Violência e Poder / Projeto História / 2009

O tema da violência, sob as mais variadas formas, vem ocupando cada vez maior espaço na historiografia, tanto acadêmica quanto aquela produzida por entidades e organizações voltadas para ações sociais. Debruçam-se os especialistas em análises sobre suas variadas formas, perpassando do campo da criminalidade do Estado, para as que se evidenciam nas relações entre indivíduos ou grupos, sobre o que perscrutam em busca tanto de suas raízes, formas de ser, finalidades objetivas ou ocultas, impactos, quanto na objetivação da posição relativa que ocupam no conjunto das relações societárias.

A perplexidade com que se depara o mundo de hoje ante a aparente contradição entre o avanço do conhecimento humano (tecnologia) e a reincidente barbárie das guerras, dos genocídios e das violações de direitos dos indivíduos [1], particularmente os perpetrados pelos poderes constituídos enquanto Estados, explica o interesse pelo tema que retoma o recorrente debate sobre a relação entre violência e política. Assim a negação sistemática da determinação da natureza de classe dos processos de dominação política expressos no Estado, em prol de uma falsa ampliação da democracia, subsume nas evidências acima apontadas, conforme se observa em artigos apresentados neste número da Projeto História, que analisam tanto as novas formas de pobreza e de iniqüidade, quanto questionam os preceitos da mundialização, a violência dos interesses privados na agressão ao meio ambiente, os limites dos mecanismos de representação democrática e das resolução negociadas e pacíficas dos conflitos, impeditivos da real emancipação dos povos em países subordinados.

No interior das polêmicas historiográficas contemporâneas, observa-se a recorrência tanto aos clássicos que argumentaram sobre a violência enquanto meio necessário à ação política, quanto aos que enfatizam sua condição de inerência à condição humana, com a ressalva que naturalizar a violência resulta no império da anti-política institucional, ou seja, o fim de uma racionalidade que ordenaria a polis [2], o que pode ser referido ao politicismo no uso da razão, conforme já analisado por Hegel.

Para outros, no entanto, a condição de inerência da violência está dada, não na condição humana, mas nas formas objetivas postas na ordenação social ao longo da história, decorrente das condições que têm configurado as relações societárias, particularmente pelo aprofundamento e pela mundialização paulatina do sócio-metabolismo do capital, regido pela apropriação privada impeditivas da planificação do gênero humano, uma vez que se reproduz sob o trabalho alienado. Assim o sentido inexorável da violência, posto nas abstrações primeiras, é substituído pela percepção do caráter histórico, particular a cada contexto e / ou momento em que essa se manifesta, em que pese, aí sim, a aparente identidade do fenômeno. Pode-se tomar, por exemplo, neste sentido, a relação entre norma e punição que se manifesta desde os primórdios das civilizações. Embora sua ordenação seja reconhecida desde a antiguidade, em códices como o de Hamurabi, ou plasmado em um Alcorão, ou no Antigo Testamento, será apenas no bojo da revolução industrial do século XVIII, da emergência do estado Moderno como um subproduto do capitalismo que surge o que se denomina de ciência penal, ou seja, a criminologia, constituída pela política criminal, pelo direito penal, penitenciário, pela psiquiatria forense, pela psicologia judiciária, pela medicina legal, criminalística, com seus respectivos fundamentos epistemológicos e “características de cientificidade”. Como fundamentos esta “ciência” tem o determinismo lombrosiano que fixa o estereotipo delinqüente pela estrutura biológica, apenas minimizada neste mesmo século pela incorporação, nos Estados Unidos, de aspectos do tipo sociológico [3]. Uma criminalização estereotipada que se expressa também em outras institucionalidades “científicas”, como leprosários ou manicômios, por exemplo, tratada com maestria em textos deste número da revista.

Tal normatização criminalística fora precedida pelas reflexões de um Maquiavel, Hobbes ou Weber, apenas para citar os mais reconhecidos, que trataram da violência do ponto de vista da política do dominador, da opressão, no sentido de justificá-la, ou como meio de permanência do poder, ou como necessária à ordem vigente, em que pesem as distinções entre os autores citados. Ao que contrapõe Marx, na radicalidade, quando analisa as relações entre o Estado e a sociedade à luz das evidências constitutivas das relações societárias no capitalismo, as quais nos permitem demonstrar como tal violência é um dos mecanismos que põe em movimento a força política das classes dominantes em defesa, não da humanidade, apesar dos discursos e das leis humanitárias, mas da apropriação privada [4] e de seus interesses mesquinhos, egoísticos e particularistas.

