Varíola / História Ciências Saúde — Manguinhos / 2010

Em agosto próximo passado, a Fundação Oswaldo Cruz sediou um simpósio comemorativo dos trinta anos de erradicação a nível mundial da varíola, feito sem precedentes anunciado em 8 de maio de 1979, na Assembléia Mundial da Saúde. O simpósio reuniu diversos protagonistas do Programa de Erradicação da Varíola para debater suas experiências e as lições que dela se podem extrair para o combate a outras doenças. A presente edição de História, Ciências, Saúde – Manguinhos traz entrevista exclusiva concedida a Gilberto Hochman e Steven Palmer pelo doutor Donald A. Henderson, diretor da campanha da Organização Mundial da Saúde de 1966 a 1977, assim como trechos do diário de viagem ao Brasil, em abril de 1967, de outro participante dela, o canadense Robert J. Wilson. A análise dessa fonte por Palmer, Hochman e Arbex possibilita interessantes reflexões sobre a campanha em nosso país, as vacinas aí utilizadas e o papel das comunidades de especialistas naquele empreendimento internacional.

A seção Análise deste número abre com interessante artigo de André Luis de Lima Carvalho e Ricardo Waizbort, sobre uma personagem pouco conhecida entre nós, Frances Power Cobbe, que se destacou na Inglaterra vitoriana por sua militância em prol de causas sociais. A preocupação com a legitimidade ética de certas formas de exploração dos animais teve ressonância especialmente forte naquele país, onde já em 1822 fora aprovada legislação estabelecendo penalidades contra os maus tratos perpetrados contra eles. O artigo de André e Ricardo trata sobretudo dos embates entre Cobbe e Charles Darwin a respeito de animais usados em experimentos científicos. No âmago desse artigo está a questão das relações entre humanos e não humanos, entre ciência e natureza, o que nos transporta a dois outros artigos que abordam a natureza de ângulos diversos. Num deles, dois geógrafos da Unicamp tecem considerações sobre os conceitos a esse respeito em Alexander von Humboldt e sua relação com a gênese da geografia física moderna. Um filósofo e um híbrido de agrônomo, sociólogo e antropólogo tratam das “antinomias pós-modernas sobre a natureza”. Para Antonio Carlos Vitte e Roberison Wittgenstein Dias da Silveira, Humboldt desenvolveu uma nova interpretação da natureza na superfície da Terra, em que eram fundamentais os conceitos de espacialidade e paisagem geográfica e que traziam implícito um complexo cruzamento de influências estéticas e instrumentais. A geografia física moderna teria se estruturado a partir, principalmente, das reflexões de Humboldt contidas em Quadros da natureza e Cosmos. Para os autores, esta última obra oferece ao saber geográfico atual uma resposta científica e filosófica para a dualidade geografia física / geografia humana, indo ao encontro da necessidade contemporânea de transcender os limites restritos das disciplinas formais.

José Marcos Froehlich e Celso Reni Braida, por sua vez, analisam as noções de natureza subjacentes à elaboração atual de ciência. Depois de curto inventário das ideias sobre esse conceito polissêmico em diferentes épocas históricas, ressaltam as incongruências presentes nas imagens pós-modernas de natureza, fazendo uso sobretudo das reflexões de Fredric Jameson, um dos poucos marxistas a empregar, nos anos 1990, a linguagem do pós-modernismo associada a uma análise materialista de sua lógica cultural.

Em “As antinomias da pós-modernidade”, primeira parte de As sementes do tempo (São Paulo, Ática, 1997), Jameson fornece um mapa cognitivo daquele fim de século, mapeando tendências na semiótica, no pós-estruturalismo e nos estudos culturais. Argumenta que um dos elementos principais da sociedade pós-moderna é o ‘fim da natureza’, sua artificialização. Para Jameson, o desaparecimento da natureza desgasta seu outro termo: a concepção clássica de cidade e do urbano perde significação e deixa de designar uma realidade específica, diferenciada. O urbano se torna o social em geral e ambos se perdem num global de novo tipo. Paradoxalmente, o desaparecimento da natureza em sua forma tradicional estimula o retorno de outro ‘tipo’ de natureza, como atestam os diversos fenômenos ligados ao ecologismo. Tal revivescência constitui uma antinomia fundamental da pós-modernidade. Os autores do artigo ora publicado defendem que há contradições mais profundas do que a contraposição entre social e natural ou cultura e natureza. Propõem então que avancemos rumo a uma concepção de natureza e ciência que não implique fazer dos seres humanos estranhos no mundo em que habitam e que buscam conhecer.

Nesta edição de História, Ciências, Saúde – Manguinhos os leitores também encontrarão três contribuições de autores argentinos. Diego P. Roldán, da Universidad Nacional de Rosario, analisa discursos produzidos sobre o corpo, a máquina, a energia e a fadiga na virada dos séculos XIX e XX, mostrando como contribuíram para a construção de um saber biopolítico que colocou o corpo em relação com a produção capitalista e com o Estado. Lucía Romero analisa a modernização acadêmica da Universidad de Buenos Aires e de sua Faculdade de Medicina em meados dos anos 1950, dando ênfase às ideias sobre pesquisa clínica, docência e atenção médica defendidas por Alfredo Lanari no Primeiro Congresso de Educação Médica da Associação Médica Argentina (1957). A fundação do Observatório de La Plata (1882-1890) é tema de Marina Rieznik, da Universidad de Buenos Aires, que estuda o evento no contexto das disputas suscitadas por missões internacionais para a observação da passagem de Vênus diante do Sol, que envolveram principalmente o diretor do Observatório de Córdoba, o governador da província de Buenos Aires e membros do Bureau des Longitudes da França.

Leandro Belinaso Guimarães, da Universidade Federal de Santa Catarina, analisa como se consolidaram, no Brasil da Primeira República, processos discursivos, sociais e políticos que nacionalizaram a Amazônia. Utilizando textos de Euclides da Cunha, mostra que estava em operação um modo de ver e narrar a floresta distinto do encontrado em relatos de viagem escritos por naturalistas ao longo do século XIX. Valéria Zanetti e colaboradoras, da Universidade do Vale do Paraíba e do Núcleo de Pesquisa Pró-Memória de São José dos Campos, escrevem sobre a transformação dessa cidade, nos anos 1930, em Estância Climatérica para o tratamento da tuberculose pulmonar. Recorrem principalmente ao periódico editado pelos tisiologistas locais, Boletim Médico, além de fontes correlatas e mostram que a condição de Estância era, simultaneamente, ameaça à população da cidade e força motriz da economia local, baseada, até a década de 1950, quase que exclusivamente na exploração da doença.

Flavio Coelho Edler, da Casa de Oswaldo Cruz, assina “Pesquisa clínica e experimental no Brasil oitocentista: circulação e controle do conhecimento em helmintologia médica”. Mostra que as contribuições de médicos brasileiros ao conhecimento sobre doenças causadas por vermes parasitas, durante a segunda metade do século XIX, produziu efeitos distintos em três comunidades epistêmicas: a anatomoclínica brasileira; a geografia médica francesa; e a emergente parasitologia médica. Admitindo a heterogeneidade dos regimes de legitimação dos fatos científicos e das práticas epistemológicas observadas por cada uma dessas tradições, descreve uma cartografia do conhecimento médico da época e revela as linhas de força dos três campos disciplinares.

Os limites de uma carta de editor me impedem de falar sobre outros materiais importantes que o leitor encontrará nas páginas a seguir. Aspirem fundo, caros leitores, o ar ameno da primavera que ora se inicia: estamos em vésperas de eleições e, apesar da campanha pífia, esperemos que refloresçam os ideais de transformação na alma coletiva e no peito de cada um de nós.

Jaime L. Benchimol – Editor


BENCHIMOL, Jaime L. Carta do editor. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.17, n.3, 2010. Acessar publicação original [DR]

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