Visões da Morte / Revista Brasileira de História das Religiões / 2017

A chamada temática Visões da Morte apresenta um conjunto de artigos, com diversas abordagens temáticas e teórico-metodológicas, demonstrando a dinâmica das possibilidades de problematizações possíveis da morte na perspectiva histórica. Espaços dos mortos, ritos fúnebres, enfermidades e morte, luto e pesar, cemitérios, morte simbólica de dadas identidades são algumas das entradas temáticas dos textos que formam o presente volume.

Mortes físicas e simbólicas estão e estiveram presentes em distintas situações e condições sociais, como aquelas que mobilizam o interesse dos estudos dos artigos aqui apresentados. O tema morte é geralmente acionado pelos historiadores ao se realizar questionamentos sobre aspectos diversos das sociedades, isto é, as problemáticas de pesquisa acabam vinculando experiências de morte ou morrer com outras instâncias de vida social em universos culturais específicos. São variadas as compreensões das formas de morrer e de expressar a morte, de tal modo que esse tema, analisado historicamente, implica em considerar as mudanças vivenciadas pelos sujeitos em dado espaço e temporalidade, considerando ainda os elementos culturais e políticos que os constituem.

Nesta edição, a morte é percebida nas vivências das associações religiosas, nos (evidentes) locais de sepultamento, nas experiências sociais de sujeitos religiosos, nas diferentes expressões rituais, nos cuidados com enfermos, no tratamento do corpo morto, nos espaços dos mortos, na expressão escrita e literária, no cemitério como manifestação educativa e turística, nas identidades que (re)nascem e morrem, na morte social simbólica. A chamada temática traz um pouco destas variadas possibilidades de interpretações da morte através de análises de práticas religiosas, sociais e políticas e de manifestações de crenças e outras sensibilidades em torno da morte e do morrer. Atentos aos contextos em que se expressavam estas relações com a morte, os artigos reunidos abordam distintos espaços e expressões culturais, que vão do final do século XVII ao tempo presente.

Entendidos como “temas do sofrimento”, conforme Arlette Farge, os debates em torno da morte, na perspectiva histórica, percebem que “cada época, cada cultura, cada classe social ou grupo sexual tem palavras para clamar o escândalo, para dizer seu medo, para abafar sua mágoa”, considerando que sentimentos de “dor” e “pavor” podem ser expressos de diferentes formas, quer haja “familiaridade” com a morte ou não. A depender do contexto, a morte pode assumir diferentes sentidos, mas Farge questiona se “a morte é menos apavorante, menos escandalosa, menos triste por ser visível, presente, ritualizada”. Os sentimentos diante da morte ganham “formas, palavras, modos de expressão que têm implicações sociais e políticas e que pertencem plenamente à história”.1 Portanto, as diferentes visões e interpretações da morte implicam dadas práticas, ritos e crenças que precisam ser entendidas na sua historicidade.

Basicamente, é da morte ocidental e cristã-católica de que tratam os artigos aqui reunidos, vinculados a crenças e compreensões de ritos fúnebres, de espaços de sepultamento e de condições pós-morte da alma, seja como configurador de vivências específicas, seja como conformador de identidades contemporâneas.

Iniciamos com o artigo de Juliana de Mello Moraes, que analisa os atendimentos fúnebres promovidos pelas Ordens Terceiras de São Francisco aos seus irmãos em trânsito pelo Império atlântico português durante o século XVIII. A historiadora demonstra como estas associações cresceram e acumularam rendas neste período, a ponto de ampliarem o oferecimento de sepultamentos e ritos fúnebres ideais aos irmãos, especialmente em São Paulo e em Braga.

Em seguida, o artigo de Ane Mecenas está focado num contexto específico, o espaço de atuação de missionários para conversão de indígenas Kiriri no sertão da América portuguesa. A autora analisa os discursos de capuchinhos e jesuítas entre o final do século XVII e início do XVIII a respeito da morte e das práticas rituais fúnebres, demonstrando tanto as percepções dos missionários sobre as práticas e crenças da “gentilidade” sobre as enfermidades, como os esforços para o ensino dos significados dos enterramentos e das possibilidades do estado da alma após a morte.

Na sequência, o artigo de Claudia Rodrigues e Vitor Cabral analisa a dinâmica relação entre sepultamentos em espaço sagrado e a configuração das desigualdades sociais em uma paróquia rural do Rio de Janeiro, intitulada Santo Antônio de Jacutinga, no final do século XVIII e início do XIX. Os autores atentam para as hierarquias entre livres e libertos da freguesia, desejosos de sepultamento católico em espaços considerados mais (ou menos) sagrados, na desigual busca pela salvação da alma.

O artigo de Vera Lúcia Caixeta apresenta as atitudes diante da morte de sertanejos no norte de Goiás da primeira metade do século XX, a partir das memórias do francês Frei Audrin expressas no livro “Os sertanejos que eu conheci”, escrito nos anos 1940. Segundo Caixeta, na narrativa de Audrin, o sertanejo desponta como aquele que rezava em comunidade e contava com a proteção dos santos de devoção para o socorro na hora da morte.

O texto de Douglas Atilla Marcelino analisa a obra Redescobrindo o Brasil: a festa na política, de Marlyse Meyer e Maria Lucia Montes, que trata de uma interpretação dos funerais de Tancredo Neves. O historiador está interessado em analisar a representação do luto transformado em festa e sua relação com o imaginário político. A morte do presidente eleito, em meados dos anos 1980, marcaria a inauguração de um novo ciclo, no qual o povo redescobriria a si mesmo.

No artigo de Jenny González Muñoz, o foco está na relação entre cemitério (latino-americanos) e escola para a configuração de trabalhos de educação patrimonial que considerem aspectos memoriais e museais com vistas à conservação e preservação. Para a autora, processos educativos podem sensibilizar sujeitos a perceberem o cemitério como lugar de memória e identidade, importantes para a proteção dos bens culturais.

Nesta lógica de cemitério como evidência de memória e identidade, o artigo de Daniel Luciano Gevehr e Larissa Bitar Duarte aponta para a potencialidade de um cemitério específico da cidade de Jaguarão, extremo sul do Rio Grande do Sul, como referencial turístico. Para os autores, o turismo de necrópole pode dinamizar as interpretações sobre os cemitérios, entendendo-os como lugares de memória e de construção de determinadas características do passado daquela sociedade.

Concluímos a chamada temática com o artigo de Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho, que analisa a morte simbólica de pessoas transgêneras e ex-transgêneras na sociedade brasileira contemporânea a partir de suas narrativas, destacando a conversão e desconversão de corpo, sexo e gênero. O autor ainda aponta que os discursos de transfobia religiosa podem ser associados a violências como, por exemplo, o assassinato de travestis e sugere que o discurso de cura gay seja revertido em cura da homofobia, transfobia, travestifobia, lesbofobia, entre outros.

Termino esta apresentação com a esperança de que, sem temores e para não temer, os estudos históricos sobre a morte sejam prósperos e frutíferos no Brasil e que este volume seja inspirador aos leitores da Revista Brasileira de História das Religiões.

Mauro Dillmann – Universidade Federal de Pelotas

Agosto de 2017


DILLMANN, Mauro. Apresentação. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v.10, n.29, sete. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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