Chão de Deus: Catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas Gerais, Brasil, Séculos XVIII-XIX – MATA (T-RAA)

MATA, Sergio da. Chão de Deus: Catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas Gerais, Brasil, Séculos XVIII-XIX. Berlin: WVB, 2002. 304p. Resenha de: PEREIRA NETO, Francisco. Chão de Deus (resenha). Tessituras, Pelotas, v. 1, n. 1, p. 245-252, jul./dez. 2013.

CHÃO DE DEUS

É pertinente pensar que uma das principais vantagens de se concentrar estudos em torno de uma temática específica é a potencialidade da orientação interdisciplinar das pesquisas sobre essa mesma temática. Tratando especificamente do tema da religião, é notória a contribuição da obra “Chão de Deus: catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas Gerais”, de Sérgio da Mata. Trata-se de um estudo histórico, pautado por sua metodologia clássica, mas que constrói seu objeto através de um diálogo intenso com a geografia, com as ciências sociais (prioritariamente com a antropologia e a sociologia) e mesmo com a filosofia, em função do investimento do autor em esclarecer as bases epistemológicas do seu estudo.

Esse investimento na definição dos pressupostos teóricos do estudo se justifica na medida em que, como o próprio autor salienta, ao se propor a uma investigação histórica que privilegie a relação entre espaço e religião, o trabalho acaba apresentando uma abordagem original no campo da historiografia brasileira. O autor detecta entre as principais lacunas na literatura sobre a cidade brasileira, uma ausência de estudos sobre as origens e uma ausência do fator religioso. Portanto, seu estudo trata da constituição do espaço através de uma gênese religiosa, ou seja, da produção de uma proto-história das cidades mineiras. Com esta preocupação o autor propõe um debate importante com a historiografia sobre as cidades, que normalmente percebe a constituição do espaço urbano por seu caráter civilizacional e, em decorrência, definem a constituição das estruturas espaciais de origem, tal como os arraiais mineiros dos séculos XVIII e XIX, como uma iniciativa espontânea de uma sociedade em estruturação. Nas palavras do autor “[o trabalho] se propõe a estudar de forma sistemática a importância das representações e práticas religiosas na gênese das cidades e embriões de cidades em Minas Gerais ao longo dos séculos XVIII e XIX” (MATA, 2002, p. 20). É constante a defesa da tese de que em Minas Gerais, na origem do espaço urbano este é definido como um espaço sagrado. Utilizando-se do conceito de “longa duração” de Braudel (um dos expoentes da relação entre história e geografia), o autor afirma que “a formação de um arraial a partir de uma capela e do seu patrimônio é um processo de tal força e regularidade que não hesitaria em qualificá-lo de estrutural” (MATA, 2002, p. 23).

Porém, se o autor inova na temática e empreende um proveitoso esforço em favor da interdisciplinaridade para o tratamento do tema da religião, como veremos adiante, ele é conservador na utilização dos documentos para a produção de dados2. Neste aspecto critica a falta de

2 Para desenvolver seu estudo, Mata recorre a um denso material documental composto prioritariamente por um conjunto de documentos coletados no Arquivo Público Mineiro, nos arquivos eclesiásticos das arquidioceses de Diamantina, Belo Horizonte e Mariana e da diocese de Campanha, com especial destaque para o conjunto de documentos coletados pelo Vigário-Geral da Cúria, Monsenhor Júlio Bicalho, no final do século XIX. Além destes documentos foram consultados os livros de viajantes que percorreram Minas Gerais no século XIX, a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros (EMB) e o Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais (DHGMG). O autor recorreu também a obras literárias de escritores mineiros: Bernardo Guimarães, Alphonsus de Guimarães, João G. Rosa, entre outros.

referencial teórico na historiografia que procura trabalhar com a história das mentalidades e a história cultural, aliando-se a Jörn Rüsen, historiador alemão, que considera o “retorno à narrativa” na produção histórica como, de um lado, um prejuízo do ideal de objetividade, e de outro, uma sobre-valorização da “ficcionalidade” no trabalho do historiador. Em termos de referências teóricas é interessante que o estudo historiográfico de Mata avança em originalidade apropriando-se de influências distintas daquelas que normalmente a historiografia brasileira utilizou para produzir sua renovação, ou seja, as historiografias francesa, inglesa e norte-americana. A aproximação com a tradição alemã nos oferece, por exemplo, a possibilidade de conhecermos trabalhos da “Escola de Bochum” num campo de estudos reconhecido como geografia da religião, estudos que dão ênfase numa geografia das atitudes mentais. Por outro lado, mesmo criticando o que chamou de um ultra-relativismo da história das mentalidades e da história cultural, o autor não se furtou em utilizar historiadores como Laura de Mello e Souza e Ronaldo Vainfas para saudar o aparecimento de novas abordagens sobre a religiosidade no Brasil, livres da concepção institucionalista e anti-pluralista dos processos sócio-culturais que predominava na historiografia até então.

A abertura para a dimensão simbólica da realidade social e cultural é intensificada na concepção do autor sobre a cidade como espaço vivido. Chama a atenção para o fato de que nos aos 90 presenciamos ao retorno do espaço como interesse para os estudos no campo das ciências humanas. Para justificar a idéia de retorno o autor traz várias páginas apresentando o debate entre geógrafos e historiadores travado na Europa na primeira metade do século XX, o qual teria conseqüências interessantes no momento atual. A título de exemplo, o autor chama a atenção para a importância do projeto de geografia humana proposto pelo alemão Friedrich Ratzel no início do século XX, especialmente porque tal proposta enfatiza que a dialética entre espaço e história não se processa num nível puramente formal. Para este autor o espaço influencia a constituição física e mesmo a mentalidade (o „espírito‟) de um grupo. Para Mata, essa abordagem “culturalista” do espaço enfrenta uma outra visão que reduz o espaço a uma “palco”, tradicional entre historiadores e defendida por nomes eminentes como Lucien Febvre3 e Fernand Braudel. Neste caso o termo “culturalista” indica muito mais uma vocação para perceber o espaço através de sua dimensão simbólica e, portanto, com uma relação dialética construtiva com a vida social.

Para desenvolver sua compreensão da dimensão simbólica do espaço o autor vai lançar mão da contribuição de vários autores das Ciências Humanas. Explora, por exemplo, as idéias de Simmel que coloca a grande cidade como locus da mentalidade moderna; ou mesmo do conceito de “espaço mítico” de Ernest Cassirer, que diferencia o espaço carregado de sentido daquele que se apresenta aos nossos órgãos sensoriais e que vai ser definido como “espaço geométrico”. Nestes dois autores o espaço é visto, sobretudo, como expressão da atividade simbólica do homem e, deste modo, qualificam a relação de interdependência entre religião e a origem do espaço urbano que Mata coloca como fundamental para entender o processo de proto-urbanização em Minas Gerais. Vários outros autores reforçam este debate. Entre os principais estão Durkheim, Franz Boas, Edward Sorja, Bachelard, Michel Foucault, Lévi-Strauss, Herskovits, Marc Auge, Yi-fu Tuan, entre outros. Por esta nominata é possível perceber a amplitude da base teórica do autor, transitando pela geografia humana, história, sociologia, antropologia e fenomenologia para fundamentar as possibilidades que se abrem o tratar da relação entre espaço e religião. O mérito desta amplitude de perspectivas teóricas é abrir possibilidades de investigação do tema, que evidentemente não são esgotadas pelo estudo que o autor faz da constituição história das cidades em Minas Gerais.

No que se refere a religião, que é o outro elemento importante presente no marco analítico de Mata, a sua preocupação é qualificar o tipo de fenômeno religioso que estamos tratando ao pensar na sociedade mineira dos séculos XVIII e XIX. Para tanto, como foi colocado anteriormente, sua perspectiva de religião ultrapassa os seus marcos institucionais e vai preocupar-se com as questões da experiência religiosa. Neste caso o autor se aproxima das discussões sobre as expressões de religiosidade popular em Minas Gerais no período que compreende o estudo. Como base teórica, vai apropriar-se do conceito de Luckmann que entende “religião” como a “organização social das relações com a transcendência”, entendido que para este autor qualquer forma de experiência extra-cotidiana constitui uma transcendência. Para a discussão sobre religiosidade popular brasileira o autor vai utilizar-se do trabalho de historiadores como os supracitados e de autores do campo das ciências sociais como Maria Pereira de Queiroz, Gilberto Freyre e Pierre Sanchis, este último com forte influência nas análises de Mata.

O investimento do autor para trabalhar teoricamente os conceitos chaves presentes no texto, ou seja, espaço e religião, conferem à sua obra a potencialidade de um trabalho histórico no qual, ao estudar questões locais, coloca seus resultados em diálogo com questões teóricas mais amplas, de caráter universal, oferecendo elementos para o confronto dos conceitos gerais com a realidade.

Falando especificamente de Minas Gerais, o autor percebe duas dinâmicas distintas que estão na base dos processos de formação das cidades. São dinâmicas interdependentes, mas que mantém especificidades visíveis. Em primeiro lugar temos os arraiais e vilas forjadas em função de processos sociais decorrentes da exploração do ouro em Minas Gerais no século XVIII. É claro neste caso que a formação das localidades mantinha estreita relação com a atividade extrativista mineral. Em segundo lugar temos a formação de localidades em função do processo de “ruralização” da sociedade mineira, processo este que se acentuou com a diminuição da atividade mineira, mas que coexistiu com os arraiais de origem mineradora. Esta segunda forma de ocupação está intimamente vinculada a prática de fazendeiros em estabelecer um “patrimônio”, ou seja, um pedaço de terras ou uma doação em dinheiro, que serviriam para a construção de capelas e para a sua posterior manutenção. Para Mata, a gênese das cidades mineiras foi dependente da equação patrimônio-capela-arraial, uma vez que a prática comum é que a população se fixasse nos patrimônios doados para as capelas e dali surgissem as vilas e, posteriormente, as cidades. Por esta razão é que o autor chama a atenção para o fato de que os patrimônios que deram origem aos arraiais e às vilas foram os constituídos por doação de terras.

Para abordar os tipos humanos engendrados pelo ambiente societário de Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX e, especialmente, para defender a capacidade criativa da religiosidade vivida por esses homens, o autor vai tecer um olhar crítico à tese weberiana do “desencantamento do mundo” e de suas exigências de um tipo específico de racionalidade para as relações nas sociedades modernas. Para construir uma visão alternativa às nossas idéias mais poderosas sobre a relação entre religião e civilização, Mata apóia-se na riqueza das definições sobre religiosidade popular e, olhando a religião sob esta perspectiva, vai procurar compor um dos tipos mineiros característicos à época: o homo ludens. Vai propor a idéia de que a relação básica entre o homem mineiro e o espaço não era a de enraizamento, mas que o mesmo seguia a “lógica do movimento” ao estabelecer seu estilo de vida. Apóia-se em conceitos como o de “concepção espaçosa do mundo”, de Sérgio Buarque de Holanda, e de “habitus nômade”, de Pierre Sanchis, para dar contornos para o que seria o homem do período da mineração. O “mito do Eldorado, antes de tudo” povoava a imaginação desses primeiros mineiros e justificava sua predisposição para o jogo e a aventura. Para Mata estas motivações são compreensíveis como resposta a uma sociedade com pouca mobilidade e que barra o acesso a melhores condições através do trabalho. O autor vai propor uma relação criativa entre a Rússia e Minas Gerais ao utilizar o romance “O jogador”, de Dostoiewski, para ilustrar suas definições sobre o homo ludens mineiro. Com este recurso à literatura o autor busca lançar luz aos sentidos da prática do jogo e resistir a crítica européia, segundo ele de natureza etnocêntrica, à “indolência” dos brasileiros. Para se contrapor a ética protestante alemã, Dostoiewski afirma que “o dinheiro preciso para mim mesmo, e longe de mim ver todo o meu Ser como acessório do capital” (apud MATA, 2002, p. 251). Em suma, habitus nômade e religião conformavam a visão de realidade do homo ludens mineiro.

Como foi colocado acima, neste contexto a possibilidade do estabelecimento de vilas e arraias estava estreitamente vinculada a um processo de “domesticação religiosa” do espaço. Porém, o patrimônio que sustentava a construção de capelas e, em conseqüência, das outras casas do povoado tinha sua origem em valores e crenças de uma religiosidade que pouco devia à oficialidade da Igreja católica. Tratava-se de uma religiosidade em que o extraordinário estava incrustado no cotidiano, em que uma oposição rígida entre o natural e o sobrenatural era estranha às visões de mundo que proporcionava. O autor chega a utilizar a idéia de “sagrado selvagem” de Bastide para definir a religiosidade da época, sem, no entanto deixar suspeitas da existência de uma religiosidade “pré-lógica”. A capacidade constitutiva de um espaço público desta mentalidade religiosa aparece nas análises que o trabalho nos oferece do simbolismo que envolvia a casa, a capela, a praça, o cemitério, em contraposição com o espaço repleto de ambiguidades representado pelo sertão. Da mesma forma, nos fala das relações entre os agentes sociais trazendo análises e informações sobre a segregação das mulheres e das relações entre os fazendeiros e os grupos menos favorecidos (lavradores, escravos, etc.). Neste ponto o texto peca ao minimizar o peso das relações de subjugação presentes numa sociedade fortemente hierarquizada como a sociedade mineira da época. O autor propõe-se a um debate interessante com Luis Mott sobre o tema, sem, no entanto, conseguir que os argumentos do texto superem a impressão de uma certa minimização freiriana das relações de dominação, aqui em versão mineira. Por outro lado, ao falar sobre o culto dos santos e de outras práticas a religiosidade popular mineira, o autor nega a definição etnocêntrica do pretenso “exteriorismo” do catolicismo tradicional, segundo esse argumento incapaz de desenvolver uma religiosidade mais profunda. Coloca tal visão como uma “projeção de ilusões tipicamente modernas” e prefere tratar a perenidade e o apego às formas presentes no catolicismo popular como próprio daquilo que Sanchis define como “prevalência do significante” para o catolicismo ibérico.

O autor encerra o livro com a seguinte pergunta: derrota da “cidade selvagem”? Tendo em vista o aparecimento de sistemas mais racionalizados de criação do espaço urbano, como é o caso de Belo Horizonte, no final do século XIX, e de Brasília, em meados do XX, representações vivas da geometrização das cidades, Mata se pergunta sobre a ausência do elemento mítico e religioso nas conformações do espaço urbano contemporâneo. Neste caso o próprio autor mostra a influência religiosa que presidiu a construção destas utopias urbanas modernas, permitindo que se pense na cidade planejada como prenhe de um sentido religioso, tal qual ocorre com muitos de seus habitantes, hoje vivendo em um contexto, o do pluralismo religioso, propício a intensificação das dinâmicas de encantamento do espaço dessas mesmas cidades.

Nota

2 Para desenvolver seu estudo, Mata recorre a um denso material documental composto prioritariamente por um conjunto de documentos coletados no Arquivo Público Mineiro, nos arquivos eclesiásticos das arquidioceses de Diamantina, Belo Horizonte e Mariana e da diocese de Campanha, com especial destaque para o conjunto de documentos coletados pelo Vigário-Geral da Cúria, Monsenhor Júlio Bicalho, no final do século XIX. Além destes documentos foram consultados os livros de viajantes que percorreram Minas Gerais no século XIX, a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros (EMB) e o Dicionário Histórico-  Geográfico de Minas Gerais (DHGMG). O autor recorreu também a obras literárias de escritores mineiros: Bernardo Guimarães, Alphonsus de Guimarães, João G. Rosa, entre outros.

3 Lucien Febvre, por sua vez, definia as ideias de Ratzel como um “determinismo geográfico”.

Referência

MATA, Sergio da. Chão de Deus: Catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas Gerais, Brasil, Séculos XVIII-XIX. Berlin: WVB, 2002. 304p.

Francisco Pereira Neto – Doutor em Antropologia Social pelo Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor Adjunto na Universidade Federal de Pelotas. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pelotas. E-mail: [email protected] .

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