Westund Nordeuropa Juni 1942-1945 – HAPPE (RH-USP)

HAPPE, Katja. Westund Nordeuropa Juni 1942-1945. Berlin: De Gruyter Oldenbourg, 2014. Die Verfolgung und Ermordung der europäischen Juden durch das nationalsozialistische Deutschland 1933-1945, 12p. Resenha de: LEITE, Augusto Bruno de Carvalho Dias. Contribuição à historiografia sobre a Shoah. Revista de História (São Paulo) n.176 São Paulo  2017.Nov 13, 2017.

A ilustrada Alemanha do início do século XX mobilizou os recursos mais avançados que a racionalidade moderna possuía para a guerra. Mais do que isso, durante o regime Nacional-Socialista alemão (1933-1945), racionalizou-se o processo de expulsão dos “indesejados” para fora dos limites do Reich. Particularmente, contra os judeus, assimilados ou não, a solução encontrada foi a imediata eliminação: “a solução final para a questão judaica” [die Endlösung der Judenfrage].

Shoah [שואה], do hebraico “calamidade” ou “catástrofe”, termo que nomeia a perseguição e o assassinato dos judeus na Europa sob o domínio do III Reich alemão, apesar de já exaustivamente explorada, rememorada e elaborada, especialmente em ambiente europeu, norte-americano e israelense, persiste como evento singular, paradigma político e histórico. Entretanto, a produção propriamente historiográfica que se debruça sobre o tema é fragmentada, quando não restrita à memorialística, havendo, por isso, uma lacuna a ser sanada. Os anos 19901 tentam preencher esse hiato com vasta publicação interessada em estudar e compreender a “catástrofe” judaica, catalisada pelo aparecimento e pela análise de documentos até então inéditos que surgem no horizonte historiográfico da pesquisa pelo trabalho de investigadores e familiares de sobreviventes que dispõem para o público artefatos e documentos que atestam eventos, reafirmando registros ou mesmo iluminando novos fatos.

É sensível ao estudioso da Shoah, desde o aparecimento de Le Bréviaire de la haine : Le IIIe Reich et les juifs [O breviário do ódio: o III Reich e os judeus]2, de Léon Poliakov, em 1951, a exigência documental sobre esse ramo historiográfico. Há uma demanda, por vezes tácita, sobre o rigor documental próprio ao teor científico que um estudo histórico em geral exige. Tal demanda pretende que os estudos sobre a Shoah possam se deslocar da “moral política” para o campo dos estudos históricos. Com efeito, há necessidade de documentação para que a crítica documental refina o conhecimento sobre esse evento que, podese afirmar, seccionou o século XX europeu. As últimas décadas não apenas produzem o registro de entrevistas ou memórias individuais como também arregimentam em vários acervos uma documentação riquíssima, com vasto material salvo da destruição ou do esquecimento, disponibilizada, inclusive, on-line, como a reunida no United States Holocaust Memorial Museum.

Desse modo, a compilação de coleções de documentos que testemunham a “catástrofe” conforme o seu desenvolvimento parece sugerir que os estudos sobre a Shoah estabelecem, a cada dia, uma boa relação com o plano historiográfico. É o que se vê no décimo segundo volume do projeto Die Verfolgung und Ermordung der europäischen Juden durch das nationalsozialistische Deutschland 1933-1945 [A perseguição e assassinato dos judeus europeus pela Alemanha Nacional-Socialista 1933-1945] (2008-2018), que acaba de ser publicado com uma monumental documentação, novamente, enriquecendo a historiografia do público de língua alemã. Trata-se de um dos volumes desse projeto que colige documentos originais do período Nacional-Socialista alemão, com particular enfoque na atuação da burocracia do Reich em relação à população judaica do continente europeu além do Magrebe. É um trabalho que, apesar de sua vocação universalista, por tratar de tema sensível ao conjunto de pautas humanitárias históricas, foi feito por alemães e, sobretudo, para alemães, como sugerem os editores.3 Há a intenção pedagógica para a construção da memória e da história alemã do século XX. Com rigor técnico e, ao mesmo tempo, sensibilidade didática ao leitor não iniciado ao tema, o chamado projeto VEJ – abreviação do título – se desenvolve como material de pesquisa para o historiador, mas também para o leitor interessado, para o leigo que deseja compreender o passado recente da história alemã ou se aproximar da experiência vivida pelos contemporâneos do Estado nazista, por meio da leitura de documentos da época. Para tanto, toda documentação é cuidadosamente traduzida e apresentada de maneira imediata ao leitor, com o cuidado de explicar aquilo que ao leigo pode soar incompreensível, o que se pode averiguar pelas notas de pé de página, sempre esclarecendo de maneira objetiva e em linguagem simples algum fato ou personalidade do período.

A coleção possuirá dezesseis volumes ao final de sua publicação, prevista para o ano de 2018. Os volumes são organizados cronologicamente, do ano de 1933 a 1945, compreendendo, então, o período de ação e desenvolvimento do Reich Nacional-Socialista alemão, incluindo os territórios ocupados, assim como o período da Segunda Grande Guerra. Serão cerca de 5 mil documentos reunidos no total, sendo que, a cada volume, aproximadamente 320 documentos devem compor o dossiê a ser apresentado na edição em questão. Foi estipulado que, do total dos documentos contidos em cada volume, com alguma margem de tolerância, 40% devem ser originários do ambiente dos perpetradores – agentes do Reich -, 40% devem ser originários das vítimas – sobreviventes judeus, em sua maioria – e 20% da documentação devem ser de pessoas, órgãos ou instituições sem envolvimento direto com os eventos – como a imprensa internacional. Os documentos apresentados são oriundos de várias regiões da Europa e do norte da África, e apenas as traduções para o alemão estão presentes na obra, que não contém os originais de cada documento. Pode-se descobrir que, nas páginas de cada volume da coleção, há desde cartões postais, recortes de jornais e fragmentos historiográficos a papéis oficiais do Reich, sempre com a exigência de serem evidências produzidas na época em questão, nunca posteriormente. São documentos que não representam apenas um evento, mas um complexo de questões que, apesar da estrutura cronológica, periódica e seccionada por regiões ou países, podem ser cruzadas ou comparadas por volume, por ano ou pela origem geográfica.

O volume 12 possui lugar especial dentro da obra total. Trata-se do exemplar Westund Nordeuropa Juni 1942-1945 [Europa do oeste e do norte, junho de 1942-1945]. Os editores, Katja Happe, Barbara Lambauer e Clemens Maier-Wolthausen, publicaram, em dezembro de 2014, esta obra, que recolhe evidências sobre um dos momentos críticos e decisivos da deportação da população judaica da Europa do norte e da Europa central. Como em outros volumes, há uma “introdução” que inicia o leitor ao contexto sobre o qual a documentação foi produzida, por meio da qual é possível conhecer de maneira breve a história das populações judaicas de cada região visada pelo trabalho e, por outro lado, um breve histórico do antissemitismo característico da região estudada, em relação ao período perscrutado. Pela introdução proposta para o décimo segundo volume, a documentação parece se agrupar orientada pelo impacto das deportações em massa iniciadas no verão de 1942, da Europa central e do norte em direção ao leste (VEJ, 2014).

O décimo segundo volume apresenta 336 documentos originários da Dinamarca, Noruega, Holanda, Bélgica, Luxemburgo e França. É impossível analisar a totalidade da compilação de maneira concisa e paulatina, pois o volume é enorme. No entanto, é possível sumarizar o teor da documentação pelo comentário de um documento exemplar: a carta de Jonas (Bob) Cahen (1918-2000) a sua família, na qual o então prisioneiro do campo holandês de Westerbork narra, em novembro de 1942, com qualidade literária e descritiva o que parecia ser uma fração corriqueira de seu dia a dia. Tal fração, entretanto, demonstra de modo exemplar o argumento do volume em questão, que afirma o verão de 1942 como ponto de inflexão da compreensão das ações do Reich para efetivação da Endlösung der Judenfrage. O documento “número 92” do dossiê evoca não apenas imagens gráficas do campo de Westerbork, do primeiro dia do mês de novembro de 1942, mas anuncia uma espécie de vaticínio individual, pessoal, sobre aquilo que ocorria sem o conhecimento das vítimas, a saber, o genocídio, a “perseguição e o assassinato” sistematicamente orquestrados. Jonas Cahen insinua aquilo que se soube somente posteriormente: a “solução final”. Ele sente de maneira intuitiva que é isso, precisamente, o que surge em seu horizonte próximo, na Holanda ocupada, e que irá reduzir em mais de 90% a população de origem judaica até o fim de 1945.4 Com a chegada de 17 mil judeus de toda parte da Holanda, em outubro daquele ano, Cahen descreve o campo de Westerbork, cujas barracas feitas para acomodar 400 pessoas abrigavam por vezes mil.

Die Menschen kamen hier an, gejagt wie Vieh, einige begraben unter ihrem Gepäck, andere ohne jeden Besitz, einige nicht einmal richtig gekleidet. Kranke Frauen, die man aus dem Bett geholt hatte, in dünnen Nachthemden, Kinder in Hemdhöschen und barfuß, alte Leute, Kranke, Gebrechliche – immer mehr neue Menschen kamen in das Lager. Die Baracken waren voll, übervoll. […] Strohsäcke und Matratzen gab es schon lange nicht mehr. […] Sie schliefen auf oder unter Schubkarren im Freien. Es gab nicht genug zu essen. Warmes Essen bekam man manchmal nur alle drei Tage und dann noch zu wenig. Die Säuglinge bekamen keine Milch. […] Die Pumpen für die Wasserversorgung arbeiteten unter Hochdruck und waren nicht mehr in der Lage, das Wasser ausreichend zu säubern, so dass die Menschen verschmutztes Wasser trinken mussten – mit den entsprechenden Folgen.

[As pessoas vieram, escorraçadas como gado, algumas soterradas por suas próprias bagagens, outras sem qualquer bem, algumas nem mesmo vestidas adequadamente. Mulheres doentes que, arrastadas para fora de suas camas, vestiam camisolas, crianças em roupas debaixo e descalças, pessoas idosas, doentes, enfermos – sempre chegavam mais pessoas novas no campo. As barracas estavam cheias, superlotadas.

[…] Colchões, mesmo que de palha, já não existiam mais. […] Dormiam sobre ou embaixo de carrinhos de mão, ao ar livre. Não havia comida o suficiente. Refeições quentes, apenas a cada três dias e, ainda, em pouca quantidade. Os bebês não obtêm nenhum leite. […] A bomba que trabalhou sob alta pressão para o abastecimento de água já não era capaz de purificá-la o suficiente, fazendo, assim, as pessoas beberem água suja – com as devidas consequências.]5

Sobrevivente de Westerbork, mas também de Theresienstadt e Auschwitz, para onde será deportado já no fim da guerra6, Cahen imprime, portanto, uma imagem já conhecida porém ainda impactante da barbárie NacionalSocialista alemã. E, de forma sarcástica, profundamente envolvido com o que experimenta em Westerbork, denuncia o mesmo que Walter Benjamin em suas conhecidas Teses sobre o conceito de história: a natureza nefasta da civilização e da cultura, até então ignorada. Na sétima tese, Benjamin afirma que “não há um documento de cultura que também não seja um documento de barbárie [Es ist niemals ein Dokument der Kultur, ohne zugleich ein solches der Barbarei zu sein]”7. Cahen, endossando o adágio benjaminiano, diz:

Das Zeitalter der Zivilisation – „Deutschland gewinnt an allen Fronten“, „bringt Kultur und Zivilisation!“ Zivilisation, wenn man Menschen auf Schubkarren, auf Rucksäcken oder einfach auf dem Boden liegen lässt? Kultur, wenn man eine Mutter verzweifeln sieht, weil sie ihr Kind nicht nähren kann … keine Milch.

[A era da civilização – “A Alemanha venceu em todas as frentes”, “traz cultura e civilização!”. Civilização, quando se encontra pessoas em carrinhos de mão, em mochilas, ou simplesmente estendidas no chão? Cultura, quando se vê uma mãe desesperada porque não consegue alimentar seu filho… sem leite.]8

Jonas Cahen, assim, resume o significado que a Shoah assume dentro da história europeia: simultâneo cumprimento e negação das promessas da civilização e da cultura. Conhecer esse momento de maneira imediata, pelo contato instantâneo com a documentação, gera impressões vivas desse paradoxo, próprio ao momento que se deseja apresentar pelo projeto VEJ.

O ganho natural de tal empreendimento é a reunião de material para pesquisa. O historiador ou pesquisador interessado e comprometido com o tema terá acesso facilitado pelo trabalho monumental que a equipe do projeto VEJ empreendeu. Além disso, não todos, mas muitos documentos são inéditos. Outro ganho que, particularmente, a coleção proporciona é a possibilidade de uma análise transnacional, transtemporal ou transbiográfica segundo os critérios que cada volume apresenta. A facilidade para tal empreitada encontra-se, precisamente, no já mencionado caráter cronológico e seccionado por país, região ou biografia que a coleção impõe à documentação, o que proporciona o acesso facilitado à determinada questão preestabelecida. Por fim, o trabalho do VEJ aponta para a elaboração da memória recente alemã e, ainda, a configuração historiográfica desta memória.

A força deste projeto, mais do que na quantidade intimidadora de documentos apresentados para análise, parece repousar sobre o argumento que persiste de maneira tácita dentro da obra, pois há um pressuposto não declarado que atravessa todo o projeto: descreve-se a Shoah não como catástrofe teológica, teleológica ou natural, conforme o termo Holocausto pode evocar, mas como catástrofe histórica em seu sentido existencial e político profundo, porque compreender a Shoah enquanto acontecimento político é apresentá-la historicamente. Incluir a Shoah no passado histórico através do esforço historiográfico e documental é torná-la lembrança, incluí-la na memória coletiva política que se sedimenta em forma de historiografia, pois “colocar algo no passado”, como se diz corriqueiramente, não é nada mais do que lembrar, de maneira precisa, deste passado.

Referências

BAJOHR, Frank. Expropriation and expulsion. In: STONE, Dan. The historiography of the Holocaust. London: Palgrave Macmillan, 2004. p. 52-53. [ Links ]

BENJAMIN, Walter. Über den Begriff der Geschichte. In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991, p. 691-704. [ Links ]

HAPPE, Katja et al. West-und Nordeuropa Juni 1942-1945. Berlin: De Gruyter Oldenbourg, 2014. (Coleção Die Verfolgung und Ermordung der europäischen Juden durch das nationalsozialistische Deutschland 1933-1945, vol. 12) [ Links ]

*Doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais com estágios doutorais na Université Paris VII – Denis Diderot e na École des Hautes Études en Sciences Sociales EHESS França. E-mail: [email protected].

1BAJOHR, Frank. Expropriation and expulsion. In: STONE, Dan. (ed.). The historiography of the Holocaust. London: Palgrave Macmillan, 2004, p. 52-53.

2Todas as traduções são de responsabilidade do autor do artigo.

3Apesar desta vocação, em breve o projeto VEJ poderá ser acessado pelo público não germanófono. A preparação da edição inglesa da coleção, coordenada pelo professor Alex Kay, do Instituto de História Contemporânea (Munique-Berlim), acontece desde 2014. É prevista a tradução de todos os volumes, trabalho que é realizado em conjunto com o professor Dan Michman, do Yad Vashem (Jerusalém).

4In den Jahren der deutschen Besatzung wurden von den 140 000 Juden, die bei Kriegsbeginn in den Niederlanden lebten, 107 000 deportiert. Von ihnen Kehrten nur etwas mehr als 5 000 nach Kriegsende in die Niederlande zurück. [Durante os anos de ocupação alemã, havia cerca de 140 000 judeus holandeses. Desde o inicio da guerra, 107 000 foram deportados. Destes retornaram a Holanda pouco mais que 5000]. In: VEJ, 2014, p. 44.

5VEJ, 2014, p. 309

6Jonas Cahen, técnico eletricista, é deportado em agosto de 1942 para o campo de Westerbork. Em 18 de janeiro de 1944 é transportado para Theresienstadt, de onde é enviado a Auschwitz, em 16 de maio de 1944. Após sobreviver as “marchas da morte” [Todesmärsche], emigra para Israel em 1958.

7BENJAMIN, Walter. Über den Begriff der Geschichte. In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991, p. 696.

8VEJ, 2014, p. 310.

Augusto Bruno de Carvalho Dias Leite – Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de História.