEAL, Carmen. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.23, 2020. Acessar publicação original [DR]

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As vidas abertas da América Latina: escritas (auto) biográficas / Revista Maracanan / 2019

Em uma época marcada pelo retorno ao sujeito – seja à maneira do que Paula Sibila denominou “intimidade como espetáculo”, seja no contexto de um crescente interesse acadêmico pelas trajetórias da vida e pelos meandros da subjetividade – não resulta de coincidência que nas últimas décadas as explorações em torno do “eu” tenham se multiplicado e diversificado, assim como as expressões de tipo (auto)biográfico. Biografias, autobiografias, memórias, testemunhos, histórias de vida, diários íntimos, correspondências, cadernos de notas, de viagens, rascunhos, lembranças de infância, autoficções, romances, filmes, vídeo e teatro autobiográficos, além da chamada reality painting, os inúmeros registros biográficos das entrevistas midiáticas, conversas, retratos, perfis, anedotários, indiscrições, confissões próprias e alheias, velhas e novas variantes do show (talk show, reality show), a vídeo-política, os relatos de vida das ciências sociais e, ainda, as novas ênfases da pesquisa e da escrita acadêmica, são apenas algumas formas dessa manifestação que a crítica literária argentina Leonor Arfuch identifica como “espaço biográfico”.

A partir desse leque de manifestações, há urgência em se pensar o sujeito e suas múltiplas relações com distintos grupos, sua cultura e seu tempo, seu legado e sua memória, sendo que o presente dossiê, que tivemos o prazer de organizar para a Revista Maracanan, busca apresentar alguns exemplos de tais possibilidades a partir de uma perspectiva multidisciplinar e que abarque distintas realidades latino-americanas. Tal iniciativa visa avançar em uma tarefa necessária, a saber, convidar a refletir sobre o “espaço biográfico” a partir das referências teóricas, tradições intelectuais e particularidades históricas de nossa região, o que justifica o título escolhido: “As Vidas Abertas da América Latina”.

Os resultados aqui apresentados, a partir de um esforço coletivo, foram quinze trabalhos, entre artigos, depoimento, relatos de experiências de pesquisa e resenhas, de dezenove autores de diferentes países e com diferentes formações, e que a partir de objetos, fontes e metodologias distintas se inserem na abordagem do estudo e reflexão sobre a escrita biográfica e autobiográfica, contribuindo para um panorama de parte do que se tem estudado sobre o tema nos anos recentes.

Em contraste com as análises convencionais sobre biografia, em seu desenvolvimento histórico, Rodrigo Terrazas se compromete no artigo que abre este dossiê com um primeiro esforço para identificar os eixos que articulam a reflexão no México sobre o gênero. A partir de um estudo de caso da produção biográfica mexicana na transição do século XX para o XXI, discute de que maneira a historiografia local tem enfrentado as questões e os desafios colocados por esse tipo de narrativa. Ancorando-se no contexto local, Terrazas descobre que a recuperação do gênero biográfico nos últimos anos responde, em parte, ao reconhecimento e à discussão de sua dimensão literária, bem como a um progressivo interesse por parte da academia.

Uma prova do papel da literatura em novos desenvolvimentos na biografia aparece nos respectivos artigos de Julia Musitano e Patricio Miguel Fontana.

Em “La realidad tiene el tamaño de la imaginación”, Musitano problematiza a relação entre verdade e ficção na biografia a partir de El bastardo (1997), biografia do poeta e diplomata uruguaio Roberto de las Carreras, escrita por Carlos Maria Dominguez. Esta obra narra a conturbada vida de um bastardo de rica família que obteve reconhecimento intelectual, ocupou importantes posições e terminou a vida enlouquecido, e cuja narrativa se equilibra entre aquilo que os documentos e depoimentos afirmam e o que o autor se permite criar. Essa ambiguidade é o que permite a autora aprofundar as distinções entre a “biografia literária” e a “biografia novelada”, em uma abordagem sugestiva que expõe o alcance e as limitações de tais modelos narrativos.

O problema sobre as formas das classificações também ocupa Patricio Fontana em “Tener mi vida organizada por otros”, terceiro artigo deste dossiê, no qual a análise aborda a leitura enquanto biografia de Magnetizado (2018), elogiado livro do argentino Carlos Busqued, identificado como uma ousada e perturbadora experiência literária e estética na qual se apresenta a reconstrução da vida de Ricardo Melogno, que cumpre pena em uma instituição psiquiátrica por sua condenação pela morte, sem motivos aparentes, de quatro taxistas em Buenos Aires, na Argentina, no ano de 1982. Construída em torno de diálogos, a narrativa escapa às definições atuais que delimitam o romance, o testemunho e a biografia, ao mesmo tempo em que obscurece as fronteiras entre o que diz o biografado e o que escreve o biógrafo.

Passamos então aos artigos que lidam com a autobiografia, um gênero que transita entre verdade e ficção, história e memória, contexto e experiência. Como sintoma de um conflituoso século XX, marcado pela violência e migração forçada, dois deles apresentam os casos de autores deslocados de sua língua e cultura nativas, escritores que desenvolveram seu trabalho sob a marca do trauma.

O primeiro texto em português do dossiê, “Poética da escavação”, apresenta fragmentos das memórias da poetisa e tradutora de origem argentina Laura Alcoba. Sua obra poética é analisada por Dayane Moura & Silvina Carrizo enquanto vestígio do exílio na infância de uma filha de militantes do grupo Montoneros que acompanhou os pais para a França, onde foi criada, se fixou e passou a escrever na língua local.

O segundo texto referido é “Memoria individual y colectiva en Viena: una ficción de Andreas Kurz”, de Mario Cesar Islas Flores. O discurso ensaístico de Kurz Essmeister, crítico literário e ensaísta de origem austríaca radicado no México, tal como aparece nesta obra, permite a Islas Flores propor uma profunda reflexão sobre o testemunho e suas múltiplas dimensões, problematizando as dimensões ficcionais, o esquecimento e as distorções voluntarias e involuntárias da memória. Paradoxalmente, é o recurso à literatura que permitiria reinserir a experiência vivencial na história.

Um procedimento inverso é encontrado no sexto artigo, “A crença no Profeta”, de Mariana Dias Antonio & Marcella Lopes Guimarães, uma abordagem crítica, confrontando o relato pessoal com outras fontes, nas memórias do mitológico empresário e jornalista russo-brasileiro Samuel Wainer, apresentadas em sua autobiografia Minha Razão de Viver (1980) e que é referência recorrente em estudos acadêmicos sobre a imprensa no Brasil do século XX. Através de uma análise minuciosa, em que apresentam os processos de elaboração e edição de tal autobiografia, as autoras não só desmitificam passagens do relato como ainda mostram a autobiografia como um gênero híbrido, no qual se cruzam a mimeses e a vida imaginada.

Em “A perspectiva interseccional-rizomática nas narrativas (auto)biográficas de universitárias”, Andrea Abreu Astigarraga descreve e analisa as memórias autobiográficas de estudantes universitárias enquanto relatos de vida e formação, assinalando a presença e forma de manifestação de marcadores discursivos de etnia, classe e gênero das narradoras, o que permite avaliar os processos de mobilidade social, bem como seus efeitos na construção de si pelos entrevistados.

Finalmente, em “Narrativas Locais e Memória Coletiva”, Gerlane Bezerra Rodrigues & Juliana Rodrigues Morais, discutem a partir de três diferentes monumentos da cidade de Vitória da Conquista, que homenageiam os Bandeirantes, Nossa Senhora da Vitória e os índios Mongoiós, a valorização pelo poder local, a partir da década de 1980, das memórias de setores antes excluídos das narrativas identitárias presentes naquele município e em sua região. “A resistência – afirmam as autoras – toma a forma de fragmentos do passado que se tornam memórias coletivas”.

Na seção Depoimentos, temos o prazer de apresentar o texto “Biografar a Beatriz Sarlo”, de Judith Gabriela Podlubne, que oferece uma rica reflexão sobre o desafio da escrita biográfica partindo de sua experiência pessoal na tentativa de analisar e compreender memórias da crítica literária argentina. A infância de Sarlo, considerada como secundária nos primeiros momentos da pesquisa, revela-se como um elemento central ao se examinarem os relatos que a autora faz em La máquina cultural (1998), utilizando-se das referências de Rosa Del Rio, sua tia, para entremear o vivido, o lembrado e o narrado, desta forma mapeando-se o caminho de ida e de volta entre a vivência e a escrita.

A seção de Notas de Pesquisa, por sua vez, é iniciada com “De la anécdota a la biografia”, relato de Mario Alberto Magaña Mancillas sobre sua experiência em um projeto de História Oral envolvendo moradores das zonas rurais de Ensenada, Baja Califórnia, no México, e das publicações que resultaram da pesquisa: um livro de causos e anedotas, um sobre memórias de cinco mulheres indígenas, outro de testemunho autobiográfico e, ainda, uma biografia.

Também a história oral, ou, o que os autores identificam como histórias de vida constituem o eixo do texto seguinte, de Veronica Pacheco de Oliveira Azeredo & Marília Sousa Andrade Dias, com o título “Alicia Vega”, uma avaliação da teoria pedagógica da intelectual chilena sobre a sensibilização de crianças pobres para o cinema através de suas pioneiras oficinas que uniam estética, ensino e impacto social, resgatando relatos orais de pessoas que se envolveram de diferentes formas com tal projeto.

Para encerrar a seção, temos “Assim foi meu passado”, de Geovanni Gomes Cabral, que expõe o processo de escrita da autobiografia versificada do cordelista paraibano, radicado em Pernambuco, José Costa Leite. Intitulada A vida da minha vida (2013) e escrita em meio a produção de cordéis, xilogravuras e almanaques populares de um representante da cultura popular nordestina, nesta obra se conjugam lembranças, formas de auto-representação e diferentes temporalidades.

O dossiê se encerra com três resenhas: a primeira a respeito de coletânea sobre o tema da biografia publicada na Argentina; a segunda enfoca obra sobre a trajetória política do crítico de arte e militante comunista Mário Pedrosa (1900-1981); e, por último, uma sobre biografia de Octavio Augusto da Cunha Corrêa, o único civil morto no episódio tenentista conhecido como a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro, em julho de 1922.

A resenha de João Muniz Júnior, intitulada “Os caminhos da biografia”, descreve uma coletânea, organizada por Nora Avaro, Julia Musitano e Judith Podlubne, com o título Un arte vulnerable: la biografia como forma (2018), em que são apresentados capítulos sobre teorias, métodos, experiências e possibilidades sobre e da escrita biográfica e autobiográfica.

Victor Emmanuel Farias Gomes avalia a biografia política escrita por Dainis Karepovs, com o título Pas de Politique Mariô!: Mário Pedrosa e a política (2017), uma narrativa que dimensiona as opções intelectuais e políticas do intelectual e militante de esquerda Mario Pedrosa entre 1920, ano de sua filiação ao Partido Comunista do Brasil (PCB), e 1980, ano de uma nova filiação ao nascente Partido dos Trabalhadores e de sua morte.

E, encerrando o dossiê, a explanação de Lucas Mateus Vieira de Godoy Stringuetti sobre a biografia escrita por Afonso Licks sobre Octavio Augusto da Cunha Corrêa, com o título Octavio, o civil entre os 18 do Forte de Copacabana (2016), o que é entendido como um resgate de um personagem que foi, de certa forma, esquecido ao longo do tempo.

Assim, se por um lado, todas as muitas maneiras em que se manifesta o espaço biográfico não estão contempladas nos textos que o presente dossiê nos traz; por outro, com certeza, trata-se de um panorama amplo e plural de formas de se pensar o biográfico e o autobiográfico em algumas regiões da América Latina, construído com a valiosa contribuição de pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, e que se afirma como um convite para a reflexão sobre um tema privilegiado.

Desfilam como pano de fundo dos trabalhos aqui apresentados discussões teórico-metodológicas, problemas de linguagem, dramas e traumas do exílio e da exclusão, as implicações do crime e da loucura, as relações entre fato e ficção, a riqueza das histórias de vida, as complementariedades entre prosa e poesia, discussão sobre patrimônio e memória, os desafios da história oral, o papel do ensino e a necessidade da inclusão social, entre outros temas.

Entendemos que é um resultado feliz e honroso e esperamos que os leitores desfrutem de forma enriquecedora da leitura.

Wilton C. L. Silva – Professor Associado do Departamento de História da Universidade Estadual Paulista – UNESP, Campus de Assis. Livre-Docente em Metodologia da Pesquisa Histórica e Doutor em História pela UNESP-Assis; Mestre em Sociologia e graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected] CV Lattes: http: / / lattes.cnpq.br / 7506207238645739 ORCID iD: https: / / orcid.org / 0000-0002-1507-8017

Aurelia Valero Pie – Pesquisadora e Professora da Unidad de Investigación sobre Representaciones Culturales y Sociales, Universidad Nacional Autónoma de México. Doutora em Historia por El Colegio de México; Mestre em Filosofía pela École Normale Supérieure e pela Université Paris IV – Paris-Sorbonne; Graduada em Filosofia pela Université Paris I – Panthéon-Sorbonne. E-mail: [email protected] ORCID iD: https: / / orcid.org / 0000-0002-4759-9124


SILVA, Wilton C. L.; PIE, Aurelia Valero. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.22, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Trabalhadores livres e escravizados no Mundo Atlântico / Revista Maracanan / 2019

O presente número da Revista Maracanan traz, primeiramente, o dossiê “Trabalhadores livres e escravizados no Mundo Atlântico”. Os estudos sobre os mundos do trabalho, produzidos no Brasil, têm passado por significativas transformações nos últimos anos.[1] Uma das mais significativas diz respeito às investigações incluírem, a partir principalmente dos anos 2000, os escravizados como parte fundamental da história do trabalho brasileira. Nesse sentido, as pesquisas ressaltaram a importância de questionar a formação da classe trabalhadora no nosso país como sendo composta unicamente por operários livres, homens, brancos, em sua maioria de origem europeia e apontam à necessidade de também serem analisadas as relações entre trabalhadores livres e escravizados, bem como as formas de organização e manifestação destes. Busca-se, assim, o diálogo necessário entre os historiadores da escravidão e os estudiosos das práticas políticas e culturais dos trabalhadores urbanos pobres e do movimento operário.[2]

Aliada a essa transformação na historiografia nacional, ressalta-se também uma mudança no cenário internacional, com a introdução da perspectiva da história global do trabalho. Essa propõe um conceito mais amplo de trabalhador, e expõe que o trabalho livre assalariado era apenas uma das formas de trabalho, que incluía ainda a escravidão. Outro ponto fundamental é apontar que os trabalhadores assalariados eram bem menos livres do que se supõe, e que as barreiras entre servidão e liberdade eram muito fluidas. A história global do trabalho busca ainda investigar a interação e conexão entre diferentes localidades.[3]

A ampliação do conceito de trabalhador possibilitou incluir aqueles e aquelas que labutavam fora das fábricas e haviam sido invisibilizados até então. Nesse sentido, o primeiro artigo deste dossiê trata das trabalhadoras ligadas ao serviço doméstico carioca na virada do século XIX para o XX, que, apesar da sua intensa participação no mercado de trabalho da cidade, não receberam atenção dos estudiosos até muito pouco tempo. O texto de Natália Peçanha apresenta uma multiplicidade de agentes – tais como libertos, livres, nacionais e imigrantes –, e aponta como as experiências deles se entrelaçavam no serviço doméstico em um momento histórico em que as noções de liberdade e de trabalho livre e assalariado ainda se conformavam.

Os debates em torno das relações entre trabalho livre e escravo também estiveram no cerne do surgimento da Escola Agrícola da Bahia, inaugurada em 1877, em São Bento das Lages, no interior da Bahia. Idalina Freitas, em seu artigo, promove um diálogo entre os estudos da escravidão, do pós-abolição e dos mundos do trabalho ao tratar do espaço da escola como o resultado de um projeto de instrução pública para o pós-abolição. A construção da escola e do seu projeto político envolveu a mão de obra livre e escravizada e a preocupação com a instrução pública voltada para o trabalho, principalmente no seu aprimoramento agrícola, visando a formação de um operariado agrícola modernizado e mais competente, contrapondo-se ao que seria a agricultura praticada por escravos e ex-escravos, entendida naquele momento como exercida de forma menos “profissional”.

Os dois últimos artigos têm a escravidão como ponto de partida para pensar os mundos do trabalho na sociedade do século XIX em dois locais: Alagoas e Rio de Janeiro. No texto de Fábio Castilho, a condenação à morte de um escravo é o ponto de partida para relacionar a representatividade da escravidão n’O jornal do Pilar, de Alagoas, em um contexto de avanço das ações abolicionistas, mas ainda marcado por violências e por leis que reforçavam o castigo físico e a pena de morte para os crimes cometidos por escravos. A condenação à morte ou penas mais violentas contra os escravizados que cometessem crimes ou revoltas foi resultado de ações escravas da década de 1830 e que marcaram a sociedade escravista. Na década de 1870, período estudado por Castilho, a unanimidade por esse tipo de execução já não existia e por isso o debate ocorreu no principal jornal da cidade, e analisado pelo autor, possibilitando uma visão sobre as relações escravistas de uma província distante da Corte. Castilho finaliza com a análise do Censo de 1872, e apresenta que os dados para a região possibilitam verificar que os escravos majoritariamente trabalhavam na agricultura e no serviço doméstico, tendo alguns poucos cativos realizado algum trabalho manual mais especializado.

Já o artigo de Iamara Viana & Flavio Gomes traz a representatividade do corpo africano diante do mercado de mão de obra escravizada no Rio de Janeiro na primeira metade do XIX. Entre tensões e expectativas sobre o uso dessa mão de obra para o trabalho escravo, os autores usam processos cíveis e outras descrições, principalmente nos jornais, para mostrar a complexidade do corpo africano e seu uso para o trabalho escravizado. Através da análise de uma rica documentação do Arquivo Nacional, referente aos africanos remetidos a casa de correção, eles conseguiram elencar características comuns a esses corpos que somados aos discursos médicos foi possível perceber a construção de uma retórica e outras normas para o uso desses homens e mulheres para o trabalho escravizado. Importante ressaltar que a descrição do corpo africano fez parte do processo de venda e anúncios de homens e mulheres para o trabalho escravo desde o XVIII e se intensifica no Brasil, principalmente nos anúncios de venda e de fugas de algum escravizado africano.

Finalizamos o dossiê com uma entrevista com Fabiane Popinigis, professora da UFRRJ e coordenadora do Grupo de Trabalho – Mundos do Trabalho (GT-MT). Nesta entrevista, debatemos principalmente a trajetória recente da historiografia dedicada aos mundos do trabalho no Brasil, cujo tema do presente dossiê, as relações entre trabalhadores livres e escravos, tem ganhado cada vez mais destaque.

Esse número da Revista também conta com três contribuições na seção de artigos livres. O primeiro, de Daniel Venâncio & Euclides Freitas, diz respeito à fundação do Oliveira Sport Club, do Oeste de Minas em 1916, e a relação entre a elite e os eventos festivos ocorridos no clube. O texto seguinte, de Sandro Gomes, trata das eleições para deputado federal entre os anos de 1915 e 1918 no Estado do Paraná no que se refere às campanhas e ao desempenho eleitoral dos candidatos ao cargo. O terceiro texto, por Francisco Monteiro & Amanda Leal, constitui-se enquanto uma exposição de metodologia da pesquisa e de organização de acervos, a partir do trabalho realizado com os manuscritos eclesiásticos guardados na Paróquia de Nossa Senhora da Vitória, Diocese de Oiras, no Piauí. O último texto da seção, de autoria de Nívia Pombo, é uma interessante análise sobre as nomeações portuguesas para os cargos administrativos nas conquistas portuguesas entre 1796 e 1803, o perfil dos que ocuparam esses postos e o impacto da valorização dos saberes universitários na escolha para o exercício do cargo. Finaliza o presente número a nota de pesquisa de José Lúcio Nascimento Júnior, referente ao Congresso Internacional de História da América realizado pelo Instituo Histórico e Geográfico Brasileiro em 1922.

Notas

1.Para um panorama de quais foram essas mudanças, ver: BATALHA, Cláudio H. M. Os desafios atuais da história do trabalho. Anos 90, Porto Alegre, v. 13, n. 23-24, 2006.

2. A presença de análises sobre as relações entre trabalhadores livres e escravizados na historiografia do trabalho no Brasil recente foi debatida pelos seguintes textos: TERRA, Paulo Cruz; POPINIGIS, Fabiane. Classe e raça na história do trabalho no Brasil (2001-2017). Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 32, n. 66, 2019; NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Trabalhadores negros e o “paradigma da ausência”: contribuições à história social do trabalho no Brasil. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 29, n. 59, 2016.

3. A principal obra a apresentar a proposta da história global do trabalho é: LINDEN, Marcel van der. Trabalhadores do mundo: Ensaios para uma História Global do Trabalho. Campinas, Ed. Unicamp, 2013. No que diz respeito a alguns desdobramentos dessa perspectiva, ver: DE VITO, Christian. New perspectives on global labour history. Introduction. Workers of the World, v. 1, n. 3, 2013

Renata Figueiredo Moraes – Professora Adjunta de História do Brasil, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; Mestre e graduada em História pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected] CV Lattes: http: / / lattes.cnpq.br / 7422043520205798

Paulo Cruz Terra – Professor Adjunto de História do Brasil, do Instituto de História, da Universidade Federal Fluminense. Doutor e Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense; graduado em História pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected] CV Lattes: http: / / lattes.cnpq.br / 3005228142189797


MORAES, Renata Figueiredo; TERRA, Paulo Cruz. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.21, 2019. Acessar publicação original

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História das Religiões: da construção de uma disciplina aos seus desafios atuais / Revista Maracanan / 2019

Na segunda metade do século XVIII, mais especificamente em 1757, o filósofo iluminista escocês David Hume publicou uma obra chamada The Natural History of Religion, considerada uma espécie de percursora dos estudos contemporâneos do campo da História das Religiões. Desde então, a construção do “religioso” como objeto de investigação é um tema que interessa à História e as demais Ciências Humanas de forma incessante, especialmente após a consolidação destes saberes e discursos enquanto disciplinas autônomas e de reconhecida cientificidade. Filosofia, Antropologia, Sociologia, Psicologia, Psicanálise e História, cada uma à sua forma, interrogaram-se sobre a religião, as religiões e o fato religioso enquanto uma expressão da realidade social. Mais do que isso, a própria “história das religiões” (Religionswissenschaft) configurou-se, com Max Müller a partir da segunda metade do século XIX, como uma disciplina nova, cujos parâmetros e premissas estão lançados desde pelos menos os anos 1900, e incessantemente renovados pelas escolas francesas, italianas e demais iniciativas sistemáticas de investigação.

Se em sua origem a matriz judaico-cristã determinou, em certa medida, o enquadramento e as analogias possíveis, a partir das abordagens comparativas, a pluralidade das pesquisas desenvolvidas sustenta a diversidade temática e metodológica, além da riqueza analítica sobre as quais a História das Religiões se funda, se dissemina e se sustenta. Este dossiê foi pensado justamente para reunir pesquisas atualmente em desenvolvimento que se dedicam a esta temática, em especial em sua articulação com outros campos, como o da cultura, o da política e o das relações sociais.

Assim, observamos que temas como missões religiosas, culto, liturgia, teologia, e moral, além de seu aspecto de mediação do sagrado, também são analisados em função de sua importância no âmbito das disputas entre alteridades e construções de identidade; das tensões entre as diversas formas de entender e representar o religioso; das relações de gênero; de suas implicações com projetos econômicos e seus efeitos na vida material; e de sua instrumentalização para o estabelecimento de lugares e hierarquias sociais. Outro aspecto interessante observado nos estudos aqui publicados diz respeito à relação entre a disseminação de uma determinada religião e a (re)estruturação do espaço, seja em áreas rurais ou de fronteira, seja em áreas de crescente e acentuada urbanização, seja em contextos coloniais ou na contemporaneidade. Isso diz da potencialidade da História das Religiões enquanto um espaço discursivo e historiográfico que propicia o diálogo entre diferentes campos do saber, na medida em que viabiliza e materializa estudos que dialogam com a teologia, a geografia, a antropologia, a sociologia, a arquitetura e, evidentemente, a história.

A disseminação do cristianismo e da vida cristã no período moderno, por exemplo, é abordada no artigo Um santo brâmane: a vida e santidade do oratoriano José Vaz na obra de Sebastião do Rego. A partir da análise de uma fonte documental do século XVIII, Ana Paula Sena Gomide aborda as questões acerca da formação de um clero nativo em um espaço oriental não colonial. Em um contexto de franca disputa entre portugueses e holandeses – isto é, entre católicos e protestantes – a autora acompanha a trajetória de um cristão de origem brâmane que de Goa parte para o Ceilão. Ressaltando a importância da Congregação do Oratório de Goa na disseminação do cristianismo na região, a leitura nos permite perceber as complexidades da extrapolação da presença cristã para além os limites do Estado da Índia.

Ainda no contexto da Época Moderna, a conduta exemplar de uma vida religiosa, abordada a partir da leitura de uma fonte do século XVIII, é o tema do artigo “E se o frade quiser ser perfeitinho”: instruções para uma conduta exemplar do clero regular português no século XVIII. Esta contribuição traz para o debate os aspectos morais que muitas vezes estão associados ao tema da religião e seus respectivos desdobramentos na vida social daquele tempo, lançando luz ao contexto da Reforma católica, isto é, abordando o tema da conduta moral adequada como indício de uma reestruturação da Igreja Católica e sua acentuada preocupação com a regulação das práticas religiosas. Tece-se aqui, então, um diálogo entre a moralidade e o contexto reformado, debatendo ortodoxia e normatização de condutas e práticas sociais.

Em O romance missionário-protestante Candida: autoria feminina e relações de gênero na obra de Mary Hoge Wardlaw (séc. XIX-XX), as relações de gênero, ação missionária e atividade escrita são temas articulados. As imbricações entre gênero e religião são analisadas de forma complexa, a partir de um pertinente aporte teórico que respalda uma atenciosa análise textual. A religião, neste contexto, aparece como um meio que viabiliza a expressão das concepções de mundo de uma mulher protestante no final do século XIX, informando-nos das tensões entre os gêneros e as diminutas possibilidades de protagonismo feminino. As análises conduzidas por Sergio Willian de Castro Oliveira Filho neste artigo reiteram ainda um ponto central de dossiê aqui proposto: as possibilidades infinitas de problematizações e articulações que a história das religiões propicia, em especial tendo em conta a noção do religioso como aquilo que diz dos modos de vida e das visões de mundo de sujeitos singulares e de comunidades políticas.

A relação entre “civilizar”, “colonizar” e “catequisar” é objeto do artigo Civilizar para colonizar en Urabá (Antioquia, Colombia), 1918-1940. A questão central – a produção de uma fronteira – é analisada levando em conta a atuação decisiva de uma ordem religiosa: os Carmelitas. Num contexto contemporâneo (início do século XX), observa-se como a atividade missionária assessorou iniciativas estatais de desenvolvimento econômico e material. A posição geográfica estratégica de Urabá, os projetos de extração mineral e florestal, abertura de ferrovias comunicando o interior da Colômbia com o Atlântico, a presença de uma comunidade indígena “não reduzida”, a iniciativa evangelizadora: estes são os elementos apontados por Carolina María Horta Gaviria e analisados em conjunto sob o aporte teórico das noções de territorialidade e colonialidade do poder. Segundo o binômio progresso moral e progresso material, a questão religiosa – representada pela missão carmelita – é aqui analisada em seu papel “civilizatório”, isto é, enquanto manifestação de uma violência simbólica que subsidiava um determinado agir político voltado para a desconstrução de um suposto “espaço selvagem”.

Avançando mais um pouco na contemporaneidade, Marcello Felipe Duarte compõs, em A teologia da prosperidade na Igreja Universal do Reino de Deus e a demonização das religiões afro-brasileiras uma análise complexa e perspicaz dos aspectos sociais da disseminação das religiões neopentecostais e de sua teologia da prosperidade, especialmente no Brasil das últimas décadas. O foco na Igreja Universal do Reino de Deus, ao contrário de isolar o debate investigativo, é eficaz em demonstrar a construção de uma identidade social do fiel da IURD na mesma medida em que estabelece relações entre a formação deste ethos e as demais religiosidades do Brasil contemporâneo. Mais do que isso, o autor expõe de maneira muito pertinente a ambivalência do processo de demonização e assimilação de certas práticas rituais, as quais são ora relegadas ao campo do outro, ora apropriadas e legitimadas enquanto meios para se acessar o sagrado. Além das implicações destas lógicas de pertença na vida social, os aspectos da vida material também são destacados, a partir de uma noção de mercado de bens religiosos e da consolidação da teologia da prosperidade, cujos efeitos se fazem sentir na reiteração do poder de determinadas lideranças e no apelo que exercem nos fiéis.

Neste sentido, é muito rica a contribuição do artigo de Rodrigo Pereira & André Leonardo Chevitarese Por uma Arqueologia dos Candomblés: contribuições da ciência do passado aos estudos dos fenômenos religiosos não só por trazer à análise o Candomblé enquanto uma forma de religiosidade afro-brasileira, mas também por incorporar metodologias interdisciplinares, fazendo permear em sua investigação Arqueologia, Antropologia e História.

O presente dossiê traz ainda duas notas de pesquisa, que têm como objetivo apresentar o estado presente de algumas investigações em andamento. A primeira delas, A atividade litúrgico-musical da ermida de Nossa Senhora dos Remédios: Expressão de uma identidade nobiliárquica da cidade de Angra nos séculos XVI e XVII, traz tema do religioso a partir de suas manifestações culturais e de suas implicações sociais no arquipélago dos Açores. A atividade musical, a liturgia e o estabelecimento e afirmação de uma nobreza local são temas que se articulam no artigo de Luís Henriques. A paisagem sonora, a estruturação do culto e os aspectos sócio hierárquicos são descritos de maneira a compor uma análise historiográfica rica e original, enfatizando a importância do patrocínio religioso e a projeção de influência e poder das famílias nobres locais.

A segunda nota O cristianismo na terra dos lamas: mais uma forma de sagrado chega ao Tibete (sec. XVII e XVIII), tem como objetivo debater o próprio conceito de religião e seus problemáticos usos, em especial em se tratando de investigações cujos recortes não se limitam ao chamado “Ocidente”, isto é, quando se trata de analisar sistemas de crenças e práticas religiosas que não se filiam à tradição judaico-cristã ocidental. Pensando as complexidades dos diálogos inter-religiosos, está colocada em questão a pertinência da noção de religião, bem como de outros conceitos agregadores que nos informam mais de um dizer sobre o outro do que do outro ele mesmo. Procura-se debater em que medida categorias como “Budista” e “Hinduísta” são pertinentes e eficazes no discurso historiográfico, bem como refletir se, neste contexto, o cristianismo não seria apenas mais uma forma do sagrado, cuja a especificidade doutrinária e seus efeitos sócio-políticos são evidentes apenas da parte de um dos interlocutores que participam do diálogo.

Encerramos este dossiê com a entrevista realizada com o professor Adone Agnolin, na qual o professor e pesquisador da Universidade de São Paulo contextualiza o processo de surgimento e consolidação do religioso enquanto objeto / problema das ciências humanas, em especial da História. Com enfoque na Escola Italiana, Agnolin demonstra o desenvolvimento deste saber e deste discurso, problematizando seus limites e indicando caminhos possíveis para os desdobramentos de investigações neste campo. É, de fato, uma contribuição primorosa para este volume.

Esta edição da Revista Maracanan conta, ainda, com sete contribuições de temática livre. Na Nota de Pesquisa Fragmentos de (auto)imagem: notas sobre o Fundo Yvonne Jean no Arquivo Público no Distrito Federal (1911-1981), Rafael Pereira da Silva transita entre os arquivos pessoais, a memória e a escrita da história, para traçar uma trajetória intelectual da personagem título. Carolina Barcellos Ferreira, por sua vez, traz ao público uma Entrevista com Mariza Soares, tratando sobre a coleção de objetos africanos do Museu Nacional, e mais especificamente sobre a exposição ”Kumbukumbu”. Por fim, a seção “Artigos” encerra este número, com uma coletânea de textos de extrema qualidade: André Rocha Carneiro e Lúcia Maria de Assis, A organização dos comunistas na região Sul Fluminense no período pré-golpe civil-militar (Barra Mansa, Volta Redonda, Barra do Piraí e Piraí); André Luiz de Souza Oliveira Oliveira & Thaddeus Gregory Blanchette, Lepra e Exílio: a biopolítica da monarquia havaiana no século XIX; Maria Aparecida de Menezes Borrego & Jean Gomes de Souza, Os percursos das Notícias Práticas das Minas de Cuiabá e Goiás na capitania de São Paulo (séculos XVIII-XX); Cláudia Maria de Silva de Oliveira, Rendas e Gravatas: moda, identidade e gênero na Imprensa Ilustrada carioca, 1900- 1914; Júlia Freire Perini & Marcelo Durão Rodrigues da Cunha, Entre a repressão policial e o saber médico: o controle social da loucura no Espírito Santo entre o fim do século XIX e os anos 1950.

Bruna Soalheiro – Bolsista de Pós-Doutorado (CAPES / PNPD) no Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e em Histoire et civilisations pela École des Hautes Études en Sciences Sociales; Mestre em História Social pela USP; e, Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected] CV Lattes: http: / / lattes.cnpq.br / 0348245873351423

Fernando Torres Londoño – Professor Titular do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected] CV Lattes: http: / / lattes.cnpq.br / 0707506010946254


SOALHEIRO, Bruna; LONDOÑO, Fernando Torres. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.20, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Nobrezas e Hierarquias sociais, séculos XV-XIX / Revista Maracanan / 2018

O presente dossiê foi concebido com o intuito de reunir estudos sobre o papel da nobreza e das hierarquias sociais de maneira mais ampla. Congrega, portanto, textos que versam sobre as formas como essas hierarquias e o próprio conceito de nobreza eram pensados entre os séculos XV e XIX, bem como análises sobre as estratégias, redes e trajetórias de grupos ou indivíduos na mesma temporalidade.

Na Época Moderna, a desigualdade era naturalizada, constituindo-se em elemento central do ordenamento social, jurídico e ideológico europeu. Os diferenciais de renda e riqueza eram muito marcados e crescentes, 1 mas os discursos dominantes sobre a estrutura social enfatizavam o nascimento e a honra para justificar as disparidades que separavam o nobre de província do camponês que lavrava sua terra ou a aristocrata da criada que lhe vestia. 2

Tais atos de fala não são meras cortinas de fumaça, mas sim, como escreveu Barbara Fields, “o vocabulário descritivo da existência cotidiana, [configurando uma ideologia,] através da qual as pessoas compreendem a realidade em que vivem e que criam no dia a dia”. 3 Afinal, como indagou Marc Bloch, “uma hierarquia social é algum dia outra coisa que um sistema de representações coletivas, móveis por sua própria natureza?”. 4 Nesse sentido, trabalhos como as notas de pesquisa de Marcone Aroucha no presente dossiê, “Nobreza ibérica na Alta Idade Moderna: o mérito, a linhagem, os discursos” e de Nara Maria de Paula Tinoco, “Nobres e magistrados: uma discussão sobre o conceito de nobreza”, que analisa a relação entre nobreza e magistratura, são contribuições relevantes à compreensão de concepções coevas sobre nobreza e seus impactos sobre as escolhas das elites dos dois lados do Atlântico em sua busca por legitimidade social. A importância da honra estamental para a sociedade do Antigo Regime levava os agentes a buscarem o estatuto de nobreza através de estratégias diversas, termo, aliás, muito frequente nas análises sobre os processos de nobilitação como podemos perceber no artigo de Marcia Eliane Alves de Souza e Mello, “A trajetória de uma rede familiar no Pará setecentista: O caso da família Góis” e na nota de pesquisa de Maria Beatriz Gomes Bellens Porto, “Estratégias sociais nas festas de São Sebastião: o exemplo do financiador José Antônio de Freitas Guimarães no Rio de Janeiro (1795-1810)”.

Os dois princípios de hierarquização – classe e estamento – estavam intimamente ligados, pois recursos financeiros eram necessários para “viver a lei da nobreza”, como se dizia na Península Ibérica, e endinheirados costumavam ao longo de uma ou duas gerações transformar seu capital econômico em simbólico através da compra de terras, cavalos e (quando disponíveis) títulos e ofícios nobilitantes, afastando-se das atividades comerciais e manufatureiras, no processo batizado por Fernand Braudel, talvez com excesso de severidade e teleologismo, de “traição da burguesia”. 5

Pode-se dizer, portanto, que a Europa era, e o mesmo é válido com ainda mais razão para as sociedades coloniais em formação nas Américas, “uma sociedade estamental tendencialmente classista, um mundo ordenado teoricamente pelo sangue e nascimento; distribuído em grupos em realidade graças ao dinheiro e às relações pessoais e familiares. Neste sentido, a nobreza é antes de tudo um ideal, um modo de vida, uma aspiração”. 6

A história da nobreza europeia não é, portanto, uma inverossímil sobrevivência das mesmas linhagens da Idade Média até a Era das Revoluções, mas sim um constante processo de nobilitação e decadência, em que plebeus se tornavam nobres, a nobreza de província ascendia à Corte e cortesãos tornavam-se aristocratas, ao mesmo tempo em que famílias antes proeminentes desapareciam. Em Portugal, como no restante da Europa, o período que vai da segunda metade do século XIV até finais do Quinhentos foi de significativa mobilidade social, constituindo-se justamente nessa época a nobreza moderna. 7 Essa dinâmica também esteve profundamente ligada à monarquia pois, diferente do que defendera a historiografia tradicional, não havia uma oposição entre poder aristocrático e poder régio, mas sim uma relação umbilical, como se depreende da análise da professora Mafalda Soares da Cunha na entrevista que fecha esse dossiê.

Como aponta a historiadora portuguesa em sua fala, a especificidade lusitana está, porém, na importância que as possessões extra-europeias assumiram nesse processo, como se vê no artigo de Nuno Vila-Santa, “Do Algarve ao Império e à titulação: estratégias de nobilitação na Casa dos Barretos da Quarteira (1383-1599)”. Este trabalho é exemplar por demonstrar várias questões centrais nas historiografias sobre a nobreza: destaca, em primeiro lugar, tanto a importância do serviço ao monarca na ascensão de uma família provincial quanto o papel cada vez mais central assumido pelo império na reprodução social nobiliárquica desde o século XV. Também ilustra o ponto de Mafalda Soares da Cunha de que não é recomendável cindir de maneira exageradamente abrupta o final da Idade Média do início da Época Moderna, pois, especialmente no tocante à formação do grupo nobiliárquico, há muitas continuidades. Por último, evidencia a importância das estratégias familiares de longo prazo para a consolidação e exaltação do estatuto nobiliárquico.

Em razão do processo de atlantização do império português, o serviço no Estado do Brasil assumiu uma importância crescente a partir do século XVII e ainda mais no seguinte. 8 Devido à relevância política dos governadores e vice-reis, um estudo cuidadoso de suas origens e relações sociais pode iluminar sua relação com os vassalos ultramarinos. Reside aí a importância do artigo de Érica Lôpo de Aráujo sobre o início da trajetória de um aristocrata e militar que viria a se tornar um dos mais polêmicos governantes da América Portuguesa, o Conde de Óbidos: “D. Vasco de Mascarenhas: nobreza e trajetória de serviços (1626-1640)”.

O estudo das nobrezas lusoamericanas ainda é, mesmo depois das obras de fôlego de Evaldo Cabral de Mello, João Fragoso e Ronald Raminelli, 9 tema merecedor de mais atenção. Uma das áreas em que restam territórios a serem explorados é sua relação com os grupos subalternos dos quais dependiam seu poder, seguindo o exemplo de Mafalda Soares da Cunha em sua tese de doutoramento para a maior Casa aristocrática de Portugal, como destaca em sua entrevista. No Brasil, Fragoso tem estudado a relação com os cativos através do compadrio, 10 mas o artigo de Israel Silva Aquino & Fábio Kuhn, “Redes, hierarquia e interdependência social nas relações de compadrio do século XVIII (Viamão – 1747-1769)”, busca identificar as relações sociais de duas poderosas famílias do extremo sul do Estado do Brasil. Recorrendo à metodologia da análise de redes sociais, tem como uma de suas contribuições mais interessantes a descoberta da centralidade feminina nessas relações, sugerindo que os estudos sobre elites e nobreza devem esforçar-se mais para refletir sobre o papel das mães, esposas e filhas na constituição e reiteração das nobrezas locais.

Para além disso, cabe ressaltar a carência de estudos sobre a nobreza imperial brasileira tal como se configurou após a independência. Embora a concepção de nobreza já estivesse em processo de transição desde o período moderno, incorporando a variante do mérito, com a difusão dos critérios liberais, os debates políticos que se afirmaram nas primeiras décadas do Império independente apresentaram uma reflexão sobre a nobreza, tendo muitas vezes questionado sua existência ou, mesmo quando a tomaram como dada, buscando incorporar novos sentidos a ela. Nesta perspectiva, o modelo liberal que atentava para a figura do indivíduo, e não do pertencimento ao corpo social tal como existente no Antigo Regime, e, consequentemente, para a ideia de mérito, permeou a reformulação que muitos grupos faziam da sociedade. É preciso repensar, portanto, a ideia de nobreza e atentar para as formas como ela passou a ser concebida pelos atores políticos da época, para além do aprofundamento dos estudos sobre as relações entre nobreza e elite política e nobreza e poder econômico, aspectos os quais a análise de Luiz Fernando Saraiva, no artigo “O espaço da nobreza: hierarquia do poder em Minas Gerais no século XIX”, adiciona contribuição fundamental.

A manutenção de títulos e distinções no Império do Brasil não implicava necessariamente na manutenção dos sentidos construídos ao longo do Antigo Regime. Embora também nos séculos anteriores eles fossem múltiplos, fato é que a transição por que passou o novo Império que se criava, após os debates liberais e constitucionalistas, não poderia deixar de produzir uma grande aceleração nas maneiras de conceber as hierarquias sociais. Evidentemente, não se quer aqui afirmar que a nobreza imperial brasileira fosse completamente distinta daquela existente no período moderno, mas sim atentar para o fato de que os agentes históricos construíam e reconstruíam os sentidos atribuídos a ela, de modo que coexistiam percepções que a ligavam aos sentidos do Antigo Regime, e outras que as relacionavam aos sentidos liberais.

Compreender os sentidos atribuídos a esses títulos é fundamental porque permite o entendimento das ações e estratégias a que estavam dispostos os sujeitos históricos para alcançá-los. A legitimidade conferida por um título ou pela ocupação de um cargo valorizado na sociedade permite a compreensão das relações sociais, políticas ou econômicas traçadas antes do “prêmio”, mas também daquelas traçadas posteriormente a ele, visto que a legitimidade conferida pela titulação ou cargos colocava o agente em uma posição privilegiada para adquirir outras vantagens sociais. Com isso, quer-se dizer que essas posições não eram apenas o “fim” da trajetória, mas também representavam a abertura de outras possibilidades para o sujeito.

Para além do debate sobre a nobreza e sobre hierarquias sociais stricto sensu, percebemos no texto “A distância entre a cidade efêmera e a memória das pedras: arquitetura e hierarquia no Rio de Janeiro do período joanino” de Carlos Eduardo Pinto de Pinto como se pode pensar a ideia de hierarquização em seu aspecto mais amplo, isto é, expressa nas modificações urbanas sofridas pela cidade do Rio de Janeiro após a chegada da corte. O autor analisa o contraste entre uma cidade real ou material e uma cidade ideal que era erguida especialmente nos momentos de festividades na Corte através de uma arquitetura efêmera a qual era somada às gradações sociais dos participantes.

Outros textos complementam esse número, como o excelente artigo “Disputas pela história contemporânea de Portugal: a polêmica político-historiográfica entre José Agostinho de Macedo e Hipólito da Costa” de André da Silva Ramos & Valdei Lopes de Araújo, no qual é tematizada a produção historiográfica no Império português entre os séculos XVIII e XIX e a resenha de Tania Regina de Luca, que nos brinda com reflexões sobre a obra Como era fabuloso o meu francês! Imagens e imaginários da França no Brasil (séculos XIX-XXI), organizada por Anaïs Fléchet, Olivier Compagnon e Silvia Capanema de Almeida.

Dito isso, resta-nos apenas desejar: Boa leitura!

Notas

  1. Ver, para o caso inglês, o importante livro de: WRIGHTSON, Keith. Earthly Necessities: Economic Lives in Early Modern Britain. New Haven: Yale University Press, 2000, p. 182-201.
  2. BURKE, Peter. The language of orders in early modern Europe. In: BUSH, Michael L. (ed.). Social Orders & Social Classes in Europe since 1500: Studies in social stratification. Harlow: Longman, 1992, p. 1-12; THOMPSON, Irving. Hidalgo and pechero: the language of “estates” and “classes” in early-modern Castille. In: CORFIELD, Penelope (ed.). Language, History and Class. Oxford: Basil Blackwell, 1991, p. 53-78.
  3. FIELDS, Barbara Jeanne. Slavery, Race and Ideology in the United States of America. New Left Review, n. 181, 1990, p. 110. Tradução nossa.
  4. BLOCH, Marc. Les caractères originaux de l’Histoire rural française. Paris: Armand Collin, 1968 [1931], vol. I, p. 89. Tradução nossa.
  5. BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Época de Filipe II. São Paulo: EDUSP, 2016 [1949 / 1966], vol. II, p. 83-93.
  6. SORIA MESA, Enrique. La nobleza en la España moderna: cambio y continuidad. Madri: Marcial Pons, 2007, p. 319; Cf. também: p. 38-9 e 213-5.
  7. Ver, para a França, a síntese de: BEIK, William. A Social and Cultural History of Early Modern France. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 74-76.
  8. MONTEIRO, Nuno; CUNHA, Mafalda Soares da. Governadores e capitães-mores do império atlântico português nos séculos XVII e XVIII. In: MONTEIRO, Nuno; CUNHA, Mafalda Soares da; CARDIM, Pedro (eds.). OptimaPars: Elites Ibero-Americanas do Antigo Regime. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005, p. 191-252.
  9. Cf., dentre outros: MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da Restauração Pernambucana. São Paulo: Alameda, 2008 [1986], 3ª ed. rev., p. 155-80; FRAGOSO, João. À Espera das Frotas: microhistória tapuia e a nobreza principal da terra (Rio de Janeiro, c. 1600 – c. 1750). 2005. Tese (Concurso para Professor Titular de Teoria da História) – Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro; Idem. Nobreza principal da terra nas repúblicas de Antigo Regime nos trópicos de base escravista e açucareira: Rio de Janeiro, século XVII a meados do século XVIII. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Fátima (orgs.). O Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, vol. III (1720-1821), p. 159-240; RAMINELLI, Ronald. Nobrezas do Novo Mundo. Rio de Janeiro: FGV, 2015.
  10. FRAGOSO, João. Elite das senzalas e nobreza da terra numa sociedade rural do Antigo Regime nos trópicos: Campo Grande (Rio de Janeiro), 1704-1741. In: FRAGOSO; GOUVÊA (orgs.). O Brasil Colonial. Op. cit., p. 241-305.

Camila Borges da Silva – Professora Adjunta, na área de História do Brasil, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É doutora em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); mestre e graduada em História pela UERJ e graduada em Moda pela Universidade Cândido Mendes (UCAM); além de ter realizado estágio pós-doutoral no Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. É autora de artigos em periódicos nacionais e internacionais e dos livros O símbolo indumentário: distinção e prestígio no Rio de Janeiro (1808-1821) (AGCRJ, 2010) e As ordens honoríficas e a Independência do Brasil: O papel das condecorações na construção do Estado Imperial brasileiro (1822-1831) (AN, 2018).

Thiago Krause – Professor Adjunto, na área de História Colonial, do Departamento de História e membro permanente do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Possui Doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Mestrado e graduação em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É autor dos livros Em busca da honra: a remuneração dos serviços da guerra holandesa e os hábitos das Ordens Militares (Bahia e Pernambuco, 1641-1683) (Annablume, 2012) e A América portuguesa e os sistemas atlânticos na época moderna: monarquia pluricontinental e Antigo Regime (Ed. FGV, 2013), este último publicado em conjunto com João Fragoso e Roberto Guedes.


SILVA, Camila Borges da; KRAUSE, Thiago. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.19, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Crise na e da História: desafio à escrita e à reflexão crítica / Revista Maracanan / 2018

Crise: a exceção que se tornou regra

O dossiê “Crise na e da História: desafio à escrita e à reflexão crítica” foi concebido no contexto de crise sem precedentes vivenciada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que vem se tornando alarmante desde, pelo menos, 2015. A situação de crise aguda inclui não só atrasos sistemáticos nos pagamentos de trabalhadores terceirizados, servidores, bolsistas, alunos cotistas, mas também a falta de verba de custeio para o funcionamento básico da universidade. Entendemos que propor uma reflexão sobre o conceito de “crise” representa não só uma forma de resistência ao lastimável momento atual da universidade, mas sobretudo uma abertura, uma provocação à reflexão. A crise da UERJ ganha então um sentido de metonímia, ou de um exemplo mais extremo dos dilemas atuais da universidade pública no Brasil. A crise da universidade pública, por sua vez, se articula com um cenário de crise nas ciências humanas.

Os artigos aqui apresentados são propostos como diferentes formas de tratar o conceito de “crise”, observando a sua amplitude semântica, e também almejam instigar a reflexão histórica, teórica e multidisciplinar. Deste modo, a temática central acolhe escritos relativos a historicidades diversas, abrangendo diferentes marcos espaço-temporais e abordagens interdisciplinares. Nessa pluralidade, os textos tratam de temas relativos à crise do capitalismo, crise na política, crise da universidade, crise das humanidades – compreendido o termo como formas variadas de conhecimento do mundo social –; sempre levando em consideração a crise enquanto problema histórico, empírico e teórico.

Para além da realidade da universidade no Brasil, não há dúvidas de que a crise está presente enquanto experiência, como uma vivência que se desdobra em sensações de insegurança, insatisfação e espanto diante da vida cotidiana, quando não de horror. A experiência do caráter movediço do presente alimenta atos vigorosos de repulsa aos poderes instituídos e às formas convencionais da política, da economia, do pensamento e das manifestações culturais. Se este parece inicialmente um cenário nacional ou latino-americano, os meios de comunicação, oficiais ou alternativos, mostram se tratar também de uma questão mundial. Por sua vez, os ensaios e textos acadêmicos revelam que essa vivência da crise ou seu conceito recorrente atingem todo o âmbito das humanidades, seja no que se refere aos objetos de conhecimento das diversas áreas, seja no que tange à própria fragilização dos arcabouços teóricos que as sustentavam, sendo estas duas dimensões de um só horizonte.

Articular presente, futuro e indagações acerca do passado é uma das facetas deste dossiê. O vocabulário da crise e sua relação com a crítica, como sublinhado por Reinhardt Koselleck, entre outros autores, não se restringe apenas a um diagnóstico do presente, mas remete a um sentido projetivo marcado pelo futuro, quer como esperança, expectativa, utopia ou distopia. Pensar sentidos para a(s) crise(s) não significa, então, tratar somente de decadência, decomposição ou fim, pois crise impulsiona reelaboração. A etimologia mesma da palavra, em grego ou latim, remete ao ato de separar, discernir e, portanto, à decisão, julgamento, evento ou momento decisivo. Ao mesmo tempo, é evidente que não vivemos mais na mesma ambiência otimista da modernidade: a contemporaneidade, independentemente da alcunha que receba (pós-modernidade, modernidade tardia, quarta cascata da modernização, regime de historicidade presentista, entre outras), suscita respostas, para novas e velhas questões. Sendo assim, o dossiê publicado agora pela Revista Maracanan busca tratar dessa perspectiva plural envolta no conceito de crise e por isso a sua estrutura visa oferecer uma resposta também múltipla por meio de entrevistas, ensaios, artigos analíticos e notas de pesquisa destinadas a tal indagação. Nos itens que se seguem, procuramos apresentar os artigos aqui reunidos, organizando-os em alguns blocos temáticos para os quais os assuntos tratados nos textos confluem.

Crise nas humanidades e crise na / da história disciplinar

O amplo espectro de contribuições presente no dossiê conflui para um questionamento da própria natureza da ideia de “crise”. Alguns artigos correlacionaram certo esgotamento das premissas epistêmicas que orientam a historiografia, associando-as à necessária ressignificação do papel do historiador. Esse é o tema presente em “Muito além das virtudes epistêmicas. O historiador público em um mundo não linear”, de Fernando Nicolazzi, que explora, por meio da análise da atuação do historiador Leandro Karnal, a zona de interseção entre a dimensão ética e a dimensão política do historiador. Esta mesma zona fronteiriça entre ética e política é abordada por Arthur Lima de Avila, no texto “Indisciplinando a historiografia: do passado histórico ao passado prático, da crise à crítica”, em que investiga o conceito de “passado prático” proposto pelo historiador Hayden White, questionando seus usos e limites diante dos impasses da historiografia contemporânea. Por sua vez, o artigo de Carlos Maia, “A crise da história e a onda pós-estruturalista” expõe uma argumentação que associa a crise da história às reflexões pós-estruturalistas, atento à categoria “narrativa histórica”, e defensor da tese de que a “crise da história” é uma crise dos historiadores motivados por uma ontologia alheia aos valores históricos e que reagem negativamente à perda de seus referentes realistas.

Também cabe destacar a contribuição de Thamara de Oliveira Rodrigues e Marcelo de Mello Rangel, “Temporalidade e crise: sobre a (im)possibilidade do futuro e da política no Brasil e no mundo contemporâneo”, que procura, a partir de um quadro teórico que considera o problema da temporalidade tal qual pensado por autores como Hans Ulrich Gumbrecht e Reinhard Koselleck, compreender as implicações da presença ubíqua da noção de crise em nossa sociedade.

Crise e democracia

Com balizas cronológicas distintas, mas analisando acontecimentos históricos concretos, os artigos de Daniel Pinha e de Luis Edmundo da Souza Moraes trabalham de forma geral com os impasses históricos da democracia representativa, seja, no caso de Moraes, ao procura estudar o peso da crise generalizada que atinge a Alemanha, a partir do inverno de 1929-1930, como fator explicativo para a derrota do projeto republicano liberal e para a emergência do nazismo; seja, no caso de Pinha, ao procurar compreender a centralidade das Manifestações de Junho de 2013 como um ponto de inflexão para a abertura da crise do modelo democrático-representativo experimentada ainda hoje no Brasil. A contribuição de Ana Elisa Cruz Corrêa, na Nota de Pesquisa intitulada “Crise do capital e crise da gestão estatal: a social democracia e o Brasil Potência” também se articula com esse contexto, posto que investiga particularidades da inserção da política econômica do Partido dos Trabalhadores na década de 2000 no sistema capitalista mundial. De um prisma diferente, o artigo “A Pandorga e a Lei: passado-presente-futuro”, de Joana D’Arc Fernandes Ferraz procura compreender como certas marcas do passado condicionam os impasses do presente no que diz respeito à questão da resistência e da memória da Ditadura Militar no Brasil, a partir do estudo sobre a peça A Pandorga e a Lei (1983-1984), de João das Neves.

Crise político-econômica

Na perspectiva da crítica à economia política, o conceito de crise sempre ocupou um papel estratégico, sendo destacada agora a rotinização de seu uso como uma espécie de metáfora do capitalismo atual. Nesse sentido, os artigos de Maurílio Lima Botelho, “Entre as crises e o colapso: cinco notas sobre a falência estrutural do capitalismo”; de Javier Blank, “Um museu de grandes novidades: capital fictício, fundo público e a economia política da catástrofe”; e de Dilma Andrade de Paula, “Dimensão temporal da(s) crise(s)”, demostram desde prismas distintos como o sistema capitalista atual naturalizou a “crise”, não mais como um momento de exceção, mas como regra, que reequilibra – num modus operandi que se poderia talvez chamar de ficticionalização – o funcionamento de um sistema financista que se expande exponencialmente sem necessário lastro real. Tais artigos sugerem que a naturalização da noção de crise em nosso vocabulário social e político gera um efeito nefasto, pois permite que se atribua uma sensação de normalidade a alguns dos aspectos mais desiguais, injustos e desumanos do sistema capitalista. Como nos explica Botelho, “uma mera repetição do nexo interno das categorias é incapaz de enxergar a processualidade histórica, tornando-se a crise um fenômeno sempre igual num tempo abstrato vazio”. Essa problemática também é aprofundada em uma das contribuições da seção Notas de Pesquisa. O texto de autoria de Frederico Lyra de Carvalho, “Crise: entre o comum, o sentido, o governo, o motim e a comuna”, discute o conceito de crise nas obras de Myriam Revault d’Allonnes (La crise sans fin); Pierre Dardot e Christian Laval (Ce cauche marqui n’en finit pas) e Joshua Clover (Riot, strike, riot), e mostra o processo de transformação desse conceito em signo fundamental da fase atual do capitalismo.

Nossas entrevistas, resenha e seção especial

No que tange às entrevistas, este dossiê foi agraciado com duas incursões de fôlego. A primeira foi elaborada junto ao poeta, crítico literário e professor Marcos Siscar, com o título “Escrever a crise”, na qual as perguntas são apenas estopim para o mergulho em um longo e consistente trabalho teórico e prático sobre poesia e crise executado há décadas pelo autor. Recuperando o argumento de seu último livro, De volta ao fim: o ‘fim das vanguardas’ como questão da poesia contemporânea (ed. 7Letras, 2016) e de seu Poesia e Crise (Ed. Unicamp, 2010), Siscar indaga como a ideia de uma crise nas vanguardas consistiu fundamentalmente numa operação discursiva, de caráter performativo (e não necessariamente a uma verdade factual). Esta hipótese pode ajudar a compreender melhor como as imagens variantes da noção de fim, incluindo a crise, oferecem um ponto de partida para aquilo que está em jogo no contemporâneo.

Por sua vez, a entrevista concedida à Revista Maracanan pelo filósofo e professor Marildo Menegat, intitulada “A crítica da economia política da barbárie”, volta-se a indagar os múltiplos sentidos da crise, sua relação com a história do capitalismo e seus efeitos degradantes sobre as relações sociais. Pautado em seu denso trabalho sobre movimentos sociais, militarização do cotidiano e crítica da cultura afiada na dialética negativa, Menegat compara as “teorias da crise” de viés marxista e liberal para desdobrar sua análise acerca da experiência mundial contemporânea e, especificamente, da situação do Brasil hoje, tanto do prisma econômico quanto político e cultural.

Ainda compõe esta edição a resenha “Testemunhos de um mundo partilhado” de autoria de Alfredo Bronzato da Costa Cruz, a respeito da obra When christians first met muslims: a sourcebook of the earliest syriac writings on Islam, de Michael Philip Penn (Univ. of California Press, 2015).

Finalmente, como texto de abertura deste dossiê, o ensaio de Pedro Meira Monteiro sobre Antonio Candido busca encarar impasses da civilização no contexto do imediato pós Segunda Guerra Mundial, recorrendo intertextualmente ao seu diálogo com Sergio Buarque de Holanda e ao repertório de Nietzsche mobilizado por Candido em “O portador” (originalmente publicado no Diário de São Paulo em 1946). Em um gesto de homenagem a Antonio Candido, falecido em 2017, os editores deste dossiê convidaram Pedro Monteiro a publicar seu texto nesta Seção Especial.

Crise para quê e para quem?

De um modo geral, todas as contribuições deste dossiê ajudam a compreender melhor a nossa atual situação já que apontam para a construção histórica e discursiva do conceito de crise. Contudo, no presente contexto de crise da UERJ, consideramos ser necessária uma nota conclusiva acerca deste problema que nos atinge diretamente agora e surge como horizonte para outras universidades públicas brasileiras, estaduais e federais. Acreditamos que as universidades, especialmente aquelas em processo acelerado de desmonte, como a UERJ, encontram-se diante de desafios nunca antes experimentados. De fato, algumas premissas do conhecimento disciplinar, especialmente na área de história, devem ser revistos; a demanda por uma maior abertura aos diversos públicos é hoje um truísmo, dentre outros problemas estruturais. Todavia, dizer que a universidade brasileira está em crise, sem qualquer tipo de adjetivação ou explicação, significaria ocultar uma motivação central na crise por ela vivenciada: os ataques aos diversos sentidos do que é público pelo governo federal dos últimos dois anos no Brasil. A legitimação aos ataques criminosos feitos pelo governo estadual às universidades de seu âmbito e a busca, no nível federal, da diminuição dos sentidos do que é público são cara e coroa de uma mesma moeda voltada a sustentar um projeto retrógrado para o país.

Cabe, à guisa de conclusão, um agradecimento a todos os colegas e alunos / as da comunidade UERJ que mesmo nas circunstâncias desfavoráveis já mencionadas contribuíram para que o dossiê aqui apresentado tomasse forma: ao Programa de Pós-graduação em História (PPGH-UERJ), ao Laboratório Redes de Poder e Relações Culturais, à COMUM – Comunidade de Estudos de Teoria da História da UERJ, bem como devemos reiterar o agradecimento ao apoio fundamental do corpo técnico da Revista Maracanan, incluindo os editores executivos e o secretariado, Claudio Correa e Magide Vieira.

Beatriz de Moraes Vieira – Professora do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente, realiza estágio pós-doutoral na Cornell University. Possui graduação em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF); mestrado em Letras; doutorado em História Social por esta mesma instituição. É pesquisador associado à COMUM – Comunidade de Estudos de Teoria da História da UERJ. Seus temas de pesquisa voltam-se para: relação entre história e literatura / poesia; história e cultura contemporânea no Brasil e América Latina; experiência histórica dolorosa; memória social traumática.

Eduardo Ferraz Felippe – Professor do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Possui doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); mestrado em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); graduação em História pela UERJ; além de ter realizado estágio pós-doutoral na USP. Seus interesses de pesquisa estão voltados para a questão da ética e da narrativa histórica, a relação arte-educação e as estratégias discursivas e formas de popularização do passado, com ênfase entre Memória e História das ditaduras, em prosa em fins do século XX e início do XXI.

Thiago Lima Nicodemo – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente, realiza pesquisa na Freie Universität Berlin como fellow da fundação Alexander von Humboldt, categoria pesquisador experiente. Possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (USP) e em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); mestrado e doutorado em História Social pela USP; além de ter realizado estágio pós-doutoral no Instituto de Estudos Brasileiros desta mesma instituição. É pesquisador associado à COMUM – Comunidade de Estudos de Teoria da História da UERJ. De sua autoria são Urdidura do Vivido (EDUSP, 2008) e Alegoria Moderna (UNIFESP, 2014), livros concentradas na obra de Sérgio Buarque de Holanda.


VIEIRA, Beatriz; FELIPPE, Eduardo Ferraz; NICODEMO, Thiago Lima. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.18, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Fontes e Métodos na escrita da História: novas perspectivas de abordagens / Revista Maracanan / 2017

“Sem documentos, sem história”.[1] A máxima, tão conhecida por historiadores de formação – ainda que nem sempre compreendida, de fato –, tem origem no tempo em que se ansiava para a disciplina um estatuto científico. Apesar da atualidade ainda permanente desse debate sobre a história ser ou não ciência, é inquestionável a transformação pela qual passou a substância do trabalho do historiador ao longo do tempo, desde a publicação de Introdução aos Estudos Históricos (1898).

O que nunca se transformou foi a crença de que o cerne da operação historiográfica centra-se no trato direto com as fontes.[2] Mesmo os críticos mais tenazes de Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos (para nos restringirmos à tradição francesa) jamais deixaram de lado a possibilidade de se fazer história partindo de uma dada “realidade” do que foi. A fonte seria isso, essa possibilidade, ou caminho.

Evidentemente que a natureza do que se entende por fonte modificou-se na mesma medida em que a ciência histórica amadureceu. Para Marc Bloch e Lucien Febvre, ela poderia ser “qualquer coisa”, desde que colaborasse em responder às perguntas formuladas pelo historiador – a famosa concepção de história-problema. Autores igualmente importantes no campo da teoria da história qualificam fonte como “vestígio”, como o italiano Carlo Ginzburg. [3] Assim, mais do que um documento escrito, oriundo, normalmente, da burocracia estatal, como criam os metódicos, o historiador deve apelar para aquilo que restou do passado no seu presente. [4]

Mas, então, como realizar esse trabalho?

Partindo do método crítico, diriam alguns. Sim, aquela forma de tratar a fonte também evidenciada em Introdução aos Estudos Históricos, não à toa considerado um manual da escola metódica, a partir da influência alemã. O historiador deve questionar o documento, contextualizá-lo, atentar para suas especificidades. Saber, em última análise, quem o produziu, por que e para quem. Havia também certa obsessão em distinguir um documento original de uma falsificação, herança dos eruditos desde o Renascimento. [5] Afinal, como um documento falso poderia trazer a verdade de que necessitava o historiador?

Ao longo do novecentos, essa postura também se alterou. No seu mais famoso trabalho, Bloch indica que mesmo a falsificação pode subsidiar o historiador. Sempre importa sua questão, aquilo que, com os olhos do presente, ele busca investigar no passado. De todo modo, a análise crítica, juntamente com a comparação, seguiu vital para o historiador profissional. “O testemunho só fala quando questionado” [6] torna-se nossa nova máxima. Tal questionamento, entretanto, segue um roteiro semelhante ao anterior: quem disse, por que, com que intenção? Se mentiu, por que o fez?

Até mesmo após os fundadores dos Annales, o método crítico não perdeu sua majestade. Qualquer historiador que se preze deve tê-lo em mente no processo de pesquisa. No entanto, assim como a concepção do que pode ser fonte, aquilo que se entende por metodologia histórica também foi alterada – ou melhor, ampliada.

Como métodos, entende-se a maneira de tratar a fonte. Mesmo com os críticos pós-modernos indagando se haveria alguma possibilidade de encontro do historiador com uma realidade prévia (ou, ao fim e ao cabo, se a própria realidade existiria, diriam eles), e, portanto, questionando esse lugar da fonte e do método, ainda hoje, grosso modo, os profissionais que fazem história centram sua análise no passado presente que é a fonte. E fazem isso tendo em vista não só a crítica histórica, mas uma série de metodologias que surgiram e vem surgindo ao longo dos anos.

Hoje existem inúmeras possibilidades sobre a forma como a fonte pode ser investigada, tratada, ou, como diria Bloch, interrogada. Análise dos discursos, história oral, história comparada, história dos conceitos, história serial e história quantitativa são apenas algumas delas. Métodos e formas que nos abrem um enorme leque de alternativas para o fazer histórico. O presente dossiê tem como propósito contar um pouco dessa história, reunindo de forma plural uma variedade de fontes e métodos utilizados pelos autores para a elaboração de seus artigos.

Em “A estranha vida dos objetos: Os alcances e limites de uma historiografia da ciência a partir dos instrumentos científicos”, Janaína Lacerda Furtado reflete acerca da cultura material como fonte e objeto para o historiador, a partir de uma análise das propostas teóricas e metodológicas surgidas nos últimos anos em torno da temática. Também Tiago Luís Gil, em seu artigo “As Listas Nominativas de habitantes como fontes para a história dos preços, 1798- 1810”, apresenta ao leitor as possibilidades de trabalho com um tipo específico de documento – as listas nominativas de habitantes – apresentando-o como fonte relevante para tratar do período colonial brasileiro, sobretudo no que diz respeito ao estudo dos preços. Já Paulo Roberto de Jesus Menezes contextualiza as “galerias ilustradas”, em “Retrato, Biografia e Conhecimento Histórico no Brasil oitocentista”. Além disso, o autor investiga como tais fontes são importantes por portar uma determinada memória a partir da conexão entre imagens e textos.

Os historiadores Francisco Gouvea de Souza, Géssica Guimarães Gaio e Thiago Lima Nicodemo propõem em seu texto “Uma lágrima sobre a cicatriz: O desmonte da Universidade pública como desafio à reflexão teórica (#UERJresiste)” uma discussão em torno do nosso ofício, enquanto pesquisadores e professores, tomando a própria historiografia como fonte de pesquisa, e o fazer histórico, por conseguinte, como objeto de estudos. Outro artigo elaborado coletivamente, “‘Entre os artistas amigos o momento bom de ternura é o aparecimento de obra nova’: O exercício da crítica literária na correspondência de Luís da Câmara Cascudo e Mário de Andrade (1924-1928)”, de Giuseppe Roncalli Ponce León de Oliveira, Marinalva Vilar de Lima e José Machado de Nóbrega, busca privilegiar as cartas trocadas entre aqueles intelectuais na década de 1920. A partir desse caminho, observou-se o debate de ideias entre os pares, sobretudo no que dizia respeito à crítica literária, tão fundamental para a configuração do movimento modernista brasileiro.

Em “A Lei de Terras de 1850 e os Relatórios do Ministério da Agricultura entre 1873- 1889”, Pedro Parga Rodrigues seleciona os referidos relatórios como fontes centrais para a pesquisa. Ao fazê-lo, traz uma nova leitura da problemática exposta, partindo do princípio, por exemplo, de que os relatórios indicam que a aplicação da legislação não foi homogênea em todo o território nacional, indicando a necessidade do olhar específico do historiador para compreender as vicissitudes de cada província.

Robério Américo do Carmo Souza, ao finalizar os artigos que compõem a parte temática do dossiê, problematiza a narrativa oral, refletindo sobre sua própria construção como fonte. Tal elaboração é feita ativamente, vale lembrar, pelo historiador. “Narrativas orais como fontes para uma compreensão histórica da experiência vivida” faz parte, portanto, de um contexto investigativo importante para o campo da história oral – metodologia em crescente uso pelos historiadores, ainda que, de certo modo, permaneça sendo objeto constante de julgamentos por parte dos mais críticos.

Esta edição é enriquecida, ainda, com uma entrevista, uma tradução, além de notas de pesquisa, um artigo livre e um depoimento. Em uma agradável conversa, o arquivista Jaime Antunes, nos brindou com as memórias dos [muitos] anos em que esteve à frente da direção-geral do Arquivo Nacional. Antunes destacou aspectos de sua trajetória profissional, desde o seu primeiro estágio com ênfase para os esforços que possibilitaram a Lei de Arquivos, assim como sua importante atuação para garantir a aprovação da Lei de Acesso à Informação. Legislações recentes que asseguraram, não apenas aos historiadores, mas também ao público em geral, a disponibilidade dos documentos históricos, atravessando, para tanto, as polêmicas que ainda envolvem os arquivos da Ditadura Militar no Brasil. Ao longo da entrevista concedida à Revista Maracanan, Antunes relatou os tortuosos caminhos percorridos pelas leis de abertura de documentos ao público e a criação do “Centro de documentação Memórias Reveladas – Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985)”.

Em trabalho conjunto, Beatriz de Moraes Vieira e Renata Duarte nos apresentam a tradução do artigo “A escrita da história: Entre literatura, memória e justiça”, de Enzo Traverso. Um texto que nos ajuda a pensar questões metodológicas debatidas pelos historiadores nos últimos vinte anos, desde a natureza da história enquanto narrativa, até a relação entre a escrita da história e a justiça, recuperando que a história é, sobretudo, um ato de escrita.

Em um estudo sobre as redes constituídas por letrados brasileiros e portugueses no final do século XIX, Rodrigo Perez Oliveira, se debruça em seu artigo “Uma República luso-brasileira das letras: a interlocução entre Eduardo Prado, Ramalho Ortigão e Eça de Queirós no final do século XIX” sobre a correspondência entre os escritores mencionados para compreender as angústias e inquietudes desta intelectualidade luso-brasileira.

Nesta edição apresentamos três notas de pesquisa. Em “A Colônia Juliano Moreira e seus homens ‘desviantes’ (1930-1945)”, as autoras Anna Beatriz de Sá Almeida, Ana Carolina de Azevedo Guedes, Renata Lopes de Almeida Marinho e Aléxia Iduíno Duarte de Mello voltam um olhar cuidadoso para o “tratamento” da homossexualidade. Partindo de um espaço que desperta a atenção de diferentes campos de estudo, atravessam o período varguista, buscando refletir sobre o ideal de masculinidade desta conjuntura. A partir de uma contribuição estrangeira, Rodrigo Cabrera Pertusatti se debruça sobre o estudo de duas línguas da Baixa Mesopotâmia, o sumério e o acádio, em “Consideraciones en torno al contacto entre lenguas y el cambio lingüístico. Repensando el bilingüismo sumerio-acadio del tercer y segundo milenio a. C.1”. O texto de Thiago Bastos de Souza apresenta os resultados parciais de sua dissertação de mestrado. Em “Recopilación Historial / Historia de Santa Marta: notícias de uma ficção política” o autor objetiva a formulação conceitual de ficção política, enquanto uma categoria de análise sobre a crônica Recopilación Historial, escrita pelo provincial da ordem franciscana frei Pedro de Aguado para o Vice-Reino da Nueva Granada no século XVI.

Por fim, pensando a interface entre as fontes e os métodos de pesquisa, a historiadora Márcia Motta, rompe com as especificidades e limites das áreas de conhecimento. Em seu depoimento, “Um INCT em construção: Proprietas (História Social das Propriedades e Direitos de acesso)”, discorre acerca da construção de uma rede multidisciplinar de pesquisadores, norteados por um tema comum de pesquisa, a propriedade e o direito de acesso. O depoimento nos mostra, além da identidade da Rede Proprietas, e de todo o trabalho da equipe envolvida, o quanto o potencial de nossos pesquisadores é capaz de alcançar quando lhes são concedidas as condições para que isso ocorra. Diante das crises que assolam a todas as instituições de ensino, ciência e tecnologia, produção de conhecimento ou salvaguarde do patrimônio – histórico, artístico, documental, intelectual, etc. –, tais escritos nos levam a refletir acerca de diversas questões que permeiam nossa sociedade. Deste modo, a publicação do referido dossiê foi uma conquista dos professores e pesquisadores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em tempos de crise, continuamos resistindo.

Notas

  1. LANGLOIS, Ch. V.; SEIGNOBOS, Ch. Introdução aos Estudos Históricos. São Paulo: Renascença, 1946, p. 15.
  2. CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica – 1. Um lugar social. In: A Escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 65-77.
  3. Ginzburg, além de entender a fonte como vestígio, indica o trabalho do historiador como algo aproximado ao de um detetive. Cf. GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 143-180.
  4. “A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando eles existem. Mas ela pode fazer-se, ela deve fazer-se sem documentos escritos, se os não houver. Com tudo o que o engenho do historiador pode permitir-lhe utilizar para fabricar o seu mel, à falta das flores habituais. Portanto, com palavras. Com signos. Com paisagens e telhas. Com formas de cultivo e ervas daninhas. Com eclipses da lua e cangas de bois. Com exames de pedras por geólogos e análises de espadas de metal por químicos. Numa palavra, com tudo aquilo que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, significa a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem”. FEBVRE, Lucien. Combates pela história. Lisboa: Editorial Presença, 1989, p. 249.
  5. Cf. FURET, François. O nascimento da história. In: A oficina da história. Lisboa: Gradiva, p. 109-135; PAYEN, Pascal. A constituição da história como ciência no século XIX e seus modelos antigos: fim de uma ilusão ou futuro de uma herança? História da historiografia, Ouro Preto, n. 6, p. 103-122, mar. 2011.
  6. BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 78.

Ana Carolina Galante Delmas – Professora com vínculo pós-doutoral ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGH-UERJ). Possui graduação, mestrado e doutorado em História pela UERJ. Suas pesquisas têm se voltado para a história do Brasil no período joanino e história do Brasil Império, privilegiando as abordagens no campo da história política, da história cultural e da história do livro e da leitura. Integra o Laboratório Redes de Poder e Relações Culturais (UERJ) e o Grupo de Pesquisa Ideias, cultura e política na formação da nacionalidade brasileira – CNPq.

Marina Monteiro Machado – Professora da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCE-UERJ) e do Programa de Pós-Graduação em História da mesma instituição. Possui graduação em História pela Universidade Federal Fluminense e mestrado e doutorado em História Social pela mesma instituição. Atualmente, é coordenadora de curso da FCE-UERJ; integrante do Núcleo de História Rural; membro-fundador e vice-coordenadora do INCT Proprietas. É autora do livro Entre Fronteiras: posses e terras indígenas nos sertões (Rio de Janeiro, 1792-1824) (Horizonte / Unicentro / EdUFF, 2012).

Isadora Tavares Maleval – Professora da área de Teoria e Metodologia da História no Departamento de História de Campos da Universidade Federal Fluminense (CHT-UFF). Possui doutorado e mestrado pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGH-UERJ); cumpriu estágio doutoral na Université Paris-Sorbonne e pós-doutoral no Departamento de História da UERJ. É especialista em temas relacionados à teoria da história, historiografia, história do Brasil Império e história do livro e da leitura.


DELMAS, Ana Carolina Galante; MACHADO, Marina Monteiro; MALEVAL, Isadora Tavares. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.17, 2017. Acessar publicação original [DR]

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O Setecentos luso e hispânico nas Américas: perspectivas e aproximações / Revista Maracanan / 2016

Não seria fácil reunir em um dossiê uma amostra ainda que limitada da copiosa produção historiográfica atual sobre as Américas lusa e hispânica no período colonial. A diversidade temática ou mesmo a maior concentração de trabalhos em determinada temporalidade poderiam causar certo desequilíbrio na distribuição das contribuições. Daí a opção dos organizadores por privilegiar um século XVIII alargado esperando que disso resultasse uma seleção de textos mais condizente com a atualidade dos estudos sobre a colonização ibérica na Época Moderna, no que diz respeito à América portuguesa ou à busca de aproximações com experiências relativas à América espanhola, ainda menos frequente na historiografia brasileira.

O artigo de Francisco Carlos Cosentino abre o Dossiê e investe nesta perspectiva ao abordar comparativamente os ritos de transmissão e de exercício do poder régio aos governadores-gerais do Estado do Brasil e aos vice-reis da Nova Espanha. Apoiado em parâmetros teórico-metodológicos de uma história política renovada, o trabalho de Cosentino traz uma discussão aprofundada sobre o governo nos domínios ultramarinos ibéricos, amparada em consistente debate historiográfico e análise documental, em que se destaca a abordagem do pensamento político e do discurso de juristas castelhanos sobre a natureza do poder régio.

Seguindo a linha dos estudos recentes sobre a história da administração colonial, Antonio Filipe Pereira Caetano apresenta resultados de suas investigações sobre a Justiça e seus agentes nas comarcas de Pernambuco e capitanias anexas, na virada do século XVIII para o XIX. O foco na ação de ouvidores e nas intrincadas demandas judiciais naquelas partes da América lusa ilustra uma tendência da historiografia de privilegiar as dinâmicas administrativas, a definição dos espaços de exercício do poder e as jurisdições delegadas pelo rei, questões que também se fazem presentes no artigo de Cosentino.

Na conjuntura de transformações que perpassa o Setecentos, no que se refere à realidade portuguesa, o início do reinado de d. José I, em 1750, pode ser visto como um marco fundamental. Ainda que as mudanças ocorridas após essa data devam ser compreendidas dentro de uma chave argumentativa que ressalte algumas continuidades, não podemos nos esquecer da importância da atuação de Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal, como precursor de um conjunto de ações que levariam a alterações estruturais, com repercussões nas diferentes regiões do Império. O texto de Mônica da Silva Ribeiro abre uma parte do Dossiê cuja tônica é o exame de questões essencialmente ligadas à ação governativa de Carvalho e Melo. Nesse aspecto, seu artigo realiza uma discussão sobre o “Pombalismo”, trazendo ao leitor uma análise historiográfica e da prática administrativa do secretário de Estado, sobretudo no que concerne à América portuguesa.

Uma das preocupações de Pombal para essa parcela fundamental do Império ultramarino no século XVIII foi a defesa e a militarização das fronteiras, tema do artigo de Christiane Figueiredo Pagano de Mello. A autora investiga questões relativas ao projeto defensivo pombalino para o Estado do Grão-Pará e para o centro-sul. Tendo como foco uma análise comparativa, tenciona observar a situação militar na área fronteiriça com as colônias espanholas e francesas.

A temática das fronteiras no Setecentos tem sido fonte de preocupação historiográfica nos últimos anos. A ampliação da produção de pesquisas sobre a Amazônia e o Grão-Pará está, de certo modo, associada ao aumento de cursos de pós-graduação nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. Vale destacar, entretanto, que essas abordagens trazem como características não apenas uma preocupação com questões políticas. Cada vez mais os enfoques tendem a dialogar com o conceito de espaço: formas de ocupação, atores sociais, exploração dos recursos naturais, momentos de expansão e de imposição de limites pelas autoridades metropolitanas são assuntos que percorrem os estudos sobre essa região.

No rescaldo da saída do marquês de Pombal do centro do poder político em Portugal, novos arranjos territoriais acordados no plano teórico das negociações diplomáticas começaram a se materializar no cotidiano colonial. O Tratado de Santo Ildefonso, assinado em 1º de outubro de 1777, colocou nas fronteiras que ligavam as Américas portuguesa e espanhola, cartógrafos, engenheiros, geógrafos, entre outros especialistas, irmanados na produção do conhecimento sobre o território americano. Mas, se por um lado, as demarcações aproximavam homens e suas práticas, por outro, estavam longe de ser experiências pacíficas. As abstrações presentes no conteúdo dos acordos diplomáticos davam ampla margem a interpretações subjetivas, provocando confusões por vezes convenientes a ambas as partes.

Assunto dos mais delicados da pauta geopolítica das monarquias europeias, o estabelecimento de fronteiras passava por três etapas: definição, delimitação e demarcação. Em sua contribuição ao Dossiê, Simei Maria de Souza Torres analisa a fase da demarcação do Tratado Preliminar de Limites de Santo Ildefonso (1777). Com o objetivo de interpretar e colocar em prática as diretrizes expressas no acordo, os demarcadores defrontaram-se com o cotidiano colonial. Como afirma a autora, a fronteira deixava de lado a esfera das abstrações políticas, confrontando o que foi concebido e o que era possível de ser executado.

A troca de informações de cunho político nas fronteiras conviveu com outras formas de circulação de saberes e de mercadorias pelas vastas possessões dos impérios ibéricos. Em outra chave interpretativa, Marcia Amantino e Eliane Cristina Deckmann Fleck analisam, em perspectiva comparada, as redes de comércio e de saberes desenvolvidas pela Companhia de Jesus no Rio de Janeiro e em Córdoba. Dedicando atenção aos inventários dos colégios produzidos após a expulsão dos inacianos, as autoras discutem não só a participação dos religiosos nas disputas pelos poderes locais, mas também a atuação dos missionários como agentes de trocas comerciais e culturais na América e no Oriente.

A produção do conhecimento científico sob as Luzes setecentistas foi intensa. Para governar áreas tão vastas e tão distantes, os reis europeus compreenderam a importância de enviar funcionários especializados na observação da natureza, da geografia, das potencialidades agrárias e mineralógicas de seus territórios. Estabeleceu-se, assim, uma burocracia treinada nas principais universidades europeias e orientada a elaborar inventários minuciosos, descrições etnográficas, planos militares, mapas cartográficos e de população, documentos fundamentais à elaboração de políticas coloniais, mas que também contribuíram para a formulação de conceitos (e preconceitos!) sobre os habitantes das Américas.

Márcia Eliane Alves de Souza e Mello e Daniel Barroso revelam como os mapas populacionais desenvolvidos no último quartel do século XVIII foram fundamentais à elaboração de uma nova arte de governar. Demanda recorrente na correspondência entre o poder central e as autoridades coloniais, tais registros caracterizam as práticas governativas de caráter reformista-ilustrado. Atentos ao contexto de produção dessas estatísticas no Estado do Grão-Pará e Rio Negro, os autores analisam alguns casos específicos, com o intuito de compreender a dinâmica demográfica da região, particularmente o uso da mão de obra de indígenas e de africanos.

Os relatos de viagens sobre o mundo ultramarino produzidos no Setecentos são objetos da análise de Bruno Silva. As descrições etnográficas sobre os habitantes do Novo Mundo inspiraram reflexões na Europa acerca da construção da imagem do homem americano. Lidas à luz das teorias desenvolvidas pelos filósofos europeus, os escritos sobre a América no século das Luzes contribuíram para a formulação do conceito de raça baseada nos aspectos físicos, antecipando o debate sobre o tema no século XIX.

O estudo de Juliana Gesuelli Meirelles analisa o papel da Real Academia Militar do Rio de Janeiro, criada em 1810, no contexto da implantação da nova sede da monarquia portuguesa na América. A despeito de sua atuação principal (a reestruturação militar e defesa do novo império em tempos de graves disputas diplomáticas), a Real Academia se apresentou como um locus de produção científica e divulgação cultural, abrigando os letrados que absorveram as Luzes em Portugal, tanto na Universidade de Coimbra como em outras instituições de saber criadas durante o reinado Mariano. Herdeira dos estudos científicos desenvolvidos ao longo do Setecentos, a Real Academia Militar do Rio de Janeiro atuou vinculada aos interesses do Estado, uma vez que diplomou importantes figuras que comporiam o quadro político-administrativo do Brasil na primeira metade do século XIX.

A convite dos editores, os historiadores Ronald Raminelli e Rafael Chambouleyron contribuíram para a seção Depoimentos, compartilhando experiências de pesquisa e apresentando seus pontos de vista sobre o tema do Dossiê. Raminelli revisita os estudos clássicos de Sérgio Buarque de Holanda e Richard Morse, lembrando certa tradição em se pensar sobre as Américas em perspectiva comparada. Reconhecendo os aspectos superados de tais teses, aponta o caráter inovador de uma metodologia preocupada em pensar contrastes e similitudes, uma fonte inesgotável de inspiração para estudos acerca da administração, da cultura e da economia nas Américas.

Seguindo os passos de Holanda, mas também os ensinamentos de Marc Bloch, Raminelli nos conta aspectos de sua carreira, particularmente a forma inovadora com a qual escolheu seus temas de pesquisa e o uso da perspectiva comparada. O estudo sobre as cidades coloniais, o uso das gravuras europeias como fonte documental, do qual resultou a obra Imagens da colonização, cuja originalidade metodológica no entrecruzamento de fontes iconográficas, relatos de viagens e documentos de caráter administrativo permitiram o desvendamento do lugar ocupado pelos tupis no imaginário cristão quinhentista e seiscentista. Nos últimos anos, em suas investigações acerca das nobrezas no Novo Mundo – Brasil, Peru e Nova Espanha – percebe-se a síntese e o aprofundamento dos estudos realizados ao longo de sua carreira.

Já Chambouleyron nos revela sua leitura acerca do adensamento dos estudos sobre a região amazônica nas últimas décadas. Esse interesse, tanto no Brasil quanto no exterior, resulta da expansão dos cursos de pós-graduação em História do Brasil e da descentralização, ainda lenta, da produção acadêmica de História no país. Olhando criticamente para essa nova historiografia, identifica a concentração dos trabalhos em torno de dois momentos principais: na presença do padre Antônio Vieira no Maranhão e Grão-Pará (1653-1661) e no período pombalino (1750-1777).

Frente a essa percepção, Chambouleyron apresenta alguns percursos historiográficos que, nos últimos anos, têm despertado a atenção dos pesquisadores, particularmente, a conjuntura da chamada “Amazônia joanina” (1707-1750), quando tem início a expansão dessa região. O autor elege em sua análise dois temas candentes: a concessão de terras e o avanço em direção às fronteiras. Outros, permanecem pouco explorados, como o tema da pecuária e sua relação tanto com a guerra contra os índios quanto com a doação de terras pelos governadores; ou ainda, o da existência de uma “ruralidade invisível” composta de roças de índios, mestiços, desertores, sem que houvesse necessariamente doação de terras. O depoimento aponta para muitos aspectos que podem ser pensados em perspectiva comparada, como as missões jesuíticas castelhanas, a exploração de drogas e o trabalho indígena. Temas caros à historiografia sobre a formação territorial do Brasil, como o da oposição entre o litoral e o sertão, já podem ser relativizados.

O Dossiê se encerra com a resenha de Francisca Nogueira de Azevedo do livro Mestiço: Entre o mito a utopia e a História – Reflexões sobre a mestiçagem, de Eliane Garcindo de Sá. Polêmico e atual, o tema da mestiçagem, especialmente dos deslocamentos, encontros e confrontos culturais, acompanha os estudos de Eliane Garcindo, como lembra Francisca de Azevedo. Bem escrita e fartamente amparada por pesquisa documental e bibliográfica, a obra é, sem dúvida, uma contribuição essencial às análises sobre mestiçagem na América Ibérica. De igual maneira, o livro relembra a tradição do pensamento social latino-americano, ao abordar as relações da cultura mestiça com a construção da nacionalidade.

Nesta edição, a seção Artigos é aberta pela contribuição de Rodrigo Ceballos. Seu estudo trata das redes mercantis e sociais entre a Bahia e a cidade de Trinidad y Puerto de Buenos Aires na primeira metade do século XVII, durante a União Ibérica. Apesar das restrições régias, as duas regiões praticaram um lucrativo comércio de contrabando, que incluía escravos africanos e metais preciosos. O autor persegue os rastros e as estratégias utilizadas pelos negociantes portugueses para atuar em Buenos Aires e revela uma rede de privilégios que envolvia oficiais camarários, funcionários régios e governadores.

A “retórica da imagem”, conforme a entendeu Roland Barthes, no ensaio escrito em 1964, e os estudos contemporâneos em torno da argumentação fornecem o eixo da reflexão proposta por Fernando Aparecido Ferreira e Fabíola Gonçalves Giraldi no artigo “O objeto artístico e o contexto histórico: a retórica de Inserções em Circuitos Ideológicos – Projeto Coca-Cola, de Cildo Meireles”. Destacando, na obra, as estratégias retóricas de ressignificação de um objeto cotidiano, o artigo explora a voltagem crítica de Inserções no contexto da ditadura brasileira nos anos 70. O questionamento da dominação cultural e política norte-americana através de um de seus maiores símbolos – a garrafa de Coca-Cola – e a aproximação irônica entre circuito da arte e circuito de objetos de consumo sobressaem nesse exame da inscrição política da obra de Cildo sob a chave da argumentação.

Joana de Moraes Monteleone analisa o papel da moda na movimentação da economia do Rio de Janeiro no século XIX. Novos hábitos de sociabilidade e padrões de consumo alimentavam um mercado de importação de tecidos de luxo, que eram transformados em roupas em ateliês chiques da rua do Ouvidor. No artigo, se entrelaçam a análise sobre o estabelecimento da moda e do consumo na Corte com a leitura explicativa das estatísticas de importação de tecidos que entravam pelo porto do Rio de Janeiro.

Duas notas de pesquisa fecham esta edição. Na primeira, André Rocha Carneiro revisita um tema clássico da historiografia, a Revolta Liberal de 1842, e analisa seus impactos na província do Rio de Janeiro, particularmente no município de Barra Mansa, no Vale do Paraíba Fluminense. Marissa Gorberg, por sua vez, investiga as mudanças nas formas de abordar o feminino nas caricaturas de Belmonte e a contribuição dos seus traços para a compreensão de práticas ligadas tanto ao alargamento de fronteiras morais quanto à modernidade da segunda década do século XX.

Fabiano Vilaça dos Santos – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, é professor adjunto de História Moderna e Contemporânea da UERJ. É pesquisador do Laboratório Redes de Poder e Relações Culturais e dos Grupos de Pesquisa: História da Amazônia Colonial (UFPA), História Colonial da Amazônia (UFAM) e Impérios ibéricos no Antigo Regime: política, sociedade e cultura (UFV).

Marieta Pinheiro de Carvalho – Doutora em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, é professora do Programa de Pós-graduação em História do Brasil da Universidade Salgado de Oliveira, vinculada à linha de pesquisa Sociedade, Cultura e Trabalho.

Nívia Pombo – Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense, é professora adjunta de História Moderna e Contemporânea da UERJ.


SANTOS, Fabiano Vilaça dos; CARVALHO, Marieta Pinheiro de; POMBO, Nívia. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.15, 2016. Acessar publicação original [DR]

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História e Cultura Visual: múltiplas narrativas da experiência histórica / Revista Maracanan / 2016

Diálogos entre história, imagem e palavra

Nesta edição de Maracanan, o termo visual qualifica não apenas as fontes e as questões tratadas, mas procura nomear também certo modo de reconstrução do conhecimento e do passado. A aposta no enlace entre legibilidade e visibilidade levou ao acolhimento de formatos variados – o artigo, o ensaio, o depoimento, a entrevista – nos quais a reflexão se oferece como algo mais do que uma justaposição de diferenças. As colaborações reunidas revelam pontos de contato para além do interesse na imagem gráfica, retórica, poética, plástica. Como enfatizam Paulo Knauss e Ana Maria Mauad, a cultura visual coloca novos desafios para o historiador. “A elaboração dos quadros da historicidade deve partir da materialidade das experiências sociais, dos seus indícios, vestígios, restos e pistas”, argumenta Mauad: “não basta olhar, é fundamental estranhar”.

O número se inicia com os textos do Dossiê. Encontram-se lado a lado reflexões teóricas, análises pontuais e o registro de trajetórias individuais. No percurso intelectual de Paulo Knauss, o interesse pela arte e a pesquisa em acervos e coleções levaram ao encontro com especialistas de diversas áreas. A experiência foi decisiva no entusiasmo que o historiador nutre pela erudição e pela história da imagem. Para ele, a erudição significa “considerar qual o diálogo que a imagem estabelece em sua criação, na sua circulação”. Em seu depoimento, Knauss destaca a importância da imagem na definição da prática da história. O campo da cultura visual, assim designado desde a chamada “virada pictórica” dos anos 1990, afirma ele, tornou possível interrogar e reunir objetos e temas de tradições disciplinares aparentemente distintas. Referência nas pesquisas brasileiras na área, o pesquisador defende que a cultura visual não se feche institucionalmente, mas que, ao contrário, mantenha-se sempre aberta e fiel ao seu lugar de troca de experiências.

Renata Proença entrevista Glaucia Villas Bôas e demonstra a riqueza de sua trajetória pessoal e intelectual, relembrando a partida para a Alemanha durante a ditadura militar, na década de 1970, e o contato com a sociologia alemã, que marcaria suas reflexões sobre o pensamento social e a produção cultural no Brasil. De volta ao Rio de Janeiro, Gláucia interessa-se pela década de 1950 e pelo concretismo no país, aprofundando-se no estudo da relação entre o surgimento da arte concreta e a experiência artística no ateliê do Engenho de Dentro (1946–1951). A socióloga considera esta experiência sui generis, levando-a a fazer da relação entre arte e loucura o centro do debate sobre o processo criativo. Gláucia delineia também as principais questões que envolvem a concepção das imagens vistas como objetos que atuam no mundo. Pontua, ainda, que a cultura visual vem provocando um interesse crescente pela maneira de encarar a imagem como objeto atuante, cujo dinamismo e vitalidade devem ser percebidos e examinados.

Ao modo de uma “genealogia”, Ana Maria Mauad apresenta diferentes perspectivas e conceitos que orientaram o interesse dos estudos históricos na imagem a partir da renovação historiográfica dos anos 1970 e 1980. No contexto da chamada história das mentalidades, a iconografia ganhou destaque como fonte de indagação ao passado. Nos Estados Unidos, partindo de premissas distintas, Martin Jay e William Mitchell definiriam, na década seguinte, o campo da chamada cultura visual, cada vez mais relevante na história. Tratava-se, escreve a autora, de “pensar além das limitações que a textualização atribui ao mundo visível e suas formas de representação não verbais”. No artigo, Mauad aprofunda a reflexão ao descrever o percurso de sua própria pesquisa com a fotografia, realçando a possibilidade de realizar duplamente a “construção histórica do visual e a construção visual da história”.

Karl Erik Shøllhammer formula uma hipótese sobre a singularidade do trabalho da fotógrafa Claudia Andujar com os Yanomami, ampliando o entendimento acerca da divisa da fotografia na atualidade das artes contemporâneas. O crítico aponta o caráter original da fotografia de Andujar como “prática fotográfica” e “possibilidade de experiência” do corpo vulnerável do índio. Segundo Karl Erik, o “desafio de colocar a linguagem de documentarista à disposição de uma convivência afetiva com os Yanomami” é uma preocupação central da artista. Os impasses da referencialidade e da temporalidade são por ele tematizados. Do documentarismo fotográfico por ela praticado ao projeto artístico de envolver o espectador na imagem, o crítico afirma: “Andujar consegue criar um espaço afetivo que interpela o espectador dinamicamente em sua plasticidade, textura e luz”. As imagens de afeto trazem a marca de um “fazer fotográfico” a desenhar o tempo imaginado dos Yanomami, no qual contraditoriamente coincide um passado “fora de nosso alcance” e uma temporalidade “sinistramente profética, apontando à catástrofe em curso”.

Em seu ensaio, Márcio Seligmann-Silva retoma a teoria benjaminiana da fotografia e a aproxima de uma escrita historiográfica capaz de facultar ao historiador, o alegorista da cultura, o gesto de congelar o tempo. Além disso, localiza na visão positiva de Benjamin sobre os avanços técnicos a cena de uma “segunda técnica” intensificadora de ilusões emancipatórias. “Novos espaços de jogo e de liberdade” são capturados pela câmera fotográfica que nos traz “o real” e produz “a visão da efetividade imediata”. Seligmann aponta para o jogo lúdico da “segunda técnica” com a natureza, de tal modo que seu fenômeno seja ainda mais desnaturalizado por nós, se supusermos, como Benjamin sugere, que cada época tem sua própria natureza conforme a sua tecnologia.

Apresentando material inédito, Maria Lucia Bueno destaca o modo pelo qual a internacionalização da moda da alta costura francesa no início do século XX ocorre em estreita relação com o desenvolvimento de uma cultura visual moderna, que teve como protagonista a imprensa de moda. A autora toma como exemplo as práticas publicitárias desenvolvidas pela costureira Jeanne Paquin e discute a maneira pela qual os criadores de moda se utilizaram dessa nova cultura visual para divulgar suas criações.

Lígia Dabul debate os processos criativos em arte e as interações sociais estabelecidas por meio da troca de cartas entre artistas, problematizando a invenção artística para além dos objetos já consagrados. O texto aponta ainda para a discussão da noção de autoria, tradicionalmente vista como produto do trabalho de um indivíduo singular.

Em seu artigo, Raquel Quinet reflete sobre o desenho como expressão da razão teórica, examinando o momento de inflexão em que a teoria da arte desponta como “uma crítica de si mesma”. Diferenciando-se, no interior da tradição platônica da pintura, os teóricos da arte passam a se confrontar com questões de natureza artística. Refinam-se, assim, os sentidos do desenho que recebe o novo significado de imagem mental constituída na interioridade do artista.

Finalizando o Dossiê, Kelvin Falcão Klein recorre à historicização dos modos de atenção conforme estabelece o crítico de arte Jonathan Crary para articular em alguns textos de W. G. Sebald, autor de Austerlitz (2001), Os anéis de Saturno (1995) e Os emigrantes (1992), uma “peculiar mistura de atenção flutuante, multitemporalidade e reflexão sobre as imagens”. Klein explora a proximidade entre os conceitos de “deriva”, “psicogeografia” e “détournement” de Guy Debord e as relações entre escritura e o ato de caminhar em Sebald, a fim de problematizar o vínculo de sua prática poética com a história, a memória e o espetáculo.

A entrevista com Ettore Finazzi-Agrò destaca os impasses historiográficos que atravessam a produção literária brasileira. A partir da hipótese da “situação intempestiva” que marca a temporalidade de nossa formação cultural, o crítico realça a literatura como o espaço de escuta de um sujeito ausente da história, citando Certeau em L’absent de l’histoire. Pois, segundo ele, “na defasagem entre o poder-dizer e o dito […] habita […] uma certa imagem da história e a própria história como sucessão caótica e heterogênea de instâncias aleatórias e como interrogação incessante desse caos e dessa heterogeneidade”.

Em resenha crítica, o escritor e historiador da arte Rafael Cardoso aponta qualidades e lacunas em Books and Periodicals in Brazil 1768-1930: a Transatlantic Perspective (2014). O livro apresenta o estado dos debates sobre a história do periodismo brasileiro, em especial do século XIX. Nem sempre atingindo o resultado proposto, segundo o resenhista, a publicação merece, entretanto, destaque pela reunião de um conjunto importante de temas, constituindo-se uma referência para o público de língua inglesa.

A seção de artigos reforça a proposta geral do Dossiê. André Azevedo remonta à centralidade do visual na tradição ocidental, destacando a arquitetura como arte estratégica para o controle da urbe e seus habitantes. Seguindo essa perspectiva, o autor mostra como a reforma urbana empreendida no Rio de Janeiro, no início do século XX, mantém firmes os laços com tal tradição. O projeto de reordenação de Pereira Passos deixara de considerar, porém, que a cidade e suas tradições – ou as “várias cidades” numa só – pediam mais do que a “persuasão estética” e o ideal civilizatório da remodelação.

O tema da reforma urbana reaparece no texto de Viviane Araújo. A partir de um álbum fotográfico encomendado pelo prefeito de Buenos Aires, Torcuato de Alvear, em 1885, a autora investiga as transformações da cidade na década de 1880. A historiadora destaca a eloquência dessas imagens no interior de um discurso voltado para a difusão de valores como o progresso, a salubridade e a modernidade em que, no entanto, as tensões e os estranhamentos decorrentes da reforma jamais se mostram.

Caio Proença e Charles Monteiro examinam a historicidade do fotojornalismo e suas práticas no Brasil dos anos 1970, tendo em vista as diferentes etapas da atividade. A partir da cobertura fotográfica das manifestações estudantis ocorridas em Porto Alegre, em 1977, publicada pela revista Veja, os autores consideram a natureza peculiar da linguagem visual construída coletivamente num grande veículo de comunicação, investigando suas implicações ideológicas e políticas.

Maria da Conceição Pires analisa estratagemas discursivos e visuais nas tirinhas de Bob Cuspe, personagem do cartunista Angeli. O humor orienta aí os jogos de adesão e oposição aos modelos estabelecidos, criando um entre-espaço no qual se efetua o que ela chama de contraconduta dos modos de viver e interagir numa grande cidade dos anos 1980. Pires realça que a crítica contida nos quadrinhos promove, senão a mudança, ao menos a desestabilização de valores social e historicamente dados.

No contexto da contemporaneidade literária, Felipe Charbel atualiza a tradição do uso de recursos retóricos em Sexo, romance de André Sant’Anna, explorando lugares-comuns, ideias-tipo e repetições no procedimento de tipificação de imagens performáticas. O historiador ressalta o “inesperado” atravessamento do campo do desejo sexual pelo automatismo das relações humanas: “o desejo é pensado no romance como puro discurso social, que realça hierarquias e reforça preconceitos, desumanizando as pessoas em vez de aproximá-las”.

A seção conta ainda com três artigos que tomam o cinema como matéria de reflexão. Alexandre Guilherme e Flávio Trovão investigam a trajetória de vida de Larry Flynt na sua crescente militância pela liberdade de expressão nos EUA. Como objeto de estudo, os autores analisam o filme “O povo contra Larry Flynt” (1996) de Milos Forman. Jean Carlos Costa e Luiza Melo Alvim discutem as relações entre a montagem cinematográfica e a escrita da história a partir das Passagens de Walter Benjamin. Tempo e narrativa são termos problematizados no gênero documentário tratado no texto. Já Sylvia Nemer, aponta para os diferentes olhares sobre a imigração produzidos pelo cinema, destacando adaptações cinematográficas de obras literárias. No artigo, ressalta a diferença de abordagens entre a década de 1970 e os anos 2000.

Encerrando a seção, Roberta Ferreira e Ivan Lima apresentam aspecto pouco estudado da obra do caricaturista Angelo Agostini: sua colaboração em publicações de destaque nos primeiros anos da República brasileira, as revistas O Malho e O Tico-Tico, esta última voltada para o público infantil. O artigo mostra a busca pela inovação da linguagem visual empreendida pelo artista e seu engajamento em temas como a cidadania, o progresso e a república, contribuindo para a reavaliação da memória do desenhista, sempre associada à imprensa oitocentista e à luta pela abolição.

As Notas de Pesquisa completam a proposta da revista. Maria Cristina Volpi reconstrói a trajetória intelectual de Sofia Jobim Magno de Carvalho, pioneira nos Estudos em Indumentária da atual Escola de Belas Artes da UFRJ, especialmente nas décadas de 1940 e 1950. A autora parte do acervo formado pela própria Sofia, atualmente sob a guarda do Museu Histórico Nacional, para revelar sua importância no campo dos estudos da moda e da indumentária. Paralelamente, Volpi ressalta o papel de Sofia no Clube Soroptimista do Rio de Janeiro, associação feminina de origem norte-americana e cunho feminista, da qual foi integrante e uma de suas fundadoras. Isabela Moura Mota examina a série “Tipos do Rio de Janeiro”, publicada em 1863, na revista satírica Semana Ilustrada. A historiadora parte de uma hipótese pouco explorada, aproximando o discurso plástico-literário criado na revista brasileira às fisiologias, gênero editorial de sucesso no início do século XIX, especialmente na França. Caroline Pires Ting aprofunda a relação entre o escritor e dramaturgo Antonin Artaud e o pintor Edvard Munch. Sob a chave da intertextualidade, a autora entrelaça histórias de vida e experimentação plástica e poética, refinando a reflexão sobre as influências entre os artistas. Por fim, Rosiel Mendonça e Vinícius Amaral valorizam a discussão em torno do documentário “Amazonas, Amazonas” produzido por Glauber Rocha em 1966. Os autores explicitam as tensões ideológicas que marcam o contexto de produção da obra, trazendo à luz um Glauber pouco conhecido.

A resposta positiva ao convite para o debate feito por esta Maracanan indica o amadurecimento da relação entre a história e a cultura visual nos estudos realizados no Brasil. O crescente reconhecimento do campo, marcado pela vocação para a aproximação e troca entre distintas tradições, acentua, assim, os méritos de um projeto multidisciplinar.

Laura Nery – Doutora em História Social da Cultura pela PUC-Rio, é professora visitante do Departamento de História da UERJ, onde atua como pesquisadora do Laboratório Redes de Poder e Relações Culturais (Redes) e do Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais / LEDDES. Integra o grupo de pesquisa do CNPq “Imprensa e circulação de ideias: o papel dos periódicos nos séculos XIX e XX”.

Cláudia de Oliveira – Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é professora da Escola de Belas Artes da UFRJ. Coordena o grupo de pesquisa do CNPq “Arte, Gênero e Cultura Visual no Brasil”, e o curso de graduação em História e Teoria da Arte e integra o programa de pós-graduação em Artes Visuais (PPGAV / EBA / UFRJ).

Lúcia Ricotta – Doutora em História Social da Cultura pela PUC-Rio, é professora do curso de Letras do Centro de Letras e Artes da UNIRIO e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UNIFESP (PPGLETRAS). Participa dos grupos de pesquisa do CNPq “Literatura e Linguagens: fronteira, espaço, performance, memória” e “Teoria e História Literária e Geografia: Epistemologia, História e Ambiente”.


NERY, Laura; OLIVEIRA, Cláudia de; RICOTTA, Lúcia. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, v.12, n.14, 2016. Acessar publicação original [DR]

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História das Ciências: debates e perspectivas / Revista Maracanan / 2015

Entre a história das ciências e a história política: desatando o nó górdio

“Qualquer que seja a etiqueta, a questão é sempre a de reatar o nó górdio atravessando, tantas vezes quantas forem necessárias, o corte que separa os conhecimentos exatos e o exercício de poder, digamos a natureza e a cultura. Nós mesmos somos híbridos, instalados precariamente no interior das instituições científicas, meio engenheiros, meio filósofos, um terço instruídos sem que o desejássemos; optamos por descrever as tramas onde quer que elas nos levem. Nosso meio de transporte é a noção de tradução ou de rede. Mais flexível que a noção de sistema, mais histórica que a de estrutura, mais empírica que a de complexidade, a rede é o fio de Ariadne destas histórias confusas.”

Bruno Latour1

O Dossiê História das Ciências: debates e perspectivas foi idealizado com o objetivo de estreitar o diálogo entre os pesquisadores dedicados à história das ciências e aqueles mais familiarizados com uma abordagem própria à história política. As problemáticas teóricas e metodológicas que envolvem a escrita da História das Ciências já foram o cerne de múltiplos e acalorados debates envolvendo cientistas, filósofos, sociólogos, cientistas políticos, antropólogos e historiadores das ciências. E são esses debates o ponto de partida deste número, que busca evidenciar a diversidade de aportes analíticos sob os quais são construídas as interpretações no campo da história das ciências.

Desde fins dos anos 1970 foram gestadas, no meio acadêmico brasileiro, diferenciadas perspectivas acerca da constituição das práticas científicas no Brasil. Nessa ocasião, uma parcela significativa de estudiosos da institucionalização das ciências no Brasil já tomava o discurso científico como uma fonte de autoridade e poder, capaz de organizar as relações sociais e as formas de pensar. Nas décadas seguintes, o mito do cientista abnegado, em busca da verdade e indiferente às convulsões do mundo, foi definitivamente sepultado. E, pela mesma razão, a percepção da Ciência como uma atividade isolada, autônoma e independente da sociedade cedeu lugar a interpretações que enfatizam sua dimensão como fator de produção, instrumento do poder e legitimação social.

No atual século, assistimos ao desdobramento desses trabalhos pioneiros, com a multiplicação de dissertações e teses cujo objeto de estudo tem, como referência, variadas práticas científicas. Assim, sob perspectivas teóricas e metodológicas diferenciadas, tais estudos têm se multiplicado, evidenciando a potencialidade de uma temática à qual se dedicam pesquisadores atrelados a programas de pós-graduação com concentração em história política, social e cultural. Para a “nova” história das ciências, o trabalho de produção, controle e circulação dos diferentes saberes científicos é eminentemente social. As novas abordagens asseveram que aquilo que se convencionou denominar de Ciência corresponde a um conjunto diferenciado de práticas culturais voltadas à interpretação, explicação e ao controle do mundo natural, cada qual com suas características singulares, experimentando distintas formas de evolução e mudança, sempre em interação com outras esferas sociais.

Os organizadores deste Dossiê dedicado à história das ciências reuniram, assim, um conjunto de trabalhos que versam sobre esse tema, sob os mais variados matizes. Longe de esgotar as possibilidades de enfoques teóricos e metodológicos, objetivamos apresentar o campo, apontando algumas tensões existentes entre as diferentes correntes interpretativas, bem como enfatizar a potencialidade dessa temática no âmbito historiográfico.

No artigo que inaugura o Dossiê, Maria Margaret Lopes articula duas fronteiras da historiografia das ciências: os oceanos como espaços de produção de conhecimento e as disciplinas como estruturas dinâmicas que controlam poder e recursos materiais e simbólicos em departamentos e laboratórios. Como o estudo dos oceanos impõe uma abordagem interdisciplinar que perdura por décadas, temos aqui uma oportunidade para avaliar a complexidade das estruturas envolvidas nas investigações e os aspectos micropolíticos do cotidiano e, assim, identificar e situar padrões de tomadas de decisões para se examinarem mudanças nos programas de pesquisa em períodos mais longos. Como observa a autora, “as disciplinas não são categorias estáveis, mas arranjos, acordos temporários” o que deve ensejar uma análise das fronteiras inter e intradisciplinares no processo de produção e validação do conhecimento científico.

Em seguida, Flavio Coelho Edler nos convida a um sobrevoo panorâmico por alguns tópicos que se contituíram como balizas no desenvolvimento da disciplina História das Ciências nos últimos 40 anos. Ao discutir as mudanças historiográficas que implicaram no abandono da narrativa sintética da história das ciências por outra, voltada a esmiuçar as camadas mais finas, isto é, a micro-história das práticas científicas, o artigo avalia como as diferentes abordagens repercutem sobre distintas audiências. Aqui delineia-se um novo desafio: continuar a ver a história das ciências como um campo unificado de pesquisas capaz de envolver um público mais amplo.

A contribuição de André Luís Mattedi Dias e Tais Oliveira da Silva para esta coletânea enfoca a emergência contemporânea da temática da religião e espiritualidade no âmbito acadêmico da saúde mental, em especial, no campo da psiquiatria e da psicologia. Ao examiar a trajetória pessoal e acadêmica de três psiquiatras brasileiros, onde se conectam orientações religiosas e científicas diversas, os autores discutem a complexidade das relações entre ciência e religião, enquanto reavaliam as teorias sociológicas da secularização. Como ficará evidente para o leitor, no presente – tal como no passado –, as fronteiras entre ambas as esferas culturais não podem ser claramente delimitadas, nem suas relações expressas esquematicamente, em termos de conflito ou harmonia, como pretendeu a tradição positivista. Já o artigo de Eucléia Gonçalves Santos, que discute a definição de sertão na obra de Afrânio Peixoto, ajuda a embaralhar outras fronteiras: aquelas que apartam os mundos da ciência, da literatura e da política. Ao abordar a atuação intelectual do médico, higienista, educador e escritor baiano, a partir do contextualismo linguístico de Skinner, a autora desvenda como os sentidos que ele atribui ao sertão e sua relação com o clima e a raça mediavam os conflitos políticos e científicos com seus pares no processo de construção do campo científico, na Primeira República.

Também na Primeira República, mais precisamente no período de construção do projeto republicano, compreendido entre 1890 e 1907, se situa o estudo de Erika Marques de Carvalho sobre os projetos emanados pelo Clube de Engenharia, visando à integração territorial brasileira. Aqui, vê-se claramente a dimensão da ciência como força produtiva, alinhada ao discurso do progresso nacional. O modo como essa elite de engenheiros buscou se inscrever na formação de um Estado civilizado é o tema desse artigo. A agenda da integração territorial, através dos projetos de viação, estradas de ferro e de linhas telegráficas, afinada com o ideal de progresso, posicionou o Clube e seus engenheiros nas arenas de decisão técnica dos governos republicanos.

O caráter social e a utilização comercial da prática científica no processo de instituição social da hegemonia científico-farmacêutica em São Paulo, nos anos 1930, são o tema do trabalho de Gabriel Kenzo Rodrigues. Aqui se discute como o discurso legitimador inerente ao ideário científico foi apropriado por diversos grupos sociais, servindo para sancionar hierarquias sociais. A pura racionalidade da ciência, legitimando o discurso competente da medicina, é avaliada como socialmente construída, servindo para fundamentar a assimetria entre o modelo – supostamente universal e atemporal – de cura dos especialistas e os saberes populares. O discurso médico, agora em torno da história da eugenia, é o assunto abordado no ensaio de Leonardo Dallacqua de Carvalho e Gerson Pietta. Os autores levantam questões e apresentam novas perspectivas emergentes na historiografia sobre a eugenia. Presente no discurso de incontáveis personagens de variadas áreas do conhecimento, aglutinando teorias provenientes de fontes diversas, como a biotipologia humana, a criminologia, a psiquiatria, a endocrinologia e a medicina legal, os estudos históricos sobre os movimentos eugênicos constituem, para o historiador – como demonstram os autores – “um canteiro de obras”.

Leonardo Mendes e Renata Ferreira Vieira revisitam o polêmico “caso Abel Parente”, que agitou a sociedade brasileira entre as décadas de 1890 e 1900, e que resultou na realização de investigações policiais e processos judiciais contra o médico que anunciara, nos jornais do Rio de Janeiro, o seu método contraceptivo, interpretado pelos setores conservadores da classe médica e da sociedade carioca como uma forma de aborto. A análise apresentada coloca em foco os debates realizados na imprensa leiga entre médicos e intelectuais, problematizando a relação entre conhecimento científico e concepções morais acerca da sexualidade, da gravidez e do corpo feminino.

Fechando a seção de artigos do Dossiê, Viviane Machado Caminha São Bento e Nadja Paraense dos Santos analisam a atividade científica dos jesuítas na América portuguesa através das informações encontradas na obra Colecção de Varias Receitas, que reuniu receitas de medicamentos fabricados nas boticas jesuíticas espalhadas pelo mundo ultramarino. A partir da análise desse impresso, as autoras procuram demonstrar a inserção da Ordem Inaciana no processo de desbravamento e conhecimento do mundo natural, próprios da ciência da Época Moderna, contribuindo para desmistificar a imagem que associa a ação dos jesuítas pela negação de sua relação com questões de foro científico.

O depoimento escrito por Maria Amélia Dantes, a convite da Revista Maracanan, sobre o processo de constituição do campo da História das Ciências no Brasil, é perpassado pela sua atuação pioneira nessa área, em especial no que tange aos estudos sobre o processo de institucionalização das ciências no Brasil Oitocentista. Ao alinhavar a sua trajetória profissional nessa temática, preocupa-se em relacionar a sua contribuição com a de outros profissionais contemporâneos, empenhados em compreender a singularidade das práticas científicas nacionais mediante os debates sobre a ciência periférica em curso no último quartel do século XX. A leitura do seu depoimento proporciona ao leitor compreender os desafios enfrentados pelos pesquisadores brasileiros, em especial desde os anos 1980, com atenção às temáticas abordadas e às clivagens historiográficas analíticas vivenciadas por uma área do conhecimento ainda em expansão.

Na conclusão do seu depoimento, Maria Amélia Dantes faz uma importante menção às preocupações atuais dos estudos produzidos na esfera da História das Ciências, afinados com os parâmetros de uma História Global, com destaque para a utilização dos conceitos de circulação e produção de conhecimentos, que são o tema dos trabalhos e do artigo de Kapil Raj, traduzido por Juliana Freire. Raj apresenta um balanço das principais problemáticas interpretativas enfrentadas pelos pesquisadores dedicados ao estudo do conhecimento científico produzido pelos países periféricos, desde a publicação do clássico trabalho de George Basalla, que reduzia os países não europeus a meros receptores / reprodutores de uma concepção científica disseminada pelos centros de ciência europeus. Depois de apresentar as sucessivas clivagens e aporias produzidas pela historiografia a essa concepção, defende a realização de análises com o foco na própria circulação como um “local de formação do conhecimento”, argumentando que a perspectiva circulatória permite ver a ciência como sendo coproduzida pelo encontro e pela interação entre comunidades heterogêneas de especialistas de diversas origens – o que possibilita a construção de uma história global fundamentada.

O artigo de Raj encerra o Dossiê ao mesmo tempo que representa um apelo à realização de mais pesquisas sob a perspectiva da circularidade, haja vista que ainda constitui uma novidade no campo da história das ciências, cujas produções, paulatinamente, têm conseguido desfazer o nó górdio que separava a ciência da política, ou que, por vezes subjugava a primeira à segunda. Fica o convite.

Os dois últimos artigos, publicados na seção de textos avulsos, dão o tom do “estado de arte” de outras duas temáticas relacionadas aos estudos em história política e evidenciam a diversidade dos objetos visitados pelos pesquisadores dedicados a essa linha de pesquisa no âmbito da UERJ. André Bueno analisa as teorias tradicionais chinesas de preservação material, construídas com base em uma cultura da cópia, que se voltam para a preservação do método pelo qual o objeto foi fabricado em detrimento da manutenção do objeto material em si. Assim, ao mesmo tempo que as cópias se constituiriam como “miragens” do original, elas seriam eficazes na manutenção das tradições culturais chinesas ao conservarem o conhecimento tradicional sobre as antigas formas de produção, mantendo padrões, métodos e técnicas muito similares (senão idênticos) aos do passado.

A história da emigração de Santa Comba – município pertencente à província de A Coruña, na Galiza – para o Rio de Janeiro, durante os séculos XIX e XX, é reconstituída por Erica Sarmiento, através do arquivo privado (composto por cartas, fotos, anotações notariais e agenda pessoal) da família Mouro, em especial do seu patriarca, Francisco Mouro. A autora realiza uma análise desse fenômeno migratório, a partir do estudo de uma família, com base no argumento de que as fontes pessoais permitem situar o emigrante em seu espaço de atuação, relação e influência, nos aproximando de suas estratégias, pautas e seus objetivos familiares, oferecendo a possibilidade de seguir de perto os seus passos. Seu trabalho nos permite compreender melhor tanto o processo de imigração como o de permanência de emigrantes em terras estrangeiras.

Assim, encerramos a edição de número 13 da Revista Maracanan, com a expectativa de que possamos contribuir com a consolidação da publicação dos docentes do Programa de Pós-Graduação de História (PPGH-UERJ) como um espaço de debates e apresentação de renovadas perspectivas historiográficas e incentivando o diálogo entre as diferentes áreas de pesquisa, explorando paulatinamente a natureza híbrida dos objetos históricos.

Nota

1. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. 1994. p. 9.

Monique de Siqueira Gonçalves – Doutora em História das Ciências pela Casa de Oswaldo Cruz, mestre em História Política pela UERJ, graduada em História pela UERJ. Desde 2011, faz pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em História da UERJ (como bolsista FAPERJ), atuando como docente colaboradora desse programa e do Departamento de História da UERJ e, desde 2013, atua como membro do corpo editorial da Revista Maracanan.

Flavio Coelho Edler – Doutor em Saúde Coletiva pela UERJ, mestre em História Social pela USP e graduado em História pela UFRJ. É professor do PPGHCS – COC / Fiocruz. Dedica-se à História das Ciências, com ênfase na história da medicina no Brasil. Entre outras publicações, é autor do livro Medicina no Brasil Imperial: clima, parasitas e patologia tropical (Ed. Fiocruz, 2011) e Ensino e profissão médica na corte de Pedro II (Ed. UFABC, 2014).

Alex Gonçalves Varela – Historiador, graduado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, mestre e doutor em História das Ciências pela Universidade Estadual de Campinas. Dedica-se aos estudos no campo da história das ciências, com ênfase na história das geociências e na história das ciências oceanográficas. É autor de Atividades Científicas na “Bela e Bárbara” Capitania de São Paulo (1796-1823). São Paulo: Annablume, 2009.


GONÇALVES, Monique de Siqueira; EDLER, Flavio Coelho; VARELA, Alex Gonçalves. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.13, 2015. Acessar publicação original [DR]

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O Golpe de 1964 e seus desdobramentos: lutas, artes, repressão e memória / Revista Maracanan / 2014

Não nos peças a fórmula que te possa abrir mundos, e sim alguma sílaba torcida e seca como um ramo. Hoje apenas podemos dizer-te o que não somos, o que não queremos.

(Eugênio Montale, sem título, em Ossos de Sépia)

Com satisfação trazemos a público este número especial da Revista Maracanan, que inaugura sua periodicidade semestral com a temática candente do golpe de Estado ocorrido no Brasil em 1964, provocando repercussões duradouras na vida nacional e mesmo em outros países da América Latina.

Os artigos que aqui se encontram provêm, em sua maioria, dos debates ocorridos na UERJ entre os dias 31 de março e 04 de abril de 2014 como parte do Seminário Internacional: 50 anos do Golpe de 1964, promovido por um conjunto de Universidades sediadas no Rio de Janeiro Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV, Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) com o intuito de, em alguma medida, reunir e analisar a imensa quantidade de informações e reflexões que proliferaram no país, dos meios de comunicação às academias, passando pelas Comissões Estaduais da Verdade, pela Comissão Nacional da Verdade, Ordem dos Advogados do Brasil, Grupo Tortura Nunca Mais, entre outros. Mais especificamente, o “Programa Integrado de atividades acadêmicas” buscou agregar professores, alunos e convidados dos cursos de História fluminenses, mas também de outras regiões do país e do mundo, para “descomemorar” o aniversário do golpe, segundo a expressão que entrou em voga neste cinquentenário, com a apresentação de novas produções universitárias, juntamente com novas, velhas e boas discussões. Dentro desse projeto, em que a UERJ se inseriu de variadas maneiras, o Departamento de História – na pessoa dos professores Ricardo Antônio Souza Mendes, Beatriz de Moraes Vieira, Carina Martins Costa e Marcus Dezemone, propôs o Ciclo de Debates sobre O Golpe de 1964 e seus desdobramentos: lutas, artes, repressão e memória, congregando especialistas de diferentes universidades e instituições de pesquisa brasileiras e latino-americanas para debater a temática, a fim de compor um panorama diversificado dos estudos mais recentes e proporcionar o intercâmbio entre os pesquisadores de distintos espaços acadêmicos.

Desse evento resultou o Dossiê que aqui se apresenta, em consonância com os objetivos de qualidade e pluralidade da Maracanan, visando ao incentivo e divulgação de produções científicas inovadoras e interdisciplinares na área da História. Assim, os artigos que compõem o dossiê de mesmo título do mencionado Ciclo de Debates seguem aproximadamente a ordem das palestras e depoimentos do evento, que se organizavam em três blocos: “Cinema, literatura e ditadura”, contando com os professores Viviana Bosi, Wagner Pinheiro Pereira e Sylvia Nemer; “Memória de lutas”, reunindo a psicóloga Vera Vital Brasil e os professores Marcus Dezemone, Beatriz Vieira e Orlando de Barros; e “A participação brasileira nos golpes civil-militares no Cone Sul”, em que as contribuições da jornalista argentina Stella Calloni se somaram às dos professores Francisco Carlos Teixeira da Silva e Enrique Serra Padrós. Na mesa de abertura, os professores convidados Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira debateram o tema “1964: o golpe que acabou com a democracia e instituiu a ditadura no Brasil”.

Em geral, os textos aqui presentes foram compostos, conforme a escolha dos autores, por meio de um processo de gravação, transcrição e posterior revisão, o que resulta em um tipo peculiar de escrita, com forte marca do discurso oral que optamos por manter, ainda que os autores hajam revisto e refeito seus trabalhos. Nem todos os palestrantes puderam enviar seus textos, mas, de todo modo, registramos mais uma vez nosso agradecimento pela participação dos professores Ângela de Castro Gomes, Stella Calloni Jorge Ferreira. Igualmente, agradecemos aos alunos bolsistas do curso de História que generosamente se dispuseram ao duro trabalho de transcrever as gravações, nomeadamente Fabrício Gabriel, Juliana Martins, Cairo Barbosa, Edson Lima e Antônio Máximo. Este último, ilustrador profissional além de nosso aluno, brindou-nos graciosamente com uma colaboração inédita, que temos a honra de publicar. A ele e a Fabrício Gabriel, o dedicado secretário da Revista, nossa especial gratidão.

Não há como unificar as reflexões aqui expostas e os debates por elas suscitados, e nem é esta nossa intenção, alicerçada, como já mencionado, na busca de visões plurais. Tampouco há conclusões definitivas, uma vez que toda história muito contemporânea, ou história do tempo presente, não possui marcos precisos de início e fim, é necessariamente inconclusa e oferece aos agentes históricos, historiadores e leitores, um campo aberto de possibilidades, conforme as palavras do professor Enrique Padrós. Neste tipo de historiografia, se não há a clássica distância temporal, há porém a capacidade de distância crítica, que nos permite não neutralidade, mas isenção.[1]

Aqui, também algumas reflexões sobre a função social da História pedem passagem, pois que cabem a esta disciplina, a considerarmos as obras de autores como Michel de Certeau e Jörn Rüsen, os procedimentos epistemológicos e metodológicos necessários para pôr o passado, seus sofrimentos e seus mortos no devido lugar. Para Certeau, a escrita da história é ou deveria ser um discurso de separação, de distinção entre o presente e o passado, o eu e o outro, pois sem isso nem o tempo nem a identidade se tornam inteligíveis. Lidar com o que foi mas não é mais, a finitude e a morte, é um procedimento inelutável e paradoxal da historiografia, cujo discurso “re-presenta mortos no decorrer de um itinerário narrativo” e ao fazê-lo, cumpre a função simbólica de um rito de sepultamento, à maneira de um canto fúnebre que ao mesmo tempo elogia e elimina, honra e enterra. “Assim, pode-se dizer que ela [a historiografia] faz mortos para que os vivos existam”, fornecendo ao passado morto uma representação que exorciza a angústia e libera o presente vivo de seus pesos dolorosos.[2] Já a concepção de Rüsen sublinha a função orientadora do trabalho historiográfico, que apresenta sentidos para a experiência social. Mas, em momentos de grave crise, a ordem narrativa de uma sociedade pode ser alterada ou rompida, vindo a atingir sua cultura histórica e historiográfica, seja em sua dimensão política, estética, psicológica ou cognitiva. Para não subsumir a essas dificuldades, especialmente quando o próprio cerne da capacidade de criar conhecimento é atingido, a historiografia precisa se autorrefletir, superar empecilhos temporais e sociológicos e estabelecer a “historicização” como “estratégia cultural de superação das consequências perturbadoras das experiências traumáticas”. Isto porque, quando as histórias são contadas, o acontecimento catastrófico começa a ser assimilado dentro de uma visão de mundo plausível, de maneira que “ao cabo desse caminho, a narrativa histórica dá à perturbação traumática um lugar na cadeia temporal de eventos. Aí ela faz sentido e perde, assim, seu poder de destruir o sentido e o significado. Ao dar ao evento um significado e sentido ‘históricos’, seu caráter traumático desaparece”.[3] O autor propõe, assim, que ao historiar o que seria uma catástrofe inenarrável, a historiografia supera o trauma e cumpre uma função destraumatizante, vindo a realizar na escrita da história uma dinâmica equivalente ao luto social.

Tais considerações sugerem alguns pontos de convergência que podem ser tomados como norteadores do conjunto de reflexões que ora se apresenta. Os artigos que tratam da relação entre cinema, literatura e a ditadura, por exemplo, abordam os problemas enfrentados pela vida cultural brasileira num momento de grande mudança, na virada da efervescência política do início dos anos 1960 para os tempos da censura e repressão. A isto se somam as ricas problematizações que a arte e os meios de comunicação colocam à crítica, seja literária ou historiográfica. Viviana Bosi estuda a forma como dois poetas brasileiros importantes no período, Ferreira Gullar e Francisco Alvim, exprimiram os problemas políticos da sociedade brasileira entre os anos 1960 e 1970, e questiona, ainda que brevemente, as relações entre poesia e história, especialmente no que tange à poesia dita engajada. Wagner Pinheiro Pereira busca analisar as representações da natureza repressiva e autoritária do regime militar brasileiro em sua fase de maior recrudescimento político, conforme se vê no filme Pra Frente, Brasil (1982), e Sylvia Nemer destaca, na filmografia e na reflexão teórica de Glauber Rocha, a presença aguda das utopias, ideologias e, sobretudo, das tensões que envolveram a cultura brasileira de esquerda nos anos sombrios da ditadura.

Nos textos concernentes à temática das memórias de lutas, os pontos de condensação versam sobre os problemas da memória social, traumática ou não, sobre a consequente necessidade de testemunhos a serem acolhidos pela sociedade, como forma de superação de silêncios e reparação de danos, e sobre as questões que a dor e / ou as disputas de memória colocam à historiografia brasileira. Neste quadro inserem-se as considerações de Vera Vital Brazil ao destacar efeitos da violência institucionalizada pelo golpe civil militar sobre a produção de subjetividade e apontar sua permanência nos dias atuais. Apontando a tortura como um dos principais estratégias repressivas do Estado Brasileiro, dá destaque ao dano psicológico e social das violações cometidas em conexão com os efeitos de silenciamento e destaca a importância do testemunho e da reparação por meio das políticas públicas estatais. Em um balanço explicativo, Marcus Dezemone aborda as atuais batalhas de memória em torno do significado da deposição do presidente João Goulart e do regime autoritário instaurado em seguida, avaliando a construção de representações que enfatizam ora a repressão e a violência política, ora o crescimento econômico e uma suposta manutenção da ordem. Ao relacionar as disputas do presente às diferentes apropriações do passado, o autor reflete sobre o caráter seletivo da memória e ilumina as paixões, versões e controvérsias que 1964 provoca na sociedade brasileira. Em direção de certa forma semelhante, as reflexões históricas e historiográficas apresentadas em meu próprio textose fazem sobre as atuais e intensas discussões acerca do golpe, da ditadura e seus efeitos no país, e propõem uma espécie de debate sobre os debates em que se considere a necessidade de nuances no que se refere a conceitos importantes como, por exemplo, os de liberdade, vitimização, memória traumática e estado de exceção, aos quais se associa a noção de “perplexidade” que surge reiterada e significativamente nas fontes de pesquisa da época.

No terceiro bloco de textos, cumpre-se de algum modo a proposta orientadora e reparadora da História, uma vez que os trabalhos retiram do silenciamento pequenas e grandes questões incômodas ou obscuras, como a precariedade da defesa dos direitos humanos no Brasil, tratada por Francisco Carlos Teixeira da Silva ao retomar as rupturas e continuidades de nossa história recente – mediante a comparação das ditaduras de 1937-1945 e 1964-1985 e os regimes democráticos de 1946-1964 e pós 1985 -, para criticar a violência policial, a violência política e a cotidiana, em especial no que concerne à resiliência da tortura na vida pública brasileira. Por sua vez, o trabalho de Enrique Serra Padrós expõe a atuação extrafronteiriça da ditadura brasileira, pressionando os países vizinhos do Cone Sul para obter colaboração no controle dos “focos subversivos” ao redor das suas fronteiras, e analisa o caso uruguaio (1964-1973) por ser emblemático dessas relações que sintetizam as responsabilidades do Brasil na eclosão de golpes de Estado e na consolidação de ditaduras de segurança nacional na região. Em ressonância a essas considerações, Orlando de Barros ofereceu seu testemunho de professor da UERJ nos anos ditatoriais, explicando a difícil situação dos mestres que viam seus alunos serem perseguidos, presos ou mesmo mortos, bem como as condições de trabalho vigiado e os modos de atuação do regime dentro da instituição universitária.

Na seção dos Artigos Avulsos, os temas abordados dialogam exemplarmente com o Dossiê, como se vê no trabalho do professor Ricardo Antonio Souza Mendes, que resgata a Doutrina de Segurança Nacional para compreender os diferentes projetos de sociedade que estavam em gestação entre as direitas, ainda antes da efetivação do golpe, mas cuja fragmentação foi superada por um conjunto de elementos de identificação que permitiu a unidade observada nos primeiros meses de 1964. Outrossim, as autoras Joana D`Arc Fernandes Ferraz e Cíntia Christiele Braga Dantas tratam do problema da memória, do esquecimento e dos silêncios em chave diferente, pois adotam uma perspectiva benjaminiana para questionar os usos políticos da memória pelos governos pós-ditatoriais e sopesar os dispositivos de reparação e os seus limites ou sequelas no Brasil.

A Resenha do professor Nilo André Piana de Castro traz a boa nova do livro de Alessandra Gasparotto, agraciada em 2010com o “Prêmio de Pesquisa Memórias Reveladas”. Intitulada O terror renegado: a retratação pública de integrantes de organizações de resistência à ditadura civil-militar no Brasil, 1970-1975, a obra concentra informações relevantes sobre os fatos da história política recente no país a partir de meticulosa pesquisa sobre os “arrependimentos” durante a ditadura civil-militar, nos casos em que jovens militantes de esquerda foram apresentados nos veículos de comunicação, entre 1970 e 1975, com depoimentos que renegavam suas atividades na luta-armada e na oposição ao regime imposto.

Por fim, nas Notas de Pesquisa, Jacqueline Ventapane apresenta seus estudos sobre o papel dos meios de comunicação, como a revista VEJA, na representação dos interesses de setores das elites, inserindo-se nas disputas para fazer prevalecer seu próprio projeto de país, conforme se vê no caso da disputa em torno das decisões da política externa daquele período, que geraram impactos importantes na política doméstica.

Se estão certas as reflexões de Michel de Certeau e JornRüsen acima comentadas, todo este número da RevistaMaracanan, ao buscar de variadas formas historiar essa parte recente e difícil da história do Brasil, de certa maneira entoa seu canto de luto ao passado doloroso, a ser decantado, compreendido e enterrado, para, quem sabe, oferecer aos vivos do presente melhor matéria de reflexão sobre sua vida e seu mundo.

Notas

1. PADRÓS, Enrique Serra. “Os desafios na produção do conhecimento histórico sob a perspectiva do Tempo Presente”. Anos 90, Porto Alegre, v.11, n.19 / 20, jan-dez. 2004, pp. 199-223.

2. CERTEAU, Michel. A escrita da história. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 106-108.

3. RÜSEN, Jörn. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história. História da Historiografia [Revista eletrônica], n.02, [Ouro Preto: UFOP], março 2009, p. 195

Beatriz de Moraes Vieira


VIEIRA, Beatriz de Moraes. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.11, dezembro, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Livros, Leitura, Poder e Cultura / Revista Maracanan / 2014

Lire um texte? Quoi de plus facile en apparence. Quoi de plus délicat, pour peu qu’on s’interroge non seulement sur les conditions d’élaboration, de destination, de diffusion des imprimés […] mais sur notre comportement personnel, daté, conditionné par une culture, heritée et acquise, de lecteur.

Denis Richet [1]

Há alguns anos, debruçar-se sobre a história do livro e da leitura representa mais do que um simples inventário do que se lia ou do que se produzia em dada sociedade em certo momento histórico. Os estudos produzidos pela historiografia francesa, como pela anglo-saxã e a ibérica abriram inúmeras vias de pesquisa, possibilitando que a análise dos impressos e da leitura signifique, sobretudo, um meio de buscar opções diversificadas da pesquisa histórica para abordar práticas culturais e políticas. Embora informações também se veiculem por meio da oralidade, o trabalho com textos permite identificar o sentido das mensagens transmitidas pela palavra escrita, ainda quando em ambiente de cultura letrada rarefeita, como aquele das sociedades do Antigo Regime.

Dessa maneira, os impressos transformaram-se em meio privilegiado “de diálogo com o passado, de criação e de inovação”.[2] Sob esse prisma, como afirmaram Darnton e Roche [3], o livro (ou qualquer texto impresso) não deve ser visto apenas como memória de um tempo, que narra as diferentes percepções de um mesmo fato; ou como simples ingrediente do fato; mas, sim, enquanto agente que intervém nos processos e episódios. Poderosos elementos de continuidade, os livros também podem ser importantes vetores de rupturas na tradição. Afinal, os livros, textos e suas representações investem-se de múltiplas missões: a de educar, de formar, de criar tanto um espírito de universalidade, quanto de edificar as nações particulares, especialmente ao longo do século XIX. [4] No Brasil, o oitocentos constituiu-se no período em que o discurso escrito anunciou a conquista de sua autonomia, numa sociedade ainda profundamente dominada pela oralidade, com o vislumbre do nascimento de uma opinião pública, no sentido moderno do termo [5].

Não se quer dizer, no entanto, que os textos impressos, por si só, sejam capazes de fazer revoluções.[6] Ainda que não se confira tal poder aos textos, pois estes podem ser apreendidos de modos distintos por indivíduos diferentes, é possível afirmar, contudo, que são os textos escritos, em seus conceitos e linguagens, que abrem espaço à criação de novas culturas políticas. Portanto, os impressos registram igualmente uma historicidade.

Por outro lado, ao debruçar-se sobre a história dos livros, dos textos e da cultura escrita, diversos momentos mostram-se fundamentais: o Antigo Regime, o longo século XIX e o tempo contemporâneo. Na primeira temporalidade, encontram-se as novidades em relação às práticas de leitura, à constituição do esboço de uma voz geral, mas também as resistências em relação a tais propostas por meio do papel repressivo da Inquisição e da censura. Além disso, naquela época, os que detinham o privilégio do saber e da escrita, embora ainda dependessem do Estado para a sobrevivência, encontravam nesse trunfo um instrumento de poder. Na segunda temporalidade, o impresso se integra ao tecido cultural e político da sociedade, com as palavras vendo-se revestidas, por esse modo, de conotações particulares e diversas. Ou seja, ao transcender seu contexto originário, uma idéia projeta-se no tempo sob a forma de um novo conceito, que transforma os discursos contemporâneos em práticas novas, capazes de revelar as diversas identidades políticas e sociais presentes naquela conjuntura histórica. Por fim, no tempo contemporâneo, além de transmitirem mensagens a um público mais amplo, em função do grau maior ou menor de alfabetização, os textos demonstram tanto a formação de um campo intelectual autônomo, na pespecriva de Bourdieu [7], quanto pressupõem que a palavra escrita se tenha convertido em objeto privilegiado de uma luta político-ideológica que se configurou no oitocentos. Tais temporalidades acham-se presentes nessa coletânea, cujo foco dirige-se não só para o Brasil, mas também para a França, Portugal e Espanha.

Nessa perspectiva, o conjunto de artigos reunidos neste dossiê pretende contribuir, sob a forma de debate intelectual, para essa análise da função assumida pelo livro, pelo impresso e pelo manuscrito na transmissão da cultura; na formação da opinião pública e das culturas políticas; em seu papel como instrumento do poder, em especial nas monarquias; no processo de constituição dos intelectuais; e, mesmo, em outras formas de que o escrito pode revestir-se, como o de caricaturas ou partituras musicais, evidências igualmente de acervo cultural comum a uma população.

Os sete artigos integrantes do dossiê foram redigidos tanto por nomes emblemáticos nessa linha de estudos, como por jovens pesquisadores, possibilitando um encontro de gerações. Sem seguirem um fio condutor único, os artigos apresentam grande variedade de abordagens e de questões, que transparecem dos próprios títulos. De um lado, a formação de bibliotecas, o ato de traduzir e publicar textos enquanto práticas e estratégias do poder monárquico, a censura e a Inquisição, que adquiriram outra dimensão após a invenção da imprensa, com seu papel multiplicador. De outro, a historicidade do literário na ótica específica de José de Alencar, o estudo da “arte menor” do caricaturista, transformada em elemento primordial de uma imprensa militante na Modernidade, o uso das partituras musicais consideradas como meio para valorizar a mestiçagem no Brasil enquanto patrimônio cultural, e as disputas intelectuais de meados do século XX no Brasil, refletindo o processo de reconfiguração de seu campo intelectual. Cabe ainda ressaltar que, embora não faça parte intrínseca do dossiê, soma-se uma resenha com temática a ele vinculada, sobre o mais recente livro de Robert Darnton traduzido para o português.[8]

São, portanto, narrativas distintas, mas que, ao ultrapassar uma abordagem unívoca, se conjugam para formar uma teia entrelaçada, capaz de lançar redes de significados sobre o passado, a fim de oferecer ao leitor, como sempre acontece, elementos com que (re)construir a sua própria interpretação do mundo.[9]

Notas

  1. Préface. In: JOUHAUD, Christian. Mazarinades: la Fronde des mots. Paris: Aubier, 1985, p. 12.
  2. BARATIN, Marc & JACOB, Christian. O poder das bibliotecas. A memória dos livros no Ocidente. [Trad.]. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2000, p. 11.
  3. DARNTON, Robert & ROCHE, Daniel (orgs.). Revolução impressa. A Imprensa na França, 1775-1800. [Trad.]. São Paulo: EDUSP, 1996.
  4. RIBEIRO, Maria Manuela Tavares. “Livros e leituras no século XIX”. Revista de História das idéias. Coimbra, 20: 187- 228, 1999, p. 187
  5. BAKER, Keith. M. Au tribunal de l’opinion. Essais sur l’imaginaire politique au XVIIIe siècle. Paris: Payot, 1993; FARGE, Arlette. Dire et mal dire. L’opinion publique au XVIIIe siècle. Paris: Seuil, 1992.
  6. Ver CHARTIER, Roger. Les origines culturelles de la Révolution française. Paris: Seuil, 1990 e BARBIER, Fréderic. História do livro. [Trad.]. São Paulo: Paulistana, 2008.
  7. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. [Trad.]. São Paulo: Perspectiva, 1974, pp. 183-202.
  8. DARNTON, Robert. Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII. [Trad.]. São Paulo, Companhia das Letras, 2014
  9. O Laboratório Redes de Poder e Relações Culturais foi criado a partir do grupo de pesquisa do CNPq (1997) intitulado “Ideias, Cultura e Política na Formação da Nacionalidade Brasileira”, e está integrado ao Programa de Pós-graduação em História da UERJ. Foi chancelado em dezembro de 2006 como núcleo de excelência no âmbito do programa Pronex FAPERJ / CNPq. Desde então, passou a reunir professores de outras instituições, próximos seja pela temática, seja pela abordagem e foi responsável pela organização desse dossiê, que contou com a ajuda de Tania Bessone e Lúcia Guimarães, suas integrantes, às quais cabe aqui um agradecimento especial.

Lucia Maria Bastos Pereira das Neves


NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, v.10, n.10, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Relação de Poder no Mediterrâneo Antigo / Revista Maracanan / 2013

Os artigos que integram o dossiê da Revista Maracanan intitulado Relação de Poder no Mediterrâneo Antigo tornou-se uma edição especial de 2013 pelo fato de nos possibilitar repartir a nossa satisfação em comemorar os 15 anos da trajetória bem sucedida do Núcleo de Estudo da Antiguidade (www.nea.urj.br) como centro produtor de saber em sociedades do mundo antigo. Coordenar uma equipe de pesquisadores de excelência requer empenho, dedicação, generosidade e acima de tudo espírito de equipe. Tudo se torna mais fácil quando estamos diante de um grupo que acredita na solidariedade, reciprocidade e na cumplicidade, mas, acima de tudo acredita na possibilidade em realizar pesquisas de qualidade nas águas brasileiras.

O longo tempo de existência do NEAUERJ se deve ao apoio incondicional dos professores, pesquisadores e alunos da UERJ assim como das parcerias institucionais e as amizades que fizemos ao longo desse caminho sempre defendendo o compromisso de realizar pesquisas de qualidade através do dialogo, parcerias e colaboração com os diversos núcleos de pesquisa no solo brasileiro e no exterior, a todos o nosso particular agradecimento.

A temática que compõem o dossiê transita pelo poder e os espaços por onde se manifestam o político visando demarcar que nem sempre essas ações tornam-se explicitas, ou seja, suas operações nem sempre aparecem materializadas, muitas vezes perpassam o imaginários social e nem por isso deixam de fomentar conflitos de representação que exige a necessidade de recuo, embate ou mesmo negociação.

A pesquisadora Katia Maria Paim Pozzer, no artigo Relação de Poder no Império – Arqueologia e Iconografia da Conquista de Lakiš, nos alerta que nos últimos anos a discussão sobre a ascensão e queda de impérios e estados antigos tornou-se um tema de história política e social comparada e as questões relativas à dinâmica dos impérios têm sido entendidas como fazendo parte de amplas transformações culturais. A edição prossegue analisando as configurações de poder no Oriente Antigo, com a contribuição do saudoso egiptólogo Ciro Flamarion Santana Cardoso (In Memorian), que nos agraciou com o artigo intitulado A teologia régia: o faraó segundo a ideologia monárquica do antigo Egito (segundo milênioa. C.). O texto de Ciro Cardoso nos possibilita perceber a necessidade de cotejar documentos de diversos gêneros, para a construção da pesquisa histórica. Cardoso foi um pesquisador atuante no Brasil e um dos principais responsáveis pela construção e consolidação da área de História. É necessário demarcar que Ciro Cardoso foi um dos precursores no processo de formação dos especialistas brasileiros, em História Antiga. Logo, a Revista Maracanã homenageia e rememora os feitos deste grande historiador. A temática das relações de poder no Antigo Egito, também podem ser contempladas por meio dos escritos dos pesquisadores Liliane C. Coelho e Moacir Elias Santos, os quais nos apresentam o artigo intitulado As Cartas de Amarna e as Relações Internacionais no Egito do final da XVIII dinastia.

Com o titulo Synoicismo: controle politico através da unificação geográfica da Ática, a helenista Maria Regina Candido, traz o tema sobre a Reforma Territorial de Clistenes como forma de revisitar o debate em torno do processo de unificação geográfica da Ática visando cotejar indícios da formação do segmento social de poucos recursos identificado como os thetai. Maria Cecilia Colombani, com o titulo de Saber, poder y matrimonio: ritualización de la práctica y signos de la dominación, nos apresenta a perspectiva filosófica ao considerar a dimensão do casamento como uma prática política e institucional composta de acentuada ritualização, o que coloca o casamento como parte das relações de poder em um registro de observação único na história do Ocidente. O grupo do LABECA – USP se faz presente através da pesquisadora Elaine Farias Veloso Hirata que introduz os conceitos de espacialidade do poder e paisagem política no estudo das relações de poder das poleis gregas no artigo A espacialidade do poder na cidade grega antiga.

A pesquisadora Claudia Beltrão no artigo Religião, Gênero e Sociedade: ordem romana, ordem sagrada tece uma breve análise de alguns dos rituais do mês de março, tomados como exemplo, permite a observação da complexa inter-relação, no sistema ritual, dos elementos “masculinos” e “femininos” na Roma antiga. A pesquisadora Arlete Motta no texto A decisão de Priapo, na sátira I, 8 de Horácio: a fuga das feiticeiras como representação de uma nova era usa o riso como mecanismo de poder ao partir do principio de que dentre os mecanismos do riso, a sátira, ao expor questões comportamentais, pode servir como um meio de veiculação dos ideais político-sociais de uma época.

Norma Musco Mendes, especialista em sociedade romana, nos traz a reflexão sobre a interação entre a cultura política que norteava as práticas políticas e o desenvolvimento do culto imperial no artigo O Culto imperial como “transcrito público”. A pesquisadora Renata Lopes Biazotto Venturini em parceria com Tiago, França com o titulo Escrita e Relações de Poder em Suetônio, estabelecem uma analise visando entender melhor conceitos sobre a sociedade romana na obra A Vida dos Doze Césares.

Finalizando esta edição temos duas resenhas: uma da epigrafista Maricí Martins Magalhães analisando a obra de MORELLI, A.L. Madri di uomini e di dèi. La rappresentazione della maternità attraverso la documentazione numismatica di epocaromana e a do arqueologo Pedro Paulo Abreu Funari, José Antônio Dabdab Trabulsi, Le Présent dans le Passé. Autour de quelques Périclès du XX e siècle et de la possibilite d’une vérité en Histoire.

Deste modo, a Revista Maracanan deseja a todos uma boa leitura!

Maria Regina Candido – Professora Doutora. Coordenadora do Núcleo de Estudos da Antiguidade- NEA / UERJ


CANDIDO, Maria Regina. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, v.9, n.9, 2013. Acessar publicação original [DR]

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Arqueologia Brasileira – movimentos e entrelaçamentos / Revista Maracanan / 2011

A Arqueologia é uma das disciplinas que mais se desenvolveu no Brasil nas últimas décadas, tanto em termos de métodos, quanto de resultados e enfoques. Desenvolvimento este que se encaixa com a própria situação da disciplina na América Latina, onde os pesquisadores vêm desenvolvendo uma arqueologia claramente de cunho social [1].

A alteração da imagem das populações mais antigas caberá à arqueologia. Evidentemente outros estudos contribuíram substancialmente para modificá-la, mas é a arqueologia que será capaz de construir um mundo por trás dos artefatos, das fogueiras e dos ossos, estabelecer um processo, enxergar uma organização espacial e a exploração deste espaço. Neste sentido, é que afirmamos que o trabalho do arqueólogo, visto como reconstituição e entendimento do passado, confunde-se com o próprio objetivo do historiador.

Porém, os meios do arqueólogo seriam, a priori, mais reduzidos. Os vestígios arqueológicos permitem construir um sistema de oposições que não têm significados sociais absolutos. Assim, o grande desafio seria passar das propriedades materiais dos objetos (ou restos) à percepção de características sociais. Objeta-se que uma série arqueológica, mesmo que representativa de uma cultura, não permitiria compreendê-la em termos de processo, ou seja, as relações entre cultura material e processo social só seriam inteligíveis com a ajuda de outras fontes, como textos literários ou testemunhos etnográficos. Portanto, o conhecimento real do fenômeno social só se daria através da linguagem.

A arqueologia moderna e social, porém, recusa a distinção entre elementos materiais e não materiais de uma cultura, entendendo que as informações sociais estão presentes tanto nos objetos quanto na linguagem. Os limites da arqueologia resultariam dos métodos empregados, não das características de seus materiais. Ultrapassar estas barreiras significou questionar conceitos já estabelecidos e desenvolver novas estratégias.

As estratégias atuais preconizam que o conjunto de estruturas e objetos que a arqueologia revela devem ser vistos como conjuntos de informações com propriedades definidas, que devem ser consideradas espacialmente e temporalmente, associando as relações verificadas as características dos materiais e buscando para cada relação à sua função. Utilizando ainda informações externas ao revelado pela pesquisa, torna-se possível reconstituir o processo e os modos culturais da sociedade em estudo. Desta forma, cada vestígio contém todos os níveis das manifestações culturais e sociais de seus autores, integrando- -se em um conjunto completo em que cabe ao arqueólogo ler as relações que cada um contém, desde um artefato até o próprio sítio.

Assim, a arqueologia se mostra hoje uma ciência extremamente moderna e o trabalho do arqueólogo, atividade de profissionais altamente capacitados.

Por outro lado, é natural que na América Latina (e, por extensão, no Brasil) continente de impressionante multiplicidade étnica e com uma antiguidade considerável, a arqueologia possua um lugar de destaque. Desde que as primeiras populações aqui adentraram, foram produzidos movimentos e entrelaçamentos sociais e culturais. Movimentos e entrelaçamentos que, grande parte das vezes, somente a arqueologia é capaz de revelar.

Neste sentido, em seu sétimo número, a Maracanan, apresenta, com os quatro primeiro artigos, o Dossiê: Arqueologia Brasileira – movimentos e entrelaçamentos, com temas ligados por esta preocupação e que revelam o estado da arte da disciplina.

Inicialmente, Jorge Eremites e Rodrigo de Aguiar, apresentam um trabalho inédito, seja pela região estudada, seja pela temática. Tratam da região do Jalapão, no Estado do Tocantins, praticamente desconhecida para a arqueologia brasileira, onde foram localizados alinhamentos de pedras (megalitismo), com possível significado arqueoastronômico.

Em seguida, Sibeli Viana e Pedro Paulo Guilhardi, de forma bastante didática, tratam dos contextos sócio-culturais de instrumentos líticos, a partir de sítios arqueológicos do Brasil Central. Seu estudo privilegia a abordagem antropotécnica na análise dos instrumentos, os pensado a partir do ambiente humano.

Paulo Seda, Christiane Machado, Gláucia Sene e Laura Ribeiro da Silva, abordam a tradição ceramista Una e sua longa caminhada pelo sudeste até atingir o litoral do Espírito Santo. De forma bastante inovadora, entendem que o dinamismo das tradições arqueológicas representa um verdadeiro processo histórico.

Por fim, Marcos André de Souza, traz uma contribuição nova e importante ao estudo da escravidão, abordando-a, a partir da arqueologia, através da cultura material. São materiais escavados no interior das senzalas do Engenho São Joaquim, Goiás, e o autor discute as práticas sociais associadas a estes materiais.

Os trabalhos que se seguem ao dossiê, sem perder de vista os movimentos e entrelaçamentos, continuam a discutir a América Latina.

No âmbito da América Colonial, Rogério Basile, tratando do processo de urbanização no México, contrasta as percepções espanhola e asteca sobre um mesmo fenômeno: as cidades. Já Ana Raquel Portugal, debruça-se sobre a temática da bruxaria e da feitiçaria nos processos inquisitoriais e de extirpação de idolatrias no Peru colonial, mostrando como estes termos foram aplicados a práticas mágico-religiosas.

Mariana Moreno Castilho, por sua vez, aborda a concepção de mestiçagem indígena no século XIX, a partir da visão de José Veríssimo em Cenas da vida Amazônica. Com Mariana del Rocio Aguilar, os movimentos e entrelaçamentos chegam à contemporaneidade. A autora discute os direitos indígenas, seu lugar na legislação em vigor e sua relação com o exercício da cidadania. Encerrando o volume, em um extremo de movimento e entrelaçamento, Mariana Abramova, com um pequeno ensaio trata do governo Evo Morales, analisando a Nueva Constitucion Politica del Estado, sua aprovação, conseqüências e significados.

Desta forma, se o volume inicia discutindo como as etnias originais da América Latina se relacionavam com os astros e fabricavam seus instrumentos de pedra, termina discutindo como hoje exercem o poder a nível nacional na Bolívia. Movimentos e entrelaçamentos não cessam, mostrando o enorme poder de resistência e renovação das etnias.

Nota

1. Andrés ZARANKIN; Félix A. ACUTO (eds.). Sed non satiate. Teoría social en la arqueología latinoamericana contemporánea. Buenos Aires, Ediciones del Tridente, 1999; Félix A. ACUTO; Andrés ZARANKIN (eds.). Sed non satiate II: acercamientos sociales en la arqueología latinoamericana. Córdoba: Encuentro Grupo Editor, 2008.

Paulo Seda – LEPAmA – Laboratório de Estudos e Pesquisas da América Antiga / NUCLEAS – Núcleo de Estudos das Américas


SEDA, Paulo. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, v.7, n.7, 2011. Acessar publicação original [DR]

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Imigração / Revista Maracanan / 2010

Imigrante ou estrangeiro? Aparentando uma sinonímia tão naturalizada, esses conceitos envolvem representações distanciadas, impregnadas de capitais simbólicos que implicam relações diferenciadas entre o eu e o outro. Nesse sentido, caberia perguntar: em que circunstâncias o imigrante torna-se estrangeiro? Ou melhor, que injunções colocam-se como condutoras da opção por uma ou outra palavra? Por que o indivíduo que se vê como imigrante tende a ser visto como estrangeiro no olhar do “outro”? Como é enxergado aquele que parte? Estaríamos nós, estudiosos dos fenômenos e-imigratórios, atentos a estas questões?

Há cerca de vinte anos, falando em nome dos historiadores, ainda que focado na história das relações internacionais, Duroselle manifestava o desejo de que fossem empreendidos “estudos históricos com uma grande amplitude sobre o conceito, sobre as palavras que representaram ou representam, sobre os comportamentos infinitamente variáveis que suscitam a existência do ‘estrangeiro”.1

Para o autor, amigo ou inimigo, o estrangeiro é, inevitavelmente, “um homem diferente”, “com comportamento estranho, até imprevisível”. Dessa forma, cabe a ele introduzir “o aleatório”, visto representar a diferença, embora “não toda a diferença e nem sempre as mesmas diferenças”.2 Como desdobramento

… todos os casos de relações internacionais compreendem um elemento interno, em que os meios são conhecidos, e um elemento aleatório, que é a reação ao estrangeiro. Nenhuma teoria das relações internacionais é possível se não se determinam as combinações, infinitamente variadas, entre a hierarquia e o aleatório.3

A partir das últimas décadas do milênio, os estudos sobre os movimentos migratórios impuseram-se, de forma cada vez mais visível, no campo da História. Hoje, vários congressos da área vem abordando a temática, incluindo em sua programação simpósios que a contemplam sob ângulos e abordagens variadas: fluxos, legislação, trabalho, cotidiano, gênero, processos de assimilação ou estranhamento e tantas outras possibilidades.

Complexo e interdisciplinar por excelência, o tema das migrações, efetivamente, para muito além do campo da demografia, impôs-se no mundo acadêmico, refletindo um tempo no qual os deslocamentos humanos, por causas variadas, tornam presente a preocupação dos diferentes governos com o “outro” fixado em suas fronteiras, transformado, muitas vezes, em “bode expiatório” das crises enfrentadas.

Os estudos sobre a dialética travada entre emigração e imigração, cada vez mais, vem sendo assumidos por redes internacionais de pesquisadores, cuja contribuição tem sido reescrever o passado, desmistificando – ou pelo menos relativizando – algumas verdades consagradas. Tanto nos países de partida quanto nos de chegada, as pressões existentes clamam por olhares que se voltem para o passado, na busca da compreensão de um fenômeno que, decididamente, vem marcando a contemporaneidade, desde que os processos de mundialização tornaram o mundo menor,4 eliminando “universos encravados”.5

Em seu sexto número, a Maracanan propõe, como dossiê, o tema da imigração, contemplando a dialética inevitável entre o emigrar e o imigrar, com a publicação de artigos que, certamente, tornar-se-ão importantes referenciais para todos aqueles que se debrucem sobre a temática, escritos por pesquisadores de reconhecimento internacional.

Nas páginas da Maracanan o leitor travará contato não só com imigrantes galegos, italianos, japoneses e judeus, mas também com abordagens que priorizam análises historiográficas; políticas e-imigratórias; relações entre história e memória; recortes de gênero; movimento operário e anarquismo; imigração e modernização, em artigos nos quais a dialética entre o particular e o coletivo encontra-se sempre presente. Em última instância, as reflexões apresentadas ao leitor abrem perspectivas, consolidam informações e, acima de tudo, reconduzem olhares sobre o passado – próximo ou distante – e sobre o presente.

Xosé Manuel Seixas, referência obrigatória para os estudiosos da emigração galega, brinda-nos com seu conhecimento e erudição fazendo-nos melhor conhecer o estado da arte dos estudos emigratórios na Espanha. Os espanhóis também são o destaque do artigo de Marília Cánovas, que analisa sua presença na Santos da Belle Epoque.

Ruy Farias e Érica Sarmieto focam suas análises, especificamente, na imigração galega. O primeiro, apresenta-nos um olhar sobre galegas na cidade de Buenos Aires do segundo pós-guerra; a segunda, destaca, no drama urbano, o movimento anarquista, colocando foco sobre os mais radicais, em especial os padeiros.

No tocante aos estudos sobre a presença italiana no ultramar, o primeiro destaque deve ser dado ao instigante artigo de Vittorio Capelli. Focando sua análise na imigração italiana dirigida para a Amazônia e para o nordeste brasileiro, esse renomado historiador alarga nossa visão a respeito da presença estrangeira em terras brasileiras. Outro artigo sobre italianos no Brasil é o de Syrléa Marques Pereira, que interrelaciona história e memória no sentido de destacar a presença feminina no contexto imigratório.

Outros trabalhos privilegiam japoneses e judeus como atores do urbano, descatando sua atuação no mercado de trabalho. No tocante aos japoneses, Mariléia Inoue analisa o caso da imigração seletiva que acompanhou a criação da Ishikawajima do Brasil. No caso dos judeus, a análise cabe a Andréa Telo da Corte, que ilumina a atuação dos prestamistas naquela que era, então, a capital fluminense: Niterói.

Os lugares de memória no tocante à imigração são analisados por Eloisa Capovilla Ramos, que tece comparações entre as hospedarias de imigrantes de São Paulo e Buenos Aires, propondo novas reflexões sobre a imigração na América latina.

A qualidade das reflexões que compõem este número da Maracanan deve-se ao trabalho competente e comprometido da professora Érica Sarmiento, responsável pelo número, que liderou todo o trabalho de convite e contato com os pesquisadores.

Notas

  1. Jean-Baptiste Duroselle. Todo Império perecerá. Teoria das Relações Internacionais. [Trad]. Brasília: Ed. UNC / Imprensa Oficial, 2000, p. 49.
  2. Id. Ibidem, p. 50.
  3. Id. Ibidem, p. 59.
  4. A idéia de “mundo menor” foi defendida por Barraclough.ao analisar o impacto do progresso científico e tecnológico da chamada Segunda Revolução Industrial. Cf. Geoffrey Barraclough. Introdução à história contemporânea. [Trad.]. 4ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1976
  5. A expressão pertence a Pierre Chaunu. Cf. Conquista e exploração de novos mundos, século XVI. [Trad]. São Paulo: Pioneira / EDUSP, 1984.

Lená Medeiros de Menezes – Coordenadora do Laboratório de Estudos da Imigração e Estrangeiros (LABIMI)


MENEZES, Lená Medeiros de. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, v.6, n.6, 2010. Acessar publicação original [DR]

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A

Maracanan | UERJ | 1999

Maracanan 2

Maracanan (Rio de Janeiro, 1999-) é a publicação científica editada pelo corpo docente do Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Periodicidade quadrimestral

Acesso livre

ISSN 1807-989X (Impresso)

ISSN 2359-0092 (Online)

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