“História Antiga pra quê?” Questões antigas para problemas contemporâneos / Outros Tempos / 2019

Caro leitor,

O mais recente número da Revista Outros Tempos traz, pela primeira vez, um dossiê sobre história da Antiguidade. “‘História Antiga pra quê?’ Questões antigas para problemas contemporâneos” lançou um desafio aos pesquisadores da área: refletir não somente sobre a importância dos estudos em História Antiga no Brasil mas, sobretudo, como as pesquisas em Antiguidade podem dialogar com questões e problemas considerados contemporâneos.

Herdeira do Classicismo europeu do século XIX e do “maniqueísmo positivista”, que vai tomar conta dos estudos sobre Antiguidade desenvolvidos no Brasil durante a Ditadura Militar, a área de História Antiga foi considerada nos meios acadêmicos brasileiros, por longo tempo, como absolutamente alheia às questões contemporâneas e, particularmente, aos problemas sociopolíticos do país. Contudo, as pesquisas em Antiguidade, há mais de 30 anos, vêm construindo uma trajetória de conexão com os problemas sociais, políticos e culturais baseados no hoje. A Antiguidade feita no Brasil nunca teve preocupações tão atuais. Ela se insere de forma comprometida e legítima em um processo de reflexão contemporâneo, costurando diálogos fundamentais entre as sociedades antigas e nós.

Com esse objetivo convidamos especialistas para pensar a “contemporaneidade” da Antiguidade e propomos alguns eixos de reflexão, como as relações, interações culturais e circulação de população, religiosidades e conflitos, papéis sociais de gênero, enfim, o leque foi o mais amplo possível. E o resultado surpreendeu-nos. Os artigos presentes neste dossiê contemplaram temáticas variadas e igualmente importantes.

María Cecilia Colombani, a partir da obra de Hesíodo, evidencia a atualidade das discussões acerca de gênero e como, a partir dos discursos, a sociedade grega construiu lugares simbólicos para demarcar o eu e o outro. Neste processo, a figura feminina passa a encarnar a alteridade, representada no texto da Colombani, pela personagem Pandora.

Uma preocupação destacou-se, que foi o lugar da História Antiga no ensino de história. Os artigos de Dominique Santos e Adriene Baron Tacla dialogaram entre si, apresentando as preocupações e problemas que surgiram com a divulgação da Base Nacional Comum Curricular e a exclusão, quase que total, dos conteúdos relacionados à História Antiga. Os autores chamam a atenção tanto para a permanência de uma visão equivocada acerca das pesquisas que são realizadas na área quanto para a necessidade que se apresentou aos antiquistas de promover um amplo debate sobre a importância do ensino de História Antiga.

No interior dos debates sobre ensino de História Antiga o dossiê oferece, também, três artigos que apresentam temas diversos, mas convergentes. José Petrúcio Junior analisa a tradicional periodização quadripartite, associada a uma “história Geral”, e toda a sua dimensão ideológica. A ela, propõe periodizações alternativas muito mais aproximadas dos estudos transculturais e pós-coloniais. José Maria Gomes de Souza Neto evidencia a preocupação com conteúdos sobre História Antiga presentes na chamada cultura de massa, prioritariamente o cinema, e como os alunos interagem com essas imagens como fontes sobre o passado. A partir desta reflexão, brinda-nos com a proposta de uma metodologia de análise, a partir do filme Êxodo, deuses e reis, de 2014. Da formação discente, passamos para a formação docente com o texto de Cyntia Simioni França. A pesquisadora apresenta-se um relato de uma experiência de formação docente com professores do Ensino Básico, de escolas públicas, na cidade de Londrina, Paraná. A mitologia grega foi utilizada como experiência para um redimensionamento do humano e da própria prática docente, questionando, a partir da leitura da Odisseia, as escolhas dos modos de vida de nossas sociedades capitalistas.

O trabalho de Alex Aparecido da Costa preocupa-se com as dimensões e camadas presentes nas relações de poder evidenciadas a partir de uma análise das cartas de Plínio, o Jovem, e Trajano acerca do governo da Bitínia. As relações de poder perpassam, também, as preocupações de Leonardo Costa Ferreira e Brian Kibuuka. Ferreira insere-se nas atuais discussões sobre História Militar e como uma batalha local, a Batalha de Mylae, ocorrida em 260 a.C. entre o Império Cartaginês e a cidade de Roma, por questões geopolíticas, transforma-se em uma guerra em larga escala. Da mesma forma, Brian Kibuuka apropria-se das preocupações contemporâneas sobre os deslocamentos populacionais fomentados por crises e guerras, para pensar o Imperialismo Assírio e o desterramento do Antigo Israel.

No campo das permanências simbólicas, Leonardo Bento de Andrade “viaja” ao México para observar a trajetória do gesto contido em uma das gravuras do “corrido”, onde a imagem do esqueleto, que golpeia com sua foice um outro caído de joelhos, já aparece na cultura material etrusca.

O dossiê ainda apresenta um estudo de caso que podemos inserir nos atualíssimos debates sobre papéis de gênero, com base na análise das imagens de dois vasos de cerâmica áticos, do VI século a.C. A partir destas imagens, Camila Alves Jourdan discute o lugar da mulher nos ritos funerários e a tentativa de controle de suas emoções pelo legislador Sólon.

Este número da revista ainda conta com três artigos livres e uma resenha. Elvis de Almeida Diana propõe-se a analisar a atuação político-cultural do periódico uruguaio La Revista Literaria que, a partir de críticas dirigidas à Igreja Católica uruguaia e ao passado monárquico espanhol, propôs uma identidade nacional voltada para uma ideia de “modernidade”. A narrativa memorialista de Nelson Werneck Sodré é objeto do trabalho de João Muniz Junior Wilton e Carlos Lima da Silva, que investigam como a partir deste discurso é possível reconstruir muito mais do que vivências. Antonio Nelorracion Gonçalves Ferreira escreve sobre as problemáticas envolvidas na questão do tempo no campo das ciências humanas na contemporaneidade e como, a partir das crises da noção moderna de tempo, várias possibilidades de reflexão são abertas ao pesquisador.

Podemos ainda encontrar nesta edição uma entrevista com André Leonardo Chevitarese, especialista em Paleocristianismo. Nesta conversa, Chevitarese conta-nos um pouco de sua trajetória profissional e reflete sobre a área de Antiga no Brasil, seus empasses e sua importância.

Desta forma, convidamos o leitor a navegar pelo novo número da Revista Outros Tempos. Boa leitura!

Ana Livia Bomfim Vieira – UEMA

(Organizadora)


VIEIRA, Ana Livia Bomfim. Apresentação. Outros Tempos, Maranhão, v. 16, n. 28, 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê