História das Mulheres e das Relações de Gênero: diálogos e desafios contemporâneos / Crítica Histórica / 2019

Local: País das ideias.

Época: 2019.

Personagens: Seis mulheres, de diferentes países / cidades e gerações. Três delas, renomadas historiadoras conversam entre si, enquanto são escutadas (e interpeladas) por três jovens estudantes do curso de história. Um estudante do mesmo curso, escuta com atenção.

MICHELLE PERROT: As mulheres têm uma história?

JOAN SCOTT: Sim! Você foi uma das primeiras a nos ensinar que as mulheres têm uma história, Michelle. Esta historiografia, que se constituiu em um novo domínio de Clio, se expandiu e se diversificou – não sem conflitos e disputas – desde aquele seu curso inaugural, realizado em Paris, em 1973, com Pauline Schmitt e Fabienne Bock.

JOANA MARIA PEDRO: Joan, se Michelle foi importante para questionar a exclusão das mulheres da historiografia, não podemos nos esquecer do seu papel na discussão do gênero como categoria de análise histórica. No Brasil, suas reflexões foram fundamentais para a emergência da pesquisa das Relações de Gênero. Minha amiga Raquel Soihet, que não pôde comparecer ao nosso encontro de hoje, certamente concordaria comigo.

ADRÍCIA BONFIM: Professoras, qual o lugar das experiências das mulheres negras nessa historiografia?

JULLY ANA: E as mulheres lésbicas, também já têm uma história? ELOÍSA COSTA: Bem, a história das mulheres trans ainda está por ser feita. PAÚLO ARAÚJO: [Escuta com atenção].

MICHELLE PERROT: Minhas amigas Joan e Joana, estimadas Adrícia, Jully, Eloísa, Paulo… “A historia das mulheres mudou. Em seus objetos, em seus pontos de vista. Partiu de uma história do corpo e dos papéis desempenhados na vida privada para chegar a uma história das mulheres no espaço público da cidade, do trabalho, da política, da guerra, da criação. Partiu de uma história das mulheres vítimas para chegar a uma história das mulheres ativas, nas múltiplas interações que provocam a mudança. Partiu de uma história das mulheres para tornar-se mais especificamente uma história do gênero, que insiste nas relações entre os sexos e integra a masculinidade. Alargou suas perspectivas espaciais, religiosas e culturais”.1 Contudo, ainda temos muito a fazer.

O diálogo imaginário acima foi inspirado no diálogo, também imaginário, criado por Natalie Zemon Davis no prólogo do livro “Nas margens”.2 Nesta obra, uma história das mulheres à maneira de Davis, a autora analisa a trajetória de três mulheres do século XVII, Glikl bas Judah Leib, uma judia negociante de Hamburgo, Marie de l’Incarnation, mística que se torna ursulina em Tours e Maria Sibylla Merian, pintora e entomologista protestante de Frankfurt que viaja para trabalhar na América do Sul, para problematizar as margens sociais, religiosas e geográficas que marcavam as experiências das mulheres seiscentistas. Nas páginas de Davis estas mulheres se encontram com o que têm de semelhança e de diferença entre si. Se, parafraseamos a inventividade narrativa de Davis, colocando em diálogo contemporâneo, renomadas historiadoras do campo da História das Mulheres e das Relações de Gênero com jovens alunas / o3 do curso de História da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), é para revelar que, assim como no livro “Nas margens”, as experiências históricas das mulheres estão no centro da análise historiográfica da tradução, artigos e resenhas reunidos no atual dossiê da “Crítica Histórica”.

Os textos que o / a leitor / a encontrará nas próximas páginas estão atravessados pela tradição e (re) invenção que o encontro entre as historiadoras (mestras e aprendizes) simboliza. A pergunta feita por Michelle Perrot (“As mulheres têm uma história?”), que deu nome ao curso ministrado pela historiadora, em parceria com Pauline Schmitt e Fabienne Bock, no início da década de 1970, continua ecoando hoje e atravessa as páginas dos textos que compõem este dossiê.

Em “A desobediência epistêmica e as mulheres como sujeitos historiográficos”, Stella Ferreira Gontijo problematiza a relação entre desobediência epistêmica e os estudos que consideram o gênero como uma categoria de análise histórica, destacando como a Teoria Descolonial e o Feminismo Latino-Americano têm transformado a História das Mulheres e das Relações de Gênero.

Regina Trindade, por sua vez, em “Gênero, trabalho e raça: um tripé insidioso de uma precarização histórica” discute a presença e a singularidade das mulheres no processo de produção e reprodução do capital, chamando a atenção, a partir de uma abordagem interseccional, para o caráter cíclico, sexista e racista do capitalismo.

No artigo “Emília Soares do Patrocínio e as pretas minas do mercado do Rio de Janeiro, século XIX”, Juliana Barreto Farias toma a trajetória de Emília Soares do Patrocínio, para discutir como africanas / os da Costa da Mina, conhecidos como pretas / os minas, se inseriam e se organizavam no principal centro de abastecimento de gênero alimentícios do Império brasileiro no século XIX.

Caroline Pereira Leal, no texto “O positivismo e as mulheres no carnaval de Porto Alegre nas primeiras décadas do século XX”, historiciza as transformações no carnaval de Porto Alegre, no início do século XX, a partir da perspectiva de gênero. De acordo com a autora, a participação das mulheres nos festejo mominos está relacionada à influência do positivismo entre a elite da cidade.

O artigo “Prostitutas e Bebuns: o espaço urbano e os modelos de gênero presentes na Folha do Norte do Paraná (1965-1973)”, de Gessica Aline Silva aborda a constituição das feminilidades e masculinidades transgressoras, a partir dos discursos presentes na coluna policial da Folha do Norte do Paraná entre os anos de 1965 a 1973. A historiadora mostra que prostitutas e bebuns, considerados indesejados, foram os principais alvos dos discursos moralizadores e normatizadores da imprensa.

Cecilia M. B. Sardenberg, em “Mulheres em movimentos de bairro, conscientização feminista e feminismo popular em Salvador, Bahia – anos 1980 e 1990” questiona a dupla invisibilidade (ausência das mulheres e da região Nordeste), que caracteriza a historiografia sobre os movimentos sociais, chamando a atenção em seu texto para a atuação das mulheres do Subúrbio de Plataforma nos movimentos de bairro e de mulheres em Salvador nos anos 1980 e 1990.

A seção de artigos do dossiê é encerrada com o texto “‘A aparência que dá o tom’: gênero, corpo e beleza nas cenas dos filmes Shrek”, de Renata Santos Maia. Nele, Renata Maia investiga algumas temáticas presentes nos filmes Shrek, que abordam as polaridades criadas nos roteiros dos contos de fadas, por exemplo, feiura versus beleza, personagens maus em contraposição aos personagens bons, revelando sua associação às concepções normativas sobre o corpo e a beleza.

Além dos artigos e, como veremos a seguir, da tradução do texto “Outras Reflexões sobre Gênero e Política”, de Joan Scott, este dossiê é composto ainda por duas resenhas de obras historiográficas que discutem, a partir de uma perspectiva de gênero, as experiências travestis em Fortaleza (CE) e a participação de freiras na resistência à ditadura civil-militar. Na resenha de “Travestis: carne, tinta e papel”, de Elias Ferreira Veras, Augusta da Silveira de Oliveira aponta como o historiador problematiza as condições de emergência do sujeito travesti na capital do Ceará, como indício e efeito de um processo subjetivo-temporal, denominado pelo autor, de tempo das perucas e tempo dos hormônios-farmacopornográficos. Por sua vez, na resenha do livro “Do hábito à resistência: freiras em tempos de ditadura militar no Brasil”, da historiadora Carolina Jaques Cubas, José Edson da Silva Santos Junior mostra que não foram poucas as ações de resistência das freiras na ditadura: esconder procurados pela polícia, guardar material considerado subversivo, facilitar fugas de perseguidos, transportar bilhetes e cartas de opositores a dar assistência psicanalítica aos militantes, curar feridos de ações revolucionárias foram algumas delas, investigadas por Cubas e lembradas por Santos Júnior.

Esses trabalhos traduzem os debates4 entre a História das Mulheres e das Relações de Gênero, suas aproximações, distanciamentos, solidariedades e conflitos. Como lembra Joan Scott, se a categoria “mulheres” deve ser objeto de investigação, então o gênero, ou seja, os múltiplos e contraditórios significados atribuídos à diferença sexual pode ser um instrumento útil de análise histórica.5 A presença das categorias “gênero” e “mulheres” nos títulos e abordagens dos textos reunidos no presente dossiê revela que, apesar das tensões, a emergência da História das Mulheres no Brasil está intimamente ligada ao estudo das relações de gênero.6

A leitora e o leitor das páginas seguintes, contudo, não encontrarão somente um conjunto de pesquisas historiográficas recentes, que problematizam as experiências de gênero a partir de temas, abordagens, recortes históricos e geográficos plurais, mas, a tradução de um texto de Joan Scott, publicado originalmente em inglês, em 1999, uma década depois da publicação (em inglês) de “Gênero: uma categoria de análise histórica”.7 Em “Outras Reflexões sobre Gênero e Política”, a historiadora faz uma “reavaliação crítica, ou, ao menos uma revisão e reconceitualização, dos termos que têm sido mais utilizados em nossas análises”, questionando a dicotomia sexo-gênero. Agradecemos à autora pela autorização da tradução neste dossiê, assim como também à Paula Granato, pelo trabalho de tradução. Somos grato / a, especialmente, à revisão técnica realizada por Joana Maria Pedro, que ao ter como horizonte a compreensão do pensamento de Scott por alunas / os da graduação, tornou-o mais próximo de todas / os nós.

Como lembra Joana Maria Pedro, no diálogo imaginário que inaugura esta Apresentação, Michele Perrot e Joan Scott foram (e continuam sendo) importantes para que historiadoras / es questionassem / questionem a exclusão das mulheres da escrita da história e incorporassem / incorporem o gênero como categoria de análise.

Ora, ainda que a História das Mulheres tenha mudado, em seus objetos, em seus pontos de vista. Ainda que tenha se tornado mais especificamente uma história do gênero, que insiste nas relações entre os sexos e integra a masculinidade, como lembra Michelle Perrot,8 tal alargamento permanece marcado por limites temáticos. A interpelação das estudantes Adrícia Bonfim, Jully Ana e Eloisa Costa, respectivamente, sobre as experiências das mulheres negras, lésbicas e trans (travestis e transexuais) simboliza, justamente, tal limite, presente, inclusive, no presente dossiê. A atenção e o silêncio de Paulo Araújo, por sua vez, pretendem significar os desafios – ainda não suficientemente explorados pela historiografia brasileira – da escrita de uma história das masculinidades e do novo (?) lugar dos homens, especialmente, dos historiadores diante da interpelação da universalização e do privilégio do masculino pela História das Mulheres e os estudos de gênero.

O dossiê “História das Mulheres e das Relações de Gênero”, portanto, está atravessado por diálogos e desafios contemporâneos sobre a (re) escrita historiográfica, o (re) dimensionamento do entendimento da mulher como sujeito, a (re) conceitualização do gênero como relação de poder que atravessa a política, a economia, a cultura e o lugar da historiografia como instrumento de justiça e emancipação.

Dona Deise Nunes, mulher negra, professora, militante que, gentilmente, cedeu sua imagem9 participando da marcha #elenão, realizada na capital alagoana em 26 de setembro de 2018 para estampar a capa do nosso dossiê, não teria muito a dialogar com as mestras e as aprendizes de Clio? Questionaria sobre a histórica relação entre História das Mulheres e das Relações de Gênero e os feminismos? Perguntaria sobre como essas pesquisas históricas, desenvolvidas no entremuros das universidades, afeta a vida das mulheres “comuns”? Convocarias as historiadoras para marcharem juntas, de modo que o diálogo se daria não em uma possível sala de aula, palestra ou curso, mas na rua?

As historiadoras, as estudantes, Dona Deise Nunes, as autoras dos textos deste dossiê não nos deixam esquecer de que a crítica feminista, cuja emergência dos estudos sobre as mulheres e o gênero é herdeira, além de contribuir para a reescrita da historiografia, também pretende redistribuir os espaços de justiça de gênero no presente, imaginando outros futuros. Tarefa urgente, particularmente no atual contexto brasileiro, marcado pelo avanço do ultraconservadorismo político-religioso, pela ascensão do modelo mulher “mulher bela, recata e do lar” e “princesa” que veste rosa, pelo reforço de discursos e práticas machistas, racistas e LGBTfóbicas, pela demonização da militância (feminista, negra, LGBT) e da Universidade, especialmente dos cursos de ciências humanas, como a História. Tarefa necessária, que esperamos, os encontros promovidos neste dossiê possam, de algum modo inspirar e fortalecer.

Por fim, não podemos deixar de agradecer às professoras Irinéia Franco e Michelle Reis, editoras da “Crítica Histórica”. O trabalho delas possibilitou que você, leitora / leitor tenha em mãos os diálogos e desafios contemporâneos da História das Mulheres e das Relações de Gênero no Brasil.

Boa leitura!

Notas

1. PERROT, Michele. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2019, pp. 13-14.

2. DAVIS, Natalie Zemon. Nas margens: três mulheres do século XVII São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

3. As / o estudantes citadas / o no diálogo integram a graduação dos cursos de História (Licenciatura e Bacharelado) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), fazendo parte também do Grupo de Estudos e Pesquisas em História, Gênero e Sexualidade (GEPHGS), da mesma instituição. Suas pesquisas de conclusão de curso, atualmente em andamento, analisam o movimento feminista, as experiências lésbicas, travestis e transexuais e as relações entre (homo) sexualidade e classe, a partir de uma perspectiva interseccional (gênero, sexualidade, raça e classe).

4. Referência ao artigo: PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. História, 2005, vol.24, n.1, pp.77-98.

5. Para uma abordagem da História das Mulheres e da categoria gênero como possibilidades de transformação da historiografia, ver da autora: SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.16, n.2, jul / dez., 1990, pp.5-22; SCOTT, Joan. História das mulheres. In: BURKE, Peter. (org.) A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo, Unesp, 1992, pp.64-65.

6. Para uma análise da emergência da pesquisa da História das Mulheres e das Relações de Gênero no Brasil e das apropriações das categorias “mulher”, “mulheres”, “gênero” e “sexo”, conferir: SOIHET, Rachel; PEDRO, Joana M. A emergência da pesquisa da história das mulheres e das relações de gênero. In: Revista Brasileira de História, n.54, v. 27. 2007; PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate… Op. Cit.

7. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise histórica… Op. Cit.

8. PERROT, Michele. Minha história das mulheres… Op. Cit., pp. 13-14.

9. Não conseguimos identificar o / a autor / a da foto até a publicação do dossiê. Qualquer informação sobre a mesma, escrever para o e-mail da revista: [email protected]

Maceió, 04 de agosto de 2019.

Elias Ferreira Veras – Departamento de História – Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

Raquel de Fátima Parmegiani – Departamento de História – Universidade Federal de Alagoas (UFAL)


VERAS, Elias Ferreira; PARMEGIANI, Raquel de Fátima. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 10, n. 19, julho, 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Lutas feministas e LGBTQ+ pela democracia no Brasil / Anos 90 / 2019

Em junho de 2010, Judith Butler proferiu uma conferência em Berlim por ocasião do Christoph Street Day, sendo condecorada com o prêmio Courage, o qual recusaria. Queere Bündnisse und Antikriegspolitik, título em alemão dado à fala de Butler, traduzida e publicada em português como Alianças queer e política anti-guerra1, expressa os motivos da filósofa para tal recusa. O texto também ilumina os objetivos que orientaram a proposta do presente dossiê.

Na conferência de Berlim, Butler destacou o quão surpreendente eram as alianças na Turquia (aparentemente “atrasada”), onde feministas trabalhavam com pessoas gays, lésbicas, trans e queer contra a violência policial, “unidas na sua oposição ao militarismo, ao nacionalismo e àquelas formas de machismo que os sustentam”2. Em contraponto, lembrou seu encontro, durante uma conferência sobre gênero e educação em Lyon, na França (aparentemente “avançada”), com uma feminista que havia escrito um livro sobre a “ilusão” da transexualidade e que tinha suas palestras públicas “atacadas” por várias ativistas trans e seus / suas aliados(as) dissidentes queer.

As especificidades da homofobia, da transfobia e da misoginia precisam ser entendidas, reconhece Butler. Contudo, nenhuma delas pode ser bem compreendida sem referência uma à outra. Elas estão profundamente ligadas em um mundo no qual certas normas governam como os corpos podem e não podem se mover no mundo, como corpos devem surgir ou fracassar em surgir, como a discriminação e a violência ocorrem com base no modo como corpos e desejos são percebidos3 . A luta de uma minoria desprivilegiada está invariavelmente ligada à luta de todas as minorias desprivilegiadas.