A barbárie das grandes guerras e particularmente da segunda demonstrará para os autores, a necessária “distinção entre a violência repressiva exercida pela dominação e a progressiva violência por liberdade e defesa de direitos”, o que será explorado por autores como Merleau-Ponty, Beauvoir, Fanon e Sartre. [5]

A terceira revolução industrial e a introdução da microeletrônica no processo de produção de mercadorias têm levado a uma verdadeira devastação no mercado de trabalho internacional. Cerca de 1,5 bilhões de pessoas em todo o mundo tornaram-se dispensáveis ao processo produtivo e a tendência é que o desemprego aumente ainda mais nas próximas décadas. Este é um processo irreversível que está mudando o panorama do mundo e atinge não apenas pessoas, mas também países, aprofundando a diferença internacional entre países ricos e pobres e promovendo exclusão em continentes inteiros, como a África, por exemplo. Com isto, levas de marginalizados arriscam-se todos os dias nas fronteiras da Europa e da América do Norte, para tentar entrar no “paraíso” do capitalismo do Primeiro Mundo. E de modo geral, em todas as grandes cidades do mundo mais pessoas empobrecem e vêm engrossar o bloco dos sem moradia e sem trabalho, das pessoas com empregos precários informais e às vezes considerados ilegais, e por isso sujeitos à repressão policial.[6]

Paralelamente, no quadro no neoliberalismo, observamos a diminuição do gasto público em políticas sociais abrangentes e universais. Ao contrário, são propostas e implementadas as chamadas “políticas focalizadas”, projetos que só atingem as comunidades mais miseráveis ou pedaços dela, aparecendo como uma vitrine da boa índole dos governos, o brasileiro, inclusive. Em nosso país, como em muitos outros lugares, o Estado Social vem diminuindo, porém cresce, como complemento de toda essa política, o Estado Penal.[7] Para os marginalizados e excluídos que não se mantém na estrita ordem, o Estado reserva a construção de cada vez mais prisões e a implementação de penas cada vez mais rígidas para os crimes contra o patrimônio dos ricos.

Tanto o aumento da criminalidade e da violência nela contida, como a resposta do Estado Penal são o contraponto dessa situação criada pela mundialização [8] do capital com sua razão manipulatória. Há cada vez menos emprego no mundo e cada vez mais gente marginalizada. Há cada vez menos dinheiro para o Estado investir em políticas que reduziriam as desigualdades sociais, e cada vez mais dinheiro para construir prisões ou aumentar os efetivos policiais. A crise sem precedentes do sistema do capital a partir de setembro de 2008, no coração do sócio-metabolismo, aprofunda as determinações da crise estrutural que lhe é inerente.

A violência que se exerce na esfera pública – a da criminalidade e a do aparelho repressivo do Estado – está, portanto inserida neste contexto. No entanto, se no Brasil ela tem aparecido como subitamente explosiva, há todo um substrato histórico, assentado sobre a estrutura de classes sociais presente nas formações capitalistas, que já indica a possibilidade de tal explosividade. Ela apenas ganhou, sob os efeitos desagregadores das políticas neoliberais, atualidade e com a desagregação das forças sociais do leste europeu, prolongou a utilidade histórica do capital.

Denominada violência institucional tais ações ilegais são praticadas por agentes do Estado, lotados em órgãos públicos que compõem os sistemas de segurança, mas que se destacam por sua função repressora nas diferentes instâncias da federação brasileira. Referem-se tanto às redes de segurança voltadas para a repressão política, quanto as voltadas para as que, instituídas para o controle das contravenções legais que integram o campo da criminologia, cometem, no exercício destas funções, ilegalidades. Só esta afirmação já nos remete a múltiplas considerações, particularmente ante as ponderações de analistas clássicos que discutem a natureza do Estado no capitalismo e a violência, conforme tratado em vários dos textos presentes neste número.

Nos períodos em que vigora a autocracia burguesa institucionalizada, travestida da democracia política, dois fenômenos se manifestam: de um lado, o não reconhecimento do aprisionamento por razões políticas, sendo toda ação deste teor enquadrada como crime comum. Em contrapartida, a lógica de ação vigente nos períodos ditatoriais não se altera, expressando-se no quotidiano das delegacias, nas tramitações e resultados processuais, nas práticas de tortura, nos assassinatos praticados por agentes policiais civis ou militares, apenas por suspeição de possíveis contravenções, ou de pessoas nos cárceres, portanto, sob custódia do Estado, nas denominadas “chacinas” e na impunidade de toda ordem.

Embora levadas a cabo por agentes do Estado, tanto militares quanto civis, não são resultado de iniciativas individuais, mas expressam um complexo integrado por idéias, padrões de comportamento, relações inter-humanas com respaldo de equipamentos materiais e denotam uma dada forma de ser do Estado, afirmativas que se respaldam nas evidências inerentes às informações contidas no imenso acervo documental existente tanto em arquivos públicos reconhecidos como históricos, como nos arquivos de delegacias, nos fóruns da justiça e em inúmeros outros órgãos que guardam a memória das ações dos Departamentos de Segurança Pública nos mais diferentes países, particularmente os latino americanos. Assim, de responsáveis pela segurança da nação, tais órgãos se transformam em sistemas de repressão, cumprindo a função social de coagir, cooptar e proceder à coerção utilizando-se para tanto das mais variadas estratégias na manutenção da autocracia burguesa.

Evidências que já vêm sendo apontadas pela produção acadêmica e congêneres, embora ainda pouco pelos historiadores, particularmente no concernente aos períodos não ditatoriais. Assim, em um primeiro momento, observa-se que a ênfase dos estudos recaía na análise da repressão e das arbitrariedades do Estado nos períodos ditatoriais, quando a função de segurança nacional incorpora a da repressão política. Mais recentemente vêm se destacando a emergência de uma produção intelectual voltada para analisar a continuidade da institucionalização destes órgãos e de suas práticas repressivas em períodos não ditatoriais, isto é, denuncia-se a permanência de investidas do Estado que confrontam a vigência dos direitos humanos e a ordem constitucional. [9]

O preceito identificado é o de que a segurança nacional significa estar vigilante e atacar preventivamente, não apenas iniciativas que se configuram, para a ordem vigente, como inimigos externos, mas também aqueles que são indicados como inimigos internos o que abrange uma enorme gama de pessoas e situações.

Tal perspectiva encontra respaldo na historiografia que analisa a posição dos militares na sociedade, assim como a dos policiais civis e militares em tempos de democracias, e que concluem que estes atuam com autonomia em relação ao governo e em relação aos diferentes segmentos da sociedade.[10]

Quanto às evidências da articulação dos militares com determinados segmentos da sociedade civil, alguns autores consideram que se trata de um acordo entre classes, já que os militares comporiam uma classe à parte.[11]

Uma crítica radical a tais posturas demonstra como em sociedades cujo desenvolvimento das forças produtivas capitalistas tem suas origens na particularidade da organização colonial e do trabalho escravo é hiper-tardio, a fragilidade da burguesia tornou-a incapaz de proceder à necessária revolução burguesa, rompendo com a dominação de classe oligárquica, com o apoio, mesmo que momentâneo, dos segmentos populares. Não por acaso observa-se neste volume a incidência de reflexões sobre ditaduras e institucionalidades autocráticas, assim como sobre a banalização da violência por agentes do Estado.

Expressão, conforme alguns dos autores, de formas particulares da autocracia burguesa que se constituíram-se em dominações exercidas de modo indireto pelo conjunto da burguesia, pelas armas, subjugando, castrando ou atrelando os poderes legislativo e judiciário. Esta estrutura de poder montada sob um executivo absolutizado, forte, ditatorial, foram capturadas por Marx e Engels em suas análises históricas do poder imperial de Napoleão III e de Bismarck no período guilhermino, na segunda metade do século dezenove. Em suas reflexões ontológicas, Marx apontava para esse executivo forte que atua no sentido de desmanchar as formas democráticas, pelas quais as classes sociais podem se contrapor com seus interesses antagônicos.

Está claro que é preciso acima de tudo diferenciar as circunstâncias e especificidades históricas do bonapartismo clássico com relação aos bonapartismos brasileiro e latinoamericanos, formas particulares identificadas às ditaduras militares. A figura de um aventureiro e oportunista no poder como ocorre no segundo império francês, ou a presença marcante de um estadista do porte de Bismarck, certamente, não encontram paralelo em nossa realidade. Há que atentar que não se trata de uma colagem histórica, mero recurso analógico de empréstimo de figuras. Trata-se de, nas palavras de Marx, compreender a lógica específica de um objeto específico.

Na história brasileira, a entificação do capital não se verificou por um amplo processo democrático de massas. A via colonial desconheceu processos instauradores que conformaram um regime democrático-burguês consolidado. Ao contrário, na particularidade brasileira, nasce uma burguesia cuja potência auto-reprodutiva é extremamente limitada, não possuindo uma dinâmica própria que pudesse efetivamente representar os interesses das demais categorias sociais. É graças a essa determinação histórica, à sua incompletude de classe do capital, que se constitui o capital atrófico, com suas características particularista e exclusivista:

Desprovido de energia econômica e por isso mesmo incapaz de promover a malha societária que aglutine organicamente seus habitantes, pela mediação articulada das classes e segmentos, o quadro brasileiro da dominação proprietária é completado cruel e coerentemente pelo exercício autocrático do poder político. Pelo caráter, dinâmica e perspectiva do capital atrófico e de sua (des)ordem social e política, a reiteração da excludência entre evolução nacional e progresso social é, sua única lógica, bem como, em verdade, há muito de eufemismo no que concerne à assim chamada evolução nacional.[12]

Notas

1. BRICEÑO-LÉON, Roberto (2002) La nueva violencia urbana en América Latina, Dossiê Sociologias, nº 8, Porto Alegre jul. / dez. http: / / www.scielo.br / scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517- 45222002000200003&lng=pt&nrm=iso

2. FRAZER, Elizabeth and HUTCHINGS, Kimberly. On politics and Violence: Arendt against Fanon. Contemporary Political Theory. Feature Article: Political Theory Revisited, 7, Doi:10.1057 / palgrave. cpt.9300328, 2008, pp. 90-108.

3. MARTINO, Paolo di. Criminologia. Analisi interdisciplinare dellla complessità del crimine. Studi Superiori. Universitá e Specializzazioni. Prefazione di Pier Luigi Vigna. Napoli, Edizioni Giuridiche Simne, 2009.

4. MARX, Karl. A burguesia e a contra-revolução (1848), As lutas de classe em França de 1848 a 1850 (1850) e O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte (1852).

5. FRAZER and HUTCHINGS, op. cit..

6. “Según la CEPAL, el desempleo en la región pasó de 5,7% en 1990 a 9,5% en 1999, pero lo que llama la atención no es tan sólo el incremento de los desocupados, sino la particularidad de los nuevos trabajos, pues de cada diez empleos que se crearon en la región entre 1990 y 1997, siete (6,9 exactamente) se originaron en el sector informal (CEPAL, 1999). Es decir, ocurre una doble exclusión laboral, pues hay menos empleos y aquellos que surgen tienen un carácter tan precario como su condición de informalidad lo sugiere.” BRICEÑO-LÉON, R., op. cit., p. 7.

7. BATISTA, Nilo (2003). “Todo crime é político”, entrevista à revista Caros Amigos, nº 77, agosto.

8. Publicação do Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS), da Argentina caracteriza esta situação da seguinte maneira: “Así, la velocidad con que se marcan algunos rasgos del “Estado policial” contrasta com la pereza con que se recobran ciertas notas del “Estado social”. CELS. Políticas de seguridad ciudadana y justicia social. Buenos Aires, Siglo XXI, 2004, p. 7.

9. CARDIA, Nancy. Transições democráticas: continuidades e rupturas; autoritarismo e democracia: desafios para a consolidação democrática, in: PINHEIRO, Paulo Sergio (et ali) Continuidade autoritária e construção da democracia. Relatório final da pesquisa. Fapes / CNPq / Fundação Ford USP: NEVE, 1999, pp. 11 a 37.

10. FERNANDES, Heloisa. Os militares como categoria social. São Paulo, Global, 1978. OLIVEIRA, Eliezer Rizzo de. As forças armadas: política e ideologia no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1987. PEREIRA, Maurício B. Estado Novo: a constituição das bases do partido militar e do projeto Brasil Potência. Premissas. Caderno do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp. v. 1997, pg. 15-16. STEPAN, Alfred. Ao militares na política. Rio de janeiro: Arte Nova, 1975. FICO, Carlos et ali. Ditadura e democracia na America Latina. Balanço Historiográfico e perspectivas. Rio de Janeiro: FGV, 2008.

11. PIERANTI, Octavio Penna, CARDOSO, Fabio dos Santos, SILVA, Luiz Henrique Rodrigues da. (2007). Reflexões acerca da política de segurança nacional: alternativas em face das mudanças no Estado. RAP Rio de Janeiro 41(1): 29-48, Jan. / Fev., pp. 30 a 48.

12. CHASIN, J. A sucessão na crise e a crise da esquerda. Revista Ensaio. São Paulo, Ensaio, nº. 17 / 18, 1989, p. 49.

Antonio Rago Filho

Vera Lucia Vieira

Editores Científicos


VIEIRA, Vera Lúcia; FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 38, 2009. Acessar publicação original [DR]

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