Nesse sentido, Lutas feministas e LGBTQ+ pela democracia no Brasil também poderia ter como título “Alianças queer e política anti-guerra”. Os artigos reunidos aqui pretendem historicizar e problematizar as lutas feministas e LGBTQ+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queer e +) no Brasil. Privilegia como marco temporal a segunda metade do século XX, momento em que emergem, internacionalmente e no Brasil, os feminismos de “segunda onda” e os movimentos homossexuais; e as primeiras décadas do século XXI, quando esses movimentos multiplicam e diversificam sujeitos, reivindicações e estratégias de mobilização. Desse modo, os textos reunidos analisam as estratégias de resistências empreendidas por mulheres e LGBTQ+ a partir do final da ditadura civil-militar, no período da redemocratização, nos últimos governos democráticos.

No artigo que abre o dossiê, Não é mole não, ser feminista, professora e sapatão: apontamentos de uma história a partir do espaço das lésbicas e da lesbianidade na produção de conhecimento sobre mídia, Cláudia Regina Lahni e Daniela Auad analisam as pesquisas apresentadas em 2015, ano em que a Suprema Corte dos Estados Unidos aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, em eventos de Comunicação, como o Grupo de Pesquisa Comunicação para a Cidadania da Intercom, o Grupo de Trabalho Comunicação e Cidadania do Encontro Nacional da Compós e o GT de História da Mídia Alternativa, a fim de questionar se os textos selecionados tematizavam a comunicação de lésbicas — organizadas em grupos ou presentes de forma individual em mídias diversas. Conforme as autoras, nos eventos científicos mencionados, pouco ou nada se discutiu sobre a temática das lésbicas.

Jamil Cabral Sierra, em Identidade e diversidade no contexto brasileiro: uma análise da parceria entre Estado e movimentos sociais LGBT de 2002 a 2015, estuda os processos de constituição, no cenário brasileiro, da noção de diversidade sexual e de gênero, bem como de que maneira tal noção se associou às políticas identitárias das últimas décadas no Brasil. O autor problematiza a parceria entre Estado e movimentos sociais, especialmente LGBT, de modo a caracterizar como essa relação tem produzido as formas de governamento dos sujeitos LGBT nos últimos 13 anos (até o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff).

No texto “Que Possamos Ser o que Somos”: memórias sobre o Movimento Gay de Alfenas no processo de luta pelos direitos de cidadania LGBT (2000-2018), Marta Gouveia de Oliveira Rovai analisa parte da memória coletiva expressa por meio da história oral de vida de quatro membros mais antigos do Movimento Gay de Alfenas (MGA), fundado no ano de 2000 no sul de Minas Gerais. Com isso, a autora lança luz sobre a atuação da organização na defesa dos direitos humanos, em questões jurídicas e em manifestações culturais e políticas.

O que nos faz humanos? Maria Lídia Magliani e a solidão do corpo em tempos fascistas, de Gregory da Silva Balthazar, se apropria do conceito de rosto conforme discutido por Judith Butler como um operador decisivo de uma ética intersubjetiva em tempos de fascismos individualizantes. Para tanto, o autor traz a debate as pinturas de Maria Lídia Magliani, problematizando “sua potência em nos sugerir possibilidades de repensarmos, conjuntamente, o próprio sentido do que nos faz humanos.

Inaugurando as discussões no dossiê sobre o período da ditadura civil-militar no Brasil, Antonio Mauricio Freitas Brito analisa, em “Um verdadeiro bacanal, uma coisa estúpida”: anticomunismo, sexualidade e juventude no tempo da ditadura, algumas representações anticomunistas heteronormativas elaboradas por militares sobre sexualidade, moralidade e juventude durante a ditadura no Brasil. A partir da preocupação de membros da caserna com a ação comunista junto aos jovens, o autor revela a concepção de mundo que estigmatizava e temia comportamentos desviantes de gênero.

Em seguida, no artigo Sob vigilância: os movimentos feministas brasileiros na visão dos órgãos de informação durante a ditadura (1970-1980), Ana Rita Fonteles Duarte analisa as informações produzidas por diferentes órgãos de vigilância ligados ao aparato repressor durante a ditadura civil militar brasileira sobre os movimentos feministas nas cidades de Rio de Janeiro, São Paulo e Fortaleza, a partir de documentos encontrados nos Arquivos do Estado do Rio de Janeiro, no Arquivo do Estado de São Paulo e no Arquivo Nacional.

Por sua vez, em Feminismo vende? Apropriações de discursos democráticos pela publicidade em Claudia (1970-1989), Soraia Carolina de Mello propõe estabelecer relações entre publicidade, feminismos e democracia nas décadas de 1970 e 1980 no Brasil a partir da Revista Claudia. A ideia da publicidade como espaço de informação e educação e seu potencial como divulgadora de ideias feministas ou propagadora de estereótipos de gênero também são abordados no artigo, a partir de teorias feministas, estudos culturais e as noções de subjetivação / singularização.

Por fim, no artigo “Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher”: Movimento de Mulheres do IAJES, Movimento Regional de Mulheres e a luta por democracia no Brasil, Cíntia Lima Crescêncio e Mariana Esteves de Oliveira apresentam a mobilização do Movimento de Mulheres do Instituto Administrativo Jesus Bom Pastor (IAJES) e do Movimento Regional de Mulheres (MRM), rede formada no interior de São Paulo e Mato Grosso do Sul, na construção da Carta das Mulheres aos Constituintes de 1987. A Carta foi resultado de ampla discussão a nível nacional de inúmeros movimentos de mulheres e feministas que, entre 1985 e 1987, fizeram debates e coletaram assinaturas para garantir “demandas das mulheres” na nova Constituição (1988). Como lembram as autoras, “a documentação selecionada permite uma reflexão fundamental sobre os movimentos de mulheres e feministas de ontem e de hoje, bem como as sensíveis aproximações e afastamentos desses grupos”.

Lutas feministas e LGBTQ+ pela democracia no Brasil também está assinalado, em sua gênese, pela vulnerabilidade e pela precariedade que marcam as vidas das mulheres e de LGBTQ+s no Brasil contemporâneo. Segundo os dados do Ministério da Saúde, compilados pelo Atlas da Violência, lançado em 2019, foram registrados 4.936 assassinatos de mulheres em 20174 . A maior parte das vítimas (66%) é negra! Por outro lado, o Anuário Brasileiro da Segurança Pública, que pela primeira vez trouxe um recorte específico de casos relacionados à violência contra o público LGBTQ+, informou que 99 gays, lésbicas, bissexuais, travestis ou transexuais foram assassinados(as) em 20175 . Segundo o Anuário, divulgado este ano durante o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de LGBTQ+s agredidos fisicamente teve alta de 1,3% entre 2017 e 2018.

Parafraseando Butler, este dossiê é sobre essa vulnerabilidade e essa precariedade que marcam as sexualidades e os gêneros dissidentes, mas é também sobre os desejos, as ocupações dos espaços públicos, as reivindicações por visibilidade e escuta ontem e hoje, sendo tudo isso absolutamente essencial para qualquer movimento político / sexual / de gênero. É absolutamente essencial para a vida em democracia com justiça de gênero, sexualidade, raça e classe.

Agradecemos aos / às autores(as) por terem enviado suas propostas. Somos gratos também ao Alessander Mario Kerber e à equipe da revista Anos 90 pelo espaço e pelo diálogo. Finalmente, agradecemos a cada leitor, leitora, leitxr, por fazer da leitura deste dossiê uma possibilidade política de lutas feministas e LGBTQ+ pela democracia, de alianças queer e política anti-guerra. Boa leitura!!

Notas

1. BUTLER, J. Alianças queer e política anti-guerra. Bagoas: Estudos Gays: Gêneros e Sexualidades, v. 11, n. 16, p. 29-49, 2017. Disponível em: https: / / periodicos.ufrn.br / bagoas / article / view / 12530. Acesso em: 22 dez. 2019.

2. Ibidem, p. 31-32.

3. Ibidem, p. 37.

4. CERQUEIRA et al. Atlas da Violência 2019. Brasília, DF: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019.

5. FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Brasília, DF: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019

Joana Maria Pedro – Professora titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) com pós-doutorados na França, na Université d’Avignon, e nos Estados Unidos, na Brown University. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0001-5690-4859

Elias Ferreira Veras – Professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Doutor em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0001-7726-4475


PEDRO, Joana Maria; VERAS, Elias Ferreira. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 26, 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê